Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6871/14.6T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: EMBARGO EXTRAJUDICIAL DE OBRA NOVA
RATIFICAÇÃO
DANO
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
RELEVÂNCIA JURÍDICA
Data do Acordão: 09/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 397, 640 CPC
Sumário: 1.- Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente;

2.- Nos termos dos arts. 236º, nº 1, e 238º, nº 1, do CC, deve interpretar-se a cláusula de uma transacção judicial com a seguinte redacção “Os Autores reconhecem que está constituída sobre a parcela de terreno, parte integrante da sua propriedade, identificada no artigo 3º da petição inicial, uma servidão de passagem a pé a favor do prédio dos Réus … que é feita através da porta lateral do prédio dos Réus que deita para a referida parcela”, sendo que o art. 3º da p.i. tem a seguinte redacção “No lado Norte do prédio da Autora existe uma parcela de terreno, em terra batida, com a largura de cerca de 2,5 m e extensão de cerca de 10,10 m, que é parte integrante do prédio da Autora supra identificado”, como, na prevalência do elemento literal do segmento inicial, tendo as partes querido abranger na referida servidão de passagem a totalidade da referida parcela, com as medidas definidas, e não que a mencionada servidão apenas abrange a parte do terreno que vai desde a porta lateral até à via pública;

3.- A lei, no caso de embargo de obra nova (ou respectiva ratificação judicial), contenta-se com a verificação de um dano jurídico, bastando, pois, que o facto tenha a feição de ilícito porque contrário à ordem jurídica concretizada num direito de propriedade ou noutro direito real (num direito de servidão) para que haja de considerar-se prejudicial para os efeitos de tal embargo de obra nova.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. M (…) e marido D (…), residentes em Soure, intentaram procedimento cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova contra M (…) e marido J (…), residentes na Figueira da Foz, requerendo que seja ratificado o embargo extrajudicial de obra nova por eles efectuado, e condenando ainda os requeridos a colocar a serventia no exacto estado em que se encontrava antes do início da obra, obstando-se a efectuar qualquer obra que restrinja a servidão existente ou estorve o exercício da mesma. Requereram ainda a inversão do contencioso, com dispensa do ónus da propositura da acção principal.

Alegaram, em síntese, a existência de uma serventia sobre prédio da requerida, a favor de prédio da requerente, que serve para eles com tractor fazerem cargas e descargas de caixas de vinho da sua produção, e que os requeridos se preparam para edificar um muro ou parede e colocar um portão novo, mais à frente do existente, que dificultará gravemente o exercício da dita serventia, além de com tal obra interferirem com a servidão de vistas, ar e luz de que gozam por via da existência no local de uma janela ali implantada há mais de 50 anos.

Os requeridos deduziram oposição, na qual disseram não existir nenhuma serventia com veículos a motor, apenas a pé e apenas sobre parte da parcela referida pelos requerentes, e que se preparavam apenas para substituir a corrente de ferro existente no local por um portão não estando estorvada a servidão, intenção essa que mereceu até a concordância dos requerentes, sendo que os mesmos não têm no local qualquer janela mas uma simples fresta. Requereram que seja indeferido o pedido de ratificação do embargo extrajudicial e a inversão de contencioso.

*

A final foi proferida sentença que julgou a providência requerida improcedente e absolveu os requeridos.

*

2. Os requerentes interpuseram recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

3. Os requeridos contra-alegaram, tendo concluído como segue:

(…)

II – Factos Provados

 

1- Nos autos de Acção Declarativa com Processo Sumário n.º 73/13.6TBSRE que correu termos no Tribunal Judicial de Soure, em que eram AA. os ora Requeridos e RR. os ora Requerentes, por sentença proferida em 4 de Dezembro de 2013 foi homologada a seguinte “TRANSACÇÃO

1- Os Réus reconhecem que a Autora é proprietária do imóvel identificado na alínea a) do pedido formulado pela segunda na sua petição inicial, integrando-se naquele imóvel a parcela de terreno descrita nos artigos 3º e 33º daquele mesmo articulado.

