Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
307/09.1TBSRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: MÚTUO
ABUSO DE DIREITO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
Data do Acordão: 01/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 646.º N.º 4 E 653.º N.º 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E ARTIGOS 5.º E 6.º DO DECRETO-LEI 446/85, DE 25 DE OUTUBRO
Sumário: 1- Se, não havendo lugar à elaboração de base instrutória, um artigo dos articulados é constituído por um conceito de direito, o tribunal, face ao disposto nos artigos 646.º n.º 4 e 653.º n.º 2 do Código de Processo Civil, não lhe deve responder, visto que o juízo de provado ou não provado só pode recair sobre factos.

2- O mutuário que pagou 23 das 72 prestações mensais convencionadas e que ao 24.º mês deixa de efectuar esses pagamentos, actua com abuso de direito quando, mais tarde, argui a nulidade do contrato de mútuo com o fundamento de, por ocasião da celebração desse negócio, ter havido violação dos deveres de comunicação e de informação estabelecidos nos artigos 5.º e 6.º do Decreto-Lei 446/85 (cláusulas contratuais gerais), tendo ele, entretanto, usufruído livremente, durante pelo menos 23 meses, do veículo automóvel a que a quantia mutuada lhe deu acesso.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

Banco A...S.A. instaurou, na comarca da Sertã, a presente acção declarativa, destinada a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, contra B..., pedindo que a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 6.192,75 €, acrescida de 593,49 € de juros vencidos e de 23,74 € de imposto de selo sobre estes juros e juros vincendos, à taxa anual de 16,50%, bem como o imposto de selo que, à taxa de 4%, sobre estes juros recair.

Alegou, em síntese, que celebrou com o réu um contrato de mútuo para aquisição, por parte deste, de um veículo automóvel, no valor de 9.100 €, com juros à taxa nominal de 12,50% ao ano. A quantia mutuada deveria ser paga em setenta e duas prestações mensais sucessivas, para além dos juros devidos, a comissão de gestão, o imposto de selo de abertura de crédito e o prémio do seguro de vida, por transferência bancária, a efectuar aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações. Mais alega que o réu deixou de pagar as prestações acordadas e que lhe fez entrega do veículo, a cuja aquisição se destinava o montante mutuado, pedindo que o autor procedesse à respectiva venda e creditasse tal valor por conta do montante em dívida. O autor recebeu a viatura, vendeu-a e, havendo um remanescente em dívida, apesar de instado para efectuar tal pagamento, o réu não o fez.

O réu contestou dizendo, em suma, que as cláusulas previstas no contrato de mútuo que celebrou com o autor são cláusulas contratuais gerais e que houve violação por parte deste dos deveres pré-contratuais, nomeadamente os de comunicação e de informação, o que determina a nulidade do mesmo, e impugnando alguns dos factos alegados na petição inicial.

No início da audiência de julgamento o autor respondeu à excepção deduzida pelo réu, pugnando pela validade do contrato.

Realizou-se a audiência de julgamento.

Foi proferida sentença em que se decidiu:

I. Condenar o réu a pagar à autora o montante global de € 3.748,94 (três mil setecentos e quarenta e oito euros e noventa e quatro cêntimos), que se discrimina do seguinte modo:

a) O montante de € 2.369,82 (dois mil trezentos e sessenta e nove euros e oitenta e dois cêntimos) a título das prestações vencidas desde 30 de Junho de 2008 até 26 de Junho de 2009, acrescido do montante de € 391,02 (trezentos e noventa e um euros e dois cêntimos) a título de cláusula penal sobre as prestações em dívida até à data da propositura da acção e do imposto do selo de 4% sobre esta cláusula penal, no montante de € 15,64 (quinze euros e sessenta e quatro cêntimos) a que por sua vez se subtrai o valor de € 3703,60 já retido pela autora;

b) O montante de € 4.676,06 (quatro mil seiscentos e setenta e seis euros e seis cêntimos) a título do capital mutuado em dívida, a que por sua vez se subtrai o valor de € 927,12 correspondente ao remanescente do montante já retido pela autora, referido na alínea anterior;

II. Condenar ainda o réu a pagar à autora:

c) A cláusula penal de 16,50% sobre o montante referido em I.) desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;

d) O imposto do selo de 4% sobre a cláusula penal referida em c).

III. Absolver o réu do demais peticionado.

Inconformado com tal decisão, o réu interpôs recurso dela, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

a) Da Matéria de Facto

1 - A MM. Juiz “a quo” deu como provado:

- que as partes acordaram uma taxa de juro de 12,50% (vide alínea b) dos factos assentes);

- que a A é uma instituição de crédito (vide alínea f)  e   - que o R. não solicitou à A que esta lhe prestasse qualquer informação ou esclarecimento suplementar antes ou depois da aposição da sua assinatura no contrato dos autos (alínea cc)

2 - Com tal factualidade não pode o R conformar-se atendendo ao que resulta dos autos e aos depoimentos prestados pelas testemunhas, inclusive da A, em sede de audiência de discussão e julgamento, transcritos supra e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os legais efeitos.

3 - Como resulta da transcrição dos depoimentos nenhuma das testemunhas arroladas pela A esteve presente na outorga do contrato. Também nenhuma dessas testemunhas acompanhou todo o processo que vai desde a aprovação do crédito, negociação das cláusulas contratuais até assinatura do contrato.

4 - Isso mesmo foi dito por ambas as testemunhas como resulta do transcrito supra.

