Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
58/16.0PTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: NEGLIGÊNCIA
DEFINIÇÃO
INCREMENTO DO RISCO PROIBIDO
Data do Acordão: 10/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA, EM PARTE
Legislação Nacional: ART.ºS 15.º E 137.º, N.º 1, DO CP
Sumário: I – No proémio do art.º 15.º do CP, a negligência é definida, de modo unitário, prevendo o tipo de ilícito – a violação do cuidado a que o agente, segundo as circunstâncias, está obrigado portanto, a violação do cuidado objectivamente devido – e o tipo de culpa – a violação do cuidado que o agente, de acordo com os seus conhecimentos e capacidades pessoais, está em condições de observar.

II - Assim, no caso do crime de homicídio por negligência, p.p. pelo art.º 137.º do CP, o tipo de ilícito fica preenchido sempre que uma conduta diverge da que era objectivamente devida numa situação de perigo para a vida humana, por forma a evitar a violação deste bem que, por causa daquela divergência, vem a ser efectivamente lesado.

Já o tipo de culpa fica preenchido quando aquele dever de cuidado objectivamente devido – previsível, evitável e inobservado – podia também ter sido cumprido pelo agente concreto, de acordo com as suas capacidades, inteligência, experiência de vida e posição social.

III - Existe “autoria paralela” quando vários agentes participam na realização do facto ou na produção do resultado típico com independência uns dos outros. Não se trata, como é óbvio, de uma verdadeira forma de comparticipação, mas de duas autorias que correm, digamos assim, uma ao lado da outra, sem nunca se tocarem.

IV – Aos crimes negligentes não é aplicável o critério do domínio do facto para a determinação da comparticipação, sendo adoptada uma concepção unitária de autoria para a qual é autor aquele (todo aquele) que, com a sua actuação violadora do cuidado imposto, cria ou potencia um perigo proibido que se concretiza no resultado (na realização) típico. Por isso, nos crimes desta natureza, havendo co-actuação por negligente, apenas poderá falar-se em ‘autoria paralela’.

V - Inferindo-se da factualidade provada que o peão atravessou a via fora da passadeira, mesmo que se admita que o fez em contravenção ao disposto no art.º 101.º, n.º 3 do C. da Estrada [como vimos, não foi apurada a distância que medeia entre o local da travessia e a passadeira existente junto aos semáforos referidos], estando também provado que o fez [o atravessamento da via] aproveitando a sinalização verde para peões, e vermelha para o recorrente, dos semáforos em referência, o cometimento desta infracção não foi causal do acidente.

VI – Acrescendo, face à dinâmica do acidente, que se o recorrente exercesse a condução de forma medianamente atenta, como lhe era imposto pelo art.º 11.º, n.º 2 do C. da Estrada bem como, pelo dever geral de cuidado que recaí sobre todo e qualquer condutor (e aqui cabe mencionar que, nos termos do art.º 1.º, q) do C. da Estrada, os peões são utilizadores vulneráveis das vias públicas), com toda a probabilidade ter-se-ia apercebido da presença do peão designadamente, tê-lo-ia avistado a, pelo menos, 50 m de distância o que era mais do que suficiente, para num tempo médio de reacção, o ter evitado ora abrandando, ora travando, ora dele se desviando, impõe-se concluir que se o recorrente tivesse observado a norma de cuidado a que estava sujeito, muito provavelmente, teria evitado o embate e o resultado morte não se verificaria pelo que, foi ele o incrementador do risco proibido para o bem tutelado.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em audiência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 2, mediante despacho de pronúncia, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o arguido RA, com os demais sinais nos autos, a quem, foi imputada a prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos arts. 69º, nº 1, a) e 137º, nº 1 do C. Penal, um crime de omissão de auxílio agravado, p. e p. pelo art. 200º, nºs 1 e 2 do C. Penal, duas contra-ordenações estradais muito graves, p. e p. pelos arts. 89º, nº 2, 138º, 145º, nº 1, e), 146º, l) e q), e 147º, nºs 2 e 3 do C. da Estrada e 69º, nº 1, a) e 76º, a) do Regulamento de Sinalização de Trânsito, aprovado pelo Dec. Regulamentar nº 22-A/98, de 1 de Outubro, uma contra-ordenação estradal grave, p. e p. pelos arts. 138º, 145º, nº 2, 147º, nºs 2 e 3 e 150º do C. da Estrada, e uma contra-ordenação estradal, p. e p. pelo art. 116º, nºs 1s 1, d) e 3 do C. da Estrada.  

Por sentença de 5 de Julho de 2018 foi o arguido absolvido da prática da contra-ordenação estradal muito grave, p. e p. pelos arts. 69º, nº 1, a) e 76º, a) do Regulamento de Sinalização de Trânsito, aprovado pelo Dec. Regulamentar nº 22-A/98, de 1 de Outubro e condenado, pela prática do imputado crime de homicídio por negligência, na pena de dois anos e oito meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de dois anos e oito meses, pela prática do imputado crime de omissão de auxílio agravado, na pena de um anos e seis meses de prisão e em cúmulo, na pena única de três anos e dez meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de dois anos e oito meses, pela prática da imputada e sobrante contra-ordenação estradal muito grave, na coima de € 800 e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de seis meses, pela prática da imputada contra-ordenação estradal grave, na coima de € 800 e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de quatro meses, pela prática da imputada contra-ordenação estradal, na coima de € 400 e em cúmulo, na coima única de € 2000 e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de dez meses.

