Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4289/18.0T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
SISTEMA DE PONTOS
NE BIS IN IDEM
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE POMBAL - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 148.º, N.ºS 1, 2, 3, 4, AL. C), 10, 11 E 12, DO CÓDIGO DA ESTRADA (REDACÇÃO DA LEI N.º 116/2105, DE 28-08, 18.º E 29.º, N.º 5, DA CRP
Sumário: I – O sistema de carta por pontos [artigo 148.º do Código da Estrada (redacção conferida pela Lei n.º 116/2015, de 28-08)] respeita os princípios da proporcionalidade e necessidade, encontrando justificação numa maior perigosidade do condutor.

II – O dito sistema, constituindo embora uma reacção automática – ocorre como efeito da(s) infracção(ões) cometidas, sem que, por si mesmo, assuma natureza sancionatória –, não isenta a administração de verificar se o titular do título de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar do mesmo.

I – A cassação do título de condução prevista no artigo 148.º, n.ºs 4, al. c), 10, 11 e 12, do Código da Estrada consubstancia, em relação às condenações determinantes da perda de pontos, um novo sancionamento, axiologicamente motivado pela inidoneidade entretanto revelada pelo condutor e, em última ratio, por imperativos de segurança rodoviária.

IV – Deste modo, não viola o princípio constitucional ne bis in idem a cassação de título de condenação decorrente, nomeadamente, de duas condenações do agente pela prática de crimes de condução em estado de embriaguez.

Decisão Texto Integral:











Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito dos autos de impugnação judicial n.º 4289/18.0T8PBL, provenientes do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Pombal – JL Criminal – Juiz 1, por sentença de 26.02.2019 foi decidido [transcrição parcial do dispositivo]:

Nos termos e com os fundamentos expostos, julgo improcedente, por não provado o recurso apresentado pelo recorrente (…) e, em consequência mantenho a decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária a fls. 29 a 32 verso dos autos, de cassação do título de condução n.º (...) , por preenchimento dos pressupostos previstos no artigo 148.º, n.ºs 4, 10 a 12 do Código da Estrada.

[…].

2. Inconformado recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

I. O Arguido foi julgado e condenado nos autos em epígrafe na cassação do título de condução n.º (...) , por preenchimento dos pressupostos previstos no artigo 148.°, n.ºs 4, 10 a 12 do Código da Estrada.

II. Viola o ne bis in idem (previsto no art.º 29.°, n." 5, da CRP e consagrado no art.º 54.° da CAAS como princípio de prec1usão e verdadeira proibição de cúmulo de ações penais) a presente sentença.

III. O arguido cumpriu as penas aplicadas no âmbito dos processos citados na sentença a quo.

IV. Ora, o Tribunal a quo ao aplicar a norma 148.° do Código da Estrada, viola a Constituição da República Portuguesa.

V. Nos termos do artigo 204.°da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), deveria antes tê-la desaplicado, revogando o despacho da Autoridade Administrativa, por a sua aplicação determinar a violação da CRP e portanto, há uma irregularidade prevista no 123.° n.º 1 do Código Processo Penal, não podendo por isso manter-se a decisão recorrida.

VI. Quer assim dizer-se que caso se entendesse que a lei processual estaria cumprida, a norma que determina a cassação do título de condução deverá ser considerada inconstitucional designadamente por violação de caso julgado e por inconstitucionalidade das normas 148.° e 149.° do Código da Estrada.

VII. E, assim teria de julgar, de acordo com o artigo 204.°da CRP que refere "Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.". Devemos entender que nesta norma da CRP se prevê a competência exclusiva dos Tribunais para o conhecimento de questões de constitucionalidade colocadas nos processos judiciais.

VIII. O Tribunal Constitucional apenas conhecerá da inconstitucionalidade das normas em segunda instância, isto é, depois de devidamente suscitadas no Tribunal Recorrido.

IX. Como tem referido o Tribunal Constitucional, a esta aplicação subjaz a ideia segundo a qual a cada infração corresponde uma só punição, não devendo o agente ser sujeito a uma repetição do exercício do poder punitivo do Estado.

X. Materialmente, à sua conduta já se fizera corresponder uma "punição" (em sentido amplo).

XI. No caso sub judice, o arguido não incumpriu as injunções aplicadas.

XII. O art.º 29°, n° 5 da CRP preceitua que "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime", assim se impedindo que uma mesma questão seja de novo apreciada.