5 - Com efeito a primeira testemunha, a instância da MM. Juiz “ a quo” refere expressamente que “nunca tinha trabalhado neste processo nem na recuperação de crédito.” O que sabe e o que transmitiu ao Tribunal foi o que retirou da consulta da cópia do contrato.

6 - Tanto assim que a testemunha fez-se acompanhar de um apontamento que leu, motivo pelo qual foi interpelado pela MM. Juiz “ a quo” sobre que elementos é que estava a consultar ao que a testemunha respondeu: “Dados que tirei do contrato”

7 - Para além da testemunha em causa não ter intervindo no processo de negociação do contrato, (nem sequer podia pois só começou a trabalhar para a A no dia 3 de Julho de 2006) nem da sua celebração em representação da A, não refere, em momento algum, qual foi a taxa de juro que o banco fez constar do contrato.

8 - Aliás quanto ao procedimento que a A adopta no que concerne à negociação e outorga do contrato a testemunha referiu que: “Esse não é o departamento em que me sinto mais à vontade. O cliente vai a uma stand que trabalhe connosco e procura o carro que quer. Fala com o stand e fica tudo acordado, taxas e tudo. Envia-se o contrato por um colega para o cliente poder assinar”

9 - O depoimento desta testemunha no que concerne à forma como os contratos de crédito são assinados cai em plena contradição com o que foi dito pela testemunha arrolada pelo R. quando refere que os contratos são impressos directamente do computador já com a assinatura do representante da A.

10 - Do depoimento prestado pela segunda testemunha arrolada pela A também não poderia a MM. Juiz “ a Quo” dar como provado que as partes acordaram a taxa de juro de 12,50%

11 - Com efeito a testemunha refere que só teve intervenção quando o R. entrou em mora, só teve intervenção na fase de recuperação do crédito.

12 - O que referiu em sede de audiência de discussão e julgamento foi como base em elementos que retirou do sistema informático e a cujos apontamentos teve que recorrer. Com efeito

13 - Da transcrição do julgamento resulta que também esta testemunha foi interpelada pela MM. Juiz “a quo” que lhe perguntou: O senhor está a consultar alguma coisa?

Ao que a testemunha respondeu: “Uns apontamentos em relação ao julgamento. Referiu ainda que tirou os dados (que acabava de narrar) do sistema informático.”

14 -Por seu turno a testemunha arrolada pelo R. C... referiu que não explica aos clientes o que é a Cláusula penal, o seu valor e a TAEG. Aliás a testemunha confessa perante o tribunal que não sabe qual é o valor da cláusula penal.

15 - A instância do mandatário da A refere mesmo que não referiu ao cliente qual era a taxa de juro, assim como não referiu ao R que podia anular o contrato no prazo de 7 dias.

16 - Atendendo a que o R impugnou expressamente todos os factos alegados pela A em sede de P.I. no que concerne às clausulas constantes do contrato e que impugnou o teor do mesmo;

17 - Face aquele que foi o depoimento das testemunhas arroladas pela A.

18 - A MM. Juiz a” quo” não poderia ter dado como provado que as partes ( A e R) acordaram uma taxa de juros de 12,50 % ao ano.

19 - Com efeito, porque não assistiram às conversas existentes entre o dono do stand e o R aquando da negociação do crédito, nenhuma credibilidade poderia ter sido conferida às testemunhas da A.

20 - Face ao depoimento da testemunha C..., o qual se mostrou isento e pormenorizado sobre todas as circunstâncias que antecederam e acompanharam a negociação do crédito, deveria o Tribunal “ quo” ter dado como não provado que A e R acordaram uma taxa de 12,50%.

21 - Do mesmo modo não poderia ter dado como provado o constante da alínea F).

22 - Com o devido e merecido respeito por opinião contrária, em convicção do R que tal facto apenas por documento pode ser provado.

23 - Como resulta dos autos, nenhum documento foi junto de modo a permitir que o Tribunal “a quo” desse como provado que a A é uma instituição de crédito.

24 - Não tendo a A junto aos autos qualquer documento para prova da sua qualidade de instituição financeira,

25 - Deveria o Tribunal “ quo” ter dado como não provado o facto a que se reporta a alínea f)

26 - No que diz respeito a matéria de facto dada como provada sob a alínea cc) é convicção do R, e sempre com o devido e merecido respeito que não constam dos autos elementos probatório para que a MM. Juiz “ a quo” desse tal matéria como assente.

27 - Decorre do depoimento da primeira testemunha da A e transcrito supra que a mesma nunca trabalhou neste processo nem na recuperação de crédito.

28 - Não tendo conhecimento do processo, pois não foi ele quem negociou com o R, não pode dizer e muito menos convencer o Tribunal “a quo” de que o R. nunca contactou a A a pedir algum esclarecimento, até porque, como já referido supra o depoimento desta testemunha é contraditório com o da testemunha C....

29 - Alias, atendendo a que o empréstimo para aquisição de carro foi negociado com o dono do stand e que este não informou o R sobre as clausulas importantes, não só o R não pode ter duvidas, como, a existirem, teria colocado as mesmas ao dono do stand que foi a única pessoa com quem dialogou

30 - Para que duvidas se tivessem levantado no espírito do R. necessário seria que o dono do stand lhe tivesse dito que da prestação a pagar a mesma incluía capital e juros, que os juros eram a uma taxa diferente da taxa legal, que estava sujeito a um TAEG, que em caso de incumprimento estava sujeito a uma clausula penal de determinado montante e que o vencimento de uma prestação implicaria o imediato vencimento das restantes.