 *

Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

(...)

14. A vítima contribuiu para a verificação do acidente.

15. Atenta à distância percorrida (cerca de 10 m), ao tempo chuvoso, à mobilidade reduzida da vítima, e à sua taxa de álcool, é certo que o peão/vítima foi, salvo o devido respeito pelo seu perecimento, imprudente e descuidado ao atravessar aquela via que possuía 4 faixas de rodagem, fora do local apropriado para o efeito, isto é fora da passadeira para peões, contribuindo, infelizmente para a sua morte e para o inerente acidente.

16. Não teríamos o acidente se o arguido conduzisse com a devida atenção, o que lhe permitiria aperceber-se do peão na via, como também não teríamos acidente se o peão não tivesse atravessado fora da passadeira, na qual há um semáforo que poderia ser accionado pelo próprio a fim de proceder, em segurança, à travessia das quatro vias.

17. Atuou também a vítima com negligência.

18. Tendo causado, face a essa conduta – leia-se não conduta (passar na passadeira para peões que se encontrava a cerca de 30/40 m do local) um resultado típico através de uma ação que aumentou o risco.

19. Quem criou, em primeiro lugar, o risco foi o próprio peão, que viria a falecer.

20. Verifica-se um concurso de culpas e causas criadoras do resultado morte, ambas criadas por comportamentos negligentes, sendo que uma delas pertence, sem qualquer margem de dúvidas, à própria vítima.

21. Considerando que não há co-autoria nos crimes negligentes, ou mesmo cumplicidade negligente, concluímos que a situação integrar-se-á na chamada autoria paralela.

22. Os artigos 15º, 26º, e 27º todos do Código Penal, que não prevêem esta situação, e considerando o princípio da tipicidade pelo qual se rege o nosso Código Penal, reitera-se que bem esteve o Ministério Público ao arquivar o crime de homicídio por negligência, e consequentemente, discorda-se por tudo quanto ficou alegado supra, da condenação pelo tribunal «a quo» que deveria ter absolvido o arguido quanto a este crime.

23. A vítima não é um terceiro, mas sim um participante no evento.

(...)

25. Quem criou o risco e ultrapassou o risco permitido, foi o próprio peão que, não só pela mobilidade reduzida e a taxa de álcool que apresentava, ao não ter o cuidado devido ao atravessar a via fora da passadeira, ali existente a cerca de 30/40 metros, violando ele, normativos do Código da Estrada, nomeadamente os artigos 99º e 101º, entende-se que foi o causador principal do acidente.

26. Por outro lado bem esteve o Douto Acórdão do Tribunal de Guimarães. Processo nº 240/09.7GAVVD.GI,de 11-04-2012. Relator Maria Isabel Cerqueira ao decidir que «A simples circunstância de o arguido conduzir o ligeiro de mercadorias a 69,28 km/h, numa via em que a velocidade máxima permitida era 50 km/h, não integra por si só a violação do dever de cuidado a permitir a punição por negligência» (negrito e sublinhado nosso).

27. Na Audiência de Discussão e Julgamento não se conseguiu apurar, concretamente, a que velocidade seguia o arguido.

28. O que recorrendo ao princípio do in dubio pro reo levaria necessariamente à absolvição do arguido quanto ao crime de homicídio por negligência.

29. Não cometeu, o arguido, um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal, e subsequentemente, não se aceita a pena de proibição de conduzir veículos com motor, aplicada nos termos do artigo 69º, nºs 1, al. a) e 2 do CP, com referência ao artigo 137º, nº 1 do mesmo diploma legal.

30. Vejam-se os factos dados como provados que demonstram a inexistência de factos justificativos da imputação do crime de homicídio por negligência.

31. Entende o Recorrente que o Tribunal a quo fez uma errada apreciação dos fatos dados como provados ao imputar-lhe a prática do crime de homicídio por negligência e uma errada aplicação do direito quanto ao artigo 69º, nºs 1, al. a) e 2 do CP, e referente à sanção acessória de proibição de conduzir com referência ao artigo 137º, nº 1do Código Penal.

(...)


*

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

(...)

- A atipicidade da conduta provada relativamente ao crime de homicídio por negligência e suas consequências;

(...)


*

            Importa ter presente, para a resolução destas questões, o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

            1 – No dia 27 de Fevereiro de 2016, pelas 17H20, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias com a marca e modelo (...) e com a matrícula (...), a si pertencente, na Rua (...), em (...);

2 – Circulando no sentido EV– CS;

3 – Provindo da zona da P;

4 – A RP é dotada de dois sentidos de trânsito, delimitados por um separador central;

5 – À saída da REV, na direcção da CS, está localizado um semáforo em funcionamento normal, a regular a circulação de veículos e peões;

6 – Seguido de uma recta, em patamar, com três vias de tráfego;

7 – A largura da via da esquerda é de 3,20 metros;

8 – A largura da via central é de 3,10 metros;

9 – A largura da via da direita é de 3,40 metros;

10 – A RP tem visibilidade superior a 50 metros, em toda a sua largura e extensão, sem obstáculos naturais;

11 – À data chovia;

12 – Era de dia;

13 – Os postes de luz pública já tinham luz ligada;

14 – A velocidade máxima permitida para o local é de 50 Km/h;