XIII. Do ne bis in idem resulta que o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes, isto é, a mesma conduta ilícita não pode ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez.

XIV. Se se entender que a perda de pontos poderá preencher o elemento formal da pena acessória ou efeito da pena, já não preenche qualquer elemento ou pressuposto material.

XV. Com efeito como pressuposto material da aplicação da pena acessória deveria averiguar-se da especial censurabilidade do condutor no caso concreto.

XVI. Contudo, na verdade, tal instituto de subtração de pontos aplica-se de forma automática, não se ponderando a necessidade prática de aplicação ao arguido, ou seja, não há valoração de qualquer elemento ligado à prevenção especial, nem tão pouco uma graduação da culpa.

XVII. O princípio da necessidade, subprincípio do princípio da proibição do excesso que “proíbe que a restrição [de direitos, liberdades e garantias] vá além do que o estritamente necessário ou adequado para atingir um fim constitucionalmente legítimo”, “impõe que se recorra, para atingir esse fim, ao meio necessário, exigível ou indispensável, no sentido do meio mais suave ou menos restritivo que precise de ser utilizado para atingir o fim em vista” (Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Ed. 2004, p. 167).

XVIII. Nestas situações, qualquer condenação posterior numa pena representaria uma violação do princípio da necessidade, consagrado no art.º 18°, n° 2, da CRP. Constituição que o juiz de julgamento não pode deixar de aplicar. A sentença recorrida, ao condenar o arguido numa pena, não só manteve a violação do ne bis in idem, como afrontou o princípio constitucional da necessidade (da pena).

XIX. O despacho de recebimento da acusação, o julgamento e a sentença são, por tudo, nulos.

XX. Apresentam-se como constitucionalmente insustentáveis e o primeiro (o despacho de recebimento da acusação) deverá ser substituído por outro que, fazendo aplicação do ne bis in idem, rejeite a acusação do Ministério Público.

XXI. Sem conceder, sempre se defende que se deve ter por excessiva a pena de aplicada, uma vez que o Arguido não tem antecedentes criminais, é pessoa bem-educada, bem considerada e com estima dos familiares, amigos e colegas, pacífica e completamente cumpridora dos seus deveres em sociedade, pelo que atendendo à factualidade resultante da produção de prova, às circunstâncias e ao facto de ser trabalhador e precisar do veículo para exercer a sua atividade profissional.

XXII. Por todo o exposto deve o presente recurso vir a ser julgado procedente por provado e a douta sentença revogada, decidindo-se que pela não aplicação da sanção de cassação da carta de condução.

XXIII. Sempre teremos que reconhecer que, em nenhuma das duas vezes o agente atuou com intenção de violar normas jurídicas, resultando em ambas as situações o não preenchimento de um pressuposto, absolutamente essencial, para toda e qualquer responsabilidade, o elemento subjetivo.

XXIV. Ora, em ambos os acontecimentos, verifica-se a omissão do elemento subjetivo, isto é, inexistiu qualquer intenção do respondente de agir dolosamente, em violação das disposições penais.

 XXV. Pelo que se considera como proporcional e adequado a imposição de obrigação de frequência de ações de formação ou tão-somente a obtenção de novo título de condução mas de forma imediata, pressupondo sempre que o respondente é um excelente condutor, tanto mais que o faz profissionalmente, e do seu título de condução tem necessidade para o exercício da sua atividade profissional.

NORMAS VIOLADAS

XXVI. O Tribunal fez incorreta interpretação e aplicação do que vem disposto nos artigos 18.°, 29°, 2Ü4.oda CRP e 123.° do CPP.

PEDIDO

XXVII. Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso vir a ser julgado procedente por provado e a douta sentença revogada, decidindo-se que: O ora arguido/recorrente cumpriu as injunções que lhe foram cometidas, sendo que o processo deveria existindo uma clara violação do princípio ne bis in idem, artigo 29.°, n° 5 e 18.°, n.º 2 da CRP, anulando-se o despacho de recebimento da acusação e, consequentemente, o julgamento e a sentença, devendo aquele despacho ser substituído por outro que, aplicando o ne bis in idem, rejeite a acusação do Ministério Público.