2- Os Réus comprometem-se a demolir a parede que é suporte de caleira, a que se alude nos artigos 20º, 21º e 22º da petição inicial, bem assim a recuar a caleira, de forma que não invada o espaço aéreo do prédio da Autora, até final de Janeiro de 2014.

3- Os Autores pretendem estar presentes aquando da demolição da caleira, devendo, por isso, os Réus avisar os mesmos com 8 dias de antecedência da data do início da realização da obra.

4- Os Réus obrigam-se, ainda a fazer o encanamento subterrâneo, na parcela referida na cláusula primeira, das águas pluviais recolhidas através da caleira referida em 3, até à via pública, até Junho de 2014.

5- Os Autores reconhecem que está constituída sobre a parcela de terreno, parte integrante da sua propriedade, identificada no artigo 3º da petição inicial, uma servidão de passagem a pé a favor do prédio dos Réus identificado no artigo 14º da petição inicial, que é feita através da porta lateral do prédio dos Réus que deita para a referida parcela.

6- Porque os Réus actualmente destinam o seu prédio dominante para armazém de caixas de vinho da sua produção agrícola e acessórios, os Autores reconhecem que a referida servidão de passagem a pé engloba a carga e descarga desse material, admitindo que essa carga e descarga possa ser realizada pelos próprios Réus, com o auxílio do seu tractor, semanalmente, uma vez por semana, e em períodos de curta duração (15 a 30 minutos).

7- Aos Autores é reconhecido pelos Réus o direito a pavimentar a referida parcela de terreno com os materiais que entender, sem que isso ponha em causa o direito reconhecido aos Réus nas cláusulas 5 e 6”.

2- O imóvel referido no ponto 1) da transacção é o prédio urbano situado no lugar do (... ) , freguesia de (... ) , concelho de Soure, que se encontra inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o n.º 69 da referida freguesia e concelho e descrita na Conservatória do Registo Predial de Soure com o n.º 5323/20000630, cuja aquisição está inscrita a favor da Requerida mulher.

3- O artigo 3.º da Petição Inicial da Acção identificada no ponto 1) tem a seguinte redacção: “No lado Norte do prédio da Autora existe uma parcela de terreno, em terra batida, com a largura de cerca de 2,5 m e extensão de cerca de 10,10 m, que é parte integrante do prédio da Autora supra identificado”.

4- O prédio dominante, cuja aquisição está inscrita a favor da Requerente mulher, confina com o referido no ponto 2), é o prédio urbano situado no lugar do (... ) , freguesia de (... ) , concelho de Soure, que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Soure com o n.º 5234/20000316.

5- Na manhã do dia 15 de Dezembro de 2014, o Requerido J (... ) encontrava-se a realizar os trabalhos preparatórios para pavimentar e proceder à instalação de um portão em folha metálica na parcela de terreno em causa, quando foi abordado por dois agentes da GNR de Soure.

6- O Requerido pretende instalar o referido portão no local onde, desde o ano de 2012, se encontrava colocada uma corrente metálica, a seguir à porta lateral do prédio dos Requerentes e a uma distância de 6,70 m desde a parte exterior do poste de electricidade situado na parte da frente da casa da Requerida.

7- Na parede lateral do imóvel referido em 4) encontra-se, além de uma porta, uma abertura cuja parte inferior se situa a 1,60 m do solo e tem a largura de 77,7 cm e a altura de 45 cm.

8- No topo da parcela de terreno referida em 3), a uma distância de 10 metros, contados desde a parte exterior do poste de electricidade situado na parte da frente da casa da Requerida, existe um portão.

9- O avanço do portão do local referido em 8) para o referido em 6) irá dificultar as operações de carga e descarga dos produtos vitivinícolas dos Requerentes.

10- O tractor utilizado pelo Requerente para o transporte dos produtos vitivinícolas mede 7,20 metros de comprimento (com reboque de carga).

11- Da via pública à entrada da porta que deita para a serventia onde são feitas as cargas e descargas dista 6,30 metros.

12- Os produtos a descarregar e a carregar são-no pela porta lateral que deita para a parcela de terreno referida em 3) para e do tractor.