15 – Após contornar a rotunda da EV e depois de passar os semáforos ali existentes, sob o tabuleiro do IC2, o arguido, circulando com o veículo automóvel ligeiro de mercadorias com a matrícula (...) na via de trânsito central, atento o respectivo sentido de marcha;

16 – O arguido imprimia ao veículo por si conduzido uma velocidade não concretamente determinada, não inferior a 60 Km/h;

17 – Os semáforos sob o tabuleiro do IC2 tinham sinal vermelho para os veículos e verde para os peões;

18 – O arguido não respeitou o sinal luminoso vermelho que se lhe deparava e não imobilizou o seu veículo, tendo prosseguido a sua marcha;

19 – Situada junto a estes semáforos existia uma passagem para peões, mencionada no croquis a fls. 72, cujo aqui se dá como integralmente reproduzido;

20 – Aproveitando a sinalização verde para os peões, no referido semáforo, AF efectuou um percurso tendencial em linha recta, desde a “Padaria ...”, onde havia estado, em direcção à paragem de autocarros existente do lado oposto, junto ao parque da “E...”;

21 – Atravessou a mencionada rua, a pé, da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do arguido;

22 – Seguia em marcha de passo devagar;

23 – Nessa ocasião, o veículo tripulado pelo arguido embateu, com a respectiva parte frontal esquerda, em ÁF, após aqueles semáforos, junto ao ponto 3 do croquis de fls. 72 (situado aquele ponto a 6,90 metros do ponto fixo auxiliar);

24 – O arguido conduzia de forma distraída e desatenta, não observando o que sucedia na faixa de rodagem;

25 – Devido a não ter parado, à rapidez com que seguia, e porque conduzia de forma distraída e desatenta, não obstante a boa visibilidade, o arguido não avistou a tempo, nem se apercebeu, da presença de ÁF;

26 – Não fez qualquer travagem;

27 – Não efectuou qualquer manobra de desvio;

28 – Nada a impedindo, atenta a inexistência de trânsito;

29 – Nem desacelerou o veículo que conduzia;

30 – Com o embate, AF foi projectado para cima do capô e do tejadilho do veículo automóvel ligeiro de mercadorias com a matrícula (...);

31 – Onde permaneceu agarrado ao longo de vários metros, enquanto o arguido continuou a conduzir;

32 – Bem sabendo da presença daquele sobre o veículo;

33 – O arguido guinou a direcção do veículo para a direita;

34 – Vindo ÁF a cair do veículo para a estrada;

35 – O arguido entrou no acesso ao arruamento paralelo à linha férrea da CP e que também serve o parque de estacionamento da “E...”;

36 – No momento da mudança de direcção à direita, o arguido observou, através da janela do veículo, a queda de ÁF a estrada;

37 – Vendo que o peão ficara ferido e a carecer de socorro urgente, do que bem se apercebeu, o arguido, com o fito de evitar ser fiscalizado e de se eximir à sua responsabilidade, prosseguiu a marcha do veículo automóvel ligeiro de mercadorias com a matrícula (...), imprimindo velocidade ao mesmo;

38 – Em consequência do embate, ÁF sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia a fls. 184 a 187, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido, e que foram causa directa e necessária da sua morte;

39 – Nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, o veículo automóvel ligeiro de mercadorias com a matrícula (...) circulava na via pública sem estar coberto pelo respectivo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel;

40 – E sem ter sido sujeito à inspecção periódica obrigatória, tendo em conta a data da sua matrícula, 29/02/1996;

41 – O arguido não agiu com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, não parando o veículo ao sinal vermelho do semáforo, e imprimido ao veículo velocidade desadequada em relação ao obstáculo previsível de que devia ter-se apercebido previamente;

42 – O arguido, ao agir como o descrito, sabia que violava regras estradais, designadamente, quanto ao sinal vermelho de paragem obrigatória, quanto à velocidade para o local, travagem do veículo ou desvio do peão;

43 – Sabendo que da colisão em que foi interveniente resultaram ferimentos graves para terceiros, omitiu, o arguido, deliberadamente, o auxílio e socorro que podia e devia ter prestado e se encontrava em condições de efectuar, seja directamente, seja por acção de terceiros;

44 – O arguido sabia que não tinha efectuado o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel relativo ao mencionado veículo automóvel;

45 – E que este não havia sido sujeito à inspecção periódica obrigatória e, não obstante, decidiu conduzi-lo na via pública;

46 – O arguido sabia que, enquanto condutor, tendo sido interveniente em acidente de viação de onde resultou um ferido/morto, deveria aguardar, no local do acidente, pela chegada de agente de autoridade, com vista à sua correcta identificação, o que não fez, tendo logo abandonado o local após o acidente, colocando-se em fuga;

47 – O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e que, assim, incorria em responsabilidade criminal e contra-ordenacional;

48 – O arguido tem inscritas, no seu registo criminal, as condenações constantes do respectivo certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 501 e ss., cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido;

49 – O arguido tem inscritas, no seu registo individual do condutor, as contra-ordenações constantes do respectivo registo individual do condutor junto aos autos a fls. 447 e ss., cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido;

50 – O arguido é solteiro;

51 – Vive em casa da sua mãe;

52 – Não tem filhos;

53 – Trabalha como mecânico, por conta de outrem, auferindo a retribuição mensal líquida de cerca de € 500,00.