31 - Atendendo ao modo como a aquisição do Seat foi negociada, é de aceitar que nenhuma duvida surgisse ao R.

32 - Para além disso foi dito pelo próprio dono do stand que não foi comunicada ao R. a possibilidade de resolver o contrato depois de assinar.

33 - Não tendo tal comunicação sido feita, de nada adiantaria, na perspectiva do R., pedir esclarecimentos depois de o contrato já estar assinado.

34 - Por outro lado, a segunda testemunha da A só teve intervenção neste processo na fase da recuperação do crédito. Como tal nada disse no que diz respeito à matéria dada como provada na alínea cc)

35 - Pelo exposto resulta que a matéria constante da alínea cc deverá passar a ser dada como não provada face ao depoimento conjugado três testemunhas que depuseram em audiência de discussão e julgamento e transcrito supra.

 B) Da Matéria de Direito

36 - As clausulas previstas no contrato de mútuo junto aos autos, não são mais do que clausulas contratuais gerais na medida em que as mesmas são pré-elaboradas, existindo disponíveis antes de surgir a declaração que as perfilha, apresentando-se sem possibilidade de alteração e podem ser utilizadas por pessoas indeterminadas.

37 - A especificidade do recurso às cláusulas contratuais gerais levou o legislador, de novo, a concretizar tanto quanto possível, o dever de informação.

Quem utiliza as cláusulas deve, por força do n.º 1 do artigo 6.º, além de comunicar o respectivo conteúdo, informar o aderente do seu significado e das suas implicações.

38 - Atendendo à natureza do contrato junto aos autos, e sempre com o devido e merecido respeito por opinião contrária, é convicção do R que merecem especial informação as cláusulas que dizem respeito:

- Ao montante pago a título de capital e juros convencionados

- À taxa de juro convencionada.

- Valor e significado da clausula penal.

- O que é a TAEG

- Consequências do incumprimento de uma prestação.

39 - No caso em apreço resultou provado que não foi prestada qualquer informação ao R sobre as clausulas constantes do acordo referido em a) por parte dos representantes da A. (alínea m)

Não foi dito ao R por parte dos representantes da A que através do contrato a subscrever se acordava um regime diferente do que resulta da lei (alínea n))

Não foi explicado ao R. o que era a cláusula penal, seu valor e TAEG  (alínea o))

Não foi dito ao R quanto pagaria por mês a título de capital e juros (vide alínea p)

O R. nunca foi contactado pessoalmente por algum representante da A. (alínea q)

Apenas foi dito ao R que a falta de pagamento das prestações originava a acumulação de juros. (alínea R)).

Não ficou igualmente provado que se tenha concedido ao R. tempo para ler e compreender as cláusulas constantes do contrato antes de o ter assinado. (Alínea gg)

Em relação ao constante do contrato, o R nunca foi contactado pessoalmente por algum representante da A e o fornecedor só o informou que a falta de pagamento das prestações implicava a acumulação de juros, não se provando que o mesmo estivesse habilitado a tirar duvidas que o R apresentasse, como resulta claramente de todo o seu depoimento e transcrito supra, em especial quando refere não saber o que é a clausula penal e qual o seu valor, não obstante a mesma seja igual em todos os contratos.

40 - Atendendo ao alegado supra deverá ser dado como não provado que A e R acordaram a taxa de juro anual era de 12,50%.

41 - Do exposto resulta que a A não cumpriu o dever de comunicação e informação que sobre si impendia.

42 - Aliás da resposta apresentada pela A resulta claramente que a mesma não só não dá cumprimento a tal dever de comunicação e informação como confessa tal omissão.

43 - A A não desenvolveu nenhuma actividade que permitisse dar a conhecer ao R as cláusulas ínsitas no contrato,

44 - Pelo que a A não deu cumprimento ao dever de comunicação e informação a que estava obrigada por forca do disposto no artigo 5.º e 6.º do regime da Clausulas Contratuais Gerais.

45 - As clausulas que não tenham sido comunicadas nos termos do artigo 5.º do citado diploma legal e as comunicadas com violação do dever de informação, de molde a que não seja de esperar o seu efectivo conhecimento consideram-se excluídas dos contratos singulares.

46 - Em principio, a exclusão das clausulas inseridas não contrato gera a sua nulidade, sendo aplicável o regime constante do artigo 9.º n.º 1 do mesmo diploma legal.

47 - Nos casos previsto no artigo anterior, os contratos singulares mantêm-se, vigorando na parte afectada as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras da integração dos negócios jurídicos.

48 - Todavia, se ocorre uma indeterminação insuprível do seu objecto ou desequilíbrio gravemente violador das regras da boa-fé, o contrato é nulo como decorre do previsto no n.º 2 do artigo 9.º.

49 - Tal como refere a MM. Juiz a quo as”clausulas incluem-se nos dois fundamentos de exclusão supra mencionados, pois não foram devidamente comunicadas nem o R informado do respectivo conteúdo”

50 - Daqui resulta a aplicação às ditas clausulas das consequências legalmente definidas, ou seja, a sua exclusão do contrato e, considerando que da mesma decorre uma indeterminação insuprível dos aspectos essenciais, nomeadamente da taxa de juro anual, TAEG e clausula penal, tal determina a nulidade do contrato como decorre também do artigo 7.º n.º 1 do DL 359/91 de 21 de Setembro.