XXVIII. Se assim não se considerar sempre se deverá considerar que:

XXIX. Deverá ao Arguido, aqui Recorrente, ser aplicada a oportunidade de frequência de formação sobre as regras estradais, ou ainda a retirada de título de condução com possibilidade imediata de obter novo título de condução.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

3. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

4. Em resposta ao recurso o Ministério Público concluiu:

 1- Nos presentes autos veio o arguido (…) interpor recurso da douta da sentença de 27.02.2019, na qual foi o mesmo condenado na cassação do título de condução n.º (...) , por preenchimento dos pressupostos previstos no artigo 148°, n.ºs 4,10 e 12 do Código da Estrada, alegando que a condenação na cassação do título de condução n.º (...) é inconstitucional e manifestamente exagerada.

 2 - Ora, salvo melhor opinião, bem andou o Tribunal a quo ao condenar o arguido na cassação do título de condução n.º LE-1 06118, por preenchimento dos pressupostos previstos no artigo 148°, n.ºs 4,10 e 12 do Código da Estrada.

3 - Quanto à inconstitucionalidade da norma jurídica invocada pelo recorrente, entende o Ministério Público que não assiste razão ao recorrente, pois que, a subtração de pontos ao condutor que cometa contraordenação grave ou muito grave na carta de condução, ou que seja sancionado com a sanção acessória de proibição de conduzir não é uma sanção aplicada pelos Tribunais e, por isso, não implica para a sua graduação, o grau de ilicitude e de culpa verificados no caso concreto.

 4 - Essa subtração é efetivamente uma consequência automática e da competência da Administração, o que implica que não seja admissível a sua impugnação judicial, exceto quando e se vier a ser decidida a cassação do título de condução, como é o caso nestes autos.

5 - Assim, a subtração de pontos não constituiu qualquer pena acessória, porquanto estas têm, por natureza, um conteúdo sancionatório autónomo, ainda que coadjuvante da pena principal, e “só podem ser pronunciadas na sentença condenatória conjuntamente com uma pena principal” - Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, p. 93 e ss.

6 - Pelo que, nenhuma razão assiste ao ora recorrente, não tendo havido qualquer violação do ne bis in idem, nem do caso julgado - uma vez que não se trata de nova apreciação dos mesmos factos pelo Tribunal a quo, mas sim de uma consequência automática e da competência da Administração -nem qualquer violação dos art.°s  2°, 20°, n.º 1, 32°, nºs 1,4, 5 e 10, 202°, n.º 2, e 219°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e em especial das garantias de processo criminal, nomeadamente das de audiência e de defesa, da garantia de juiz e da estrutura acusatória do processo penal.

 7 - Desta feita e, salvo melhor entendimento, bem andou o Tribunal a quo, ao decidir pela condenação do arguido à cassação da sua carta de condução, uma vez que inexiste qualquer nulidade e inconstitucionalidade das normas aplicadas.

8 - Quanto à invocada condenação em excesso, e tendo em conta todo o supra explanado, a condenação do arguido não pode ser considerada excessiva - como pretende o ora recorrente-, uma vez que a decorre da aplicação automática da Lei.

9 - Portanto, o efeito de perda de pontos decorre diretamente da verificação, num plano jurídico-substantivo, de uma determinada contraordenação, isto é, da prática de um facto ilícito típico, censurável no qual se comine uma coima - art.º 1° do Regime Geral das Contraordenações, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27/10 - independentemente da coima concretamente aplicada ou do grau de culpa do respetivo condutor concretamente apurado, neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.05.2018, disponível em www.dgsi.pt.

10 - Desta feita, bem andou o Tribunal a quo, ao condenar o arguido com a cassação da carta condução, uma vez que o mesmo havia perdido os 12 pontos, em virtude das infrações estradais anteriormente ocorridas e sancionadas.

Pelo que,

Na improcedência do recurso, em toda a sua dimensão, mantendo-se a douta e lúcida sentença recorrida, será feita a costumada JUSTIÇA.

5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.

6. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, o recorrente não reagiu.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

 Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, importa decidir se (i) ocorreu violação do caso julgado/ne bis in idem; (ii) padece de nulidade o despacho de recebimento da acusação, o julgamento e a sentença; (iii) verifica-se uma irregularidade nos termos do artigo 123.º do CPP; (iv) enfermam de inconstitucionalidade as normas dos artigos 148.º e 149.º do Código da Estrada; (v) em substituição da cassação da licença de condução deveria ter sido aplicada a imposição da obrigação de frequência de ações de formação ou determinada a obtenção de novo título de condução “de forma imediata”.