(…)”.

B) Nela foi considerado não provado o seguinte facto:

            “ (…).

1 – O arguido conduziu aos zigue-zagues, tentando livrar-se do corpo de ÁF.

(…)”.

C) Dela consta a seguinte fundamentação quanto ao crime de homicídio por negligência:

“ (…).

Buscando a tutela do superior bem jurídico, a vida, a lei penal prevê e pune o homicídio por negligência no art.º 137.º, n.º 1, do Cód. Penal, com a formulação simples “quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”, o que remete o aplicador do direito para a Parte Geral do Código Penal, especificamente, para o art.º 15.º, que traça os elementos caracterizadores da conduta negligente.

Elemento objectivo essencial desta incriminação é a produção do resultado típico, que se verifica no caso concreto – a morte do malogrado ÁF.

Seguindo a denominada doutrina do duplo escalão [sufragada, entre outros, por Figueiredo Dias – Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp. 353 a 355], no que à análise dos factos negligentes respeita, importa determinar se aquele resultado típico é ou não imputável objectivamente ao comportamento do arguido, o que vale por dizer que é essencial descortinar se as lesões sofridas pela vítima e, subsequentemente, a sua morte, têm a sua causa na violação, pelo arguido, de um dever objectivo de cuidado – e, antes de mais, se tal dever sobre ele impende – e se o resultado era ou não previsível e evitável para o homem medianamente sensato e consciencioso (nem um ás, nem um asno) do círculo de actividades do agente [nas palavras de Figueiredo Dias – Ob. Cit., p. 354, “ohomem médiopertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente”].

Na perspectiva da produção do resultado típico, diga-se que a mesma se verifica no caso concreto – as lesões sofridas pela vítima são imputáveis, do ponto de vista objectivo, à actuação do arguido, em conformidade com a denominada teoria da adequação (também designada por teoria da adequação causal ou teoria da causalidade adequada), com acolhimento legal no art.º 10.º, n.º 1, do Cód. Penal: levando-se a cabo um juízo de prognose póstuma, reportado ao momento da realização da acção, como se a produção do resultado não tivesse ainda ocorrido, é normal e previsível, considerando as regras gerais da experiência comum, que o embate de um veículo em um peão – designadamente, a velocidade superior à permitida para o trânsito rodoviário em  meio urbano – seja susceptível de provocar as referidas lesões e, em consequência, a morte do mesmo.

Sobre o arguido, enquanto condutor, impendiam especiais deveres de cuidado, máxime, os decorrentes das normas regulamentadoras da circulação rodoviária.

Incumbia, efectivamente, ao arguido um dever de exame prévio ou de cuidado interno, o de prevenir o perigo para o bem jurídico em causa – a vida – e de o valorar correctamente, segundo o critério do homem consciencioso e sensato do círculo de actividades dos condutores de veículos motorizados.

E, também, lhe estava cometido um dever de cuidado externo, traduzido na adopção de um comportamento apropriado à evitação do resultado típico, fundamentado não apenas nas normas da circulação rodoviária e da prevenção de acidentes de viação, como também nas próprias regras da experiência na condução de veículos motorizados.

Mais concretamente, em primeiro lugar, incumbia ao arguido transitar na via pública observando o dever genérico de previsão, de cuidado e de atenção – lembre-se, designadamente, o n.º 2 do art.º 11.º do Cód. da Estrada, segundo o qual “os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança” – e de empreender uma actividade na sua essência perigosa em um estado particularmente vígil, desprovido de distracções, e concentrado na observação do que ocorre em redor do veículo automóvel.

Outrossim lhe incumbia, além dos limites máximos de velocidade fixados para o local – in casu, tratando-se de interior de localidade, 50 km/h (art.º 27.º, n.º 1, do Cód. da Estrada) – “regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.” (art.º 24.º, n.º 1, do Cód. Da Estrada).

Mas, igualmente, o dever de moderar especialmente a velocidade – art.º 25.º, n.º 1, als. a) e c), do Cód. da Estrada, na assinalada versão: “Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade:

a). À aproximação de passagens assinaladas na faixa de rodagem para a travessia de peões;

[…]

c) Nas localidades ou vias marginadas por edificações” (portanto, necessariamente, imprimir velocidade inferior aos 50 km/h impostos pelo art.º 27.º, n.º 1, do Cód. da Estrada).

Acresce que, de acordo com o preceito do art.º 68.º do Regulamento de Sinalização do Trânsito (aprovado pelo Decreto Regulamentar 22-A/98, de 01/10), “a regulação do trânsito pode também fazer-se por meio de sinais luminosos, nos termos constantes dos artigos seguintes”.

Assim, dispõe o art.º 69.º do citado Regulamento: “1 — A sinalização luminosa destinada a regular o trânsito de veículos é constituída por um sistema de três luzes circulares, não intermitentes, com as cores vermelha, amarela e verde, a que correspondem os significados seguintes:

a) Luz vermelha — passagem proibida: obriga os condutores a parar antes de atingir a zona regulada pelo sinal;

b) Luz amarela — transição da luz verde para a vermelha: proíbe a entrada na zona regulada pelo sinal, salvo se os condutores se encontrarem já muito perto daquela zona quando a luz se acender e não puderem parar em condições de segurança; obriga os condutores que já estiverem dentro da zona protegida a prosseguir a marcha;

c) Luz verde — passagem autorizada: permite a entrada na zona regulada pelo sinal, salvo nas condições previstas no n.º 1 do artigo 69.º do Código da Estrada.