51 - Pelo exposto deveria a MM. Juiz ter declarado nulo o contrato.

52 - Não o tendo feito violou o previsto nos artigo 9.º n.º 1 do Regime legal da clausulas contratuais gerais.

53 - A circunstância de o recorrente ter cumprido parte do contrato, usando a expressão do Prof. Antunes Varela, fez crer à contraparte que não iria lançar mão da arguição da nulidade, incorrendo, nessa medida, em abuso do direito?

54 - Não parece que assim seja. Como se escreveu no acórdão do Supremo, de 30.10.2007, referido a propósito da questão da nulidade, que contempla uma situação em tudo semelhante à presente, “na ponderação de saber se houve abuso do direito (…) o tribunal deve actuar com prudência quando se está perante uma relação de consumo, onde é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor (…) e o consumidor, sendo de equacionar se, ao actuar como actuou, a autora, prevalecendo-se da superioridade negocial em relação a quem recorreu ao seu crédito, não infringiu ela mesmo, em termos censuráveis, os deveres de cooperação, de lealdade e de informação, em suma, os princípios da boa fé”.

55 - É a consideração da primazia, no fundo, da tutela dos interesses do consumidor sobre os do financiador que, como se salientou, ainda, no mesmo acórdão, dispõe de um arsenal de meios logísticos, marketing e publicidade contra o qual a possibilidade de defesa do devedor é praticamente inglória.

56 - Quem, de facto, violou a relação de boa fé e de confiança que deve existir entre quem contrata foi a autora, que, não obstante soubesse que deveria informar o R de todas as cláusulas apostas no contrato não o fez. Como resulta da matéria de facto dada como provada em sede de 1.º instância e que deverá ser tida como provada em sede de recurso a A nunca falou como o R e o comerciante de automóveis a única coisa que lhe disse foi que deveria evitar deixar de pagar as prestações para não acumular juros. A testemunhas C..., não disse ao R qual o valor da taxa de juros anual, que esta era diferente da taxa de juro comercial, o que era a clausula penal e o seu montante, não disse o que era a TAEG, não lhe disse que a falta de pagamento de uma prestação implicava o vencimento das restantes.

57 - Pelo contrário, remetendo-se ao silêncio a A ficou esperançada de que mais uma pessoa caísse nas malhas das cláusulas contratuais gerais manifestando-se assim apenas preocupada, unicamente, com os lucros que o financiamento lhe poderia proporcionar.

58 - Neste condicionalismo, cabia à A., que não ignora as dificuldades que uma significativa parte da população vem atravessando (até pelo volume de acções que tem em curso nos tribunais portugueses para tentativa de cobrança dos financiamentos que faz), alertar o R., antes da assinatura do contrato para todas as clausulas nele constantes e para as consequências decorrentes da eventualidade de não poder cumprir a prestação assumida.

59 - A A. primou pela ausência, em infracção ao dever de informação, à lei e ao princípio da boa fé contratual.

60 - Não choca, por isso (não é clamorosamente ofensivo da justiça ou do sentimento jurídico dominante), a actuação do réu, que, não esclarecido, em tempo oportuno, por quem tinha a obrigação de o fazer, invoca a nulidade do contrato depois do seu cumprimento parcial e depois de deixar de ter possibilidade de pagar.

61 - Ao considerar que o R. actuou com abuso de direito a MM Juiz “ a quo” interpretou e aplicou erradamente o disposto no artigo 334.º do CC

Termina pedindo que se dê provimento ao recurso em conformidade com o alegado.

A ré contra-alegou defendendo que se mantenha decisão recorrida.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) há erro no julgamento da matéria de facto que figura nos artigos 2.º (apenas no que se refere à taxa de juro) e 10.º da petição inicial e 26.º da resposta à contestação;

b) sendo nulo o contrato, ao arguir tal nulidade o réu está a actuar com abuso de direito.


II

1.º


O réu sustenta que a prova produzida conduz a conclusões diferentes das extraídas pelo tribunal a quo, no que se refere ao julgamento da matéria de facto alegada nos artigos 2.º e 10.º da petição inicial e 26.º da resposta à contestação, que foi julgada provada e que se encontra na sentença recorrida sob b), f) e do cc) dos facto provados. Segundo o réu não se podia ter dado como provado que as partes acordaram uma taxa de juro de 12,50% (vide alínea b) dos factos assentes); que a A é uma instituição de crédito (vide alínea f) e que o R. não solicitou à A que esta lhe prestasse qualquer informação ou esclarecimento suplementar antes ou depois da aposição da sua assinatura no contrato dos autos (alínea cc)[1]. Regista-se, assim, que no que toca ao alegado no artigo 2.º da petição inicial, a divergência do réu reporta-se somente à parte em que se considerou provado que foi convencionada uma taxa de juro de 12,5%.

Nos artigos 2.º e 10.º da petição inicial e 26.º da resposta à contestação consta:

Artigo 2.º - nos termos do contrato assim celebrado entre o A. e o R., aquele emprestou a este a dita importância de Euros 9.100,00, com juros á taxa nominal de 12,50% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, bem como a comissão de gestão, o imposto de selo de abertura de crédito e o prémio do seguro de vida, serem pagos, nos termos acordados, em 72 prestações, mensais e sucessivas, com vencimento, a primeira, em 30 de Julho de 2006 e as seguintes nos dias 30 dos meses subsequentes

Artigo 10.º - o A. é uma instituição de crédito, nos termos e de harmonia com o disposto na alínea a) do artigo 3.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei 298/92 de 31 de Dezembro;

Artigo 26.º - O R. não solicitou ao A. que este lhe prestasse qualquer informação ou esclarecimento suplementar anteriormente à aposição da assinatura no contrato dos autos, ou sequer posteriormente.