13- No dia 15-12-2014, a solicitação da Sr.ª Dr.ª (…), dois elementos da GNR de Soure, acederam ao Largo (... ) , Soure, e, na presença do Guarda Principal n.º 548, (…), e de dois trabalhadores que aí se encontravam, o Cabo n.º 274, (…), notificou o Requerido “nos termos do n.º 2 do Artigo 397º do Código do Processo Civil (embargo extrajudicial), para cessar de imediato as obras que por si estavam a ser efectuadas, o qual de imediato acatou”.

*

Factos não provados:

- que a abertura referida em 7) se encontra naquele local pelo menos desde 1958, data em que o pai da Requerente a construiu para que a mesma iluminasse o balcão da loja que aí abriu nesse ano, permanecendo e sendo utilizada até aos dias de hoje, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição (art. 13º da p.i.);

- que o portão referido em 8) sempre ali tenha estado (art. 15º da p.i.);

(…)

*

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Verificação da existência dos pressupostos de procedimento cautelar de embargo de obra nova.

2. Os recorrentes na sua impugnação da decisão da matéria de facto, pretendem que os dois factos não provados, acima elencados, passem a provados, o 1º com a redacção de que a abertura referida em 7) se encontra naquele local pelo menos há 50 anos, e o 2º integralmente provado.

E que os factos provados 6. e 9. passem a ter a redacção que propõem (vide as conclusões de recurso III. a VIII. e X a XVI.).

2.1. Quanto aos factos não provados tal impugnação é inútil, como vamos adiante concretizar.

A impugnação da matéria de facto consagrada no art. 640º do NCPC não é uma pura actividade gratuita ou diletante.

Se ela visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados, ela tem, em última instância, um objectivo bem marcado. Possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada ou não provada, para que, face à eventual nova realidade a que se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu. Isto é, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados ou não provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada.  

Assim, se por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois nesse caso mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo factual anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de qualquer eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada.

Por isso, nestes casos de irrelevância jurídica, a impugnação da matéria de facto não deve ser conhecida sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente (vide A. Geraldes, Recursos em Pro. Civil, Novo Regime, 2ª Ed., 2008, nota 11. ao art. 712º, pág. 298, e Ac. desta Relação de 12.6.2012, Proc.4541/08.3TBLRA, em www.dgsi.pt).

No caso dos autos, os pontos da matéria não provada que os ora apelantes pretendem submeter a impugnação factual e análise por esta Relação, quedam irrelevantes, já que, mesmo que dados por provados nos termos pretendidos, nenhuma influência podem ter na sorte da causa e no mérito do recurso.

Na verdade, quanto ao 1º desses factos verifica-se que o facto provado 7., alegado pelos requerentes/apelantes, não teve qualquer relevância na sentença sob recurso, como os ora recorrentes pretendiam, porquanto em tal sentença foi considerado que tal abertura não era uma janela mas sim uma fresta insusceptível de criar uma servidão de vistas. E por isso nenhum direito havia a salvaguardar ou prejuízo algum se havia causado ou podia ser causado. E quanto a esta parte os apelantes não impugnaram a sentença. Efectivamente, quer no corpo das suas alegações quer nas respectivas conclusões os mesmos nada dizem sobre esta questão, não atacando aquela consequência jurídica tirada na decisão recorrida. Tal assunto ficou, pois, arrumado. Tanto mais que neste momento, em recurso, o que os apelantes controvertem é apenas saber se existe (ou não) a aludida servidão em toda a extensão da parcela de terreno, como defendem, e o modo do seu exercício (a pé e com tractor ou só a pé), e não já se existe servidão de vistas, ar e luz.

O que se acabou de dizer também vale para o 2º facto não provado. Na economia do recurso, quanto ao seu objecto, saber se existe ou não existe a aludida servidão com as referidas características e seu modo de exercício, nenhuma importância reveste apurar se o portão referido no facto provado 8. sempre esteve no topo da parcela de terreno referida no facto provado 3., ou nunca aí esteve ou se o portão já esteve, entretanto, noutro local. Mesmo que dado como provado, como os impugnantes pretendem, não alteraria a decisão que tem e deve ser tomada sobre o objecto do recurso com os factos que estão assentes.