2 — Os sinais luminosos referidos no número anterior podem também apresentar as seguintes formas, respectivamente:

a) Seta negra sobre fundo circular vermelho;

b) Seta negra sobre fundo circular amarelo;

c) Seta verde sobre fundo circular negro.

3 — As indicações dadas pelos sinais previstos no número anterior referem-se apenas ao sentido ou sentidos indicados pelas setas; a seta vertical dirigida para cima significa, consoante os casos, proibição ou autorização de seguir em frente.

4 — A luz verde não pode estar acesa simultaneamente com qualquer outra do mesmo sistema, salvo nas condições previstas no artigo seguinte”.

O art.º 76.º, al. a), do mesmo Regulamento, sanciona contraordenacionalmente a infracção à norma do art.º 69.º, n.º 1, al. a), do Regulamento de Sinalização do Trânsito (aprovado pelo Decreto Regulamentar 22-A/98, de 01/10).

Ora, como vimos, o arguido descurou, por completo, tais deveres.

Em uma vertente ainda objectiva, o homem fiel aos bens jurídicos protegidos, medianamente consciencioso e prudente, do círculo de actividades do arguido, vale por dizer, o condutor mediano, preveria como possível a lesão da integridade física e da vida do peão que efectuasse a travessia da faixa de rodagem, como consequência de um embate frontal do veículo por si conduzido, decorrente da respectiva velocidade imprimida e da não observação do mesmo e, por conseguinte, abster-se-ia de actuar daquele modo, antes atentando ao meio circundante, observando o peão, moderando a velocidade e, se necessário, travando o veículo ou desviando-o, assim obviando à colisão.

Subjectivamente, era o arguido inteiramente capaz de cumprir os aludidos deveres de cuidado, encontrando-se, aliás, habilitado para o exercício da condução.

O arguido, encontrando-se apto a acatar as regras de circulação rodoviária, não representando como possível que do exercício da sua condução pudesse resultar a colisão com peões que atravessassem a via e que poderia vir a originar um evento do qual resultassem lesões na integridade física e na vida de terceiros, actuou com negligência inconsciente – art.º 15.º, al. b), do Cód. Penal.

Cometeu, portanto, o arguido, como autor material, um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos art.ºs 137.º, n.º 1, do Código Penal.

            (…)”.


*

                        Da atipicidade da conduta provada relativamente ao crime de homicídio por negligência e suas consequências

            3. Alega o recorrente – conclusões 14 a 23 e 25 a 31 – que a vítima, atento o tempo chuvoso, a sua mobilidade reduzida e a taxa de álcool de que era portadora foi imprudente e descuidada ao atravessar a via fora da passadeira, agindo negligentemente e assim contribuindo para o acidente, sendo a primeira a criar o risco que determinou a sua morte pelo que, havendo concurso de culpas na produção do acidente e não havendo co-autoria nos crimes negligentes, estaremos perante uma autoria paralela, não prevista no C. Penal pelo que, não sendo a vítima terceiro mas participante no evento, atento o princípio da tipicidade e o princípio in dubio pro reo, deveria ter sido absolvido da prática do crime de homicídio por negligência, com as legais consequências relativamente às penas impostas.

            Na conclusão 6 o recorrente definiu o objecto do recurso: discordância quanto à medida das penas, das coimas e das demais sanções impostas; discordância quanto à condenação pela prática de crime de homicídio por negligência e; discordância quanto à condenação na pena acessória de conduzir veículos com motor, nos termos do art. 69º, nº 1, a) do C. Penal.

É, pois, claro que não pretendeu impugnar, nem impugnou efectivamente, a matéria de facto fixada pela 1ª instância.

No entanto, na argumentação apresentada, lançou mão de factos que não constam dos factos provados, a saber:

- A passadeira para peões referida no ponto 19 dos factos provados dista do local onde a vítima atravessou a via cerca de 30/40 metros;

- A vítima era portadora de uma taxa de álcool no sangue de 0,67 g/l. 

Porém, nenhum destes factos consta do despacho de pronúncia.

No Relatório Final do Serviço de Química e Toxicologia Forenses do INML, de fls. 187, pode ler-se, além do mais que, relativamente a ÁF, a quantificação de etanol no sangue periférico era de «0,67 +/- 0,09 g/l». Sendo +/- 0,09 o erro admissível, temos que a taxa de álcool no sangue da vítima variaria entre 0,58 e 0,76 g/l.

Em qualquer caso, considerando a corpulência da vítima [consta do Relatório de Autópsia Médico-Legal de fls. 184 a 186 que pesava 117 kg, para uma estatura de 1,68 metros sendo, por isso, um cidadão obeso] e a dinâmica do acidente, não se vê que a TAS de que era portadora, face ao seu relativamente baixo valor [se se tratasse de condutor, apenas estaríamos perante uma contra-ordenação grave], pudesse ter condicionado relevantemente a sua conduta.