Ao aqui alegado a Meritíssima Juíza respondeu:

Artigo 2º- Provado que as partes acordaram que a importância do empréstimo e os juros à taxa de 12,5% ao ano, bem como o prémio de seguro de vida, seriam pagos em 72 prestações mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 30 de Julho de 2006 e as seguintes nos dias 30 dos meses subsequentes.

Artigo 10º - A A é uma instituição de crédito.

Artigo 26º - O R não solicitou à A que esta lhe prestasse qualquer informação ou esclarecimento suplementar antes ou depois da aposição da sua assinatura no contrato dos autos.

Salvo melhor juízo, a expressão instituição de crédito, usada pelo autor no artigo 10.º da petição inicial, é, à luz do disposto, nomeadamente, nos artigos 2.º, 3.º e 4.º do Decreto-Lei 298/92, onde se define o que é juridicamente uma instituição financeira (diferenciando-as, por exemplo, das sociedades financeiras), um conceito de direito; não se trata da alegação de um facto[2].

Como é sabido, o artigo 646.º n.º 4 do Código de Processo Civil dispõe que têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes. Esta norma está em sintonia com o n.º 2 do artigo 653.º do mesmo código, onde se determina que a decisão relativa à matéria de facto declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provado, estabelecendo-se, desta forma, o princípio de que, nesse momento processual, o tribunal só deve pronunciar-se sobre matéria de facto[3], visto que, na verdade, o juízo de provado ou não provado, só pode recair sobre factos.

Assim, a Meritíssima Juíza não devia ter respondido (provado ou não provado) ao alegado no artigo 10.º da petição inicial, mas, tendo-o feito nos termos em que o fez, essa sua resposta, face ao disposto no artigo 646.º n.º 4 do Código de Processo Civil, tem-se por não escrita, devendo, por isso, retirar-se dos factos provados o que aí se encontra sob f).

Reapreciando a matéria de facto relativa ao alegado acordo de uma taxa de juro de 12,5% (artigo 2.º da petição inicial) e à alegação de que o réu não solicitou ao autor que este lhe prestasse qualquer informação ou esclarecimento suplementar antes ou depois da aposição da sua assinatura no contrato dos autos (artigo 26.º da resposta à contestação), uma vez ouvidos os depoimentos prestados e examinados os documentos juntos ao processo, temos que as testemunhas D.... e E...., que trabalham para o autor, exercendo as funções de recuperadores de créditos, como ele próprios reconheceram, não sabem como foi negociado o contrato; o que conhecem, nesse capítulo, é o que resulta da documentação que o autor tem na sua posse. Disseram também que não têm notícia de que o réu tenha pedido ao autor qualquer esclarecimento ou informação relativa aos termos do contrato, sendo certo que a eles isso não foi solicitado. D..afirmou que se o autor tivesse pedido algum esclarecimento isso teria sido feito através da linha de apoio ao cliente e, nesse caso, haveria registo de tal contacto. A testemunha C... foi quem vendeu ao réu o veículo que, para este o poder comprar, o levou a celebrar com o autor o contrato dos autos. Segundo C... o contrato foi assinado no seu stand e foi ele quem serviu de intermediário entre o réu e o autor. Explicou que foi no seu stand que se realizou a simulação do crédito, com um programa fornecido pelo autor. Depois o stand enviou a proposta para o autor, que lha devolveu, já subscrita por quem representa o banco, e então a testemunha deu-a a assinar ao réu. Diz que não prestou qualquer informação ao réu quanto à taxa de juro e que este não lhe pediu esclarecimentos relativos às cláusulas do contrato.

Face a esta prova não conseguimos saber, com um grau mínimo de certeza, o que é que pode ter sido conversado entre o autor e o réu antes da celebração do contrato, no que se refere à taxa de juro, se é que entre eles houve alguma conversa, pois do depoimento da testemunha C... resulta que não chegaram a estabelecer um contacto directo. A prova testemunhal é, como defende o réu, insuficiente para se poder concluir que no contrato se convencionou uma taxa de juro de 12,5%.

Porém, nos autos encontra-se o documento da folha 10, que é o contrato de mútuo n.º 768148, onde, ente outros elementos, consta a taxa de juro de 12,50%, e esse contrato está assinado pelo réu e a sua autenticidade não foi por este colocada em crise. Portanto, é certo que o réu assinou o contrato da folha 10 e que nele figura a taxa de juro de 12,5%.

E, relativamente à questão da taxa de juro, o que se alegou no artigo 2.º da petição inicial foi que nos termos do contrato assim celebrado entre o A. e o R., aquele emprestou a este a dita importância (…) com juros á taxa nominal de 12,50% ao ano. Ora, o documento da folha 10 é suficiente para se concluir que nesse contrato está estabelecida uma taxa de juro de 12,5%, o que significa que se deve ter por provado que, conforme o alegado, nos termos do contrato (…) celebrado entre o A. e o R., aquele emprestou a este a dita importância (…) com juros á taxa nominal de 12,50% ao ano.

A expressão as partes acordaram, que a Meritíssima Juíza utilizou na resposta que deu a esta matéria de facto, não parece ser a mais adequada, na medida em que ao dizer-se que acordaram se pode subentender que, quanto a esse aspecto, esse acordo foi precedido de debate ou de negociação entre os seus intervenientes, e isso não se demonstrou ter ocorrido.