2. A decisão recorrida

Ficou a contar da sentença [transcrição parcial]:

A - FACTOS PROVADOS

Com interesse para a decisão da causa resultou provado que:

 1 - Encontra-se averbado no Registo de Infrações do Condutor do recorrente as seguintes condenações:

a) por sentença judicial proferida em 18.04.2017, no âmbito do Processo n.0182116.0GCPBL que correu termos pela Instância Local Criminal de Pombal, 12, transitada em julgado em 03.05.2017, foi o arguido condenado pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292°, n.º l e 69°, n.º 1, alínea a) do Código Penal, além do mais, na pena acessória de inibição de conduzir de 5 (cinco) meses, por factos praticados em 07.08.2016. Tal pena acessória mostra-se extinta pelo cumprimento por despacho datado de 11.10.2017.

b) por sentença judicial proferida em 20.02.2018, no âmbito do Processo n.049118.7GCPBL que correu termos pela Instância Local Criminal de Pombal, J2, transitada em julgado em 22.03.2018, foi o arguido condenado pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292°, n.º l e 69°, n.º l, alínea a) do Código Penal, além do mais, na pena acessória de inibição de conduzir de 9 (nove) meses, por factos praticados em 18.02.2018.

2 - O arguido é divorciado, vive sozinho, exercendo a profissão de pedreiro, auferindo mensalmente a quantia aproximada de 600,00€.

3 - O arguido possui filhos maiores independentes.

4 - O arguido suporta os encargos normais do dia-a-dia e carece do ciclomotor para se deslocar para o exercício da sua atividade profissional.

B-FACTOS NÃO PROVADOS

Inexistem.

Os demais factos alegados configuram juízos conclusivos de facto e/ou direito.

C – MOTIVAÇÃO

A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto dada como provada derivou da análise das sentenças judiciais de fls.5 a 12, do registo individual de condutor de fls.13 a 14, do certificado de registo criminal de fls.66 a 73, extraindo-se daquelas a factualidade dada como assente relativamente às condições económicas, sociais e pessoais do recorrente, confirmadas pelo próprio em audiência, de forma espontânea.

3. Apreciação

§1. Da violação do ne bis in idem

Defende o recorrente ter o tribunal, enquanto procedeu à aplicação do artigo 148.º, n.ºs 4, 10 a 12 do Código da Estrada, violado o ne bis in idem, porquanto pelos mesmos factos já havia sido julgado e condenado, procedendo, assim, a exceção do caso julgado – [cf. pontos II, VI, X, XII, XIII, XVIII, XX das conclusões].

Vejamos.

Da decisão em crise resultou provado ter sido o arguido condenado (i) por sentença de 18.04.2017, transitada em julgado em 03.05.2017, no âmbito do processo n.º 182/16.0GCPBL da Instância Local Criminal do Pombal – J2, pela prática, em 07.08.2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 5 (cinco) meses, declarada extinta, pelo cumprimento por despacho de 11.10.2017; (ii) por sentença de 20.02.2018, transitada em julgado em 22.03.2018, no âmbito do processo n.º 49/18.7GCPBL da Instância Local de Pombal – J2, pela prática, em 18.02.2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 9 (nove) meses.

Em qualquer dos casos foram os factos praticados já na vigência das alterações introduzidas pela Lei n.º 116/2015, de 28.08 ao Código da Estrada, ocorrida em 01.06.2016.

Nos termos do artigo 121.º - A do Código da Estrada [preceito aditado pela Lei n.º 116/2015], sob a epígrafe “Atribuição de pontos”:

1 – A cada condutor são atribuídos doze pontos.

[…].

Sobre o Sistema de pontos e cassação do título de condução, dispõe o artigo 148.º do mesmo diploma:

[…]

2 – A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.

[…]

4 – A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:

[…]

c) – A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.

[…]

10 – A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.

11 – A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.

12 – A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.

[…].

Da análise do quadro legal resulta com nitidez que com o sistema da carta por pontos teve o legislador o propósito de incutir no espirito dos condutores uma mais completa perceção sobre as consequências das infrações de trânsito, incluindo, agora, para efeitos de cassação do título de condução não só os ilícitos contraordenacionais graves e muito graves como outrossim os crimes rodoviários, entre eles a condução de veículo em estado de embriaguez, cuja prática tem como consequência o desconto de metade dos pontos inicialmente atribuídos a cada condutor, o que ocorre independentemente da sanção acessória imposta pelo tribunal pelo cometimento do crime rodoviário.