No que respeita à distância entre a passadeira para peões junto aos semáforos existentes à saída da Rotunda da EV e o ponto onde a vítima atravessava a via, não obstante o disposto no nº 3 do art. 101º do C. da Estrada, a eventual irregularidade da travessia da via pela vítima, na hipótese de aquela passadeira se encontra a menos de 50 metros do local do atropelamento, perde relevância provado que está que a vítima efectuou a travessia aproveitando a sinalização verde para os peões no referido semáforo (ponto 20 dos factos provados). Com efeito, a vítima não usou a passadeira, mas sabia que o trânsito automóvel tinha sinal vermelho, não sendo razoável que previsse que qualquer condutor o não respeitaria.

Em suma, a factualidade em questão, ao não constar dos factos provados, não constituiu uma qualquer violação ao disposto no art. 340º, nº 1 do C. Processo Penal, susceptível de conduzir à verificação do vício previsto na alínea a) do nº 2 do art. 410º do mesmo código.

Aqui chegados.

4. Na sociedade do risco a negligência assume importância crescente na punibilidade do facto, que deixou de depender exclusivamente do dolo do agente, de que é exemplo o aumento da tipificação de crimes negligentes.

O homicídio por negligência é um crime de resultado que tutela – como todos os tipos de homicídio – o bem, vida humana. O tipo respectivo só se torna perfeito com a produção da morte de uma pessoa, em consequência da conduta negligente do agente.

            Dispõe o art. 137º, do C. Penal:

1 – Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

2 – Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos.”.

            O tipo não define o conceito de negligência, havendo, para tanto, que recorrer ao art. 15º do C. Penal que dispõe:

Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou

b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”.

            A negligência é definida no proémio desta disposição, de modo unitário, prevendo o tipo de ilícito – a violação do cuidado a que o agente, segundo as circunstâncias, está obrigado portanto, a violação do cuidado objectivamente devido – e o tipo de culpa – a violação do cuidado que o agente, de acordo com os seus conhecimentos e capacidades pessoais, está em condições de observar (cfr. Figueiredo Dias Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 861).

Assim, o tipo de ilícito fica preenchido sempre que uma conduta diverge da que era objectivamente devida numa situação de perigo para a vida humana, por forma a evitar a violação deste bem que, por causa daquela divergência, vem a ser efectivamente lesado. Salienta, a propósito, o mesmo Mestre, “O tipo de ilícito do facto negligente não deixa assim, em caso algum, integrar-se completamente pela mera causação de um resultado (…). Para além disso torna-se indispensável que tenha ocorrido violação, por parte do agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu à produção do resultado típico: e, consequentemente, que o resultado fosse previsível e evitável para o homem prudente, dotado das capacidades que detém o «homem médio» pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente.” (ob. cit. pág. 864).

            O tipo de culpa do homicídio por negligência fica preenchido quando aquele dever de cuidado objectivamente devido – previsível, evitável e inobservado – podia também ter sido cumprido pelo agente concreto, de acordo com as suas capacidades, inteligência, experiência de vida e posição social (cfr. ob. cit. pág. 864). 

           

Elemento estruturante do tipo de ilícito negligente é a violação do dever objectivo de cuidado – desvalor de acção – a que acresce, nos crimes de resultado, a verificação do resultado típico – desvalor de resultado. A violação do dever objectivo de cuidado pressupõe a previsibilidade objectiva do perigo para o bem jurídico e, verificada esta, a inobservância pelo agente do cuidado objectivamente exigível, o cuidado que seria observado pelo homem consciente e cuidadoso e que, com razoável probabilidade, obstaria à produção do resultado.

Já no tipo de culpa negligente é censurada ao agente a atitude ético-pessoal de falta de cuidado face ao bem jurídico lesado ou colocado em perigo pela acção desvaliosa. São pressupostos deste juízo de censura, a previsibilidade subjectiva do resultado e a capacidade de o agente cumprir o dever objectivo de cuidado.   

             

Relativamente ao homicídio por negligência, e no que respeita à negação da imputação objectiva do resultado à conduta do agente e consequente atipicidade desta, o recorrente funda, como vimos, a pretensão do não preenchimento do tipo daquele crime, por cuja prática foi condenado nos autos, no princípio do comportamento alternativo lícito.

Brevitatis causa, diremos que de acordo com este princípio não pode ser criminalmente imputado ao agente descuidado o resultado morte, feita a demonstração de que este sempre ocorreria, mesmo que o agente tivesse observado o dever de cuidado imposto.

Deslocando esta perspectiva para o campo do incremento do risco, Claus Roxin entende que «uma acção que não ultrapassa o risco permitido, que não incrementa o perigo de produção do resultado, em justiça, se é causadora de um resultado, tem se der julgada nesse prisma da mesma maneira que a conduta não proibida.» (Problemas Fundamentais de Direito Penal, Vega Universidade, pág. 258). Na formulação de Figueiredo Dias, só pode haver imputação objectiva quando o agente tenha criado ou incrementado um risco proibido para o bem tutelado pelo crime e esse risco se tenha concretizado no resultado típico isto é, feita a demonstração de que o resultado teria seguramente ocorrido ainda que a acção ilícita não tivesse sido realizada, deve ser negada a imputação objectiva, seja porque não foi possível comprovar a potenciação do risco já existente, seja porque não se pode dizer que o comportamento do agente criou um risco não permitido (cfr. ob. cit., pág. 338).

Em suma, para a teoria do incremento do risco, não há imputação do resultado à acção, quando, cumulativamente, se verificar um duplo factor: primeiro, que o agente tenha criado um risco não permitido ou tenha potenciado ou aumentado um risco já existente; e, depois, que esse risco tenha conduzido à produção do resultado concreto (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 331 e ss.).