Deverá, então, usar-se a expressão que figura no artigo 2.º e não aquela de que se socorreu a Meritíssima Juíza. A restante parte da resposta a esta matéria, por não ter sido impugnada[4], mantém-se tal como se encontra.

Assim, a reposta a dar ao alegado no artigo 2.º da petição inicial é:

Artigo 2.º- Provado que nos termos do contrato celebrado entre o autor e o réu, aquele emprestou a este a dita importância com juros à taxa nominal de 12,5% ao ano, e acordaram que a importância do empréstimo e os juros, bem como o prémio de seguro de vida, seriam pagos em 72 prestações mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 30 de Julho de 2006 e as seguintes nos dias 30 dos meses subsequentes.

Por último, relativamente ao alegado no artigo 26.º da resposta à contestação, é pacífico que não se produziu qualquer prova de que o réu apresentou um pedido de informação ou esclarecimento do contratado, antes ou depois de se celebrar o contrato. Mas, a ausência de notícia de ter sido formulado um pedido dessa natureza não é sinónimo de que, de certeza, ele não existiu.

Nenhuma das três testemunhas mostrou ter conhecimentos que nos assegurem que é certo que, antes do negócio, o réu não contactou alguém que representasse o autor. As testemunhas D..e F... só tiveram contacto com esta questão a partir da altura em que o réu deixou de realizar o pagamento das prestações, pelo que não sabem que conversas é que pode ter havido entre as partes até ao momento em que se venceu a 23.ª prestação, que é a última que foi paga. E a circunstância de, como afirmou D..., não haver registo de um contacto do réu para a linha de apoio ao cliente não chega para que se tenha como assente que, por essa via ou por alguma outra, tal contacto nunca existiu. A testemunha C..., por não trabalhar para o autor, não está em condições de saber que diálogos podem ter sido estabelecidos, directamente, entre este e o réu.

Nestes termos, conclui-se que a prova produzida não é suficiente para que se considerar provado o alegado no artigo 26.º da resposta à contestação, o que quer dizer que se responde não provado a tal matéria.


2.º

Estão provados os seguintes factos:

a) A autor, no exercício da sua actividade comercial e com destino, segundo a informação prestada pelo réu, à aquisição de um automóvel da marca Seat, modelo Ibiza 1.2 12 V Signo, com a matrícula ... por acordo constante de documento particular datado de 3 de Julho de 2006, junto a fls. 10 a 11 e cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, concedeu ao réu a importância de € 9.100, 00.

b) Nos termos do contrato celebrado entre o autor e o réu, aquele emprestou a este a dita importância com juros à taxa nominal de 12,5% ao ano, e acordaram que a importância do empréstimo e os juros, bem como o prémio de seguro de vida, seriam pagos em 72 prestações mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 30 de Julho de 2006 e as seguintes nos dias 30 dos meses subsequentes.

c) A importância de cada uma das prestações deveria ser paga através de transferências bancárias a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das prestações, da conta do réu n.º ..., da agência 797 Sertã, do F..., para conta bancária indicada pela autor.

d) As cláusulas 8ª, alínea b) e 4ª, alínea c) do acordo referido no facto provado a) têm, respectivamente, a seguinte redacção: “A falta de pagamento de uma prestações na data do respectivo vencimento implica o vencimento imediato de todas as restantes.” e “No valor das prestações estão incluídos o capital, os juros do empréstimo, o valor dos impostos devidos, bem como os prémios das apólices de seguro a que se refere a Cláusula 13 destas Condições Gerais”.

e) A cláusula 8.ª, alínea c) do acordo referido no facto provado a) tem a seguinte redacção: “Em caso de mora, e sem prejuízo do disposto no número anterior, incidirá sobre o montante em débito, e durante o tempo da mora, a título de cláusula penal, uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual acrescida de quatro pontos percentuais, bem como outras despesas decorrentes do incumprimento, nomeadamente uma comissão de gestão por cada prestação em mora”.

f) (eliminado).

g) Em 07 de Agosto de 2008 o réu e a autor celebraram um acordo de subscrição dos serviços do seguro de “Protecção Total”, em aditamento ao acordo referido em a), pelo qual estabeleceram que a prestação mensal passaria a ser no montante de € 208,95, a partir de 30 de Agosto de 2006, conforme documento junto aos autos a fls. 12, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.

h) O réu não providenciou pelas transferências bancárias para pagamento da 24ª prestação e seguintes dos acordos referidos em a) e g), nem quem quer que fosse por ele, as pagou à autor.

i) O acordo referido em g) foi anulado em 30 de Dezembro de 2008, a solicitação do réu.

j) O réu entregou ao autor o veículo referido no facto provado a) para esta diligenciar pela respectiva venda e creditar o valor obtido por essa venda por conta da importância em débito e juros.

k) Em 25 de Novembro de 2008, a autor procedeu à venda do dito veículo automóvel, pelo preço de € 3.703, 60, deduzidos os encargos e as despesas da venda, e ficou com esta quantia por conta das importâncias em débito e juros.

l) Instado para pagar o valor de € 6.192,75 ao autor, o réu não o fez.

m) Não foi prestada ao réu qualquer informação sobre as cláusulas constantes do acordo referido em a) por parte dos representantes do autor.