A questão é, por conseguinte, a inidoneidade para a condução de veículos com motor, decorrente das anteriores condenações por crimes rodoviários, ou seja, como refere o acórdão do TRP de 06.10.2004 (proc. n.º 0345913), “O que está em causa não é um novo sancionamento pela prática daquelas contraordenações (concretas), mas, pelo contrário, o sancionamento pela prática reiterada de contraordenações graves ou muito graves (sejam elas quais forem) que revela a inidoneidade para o exercício da condução (…). Existe um mais, que não foi nem podia ser considerado e é, precisamente, esse mais (inidoneidade) a causa da cassação da carta de condução. O condutor revelou, com a sua conduta (prática sucessiva de contraordenações graves ou muito graves) que não tem condições para o exercício da condução. Às coimas e sanções acessórias já aplicadas acresce agora uma outra sanção que já não pune os factos (as concretas contraordenações) praticados, mas a perigosidade, a ineptidão, a inidoneidade entretanto reveladas. Com a sua conduta, o arguido demonstrou que as sucessivas condenações em coima e em sanção acessória não foram suficientes para o afastar da prática de infrações estradais e, por isso, que é incapaz de conduzir com observância dos preceitos estabelecidos na lei. Em resumo: que é inidóneo para o exercício da condução”.

O ne bis in idem encontra consagração no artigo 29.º, n.º 5 da CRP enquanto dispõe que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, princípio igualmente acolhido no direito internacional e europeu – [cf. v.g. o artigo 14.º, n.º 7 do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos; o artigo 4.º do Protocolo n.º 7 à CEDH; o artigo 50.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia].

Afigura-se-nos pacífico na doutrina e jurisprudência o entendimento de que do princípio em questão decorre quer a proibição de duplo julgamento quer a proibição de dupla punição pelo mesmo crime.

Nas palavras de Eduardo Correia, “o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e, a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele ao cidadão a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias.” – [cf. A Teoria do concurso em direito criminal, II CASO JULGADO e PODERES DO JUIZ, Coimbra, 1983, pág. 302].

A resposta a dar à questão controvertida não dispensa, porém, que nos debrucemos sobre o que seja o “objeto do processo”, domínio que tem merecido a atenção da doutrina onde se detetam posições nem sempre coincidentes. Seguindo o entendimento maioritariamente defendido na jurisprudência, ou seja a teoria da valoração social, decisivo, como refere Frederico Isasca, “será, quer a valoração social, quer a imagem social do acontecimento ou comportamento trazido a juízo e consequentemente, a forma como o pedaço de vida é representado ou valorado do ponto de vista do homem médio – da experiência social se se preferir -, quer a salvaguarda da posição da defesa do arguido. Sempre que ao pedaço individualizado de vida, trazido pela acusação, se juntem novos factos e dessa alteração resulte uma imagem ou uma valoração não idênticas àquela criada pelo acontecimento descrito na acusação, ou que ponha em causa a defesa, estaremos perante uma alteração substancial dos factos …” – [cf. “Alteração dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português”, Almedina, págs. 143-145].

No mesmo sentido, a título exemplificativo, podem ver-se os acórdãos do STJ de 30.10.1997 (proc. n.º 97P230), de 15.03.2006 (proc. n.º 05P4403) e de 08.10.2008 (proc. n.º 06P3203).

De qualquer modo, como, a propósito de um caso similar, salienta o citado acórdão do TRP de 06.10.2004, na situação em apreço “A solução do problema é (...) a mesma, independentemente da posição que se perfilhe para a determinação da «identidade do facto». Seja do ponto de vista naturalístico, seja do ponto de vista normativístico, seja, ainda, do ponto de vista do «concreto pedaço de vida» a consequência é a mesma (…). Não há qualquer violação do ne bis in idem. Os factos não são os mesmos (…), as normas aplicáveis não são as mesmas (…) e o pedaço de vida também não é o mesmo (…)”, pois – prossegue –, “ … o facto de o arguido já ter sido condenado na sanção acessória de inibição de conduzir por cada uma das contraordenações, não impede a aplicação da cassação por esta não violar o princípio ne bis in idem, consagrado na Constituição e aplicável por força do art.º 41.º do D.L. n.º 433/82, de 27/10. Aliás, a condenação por tais contraordenações – o mesmo se diga da condenação pelos dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez – constitui até um pressuposto necessário da aplicação da medida de cassação da carta para se aquilatar da idoneidade ou não para a condução de veículos a motor”.