Desta sorte, a alteração da matéria de facto, nos pontos precisos indicados, seria inócua atento os pedidos formulados pelos requerentes/recorrentes e a decisão sob recurso que foi proferida.  

Inexiste, por isso, motivo para alterar as respostas aos factos não provados, nos termos pretendidos pelos recorrentes.      

2.2. Quanto ao facto provado 6. pretendem os impugnantes que se dê uma resposta restritiva a tal facto substituindo-se o segmento “desde o ano de 2012, se encontrava” por “no ano de 2012, esteve por vezes”.

Não pode ser. De acordo com a motivação judicial da decisão da matéria de facto a tal ponto o tribunal baseou-se na confissão da requerente/recorrente.

E foi de facto o que aconteceu, como resulta da acta da audiência de julgamento (de 27.1.2015, a fls. 102/103), acta onde se exarou tal confissão expressa nos precisos termos em que se deu tal facto como provado.

Face a tal confissão judicial provocada escrita da requerente/recorrente, dona do prédio dominante, que tem força probatória plena, tal facto é imodificável (arts. 352º, 355º, nº 1 e 2, 356º, nº 2, e 358º, nº 1, do CC, e 463º, nº 1, do NCPC).

Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto, nesta parte.   

2.3. Quanto ao facto provado 9. pretendem os impugnantes que se dê uma resposta ampliativa a tal facto substituindo-se o segmento “dificultar” por “impossibilitar”. Registe-se que de acordo com o que essencialmente alegaram nos arts. 16º, 17º, 19º, 21º a 29º da p.i. os recorrentes nunca alegaram que o avanço do portão impossibilitava as operações de carga e descarga, mas tão-só que ficava estorvada a servidão.

Da motivação da decisão da matéria de facto (vide fls. 161 e 293) vê-se que o tribunal fundou a resposta a tal facto no depoimento de uma testemunha, a (…), e nas regras do senso comum, considerando o método utilizado pelos requerentes para proceder à descarga.

Os apelantes atacam tal decisão de facto com base na seguinte argumentação: “É que, se é certo que ficou provado que não é impossível efectuar cargas e descargas com a execução da obra nova (colocação de portão no local mencionado em 6)), menos certo não será dizer que a dificuldade na execução das cargas e descargas será de tal forma gravosa que impossibilitará que o Recorrente consiga, num máximo de trinta minutos e sozinho (porque a tal obriga a transacção constante em 1) e como afirmou a Recorrente no seu Depoimento de Parte ao minuto 12:46) efectuar a carga ou a descarga da mercadoria do seu tractor.

O Recorrente, tendo que subir e descer do tractor para puxar, empurrar, colocar a mercadoria no local do atrelado que fique mais centrada possível da porta do seu armazém, para depois já no chão nela pegar e arrumar, voltando a subir e a repetir toda a operação até esvaziar todo o atrelado, será completamente impossível cumprir o acordado judicialmente. O mesmo é dizer que será impossível em trinta minutos e sozinho efectuar cargas e descargas, uma vez que o portão ali colocado não permitirá ao Recorrente colocar o tractor mais a trás ou mais à frente conforme a disposição da mercadoria, de forma a que rapidamente possa colocar ou retirar tudo em/de cima do tractor.

Pelo que, não podendo cumprir o tempo estipulado para as cargas e descargas devido ao avanço do portão que não vai permitir a manobra do tractor para a frente e para trás para posicionar a mercadoria "à boca" da porta do imóvel do Recorrente, tal consubstancia-se numa verdadeira impossibilidade e não já dificuldade nas operações de carga e descarga.

É que, se a carga ou a descarga demorar mais de trinta minutos, os Recorrentes ficam proibidos de a efectuar, vendo vedado o exercício do seu direito, reconhecido judicialmente”.

Ou seja, para além do recurso à interpretação própria das cláusulas constantes na transacção e de recurso às regras da lógica ou do senso comum o único meio probatório invocado pelos impugnantes para alterar a resposta a tal facto é o depoimento de parte da requerente. Obviamente que o depoimento de parte (não declarações de parte) não pode valer para comprovar factos favoráveis à mesma, dado o que se dispõe no citado art. 352º do CC.

