Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
148/19. 8T8CNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
SUA REGULAÇÃO
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
AUDIÇÃO DO MENOR NO PROCESSO DE REGULAÇÃO.
Data do Acordão: 05/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JL CÍVEL DE CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: RGPTC
Sumário: I- O fim legal supremo que deve presidir à regulação do exercício das responsabilidades parentais é o superior interesse da criança.

II- Tratando-se de um conceito genérico, o interesse superior da criança deve ser apurado/encontrado em cada caso concreto, embora tendo sempre presente a ideia do direito da criança ao seu desenvolvimento são e normal, no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade, ou seja, a ideia de que, dentro do possível, tudo deverá ser feito de modo a contribuir para desenvolvimento integral da criança em termos harmoniosos e felizes.

III- E é precisamente com vista a alcançar esse interesse superior da criança que, além de outros, se consagrou o direito da criança a ser ouvida e a exprimir a sua opinião em processos que lhe digam respeito e a afetem, tendo em conta a sua idade e a sua capacidade de compreensão/discernimento dos assuntos em discussão.

IV- Tal não significa que na decisão a tomar se exija que ela respeite integralmente essa opinião, mas tão só, pelo menos, que ela seja considerada na ponderação dos interesses em causa, e tendo sempre em vista o interesse superior da criança.

V- A não audição de uma criança em processo que lhe diga diretamente respeito, por visar a tomada de medida suscetível de a poder afetar no futuro, não pode ser encarada apenas como um meio de prova, mas antes como a violação de um direito daquela, e como tal podendo vir a conduzir à nulidade da decisão que vier a ser proferida.

VI- A questão da residência futura da criança, após a separação dos pais, assume particular relevo na regulação do exercício das responsabilidades parentais, pois que pode contender com o seu desenvolvimento nos termos referidos em II.

VII- É de anular a decisão tomada (ainda que provisoriamente) pelo tribunal a quo na qual, ao regular do exercício dessas responsabilidades, fixou a residência dos menores, por períodos temporais alternados, em casa de cada um dos seus pais separados, sem que previamente tenha ouvido, a tal propósito, esses menores (com idade da qual transparece disporem capacidade/maturidade mínima suficiente para compreender o alcance dessa medida tutelar), e sem que, ao menos, se revele nessa decisão a ponderação das razões dessa não audição.

Decisão Texto Integral:






Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. Em 08/02/2018, no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, S..., maior, instaurou contra D..., ação especial de regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos menores de ambos.

Para tanto, em síntese, alegou:

Que a requerente e o requerido têm vivido juntos, como se de marido e mulher se tratassem, tendo desse relacionamento nascido os filhos Á... e E... (nascidos, respetivamente, em 10/10/2008, e em 22/09/2010).

Acontece que a requerente abandonou a casa em que viviam - devido ao facto de o requerido ter iniciado uma relação amorosa como outra mulher, levando consigo aqueles seus filhos, tornando-se necessário regular o exercício das responsabilidades parentais em relação a ambos, com a fixação, para já, de um regime provisório.

2. Foi designado dia para conferência dos pais, com a presença destes.

3. Nessa conferência (realizada em 21/02/2019 – cfr. certidão da ata junta a fls. 32/35 destes autos), não foi possível obter o acordo dos progenitores no que concerne à regulação do exercício das responsabilidades parentais, particularmente por discordarem quanto à questão da residência dos menores (defendendo a requerente, no que foi acompanhado pela exma. magistrada do MºPº, que os mesmos deveriam passar a residir consigo, enquanto que o requerido defendeu que fosse fixado um regime de residência alternada/partilhada), embora tivessem aceitado submeterem-se à Audição Técnica Especializada (A.T.E.).

Nesses termos, a sra. juíza que presidiu a tal audiência suspendeu a conferência, remetendo as partes para a A.T.E. - fixando o prazo de 1 mês (artº. 38º do RGPTC) -, tendo, à luz desse normativo legal e dos fundamentos aí aduzidos, estabelecido o seguinte regime provisório do exercício responsabilidades parentais em relação aos referidos menores:

«


1.º

Termos em que se determina que a partir da semana de 04 a 11 de março de 2019, inclusive, passe a vigorar o regime de residência alternada sendo com o pai nesse interregno temporal, o qual levantará as crianças pelas 17:30 horas na atual residência da mãe (por se tratar das mini-férias de Carnaval), permanecendo com as mesmas até ao dia 11 de março, no início das atividades letivas, deixando-as no estabelecimento de ensino, onde a mãe as recolherá no dia 11 de março e assim semanal e alternadamente, sendo os levantamentos, no tempo letivo, no estabelecimento de ensino.