Em suma, afastada a verificação de duplicação de factos, distintos que são os fundamentos que conduziram à aplicação das penas acessórias (correspondentes a cada um dos crimes de condução em estado de embriaguez), por um lado, e da medida de cassação da licença de condução, por outro lado, sendo diferentes as finalidades que presidem a umas e outra, conclui-se no sentido de não ocorrer violação do caso julgado e/ou do ne bis in idem.

§2. Da nulidade do despacho de recebimento da acusação, do julgamento e da sentença

No ponto XIX das conclusões invoca o recorrente a nulidade do despacho de recebimento da acusação, do julgamento e da sentença, não se descortinando, sequer com recurso à correspondente motivação, outro fundamento para a arguida invalidade que não a alegada violação do ne bis in idem, aspeto a que já acima dedicámos atenção para concluir não contrariar a sentença em crise o princípio com consagração constitucional no artigo 29.º, n.º 5.

Como assim, nada mais a esse respeito havendo a esclarecer, não vendo este tribunal outro motivo que possa sustentar as ditas nulidades, improcede, também, nesta parte o recurso.

§3. Da irregularidade do artigo 123.º, n.º 1 do Código de Processo Penal

Defendendo que o julgador ao aplicar o artigo 148.º do Código da Estrada violou a Constituição da República Portuguesa, isto em consequência de, nos feitos submetidos a julgamento, se mostrar vedado aos tribunais a aplicação de normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (artigo 204.º da CRP), invoca o recorrente verificar-se irregularidade processual, tal como previsto no artigo 123.º do CPP – [cf. v.g. os pontos IV, V e VI das conclusões].

Contudo, sem que lhe assista qualquer razão já que uma eventual aplicação pelo tribunal de normas ou princípios que contrariem a Constituição naturalmente que, colocada a questão ao nível da substância, nunca redundariam numa simples irregularidade processual.

Assim, sem necessidade de outros considerandos, só resta concluir pelo infundado da alegação.

§4. Da inconstitucionalidade das normas dos artigos 148.º e 149.º do Código da Estrada

A invocada inconstitucionalidade das normas em referência surge sustentada no desrespeito pelo caso jugado e, bem assim, na automaticidade da cassação, pela autoridade administrativa, da licença de condução e ainda na violação dos princípios da necessidade, proporcionalidade e da culpa.

No que ao caso julgado respeita cremos, pelas razões já em momento anterior explanadas, não se verificar a dita inconstitucionalidade, pois conforme resulta do então exposto, não ocorre duplicação de factos; sequer a finalidade que subjaz à aplicação, por ocasião do julgamento pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, da pena acessória de proibição de conduzir coincide com a aquela outra que leva à cassação da licença de condução.

Por outro lado, a cassação da licença encontra justificação num comportamento que representa uma perigosidade acrescida do agente no exercício da condução e na necessidade de reforçar o sistema com uma reação (no caso de natureza administrativa) que vá para além da pena acessória, a qual se veio a revelar insuficiente à sensibilização do infrator no sentido de adequar o exercício da atividade perigosa, em que se traduz a condução, às normas.

Afigura-se-nos, pois, não ser de falar em “automaticidade” quando a medida em causa tem, por um lado, subjacente uma ponderação já anteriormente levada a efeito e, por outro lado, não dispensa o controlo dos pressupostos suscetíveis de conduzir à sua aplicação. Neste sentido, reportando-se ao artigo 148.º do Código da Estrada, por elucidativo, respiga-se do acórdão do TRP de 09.05.2018 (proc. n.º 644/16.9PTPRT-A.P1): “Em perfeita harmonia com os preceitos citados, diz o n.º 2 do mesmo artigo que a condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.

Ou seja, mais uma vez, agora de uma forma implícita, a perda de pontos é consequência da prática de uma infração, com reflexos na condução estradal, agora de natureza penal. Daí também a perda de pontos ser maior do que relativamente às contraordenações graves e muito graves. Circunstância que na projeção futura que os efeitos de tais condenações possam vir a ter, numa eventual cassação da carta de condução, evidencia o respeito que na atribuição de perda de pontos se teve pelo princípio da proporcionalidade, e nomeadamente na relação que resulta estabelecida entre a quantidade e qualidade das infrações cometidas, enquanto fundamento possível daquela cassação.