Como é fácil de perceber, a dificuldade que aqui se suscita é a da efectiva comprovação do incremento do risco, na medida em que ela resultará da aplicação de regras de probabilidade pois nesta operação se torna necessário comparar o que aconteceu com a conduta negligente com o que teria acontecido caso a conduta tivesse sido diligente.

Aqui chegados.

5. A condução automóvel é, sabemos, uma actividade perigosa, comportando riscos elevados para os bens jurídicos vida e integridade física, mas sendo uma actividade legalmente permitida, está sujeita a apertada regulamentação.

Não pode, porém, ser esquecido que, quando a lei prevê normas de cuidado no âmbito de uma actividade perigosa, precisamente porque a admite, o que pretende é diminuir ao mínimo comunitariamente tolerável o perigo de verificação do resultado danoso [e não, propriamente, excluí-lo, dada o conceito de risco permitido].    

É este, portanto, o escopo das normas que no C. da Estrada disciplinam os comportamentos a serem observados pelos utentes das vias de trânsito, sejam condutores de veículos, motorizados ou não, sejam simples peões.

Revertendo para a matéria de facto provada, temos, em síntese, que:

- No dia 27 de Fevereiro de 2016, pelas 17h20, o recorrente conduzia um veículo automóvel ligeiro de mercadorias na RP, em (...), que tem dois sentidos de trânsito com separador central, no sentido EV– CS;

- Nesta rua, à saída da Rotunda da EV e na direcção do CS, existe um semáforo, regulador da circulação de veículos e da travessia de peões que se encontrava em funcionamento, desenhando depois a rua uma recta com três vias de tráfego (no mesmo referido sentido), com as larguras, da esquerda para a direita (atento o mesmo sentido) de 3,20 m, 3,10 m e 3,40 m, respectivamente;

- A RP tem visibilidade superior a 50 m em toda a largura e extensão, a velocidade máxima nela permitida é a de 50 km/h, e no dia e hora em referência fazia dia, embora a iluminação pública já estivesse ligada;

- No referido circunstancialismo de tempo e de lugar, o peão ÁF, aproveitando a circunstância de o semáforo existente à saída da Rotunda da EV e na direcção do CS se encontrar verde para os peões, iniciou a travessia da RP, da esquerda para a direita (atento o sentido e marcha do recorrente), o que fez em marcha de passo e devagar;

- No mesmo circunstancialismo de tempo e de lugar, o recorrente, após contornar a REV, passou a circular com o veículo por si conduzido na RP, não respeitou o semáforo existente no início desta e que na ocasião estava vermelho para os veículos;

- Seguindo pela via de trânsito central, à velocidade de 60 km/h, vindo o veículo, nesta via central, a colher o peão com a sua parte frontal esquerda, tendo o peão, em consequência do embate, sofrido lesões físicas que foram causa directa e necessária da sua morte;

- O recorrente não se apercebeu da presença do peão na via, antes de nele embater, embora não existisse trânsito e tivesse visibilidade de 50 m, não tendo travado, desacelerado ou efectuado qualquer manobra de recurso para dele se desviar, apesar de seguir a 60 km/h, praticando a condução com completa desatenção ao que sucedia na rua onde circulava.

Como se vê, o recorrente, ao não respeitar o semáforo vermelho para o trânsito de veículos, violou o disposto no art. 69º, nº 1, a) do Regulamento de Sinalização do Trânsito (aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1 de Outubro), que lhe impunha a paragem do veículo antes de atingir a zona regulada pelo sinal. Por outro lado, ao conduzir o veículo, dentro de uma localidade à velocidade de 60 km/h [face à matéria de facto provada, é esta a única velocidade relevante], o recorrente violou o disposto no art. 27º, nº 1 do C. da Estrada.

O recorrente, enquanto condutor de veículo automóvel na via pública devia ter observado as condutas que as referidas normas legais lhe impunham, sendo certo que tal seria o comportamento adoptado pelo cidadão médio.

Acontece porém que o peão não foi colhido na passadeira existente junto aos semáforos cuja sinalização vermelha foi inobservada pelo recorrente mas mais adiante. E a obrigação de parar imposta por este concreto semáforo, como resulta do croquis de fls. 72, protegia apenas a travessia de peões feita naquela passadeira e não também, a travessia ao longo da RP.

Por outro lado, o excesso de velocidade verificado [10 km/h acima do limite legal] também nos parece irrelevante, em termos de imputação objectiva, uma vez que, face das concretas circunstâncias do atropelamento, ainda que a velocidade fosse a legalmente permitida, muito provavelmente o atropelamento aconteceria, pois o que está na sua base é a absoluta distracção, o completo alheamento do recorrente, à condução que então praticava.

Com efeito, o recorrente violou a regra geral prevista no nº 2 do art. 11º do C. da Estrada que dispõe que, os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança. E entre esses actos conta-se, seguramente, a condução desatenta.