n) Não foi dito ao réu por parte dos representantes do autor que através do contrato a subscrever se acordava um regime diferente do que resulta na lei.

o) Apenas que não foi explicado ao réu o que era a cláusula penal, o seu valor e a TAEG.

p) Não foi dito ao réu quanto pagaria por mês a título de capital e de juros.

q) O réu nunca foi contactado pessoalmente por algum representante do autor.

r) Das cláusulas constantes do acordo referido em a) dos factos provados, o fornecedor do veículo automóvel apenas disse ao réu que a falta de pagamento das prestações originava a acumulação de juros.

s) O réu nunca foi a Castelo Branco para assinar documentos referentes à compra do referido veículo.

t) Apenas que o fornecedor do veículo automóvel que o réu se propunha adquirir, propôs ao autor a concessão de empréstimo directo ao réu com destino à aquisição do veículo automóvel por este, que não dispunha de possibilidades de o pagar a pronto.

u) E enviou à autor os elementos de identificação do réu, comunicou o montante do empréstimo directo a conceder ao réu, no valor de € 9.100,00, conforme acordado com ele em momento prévio, com destino à aquisição por este do dito veículo automóvel.

v) O autor acedeu, após analisar os referidos elementos, em conceder ao réu o crédito, no montante de € 9.100,00, com destino à aquisição por ele do dito veículo automóvel.

w) O autor comunicou tal decisão ao fornecedor do veículo automóvel.

x) O autor, após ter recebido as informações que lhe foram prestadas pelo fornecedor do veículo automóvel, elaborou, em conformidade com tais elementos de identificação e com o montante ajustado entre o réu e aquele, o acordo referido em a) dos factos provados.

y) De seguida, a autor enviou ao fornecedor o documento referido em a) dos factos provados, em dois exemplares integralmente preenchidos e impressos, para que os mesmos fossem assinados pelo réu e enviou a informação nos termos constantes de fls. 76, e cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, para que a mesma fosse também assinada pelo réu.

z) Após a aposição nos dois exemplares do documento referido em a) da assinatura de um representante do autor, esta enviou um exemplar do acordo, com destino ao réu.

aa) Aquando da assinatura pelo réu o documento referido em a) encontrava-se integralmente impresso.

bb) A autor estava à disposição do réu para lhe prestar todos os esclarecimentos e informações complementares que este reputasse necessários, quer antes de este subscrever o contrato referido nos autos, quer após.

cc) (eliminado).

dd) A presente acção foi proposta em 26 de Junho de 2009.


3.º

Fixados que estão, agora, os factos provados, importa começar por dizer que as alterações que neles foram introduzidas, no âmbito deste recurso, não têm qualquer efeito no respectivo enquadramento jurídico. Pois, por um lado, continua a resultar provado que, no contrato celebrado entre as partes, se estipulou uma taxa de juro de 12,5%. Por outro lado, a circunstância de já não se encontrar nos factos provados que o autor é uma instituição crédito é de todo irrelevante para a decisão de qualquer uma das questões que se colocam nos autos, sendo certo que está assente que foi no exercício da sua actividade comercial[5] que o autor celebrou com o réu o contrato de mútuo. E o facto de ter deixado de estar provado que o réu não solicitou ao autor que lhe prestasse qualquer informação ou esclarecimento suplementar antes ou depois da aposição da sua assinatura no contrato é também juridicamente inócuo, visto que é a este que cabe o ónus de provar que cumpriu os seus deveres de comunicação e informação, estabelecidos nos artigos 5.º e 6º do Decreto-Lei 446/85 de 25 de Outubro. Por isso, é indiferente saber (ou não saber) que o réu não pediu informações e esclarecimentos. 

4.º

Na sentença recorrida, a dada altura, afirma-se:

As cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do artigo 5º do referido diploma (Decreto-Lei 446/85 de 25 de Outubro) e as comunicadas com violação do dever de informação, de molde a que não seja de esperar o seu efectivo conhecimento consideram-se excluídas dos contratos singulares. Em princípio, a exclusão das cláusulas pré-inseridas no contrato não gera a sua nulidade, sendo aplicável o regime constante do art. 9.º, n.º1, do DL. 446/85, que estatui:

“1. Nos casos previstos no artigo anterior os contratos singulares mantêm-se, vigorando na parte afectada as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos.

Tal significa de acordo com o princípio da redução previsto no artigo 292.º do Código Civil que expurgado o contrato das cláusulas viciadas é aplicável o regime próprio dos negócios jurídicos compagináveis com as cláusulas excluídas. Todavia, se ocorrer uma indeterminação insuprível do seu objecto ou desequilíbrio gravemente violador das regras da boa fé, o contrato é nulo (n.º 2).

As cláusulas em causa incluem-se nos dois fundamentos de exclusão supra mencionados, pois não foram devidamente comunicadas, nem foi o réu informado do respectivo conteúdo.

Daqui resulta a aplicação às ditas cláusulas das consequências legalmente definidas, ou seja a sua exclusão do contrato e, considerando que da mesma decorre uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais, nomeadamente no que se reporta às condições de reembolso do crédito e à taxa anual de encargos efectiva global (TAEG), que determina a nulidade do contrato, igualmente cominada no artigo 7.º, n.º 1 do D.L. n.º 359/91, de 21 de Setembro.

Em decorrência, por configurar uma situação de abuso de direito, as consequências que a lei faz decorrer daquela ausência de comunicação e informação deixam de ter lugar, tudo se passando como se tivesse decorrido com a normalidade e correcção que a lei supõe e pretende, o que se entende ser de determinar nos presentes autos.