2.º

Nas férias escolares da Páscoa, vigorará a mesma alternância semanal de acordo com o que estiver em prática no período letivo.

O domingo de Páscoa de 2019 é repartido entre ambos os progenitores em termos a combinar entre si.


3.º

O pai suporta a totalidade das despesas escolares, médicas e medicamentosas, na parte não comparticipada, e extracurriculares das crianças, sendo estas desde que acordadas entre ambos, a saber, no presente, explicações, patinagem, natação e as inerentes aos sacramentos religiosos.

4.º

Na semana em que as crianças não estejam com um dos progenitores, o outro deverá permitir o contacto à distância diário com aquele. (…). »

4. Inconformado com tal decisão - que fixou o referido regime provisório do exercício responsabilidades parentais em relação aos aludidos menores –, dela apelou o MºPº, tendo concluído as respetivas alegações de recurso nos seguintes termos:

« 1- No âmbito da conferência de pais a que alude o artigo 35.º do RGPTC, foi proferida decisão que fixou o regime provisório de residência alternada, com periodicidade semanal, relativamente às crianças Á... e E...

2- O princípio do superior interesse da criança deve influenciar as decisões judicias sobre as questões atinentes a crianças, quer sejam decisões provisórias ou definitivas.

3- Relativamente à questão da residência das crianças, embora a residência partilhada se apresente como a solução ideal, é certo que em determinadas situações não se mostra possível nem compatível com o superior interesse da criança, sendo o caso, por exemplo, de famílias com histórico de violência doméstica ou de famílias conflituosas.

4- Da realização da conferência de pais resultou que sempre foi a progenitora a assegurar todos os cuidados e a satisfação das necessidades dos filhos no dia-a-dia.

5- Acresce que se encontra pendente o inquérito nº ..., em que é ofendida S... e arguido D..., pelo crime de violência doméstica.

6- No âmbito do referido inquérito, a progenitora alegou ter sido ameaçada de morte pelo companheiro, tendo sido apreendidas sete armas de fogo e munições.

7 - O Tribunal a quo concluiu que o cenário de violência doméstica, assim como a sua saída da casa de morada de família, não é mais que um cenário montado pela progenitora, desconsiderando, sem mais, na fixação do regime provisório, o que consta dos autos de inquérito e o alegado por aquela em sede de conferência de pais.

8 – Ao invés, o Tribunal a quo deveria ter tido em consideração que sempre foi a mãe quem cuidou dos filhos, prestando-lhe todos os cuidados necessários no seu quotidiano, quer a nível de alimentação, saúde e educação, sendo a figura primária de referência para estas crianças.

9- Por outro lado, o progenitor sempre adoptou uma atitude demissiva dos seus deveres parentais, delegando a tarefa de cuidar dos filhos na progenitora.

10- Verifica-se também fraco investimento, por parte deste pai, em passar mais tempo com os filhos, em perceber quais as suas necessidades e em aprender a dar-lhe resposta e satisfação.

11 – Acresce que a separação da progenitora representará, para estas crianças, uma alteração drástica na sua rotina, causando desequilíbrios na sua estabilidade e desenvolvimento.

12- É certo que ambos os pais devem assumir os seus deveres para com os filhos mas o regime de residência alternada, quer seja aplicado a título provisório ou definitivo, para se mostrar benéfico, exige que, no mínimo, os progenitores mantenham uma relação cordial e capacidade de comunicar entre si.

13- Sucede que a existência do inquérito crime, só por si, revela a existência de um conflito grave entre os progenitores, existindo uma dificuldade séria de comunicação, bem como ausência de cooperação, o que inquina todos os factores indicados na decisão como favoráveis à aplicação do regime de residência alternada.

14 – Este regime conduzirá ao agravamento da situação de conflito, ao qual as crianças ficarão expostas, comprometendo-se gravemente o seu bem-estar e desenvolvimento integral.