Fora deste elemento probatório, nada mais temos, na impugnação dos recorrentes, que a interpretação das cláusulas da transacção efectuada pelas partes e que as regras da lógica ou do bom senso. Ora, estas não permitem de modo algum concluir que os recorrentes – ambos e não só o recorrente, como afirmam os apelantes, segundo a cláusula 6, da transacção – estão impossibilitados de fazer a carga/descarga dos seus produtos vitivinícolas face a avanço do portão dos Requeridos, em 3,30 m, relativamente à actual localização. Ou seja, concordamos com a conclusão extraída na decisão de facto que a diminuição da extensão da referida parcela de terreno de 10 m para 6,70 m dificulta, embora não impossibilite, a carga e descarga de produtos, a partir do atrelado do requerente pelo acréscimo de trabalho que provocará, por o atrelado não ficar “à boca da porta lateral” do prédio dos requerentes. Sem prejuízo, claro, de nos dias da carga/descarga dos produtos vinícolas ser de quantidade reduzida nem se divisar tal significativa e acrescida dificuldade.

Assim, não vislumbramos razão para alterar a resposta a tal facto.  

3. Na decisão recorrida escreveu-se que:

“Ora, nos termos do já referido art. 397º do C.P.C., aquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, em qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse, em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo, pode requerer que a obra, trabalho ou serviço seja mandado suspender imediatamente.

(…)

Com ele pretende-se acautelar o risco de lesão do direito de propriedade, outro direito real de gozo ou da posse, gerado por obra, trabalho ou serviço novo – é o que resulta do artigo 397º, nº 1. São portanto três os requisitos essenciais do procedimento:

(1) que o requerente seja titular de um direito,

(2) que se julgue ofendido no seu direito em consequência de obra, trabalho ou serviço novo, e

(3) que o dito trabalho ou serviço novo lhe cause ou ameace causar prejuízo – Moitinho de Almeida, “Embargo ou nunciação de obra nova”, 2ª edição, página 21.

(…)

Analisemos, pois, cada um dos pressupostos materiais do procedimento cautelar de embargo de obra nova.

O primeiro dos enunciados pressupostos é que o requerente seja titular de um direito. A par do direito de propriedade em sentido estrito, cabem ainda no âmbito de protecção as situações de contitularidade, que se reconduzem às regras da compropriedade ou ao regime da propriedade horizontal. Abarcados são os restantes direitos reais de gozo, tais como o direito de usufruto, de superfície ou de servidão predial – Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, Almedina, 2001, pág. 225.

E, no caso dos autos, o direito dos Requerentes é o que foi definido na sentença que homologou a transacção na Acção identificada no ponto 1) dos factos provados. Cumpre, pois, proceder à respectiva análise adiantando, desde já, que a interpretação a que se presta a redacção do respectivo texto não é unívoca.

De acordo com os Requerentes, a transacção referida revela a vontade das partes em reconhecer que está constituída uma servidão de passagem a pé a favor do prédio dos ora Requerentes, sobre a parcela de terreno, em terra batida, com a largura de cerca de 2,5 m e extensão de cerca de 10,10 m, situada no lado Norte do prédio da Requerida, servidão de passagem a pé essa que engloba a carga e descarga de caixas de vinho da sua produção agrícola e acessórios, admitindo que essa carga e descarga possa ser com o auxílio do tractor dos Requerentes, com a frequência e duração constantes da referida transacção.

Para sustentarem este entendimento, argumentam com a remissão feita no ponto 5) do texto da transacção para o art. 3º da petição inicial da referida acção, onde as dimensões da referida parcela estão expressamente indicadas.

Por seu turno, os Requeridos sustentam que com a referida transacção reconheceram a existência de uma servidão de passagem a pé sobre a parcela de terreno delimitado pela via pública e pela porta lateral do prédio dos Requerentes, que é a estritamente necessária à passagem pedonal dos Requerentes, e não sobre toda a extensão da parcela de terreno que integra o lado Norte do prédio da Requerida.

Para determinar qual o direito de que os Requerentes são titulares, bem como o seu conteúdo e extensão, torna-se imprescindível interpretar a transacção homologada judicialmente, transcrita no ponto 1) dos factos provados, recorrendo às regras constantes dos artigos 236º e segs. do Código Civil, respeitando, no caso, a do artigo 238º.