O réu defende que, ao contrário do decidido na sentença recorrida, não age com abuso de direito, pois não choca a sua actuação quando, não esclarecido, em tempo oportuno, por quem tinha a obrigação de o fazer, invoca a nulidade do contrato depois do seu cumprimento parcial e depois de deixar de ter possibilidade de pagar[6].

Nos termos do artigo 334.º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

O abuso de direito verifica-se quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, todavia no caso concreto aparece exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça[7]. Por isso o abuso de direito deve funcionar como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica[8]. No abuso de direito a ilegitimidade não resulta da violação formal de qualquer preceito legal concreto, mas da utilização manifestamente anormal, excessiva do direito[9]. Para haver abuso de direito é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito[10].

Pode ocorrer abuso do direito, na modalidade do "venire contra factum proprium", quando existem condutas contraditórias do seu titular a frustrar a confiança criada pela contraparte em relação à situação futura[11], pois o "venire contra factum proprium" configura uma violação qualificada do princípio da confiança[12], sendo certo que as relações entre as pessoas pressupõem um mínimo de confiança sem a qual não seriam possíveis[13].

No caso dos autos, o réu celebrou com o autor o contrato de mútuo a 3 de Julho de 2006 e durante 23 meses cumpriu as obrigações dele decorrentes, nunca questionando a sua validade. Ao 24.º mês deixa de pagar a prestação mensal a que se obrigara e, só mais tarde, coloca em crise o negócio celebrado, por o considerar nulo. O réu, mesmo ainda antes de se completar um ano sobre a realização do negócio, teve mais do que tempo suficiente para melhor examinar o contrato, averiguar da sua conformidade à legislação vigente e aconselhar-se com quem entendesse. E, tendo tido tal oportunidade, nada fez, mantendo, ao pagar ao longo de 23 meses a prestação mensal convencionada, um comportamento de aceitação do contrato. Ao cumprir, por um período de quase dois anos, o acordado, passou para o exterior a ideia de que tudo estava bem e que nada podia abalar os alicerces do contrato. Nessa medida, ao vir agora arguir a nulidade do contrato, o réu actua em claro abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium[14]. Com efeito, é evidente que ao agir como agiu, durante tanto tempo, criou no autor a legítima expectativa de que não arguiria tal nulidade, expectativa essa que, por sua vez, é suficiente para que este pudesse pensar que, a este nível, não existiria qualquer problema entre as partes. E ofende o sentimento de justiça que só se questione o contrato mais de dois anos depois dele ter sido celebrado, com fundamento na conduta que o autor teve por ocasião da sua celebração, tendo o réu, entretanto, usufruído livremente, durante pelo menos 23 meses, do veículo automóvel a que a quantia mutuada lhe deu acesso.


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo réu.


António Beça Pereira (Relator)
Nunes Ribeiro
Hélder Almeida


[1] Cfr. folha 157.
[2] São factos as ocorrências concretas da vida real, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 406. Defendendo esse entendimento, veja-se Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª Edição, pág. 525 e 526.
[3] Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 8.ª Edição, pág. 376.
[4] Reafirma-se que neste recurso o réu só questiona a resposta à matéria do artigo 2.º da petição inicial no seu segmento relativo à taxa de juro.
[5] Cfr. facto a) dos factos provados.
[6] Cfr. conclusão 60.ª.
[7] Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 3.ª Edição, pág. 63.
[8] Ac. STJ de 18-6-02, Jurisprudência Seleccionada de Teoria Geral do Direito Civil I, pág. 321.
[9] Ana Prata, Dicionário Jurídico, 5.ª Edição, Vol. I, pág. 13.
[10] Ac. STJ de 25-6-98, Jurisprudência Seleccionada de Teoria Geral do Direito Civil I, pág. 340.
[11] Ac. STJ de 17-1-02, Proc. 3778/01, Ref. 199/2002, www.colectaneade jurisprudencia.com.
[12] Ac. Rel. Porto de 19-1-96, Proc. 838/96, Ref. 10216/1996, www.colectaneade jurisprudencia.com. Neste sentido Ana Prata, Dicionário Jurídico, 5.ª Edição, Vol. I, pág. 1523, Ac. STJ de 25-5-99, Proc. 409/99, Ref. 4235/1999 e Ac. Rel. Lisboa de 20-5-99, Proc. 362/99, Ref. 10011/1999, ambos em www.colectaneade jurisprudencia.com.
[13] Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do direito Civil, 5.ª Edição, pág. 20.
[14] Neste sentido pode ver-se Ac. Rel. Lisboa de 2-5-2006 no Proc. 12155/05-7 com a Ref. 7590/2006, Ac. Rel. Coimbra de 12-2-2008 no Proc. 366/05 com a Ref. 3977/2008, em www.colectaneadejurisprudencia.com e Ac. Rel. Lisboa de 23-5-1996 no Proc. 0011822, Ac. Rel. Lisboa de 28-6-2007 no Proc. 4307/2007-6 e Ac. Rel. Porto de 16-12-2009 no Proc. 1179/08.9TBPFR em www.gde.mj.pt, para além dos acórdãos que já se encontram citados nos autos (Ac. Rel. Lisboa 9-5-2006 no Proc. 12155/2005-7, Ac. Rel. Lisboa de 2-6-2005 no Proc. 4336/2005-8 e Ac. Rel. Porto de 22-2-2005 no Proc. 0426038).