(…)

Ora, o sistema de pontos traduz apenas uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar em termos de perigosidade os efeitos que determinadas condutas ilícitas penais ou contraordenacionais podem vir ou não a ter no futuro, no que toca a uma eventual reavaliação da autorização administrativa habilitante ou licença de condução de veículos automóveis, atribuída a um determinado particular, reavaliação essa que poderá culminar com a aplicação de uma medida de segurança, mais precisamente com a decisão de cassação da respetiva carta de condução. Decisão essa que tem caráter administrativo e pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, assente fundamentalmente no número e gravidade daquelas condutas ilícitas e do decurso do tempo que sobre elas se vier a verificar, nomeadamente e também para efeitos de recuperação ou não de pontos, nos termos do disposto no art.º 121.º - A e 148.º, n.ºs 5 e 7 do C.E.”

Em perfeita sintonia com o que se vem de transcrever, podemos pois concluir que todo o sistema da carta por pontos, quer em função da natureza da infrações, quer em função do respetivo número, quer dos pontos (de número variável) a subtrair, dependente da gravidade da infração, não sendo indiferente na apreciação o período de tempo sem que o infrator registe contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária na recuperação de pontos, respeita o princípio da proporcionalidade, encontrando justificação, nos termos sobreditos, numa maior perigosidade, com o que resulta observado o princípio da necessidade.

Quanto à alegada “automaticidade”, da decisão dir-se-á, tal como no último dos arestos citado, que o sistema da carta por pontos, ocorrendo como efeito da(s) infração(ões) cometidas, sem que, por si mesma, assuma natureza sancionatória, permite à administração aferir “se o titular da licença de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar dela”, inserindo-se “tal desiderato no âmbito dos poderes de administração do Estado”. Nesta medida, constituindo embora uma reação automática, não isenta a administração da verificação dos respetivos pressupostos, domínio, como já antes referido, em que assume a maior relevância a natureza dos ilícitos, as vezes por que foram praticados, o número de pontos que, em consequência, resultaram subtraídos, o tempo, entretanto, decorrido capaz de conduzir à respetiva recuperação, não se vendo fundamento na alegação quer da violação da proibição do efeito automático das penas (não está em causa a aplicação de qualquer pena acessória – cf. ponto XV das conclusões), quer do princípio da culpa ou perigosidade.

Em síntese, não resultando violados os princípios e normas que surgem a sustentar a invocada inconstitucionalidade (máxime o artigo 18.º da CRP), inverificada esta, improcede, também nesta sede, o recurso.

§5. Da aplicação, em substituição da cassação da licença de condução, da imposição de obrigação de frequência de ações de formação ou da obtenção de novo título de condução “de forma imediata”.

Semelhante pretensão foi apreciada na sentença recorrida, mostrando-se a propósito exarado: “Por outro lado, a requerida substituição da cassação da carta de condução por frequência de ação de formação só se mostra possível nos casos previstos na alínea a) do n.º 4 do artigo 148.º do C.E., estando excluída tal possibilidade quando o condutor tenha todos os pontos subtraídos, como é o caso.

Por sua vez, o artigo 148.º, n.º 11 do C.E. veda a requerida obtenção imediata de novo título.”

Neste domínio, não tendo ocorrido qualquer alteração legislativa que consinta decisão em contrário, concretamente que permita equacionar a dita substituição ou a obtenção imediata de novo título de condução, por um lado, não estando em causa, como já se teve oportunidade de referir, uma “pena”, não colhendo, assim, fundamento convocar o princípio da necessidade da pena, é igualmente de manter a decisão recorrida.

Sempre se dirá, contudo, não se alcançar a relevância do invocado no ponto XI (conclusões) quanto à circunstância de o arguido não haver incumprido as “injunções aplicadas” (?), como, em face das duas condenações (transitadas) sofridas pelo crime prevenido no artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal e, sobretudo do objeto do presente processo, falar da omissão do respetivo elemento subjetivo (cf. pontos XXIII e XXIV das conclusões).

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Custas, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UCs, a cargo do recorrente – (artigos 513.º e 514.º do CPP; artigo 8.º do RCP, com referência à tabela III).

Coimbra,  6 de Novembro de 2019

[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)