Conforme se refere no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-2009, a homologação por sentença não invalida que se tenha de apurar o significado das declarações negociais que compõem a transacção, valendo para o efeito aquelas regras; a fixação do alcance do caso julgado que assim se formou implica essa interpretação. Mas exige que o sentido que se apure ter sido (facticamente) pretendido pelas partes tenha uma tradução suficiente no texto homologado, de acordo com a limitação constante do nº 1 do artigo 238º do Código Civil: é necessário que o sentido que se apure corresponder à vontade das partes tenha “um mínimo de correspondência” no texto que foi homologado – publicado no sítio da dgsi.

Por outro lado, tal interpretação não se pode reconduzir a uma reapreciação da questão de direito, que assente na determinação das necessidades de passagem, o que violaria o caso julgado – vd., a este propósito, o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 24-05-2005, publicado no sítio da dgsi.

Ora, atendendo às circunstâncias do caso, aos termos utilizados na transacção, analisados à luz da boa-fé, e à teoria da impressão do destinatário, julgamos que foi vontade das partes a defendida pelos Requeridos.

Dispõe a cláusula em questão: “Os Autores reconhecem que está constituída sobre a parcela de terreno, parte integrante da sua propriedade, identificada no artigo 3º da petição inicial, uma servidão de passagem a pé a favor do prédio dos Réus identificado no artigo 14º da petição inicial, que é feita através da porta lateral do prédio dos Réus que deita para a referida parcela”.

É que a interpretação contrária, defendida pelos Requerentes, não tem apoio no segmento final da referida cláusula: “feita através da porta lateral do prédio dos Réus que deita para a referida parcela”. Se o reconhecimento da servidão o fosse sobre a totalidade da parcela identificada, tal segmento seria inútil, bastando, para atribuir o sentido pretendido pelos Requerentes, a primeira parte do texto referido. Contudo, ao introduzirem aquele último segmento, as partes terão, certamente, pretendido delimitar a servidão reconhecida à parte da parcela definida no art. 3º situada entre a porta lateral do prédio dos Requerentes e a rua.

A remissão feita para o art. 3º da petição inicial dessa acção, em que se identifica a faixa de terreno situada no lado norte do prédio da aí Autora (ora Requerida) com referência às suas medidas aproximadas (de 10,10 metros por 2,50 metros) não tem por fim indicar as medidas da própria servidão, mas antes situar a faixa de terreno sobre parte da qual a servidão foi reconhecida.

Tal sentido tem, sem qualquer dúvida, correspondência no texto homologado pela sentença e satisfaz plenamente o direito reconhecido aos Requeridos de acederem ao seu prédio pela referida porta lateral e de realizar cargas e descargas dos produtos especificados.

Por outro lado, na data em que a referida transacção foi elaborada e homologada por sentença, existia, no local onde os Requeridos pretendem colocar o portão, uma corrente metálica, à qual nenhuma menção é feita nesse texto. Ora, se os Requerentes considerassem que, de alguma forma, a referida corrente ofendia o direito de servidão que estava a ser reconhecido, não teriam, certamente, deixado de acordar com os Requeridos na sua remoção, o que não fizeram”.

(…)

Aqui chegados, dúvidas não restam quanto à não verificação do requisito para o decretamento de obra nova enunciado em 3º lugar: que a obra nova cause ou ameace causar prejuízo aos Requerentes.

Efectivamente, a obra em questão é a instalação de um portão a seguir à porta lateral do prédio dos Requerentes – vd. factos provados 5) e 6). A entrada de tal porta dista 6,30 metros da via pública e os Requeridos pretendem instalar o portão a uma distância de 6,70 metros da parte exterior do poste de electricidade situado na parte da frente da casa da Requerida.

Ou seja, os Requeridos pretendem instalar o referido portão sobre a parcela de terreno de que são proprietários e sobre a qual não está constituída servidão de passagem a favor do prédio dos Requerentes, dado que esta se situa para lá do projectado local e implantação, no segmento delimitado pela rua e pela referida porta lateral.