Ora, conduzindo o recorrente um veículo automóvel numa recta, com a largura total destinada ao seu sentido de trânsito de 9,70 m, à velocidade de 50 km/h, tendo uma visibilidade de 50 m em toda a largura e extensão da via rodoviária [pois era de dia e apesar de estar a chover], não existindo trânsito no momento [o dia 27 de Fevereiro de 2016 recaiu num sábado e erem 17h20], o facto de nem sequer se ter apercebido da vítima a efectuar a travessia da via por onde conduzia o veículo automóvel antes de nela embater, pois não travou, não desacelerou nem se desviou, colhendo-a na faixa central da sua via de trânsito, ficou a dever-se à total condução desatenta que então efectuava pois, realizando a vítima a travessia a passo lento, que tinha já atravessado a via de trânsito de sentido contrário ao do recorrente e ultrapassado o separador central das duas vias que compõem a Rua do T, ela, vítima, não surgiu, atentas as supra referidas circunstâncias [visibilidade, velocidade, inexistência de tráfego], na via de transito destinada aos veículos do sentido do recorrente, de forma inopinada ou seja, inesperada e surpreendentemente.

Diz o recorrente que também a vítima concorreu para a verificação do resultado ao atravessar a via fora da passadeira que existia nas proximidades, tendo sido esta a primeira criadora do risco pelo que, não existindo autoria paralela nos crimes negligentes, não está verificada a imputação objectiva do facto ao agente. Com ressalva do respeito devido, entendemos que esta argumentação não procede, pelas razões seguintes.

Em primeiro lugar, diremos que existe ‘autoria paralela’ quando vários agentes participam na realização do facto ou na produção do resultado típico com independência uns dos outros (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 817). Não se trata, como é óbvio, de uma verdadeira forma de comparticipação, mas de duas autorias que correm, digamos assim, uma ao lado da outra, sem nunca se tocarem.

Como nota Figueiredo Dias, é entendimento dominante não ser aplicável aos crimes negligentes o critério do domínio do facto para a determinação da comparticipação, sendo adoptada uma concepção unitária de autoria para a qual é autor aquele (todo aquele) que, com a sua actuação violadora do cuidado imposto, cria ou potencia um perigo proibido que se concretiza no resultado (na realização) típico (ob. cit,, pág. 894 e ss.). Por isso, nos crimes desta natureza, havendo co-actuação por negligente, apenas poderá falar-se em ‘autoria paralela’.  

Revertendo para o caso concreto, sendo certo que, como se infere da factualidade provada [directamente, o facto não consta dela] o peão atravessou a via fora da passadeira, mesmo que se admita que o fez em contravenção ao disposto no art. 101º, nº 3 do C. da Estrada [como já vimos, não foi apurada a distância que medeia entre o local da travessia e a passadeira existente junto aos semáforos referidos], estando também provado que o fez [o atravessamento da via] aproveitando a sinalização verde para peões, e vermelha para o recorrente, dos semáforos em referência, o cometimento desta infracção não foi causal do acidente. Aliás, usando a mesma perspectiva teórica da argumentação do recorrente, se o peão tivesse feito a travessia na passadeira, com toda a probabilidade, seria também atropelado, uma vez que o recorrente não respeitou a sinalização do semáforo respectivo.

Em segundo lugar, porque se torna evidente, face à dinâmica do acidente, que se o recorrente exercesse a condução de forma medianamente atenta, como lhe era imposto pelo referido art. 11º, nº 2 do C. da Estrada bem como, pelo dever geral de cuidado que recaí sobre todo e qualquer condutor (e aqui cabe mencionar que, nos termos do art. 1º, q) do C. da Estrada, os peões são utilizadores vulneráveis das vias públicas), com toda a probabilidade ter-se-ia apercebido da presença do peão designadamente, tê-lo-ia avistado a, pelo menos, 50 m de distância o que era mais do que suficiente, para num tempo médio de reacção, o ter evitado ora abrandando, ora travando, ora dele se desviando. Vale isto dizer que, se o recorrente tivesse observado a norma de cuidado a que estava sujeito, muito provavelmente, teria evitado o embate e o resultado morte não se verificaria pelo que, foi ele o incrementador do risco proibido para o bem tutelado.

Carece pois de fundamento, a afirmação da não verificação da imputação objectiva do resultado ao recorrente pela aplicação do princípio do comportamento alternativo lícito.

Em conclusão de tudo o que antecede, temos que, sendo objectivamente previsível a verificação do resultado e tendo o recorrente omitido no exercício da condução o cuidado objectivamente exigível e de que era capaz, sem que tenha sequer previsto o resultado, está verificada a violação do dever objectivo de cuidado, com negligência inconsciente, como se concluiu na sentença recorrida.

Assim, não merece censura a decidida condenação do recorrente, pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, nº 1 do C. Penal, sentença recorrida.

(...)


*


            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em:

(...)

B) Conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:

1. Revogam a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido RA na pena de dois anos e oito meses de prisão – pela prática do imputado crime de homicídio por negligência – e na pena de um ano e seis meses de prisão – pela prática do imputado crime de omissão de auxílio agravado – e em cúmulo, na pena única de três anos e dez meses de prisão.

2. Condenam o arguido RA na pena de dois anos de prisão – pela prática do imputado crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos arts. 69º, nº 1, a) e 137º, nº 1 do C. Penal –, na pena de um ano e três meses de prisão – pela prática do imputado crime de omissão de auxílio agravado, p. e p. pelo art. 200º, nºs 1 e 2 do C. Penal – e em cúmulo, na pena única de dois anos e dez meses de prisão.


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(...).

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Coimbra, 9 de Outubro de 2019


Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator – e Helena Bolieiro – adjunta