15- Face aos elementos de que dispomos nesta fase processual, cumpria ao Tribunal a quo adoptar uma atitude preventiva e protectiva dos interesses destas crianças, o que não se verificou.

16 – Assim, o Tribunal a quo deveria ter fixado um regime provisório nos seguintes termos:

a) A fixação da residência das crianças junto da mãe;

b) O exercício conjunto das responsabilidades parentais das questões de particular importância;

c) O pai poderá ter as crianças na sua companhia quinzenalmente, desde a sexta-feira após o terminus das actividades lectivas até segunda-feira, entregando-as no respectivo estabelecimento de ensino. A meio da semana o progenitor poderá ter as crianças consigo indo para o efeito buscá-las no fim das actividades escolares e entregando-as no dia seguinte na escola em dia a combinar entre ambos os progenitores;

d) O pai poderá ver e estar com as crianças sempre que o entenda, desde que avise previamente a mãe de tal intenção.

e) A título de pensão de alimentos devidos aos menores, o pai contribuirá com a quantia mensal de €200,00 (duzentos euros) para cada uma das crianças, em 12 prestações mensais, que serão pagas até ao final de cada mês, tendo início no presente mês de Fevereiro de 2019, através de transferência bancária.

17 - O Tribunal a quo violou o disposto no artigo 4.º, alínea a) da LPCJP ex vi artigo 4.º, nº 1 do RGPTC e artigo 3.º da Convenção sobre os Direitos da Criança. (…) »

5. Não foram apresentadas contra-alegações.

6. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


Fundamentação

1. De facto.

O tribunal a quo alicerçou a sua decisão tendo por base os seguintes factos:

...

2. De direito.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC ex vi artº. 33º do RGPTC, aprovado pela Lei nº. 141/2015, de 08/09).

Estando aqui em causa a fixação de um regime provisório de regulação de exercício das responsabilidades parentais em relação os menores Á... e E... (enquanto tal não é feito “definitivamente” na ação que decorre para o efeito), por força da separação entretanto ocorrida dos seus pais, que viviam em união de facto, calcorreando as conclusões das alegações do recurso - e tal como deflui do que supra se deixou exarado -, verifica-se que o que verdadeiramente se discute é, na fixação desse regime, é a questão da residência dos menores (questão essa que impediu, desde logo, que os progenitores lograssem alcançar o desejado acordo quanto aos termos do exercício dessas responsabilidades).

Enquanto a progenitora/mãe pugnava que os menores ficassem a residir consigo (no que foi acompanhada pelo MºPº), já o progenitor/pai pugnava para fosse fixado um um regime de residência alternada/partilhada.

No despacho recorrido decidiu-se fixar um regime de residência alternada/partilhada (nos termos que supra se deixaram exarados).

Discorda, porém, o MºPº dessa decisão (que depois influenciou a fixação do regime regulação quanto às demais questões dessas responsabilidades – vg. dos alimentos), defendendo, neste seu recurso, que essa questão seja decidida no sentido de os menores ficarem a residir com a sua mãe, tudo nos termos e com os fundamentos que ali aduz (e que o levaram depois a defender a fixação do regime de tais responsabilidades nos moldes por si ali propostos).

Apreciemos.

As crianças têm o direito fundamental à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral (artº. 69º nº. 1 da CRP e Convenção Sobre os Direitos da Criança - adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20/11/89, assinada por Portugal em 26/1/90, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº. 20/90 de 12/9 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº. 49/90, ambos publicados no DR I Série nº 211/90, de 12/10/90).

No âmbito dessa protecção os filhos menores estão sujeito às responsabilidades parentais até atingirem a maioridade ou a emancipação (artº. 1877º e ss. do Código Civil).

Responsabilidades parentais essas que se apresentam como um efeito da filiação (artºs. 36º, nº. 5, da CRP, 1877º, 1878º e ss. do CC), sendo concebidas como um conjunto de direitos e deveres (poderes funcionais) que competem aos pais relativamente à pessoa e bens dos filhos, ou seja, constituindo-se, pois, como “um conjunto de poderes e deveres destinados a assegurar o bem-estar moral e material do(s) filho (s), designadamente tomando conta da pessoa do(s) filhos, mantendo relações pessoais com ele(s), assegurando a sua educação, o seu sustento, a sua representação legal e a administração dos seus bens” (Recomendação R (84) 4 sobre as Responsabilidades Parentais, adoptada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa em 28-02-1984).