Assim, ainda que a colocação do portão no local pretendido pelos Requeridos cause prejuízo aos Requerentes, na medida em que irá dificultar as operações de carga e descarga dos seus produtos vitivinícolas, o mesmo não é tutelado pela providência cautelar de embargo de obra nova, na medida em que o direito real de gozo da titularidade dos Requerentes não é afectado pela obra dos Requeridos”.

Concordamos na essencialidade com a argumentação jurídica da decisão recorrida, mas dissentimos da conclusão a que se chegou, via interpretação feita da cláusula 5. da transacção efectuada (facto provado 1.).

Ponto prévio que urge afirmar é que não é possível recorrer a prova testemunhal para interpretar a transacção efectuada, em outro processo, com base em prova testemunhal produzida no presente processo, como os recorrentes pretendem (vide conclusão de recurso XIX.), quando as regras a considerar, referidas na sentença recorrida, são apenas regras de direito, as interpretativas decorrentes dos mencionados arts. 236º, nº 1, e 238º, nº 1, do CC, salvo se os factos provados revelassem a vontade real das partes (nº 2 de ambos os preceitos), o que não acontece.

Cingindo-nos, então, a tais regras, temos de concluir que na decisão recorrida se deu relevância ao segundo segmento, ou segmento final, da cláusula 5. da transacção judicial, esquecendo-se o segmento inicial da mesma, que reza que os actuais recorridos ”reconhecem que está constituída sobre a parcela de terreno, parte integrante da sua propriedade, identificada no artigo 3º da petição inicial” uma servidão de passagem a pé a favor do prédio dos recorrentes. E essa parcela, mencionada no art. 3º da p.i. pelos próprios actuais recorridos, tem “a largura de cerca de 2,5 m e extensão de cerca de 10,10 m”.

Foi, assim, sobre esta parcela, com a referida extensão e largura, que foi reconhecido e acordado que existia a referida servidão de passagem.    

A importância que a 1ª instância dá ao indicado segundo segmento no trecho em que se diz que a servidão “é feita através da porta lateral do prédio dos Réus que deita para a referida parcela” nós não a atribuímos. Não vemos nesse trecho a conclusão que a servidão existe apenas em parte daquela referida parcela, concretamente na parte do terreno que vai desde a porta lateral até à via pública, como os recorridos defendem (vide a sua conclusão de recurso 6ª), mas mais latamente a servidão existe sobre a totalidade da dita parcela de terreno, como notámos.

A referência a que a servidão é feita através da porta lateral do prédio dos actuais recorrentes não pode ter o efeito de marcar o lugar a partir do qual a servidão se inicia, como os recorrentes bem sublinham nas suas alegações (conclusões XXIII a XXVI.). Através no caso significa que é por tal porta que os recorrentes saindo do seu prédio dominante entram no prédio serviente e vice-versa saindo do prédio serviente entram no seu prédio dominante, não delimitando a extensão e largura da sua servidão, pois que ela abarca todo aquele terreno indicado no facto provado 3., com as apontadas medidas.

Por outro lado, diremos o contrário do afirmado na sentença, quanto á referência à corrente metálica. Concluindo-se, como fizemos que a servidão abarca toda a parcela de terreno definida no facto provado 3., o que podemos deduzir é exactamente o inverso do afirmado nessa decisão, ou seja, que na data em que a referida transacção foi elaborada e homologada por sentença, existia, no local onde os requeridos/recorridos pretendem colocar o portão, uma corrente metálica, à qual nenhuma menção é feita nesse texto. Ora, se os requeridos/recorridos considerassem que, de alguma forma, a referida corrente delimitava o direito de servidão que estava a ser reconhecido não teriam, certamente, deixado de fazer tal reconhecimento apenas até ao local onde estava colocada tal corrente (a 6,70 m do poste de electricidade situado na frente da sua casa, a tal distância da via pública), e não como fizeram em relação à profundidade maior da sua parcela de terreno (10 m).

Temos, portanto, como certo que o prédio da recorrente beneficia de um direito de servidão de passagem a pé por uma parcela de terreno do prédio da recorrida, em terra batida, com a largura de cerca de 2,5 m e extensão de cerca de 10,10 m, servidão de passagem a pé que é feita, isto é, em que se entra e sai no prédio serviente e prédio dominante, e vice-versa, através da porta lateral do prédio dos actuais apelantes que deita para a referida parcela.