Nessa matéria consagrou-se que o princípio regra de que ambos os pais têm direitos e deveres iguais (artºs. 18º, nº. 1 e 27º, nº. 2 da Convenção sobre os Direitos da Criança e 36º, nº. 3, e 13º da CRP).

As responsabilidades parentais não se extinguem com o divórcio ou separação dos pais, impondo-se a regulação do seu exercício perante a nova realidade que a experiência comum nos diz ser feita, por vezes, de sofrimento e conflitos.

Por isso, faltando o acordo dos pais, a intervenção judiciária com vista a uma solução hetero-compositiva, indispensável para estabilizar a situação de conflito e proteger o interesse do menor, será necessariamente frágil e incompleta. Desde logo, porque a decisão terá que partir dos elementos factuais disponíveis, por vezes escassos, refletindo a verdade intraprocessualmente obtida. Depois, por mais ditames e apelos ao “superior interesse da criança“, se não houver uma cooperação sensata entre os progenitores a eficácia da decisão ficará comprometida, o que implica que os progenitores terão que fazer concessões recíprocas em nome e por causa dos filhos e do amor que nutrem por eles.

O critério legal supremo que deve presidir à atribuição ou repartição das responsabilidades parentais é o “superior interesse da criança” (artºs. 1905º do CC, 5º, nº. 1, e 40º do RGPTC, aprovado da Lei nº. 141/2015 de 8/9, 3º nº. 1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança, e nº. 2 III-B das Diretrizes adotadas do Comité de Ministros do Conselho da Europa em 12/11/2010, sobre a justiça adaptada às crianças).

E “o interesse superior da criança”, qualquer que seja a sua configuração jurídica - princípio geral, direito fundamental, standard hermenêutico - (vide, o prof. José de Melo Alexandrino, in “Os Direitos das Crianças”, ROA, ano 68, 2008, vol. 1º, e in “O Discurso dos Direitos, Coimbra Editora, pág. 140 e ss.”) -, enquanto conceito jurídico indeterminado, carece de preenchimento valorativo, reclamado uma análise sistémica e interdisciplinar da situação concreta de cada criança, na sua individualidade própria e envolvência, logo uma “punctualização tópica.”

Interesse superior esse cujo conteúdo, embora emanando de um conceito genérico, deve ser apurado/encontrado em cada caso concreto (vide, Maria Clara Sottomayor, in Regulação do Exercício do Poder Paternal no Casos de Divórcio, 2ª. ed, págs. 36/37”), e que, nas palavras de Almiro Rodrigues (in “Interesse do Menor, contributo para uma definição”, Revista Infância e Juventude, nº. 1, 1985, págs. 18/19”), dever ser entendido como “o direito da criança ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade.” Ou seja, e por outras palavras, o conceito de interesse superior da criança deve comportar em si tudo aquilo que contribua para desenvolvimento integral da criança em termos harmoniosos e felizes.

É, pois, tendo sempre como fito esse interesse superior da criança que deve ser norteada a regulação das responsabilidades parentais.

E é precisamente com vista a alcançar esse interesse superior da criança que na Convenção Sobre os Direitos da Criança se consagrou (artºs. 12 e 13 º) o direito da criança a ser ouvida e a exprimir a sua opinião em processos que lhe digam respeito e a afetem, tendo em conta a sua idade e sua capacidade de compreensão/discernimento dos assuntos em discussão. No mesmo sentido apontam a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança (artºs. 3º al. b) e 6º), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artº. 24º nº. 1), as Diretrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa, de 12/11/2010, sobre a justiça adaptada às crianças (ponto III-A) e a própria Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.

O nosso direito interno acolheu, nessa matéria, tais imposições do direito internacional como princípio orientador, nomeadamente dos processos tutelares cíveis (artº. 4º nº. 1 al. c) do RGPTC), de tal modo que no seu artº. 5º. nº. 1 se estatuiu expressamente que “a criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do interesse superior”, dispondo-se mais a frente no artº. 35º nº. 1 (na Secção I do Capítulo III dedicado à regulação do exercício das responsabilidades parentais), referente à conferência de pais, que “a criança com idade superior a 12 anos ou com  idade inferior, com capacidade para compreender os assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade, é ouvida pelo tribunal, nos termos da alínea c) do artº. 4º, salvo se a defesa do seu superior interesse o desaconselhar.”

Como bem, a nosso ver, em comentário ao citado artº. 5º do RGPTC, anota Tomé de Almeida Ramião (in “Regime Geral do Processo Tutelar Cível, 2ª. Ed., Quid Juris, pág. 30”), “neste preceito reafirma-se o direito da criança a ser ouvida e a ser tida em consideração a sua opinião. Não se exige que a decisão a tomar respeite integralmente essa opinião, mas que seja considerada na ponderação dos interesses em causa e que respeite o seu interesse superior.”

No mesmo sentido discorre Ana Teresa Leal (in http://www.cej.mi.pt/cej/recursos/ebooks/familia/Tutelar Cível_Superior Interesse Criança Tomo I. pdf) – citada, em concordância, no Ac. do STJ de 14/12/2016, proc.268/12.0TBMGL.C1.S1 - ao afirmar que “A criança tem direito a ser ouvida e a sua opinião deve ser tida em consideração nos processos que lhe digam respeito e a afectem. Este é um direito que não pode ser visto só por si mas que deve ser tido em conta na interpretação de todos os outros direitos.”

Importa, por fim, referir que, como é sabido, a regulação do exercício das responsabilidades parentais comporta três questões essenciais: a residência/guarda do menor, o seu regime de visitas e os alimentos a prestar.

Posto isto, e tomando em consideração tudo aquilo que se deixou expandindo, voltemo-nos para o caso em apreço.

O artº. 1906º do CC (sob a epígrafe “exercício das responsabilidades parentais em caso  de (…))” preceitua no seu nº. 5 que “o tribunal determinará a residência do filho (…).”

O que confirma, o atrás dito, que a determinação da residência dos menores, filhos dos progenitores separados (neste caso), é uma das questões que deverá ser objeto de regulação do exercício das responsabilidades parentais.

Ora, como supra se deixou exarado, foi essa questão que foi regulada (provisoriamente) na decisão sob recurso, e cujos termos aí fixados motivaram a discordância do MºPº (expressa no presente recurso), a qual já havia impedido o acordo dos progenitores dos sobreditos menores sobre o exercício das suas responsabilidades parentais.

Nessa decisão o tribunal a quo entendeu colocar os menores sob um regime de residência alternada/partilhada, ou seja, residindo, de forma alternada, uma semana com a mãe e uma semana com o pai.

Mas essa decisão foi tomada sem ouvir os menores (e apenas com base nas declarações dos pais, os quais, como vimos, divergiram quanto a essa questão), sendo indiscutível que foi proferida sobre uma questão que assume particular relevo na regulação do exercício das responsabilidades parentais.

E daí que se impunha e impõe ouvir a opinião dos menores sobre essa relevante questão que lhes diz respeito e os afeta no seu futuro. Tal não significa, como atrás se referiu, que a decisão venha a respeitar integralmente essa sua opinião, mas pelo menos exige-se que ela seja considerada na ponderação dos vários interesses em causa, acima dos quais estará, como vimos, o interesse superior dos mesmos.

E não se diga que os mesmos têm idade inferior a 12 anos. É que indo o menor Á... a caminho de perfazer os 11 anos de idade e a menor E... os 9 anos de idade, afigura-se-nos (nada transparecendo dos autos em contrário) que os mesmos já disporão de capacidade/maturidade mínima suficiente para compreender o alcance dessa questão/medida.

Com o se escreveu no Ac. do STJ de 14/12/2016 (acima citado, relado pela cons. Maria dos Prazeres Beleza, que teve como adjuntos Salazar Casanova e Lopes do Rego, e abordando um situação em muito semelhante à destes autos, em que os menores tinham também idade inferior a 12 anos) “se antes da entrada em vigor da Lei nº. 141/2015 (que aprovou o atual RGPTC) se exigia que o tribunal ouvisse as crianças com mais de 12 anos e, quanto àquelas que tivessem idade inferior, ponderasse a sua maturidade e justificasse a decisão de não as ouvir – salvo se a criança tivesse uma idade em que é notória essa falta de maturidade, naturalmente –, após a sua entrada em vigor essa ponderação não pode deixar de se revelar na decisão – continuando a ser dispensada quando for notório que a baixa idade da criança não a permite ou aconselha”. De qualquer modo, “a ponderação acerca dessa maturidade da criança terá de se revelar na decisão, só estando dispensada a justificação para a sua eventual não audição quando for notório que a sua baixa idade não a permite ou aconselha” (o que, repete-se, dizemos nós, nada transparece, antes pelo contrário, que tal ocorra no caso destes autos, sendo certo ainda que em lugar algum da decisão vislumbramos que sido feita essa ponderação, pelo menos dela não resulta).

Continuando a socorrermo-nos das palavas escritas nesse aresto “(…) a audição da criança num processo que lhe diz respeito não pode ser encarada apenas como um meio de prova, com o qual se pretende fazer prova de um facto relevante no processo. É muito mais vasta a finalidade da audição. Trata-se antes de mais de um direito da criança a que o seu ponto de vista seja considerado no processo de formação da decisão que a afecta. (…). E daí que não seja “(…) “adequado aplicar o regime das nulidades processuais à falta de audição. Entende-se antes que essa falta afecta a validade das decisões finais dos correspondentes processos, por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva (…).”

Sendo assim, e pela razões expostas, falta de audição dos ditos menores impõe que se anule a decisão sob recurso, a fim de os mesmos serem ouvidos sobre a matéria em questão (relativa à sua futura residência), adotando-se para o efeito todos os cuidados, nomeadamente, se necessário for, através dos recursos aos mecanismos legalmente previstos para esse efeito.

Solução a que chegaria se se encarasse a audição dos menores como um mero meio de prova, que, no caso, e pelas razões que supra se deixaram expendidas, sempre se imporia, a nosso ver, produzir, ouvindo, a propósito, os referidos menores, (cfr. disposições conjugadas, e devidamente adaptadas, dos nºs 2, al. b) e c), e 3 als. a) e c), do artº. 662º do CPC ex vi artº. 33º, nº. 1, do RGPTC).


III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se em anular a decisão recorrida, ordenando, em consequência, que os autos baixem à 1ª. instância a fim de aí o tribunal proceder à audição dos menores Á... e E..., nos termos e para os efeitos que supra se deixaram exarados, com a subsequente prolação de nova decisão (se tal ainda se vier a revelar necessário).

Sem custas.

Sumário

I- O fim legal supremo que deve presidir à regulação do exercício das responsabilidades parentais é o superior interesse da criança.

II- Tratando-se de um conceito genérico, o interesse superior da criança deve ser apurado/encontrado em cada caso concreto, embora tendo sempre presente a ideia do direito da criança ao seu desenvolvimento são e normal, no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade, ou seja, a ideia de que, dentro do possível, tudo deverá ser feito de modo a contribuir para desenvolvimento integral da criança em termos harmoniosos e felizes.

III- E é precisamente com vista a alcançar esse interesse superior da criança que, além de outros, se consagrou o direito da criança a ser ouvida e a exprimir a sua opinião em processos que lhe digam respeito e a afetem, tendo em conta a sua idade e a sua capacidade de compreensão/discernimento dos assuntos em discussão.

IV- Tal não significa que na decisão a tomar se exija que ela respeite integralmente essa opinião, mas tão só, pelo menos, que ela seja considerada na ponderação dos interesses em causa, e tendo sempre em vista o interesse superior da criança.

V- A não audição de uma criança em processo que lhe diga diretamente respeito, por visar a tomada de medida suscetível de a poder afetar no futuro, não pode ser encarada apenas como um meio de prova, mas antes como a violação de um direito daquela, e como tal podendo vir a conduzir à nulidade da decisão que vier a ser proferida.

VI- A questão da residência futura da criança, após a separação dos pais, assume particular relevo na regulação do exercício das responsabilidades parentais, pois que pode contender com o seu desenvolvimento nos termos referidos em II.

VII- É de anular a decisão tomada (ainda que provisoriamente)  pelo tribunal a quo na qual, ao regular do exercício dessas responsabilidades, fixou a residência dos menores, por períodos temporais alternados, em casa de cada um dos seus pais separados, sem que previamente tenha ouvido, a tal propósito, esses menores (com idade da qual transparece disporem capacidade/maturidade mínima suficiente para compreender o alcance dessa medida tutelar), e sem que, ao menos, se revele nessa decisão a ponderação das razões dessa não audição.

Coimbra, 2019/05/08