Mas não só. Além da servidão a pé os apelantes, porque destinam o seu prédio dominante para armazém de caixas de vinho da sua produção agrícola e acessórios, gozam do direito, no exercício de tal servidão, de carregar e descarregar esse material com o auxílio do seu tractor, semanalmente, uma vez por semana, e em períodos de curta duração (15 a 30 minutos) – facto provado 1., cláusula 6.

Está, por isso, verificado o 1º dos requisitos legais típicos do embargo de obra nova, acima elencados na sentença recorrida, e decorrentes do citado art. 397º, nº 1, do NCPC.

E face à actuação do requerido (factos provados 5. e 6.) estão demonstrados, igualmente, os 2º e 3º requisitos legais, mais atrás indicados, já que dessa maneira o direito de servidão invocado pelos recorrentes se mostra, desde logo com a redução da profundidade/comprimento da servidão, estorvado e dificultado, como emerge dos factos provados 1. (5. e 6.) a 4., e 9. a 12., e decorre dos arts. 1564º, 1565º, nº 1, e 1568º, nº 1, do CC.       

Aliás, a doutrina e a jurisprudência têm entendido pacificamente que o prejuízo já está ínsito na ofensa do direito, não sendo necessário alegar perdas e danos materiais, por o dano ser jurídico (vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. II, pág. 63/65, e L. Freitas, CPC Anotado, Vol 2º, 2ª Ed., nota 7. ao artigo 412º, pág. 147/148, A. Geraldes, T. da Reforma do Processo Civil, IV Vol., 4ª Ed., 2010, pág. 258, e Moitinho de Almeida, Embargo ou Nunciação de Obra Nova, 3ª Ed., pág. 13 e 19, e o Ac. desta Rel. Coimbra de 24.4.2012, Proc.4696/11.0TBLRA-A, em www.dgsi.pt, citado nas alegações de recurso, e relatado pelo actual relator).   

Procede, por isso, o recurso.

Uma breve nota para sublinhar que o objecto do recurso dos apelantes abrange apenas o embargo de obra nova (vide pedido final nas conclusões de recurso) não abarcando a pretensão de inversão do contencioso, razão pela qual este tribunal não se pronunciou sobre tal questão.      

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente;

ii) Nos termos dos arts. 236º, nº 1, e 238º, nº 1, do CC, deve interpretar-se a cláusula de uma transacção judicial com a seguinte redacção “Os Autores reconhecem que está constituída sobre a parcela de terreno, parte integrante da sua propriedade, identificada no artigo 3º da petição inicial, uma servidão de passagem a pé a favor do prédio dos Réus … que é feita através da porta lateral do prédio dos Réus que deita para a referida parcela”, sendo que o art. 3º da p.i. tem a seguinte redacção “No lado Norte do prédio da Autora existe uma parcela de terreno, em terra batida, com a largura de cerca de 2,5 m e extensão de cerca de 10,10 m, que é parte integrante do prédio da Autora supra identificado”, como, na prevalência do elemento literal do segmento inicial, tendo as partes querido abranger na referida servidão de passagem a totalidade da referida parcela, com as medidas definidas, e não que a mencionada servidão apenas abrange a parte do terreno que vai desde a porta lateral até à via pública;

iii) A lei, no caso de embargo de obra nova (ou respectiva ratificação judicial), contenta-se com a verificação de um dano jurídico, bastando, pois, que o facto tenha a feição de ilícito porque contrário à ordem jurídica concretizada num direito de propriedade ou noutro direito real (num direito de servidão) para que haja de considerar-se prejudicial para os efeitos de tal embargo de obra nova.

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, assim se revogando a decisão recorrida, e, em, consequência se julgando procedente o embargo de obra nova deduzido pelos requerentes/recorrentes, assim se condenando os requeridos a colocar a serventia no exacto estado em que se encontrava antes do início da obra, obstando-se de efectuar qualquer obra que restrinja a servidão existente ou estorve o exercício da mesma.

*

Custas pelos requeridos/recorridos.  

*

   Coimbra, 15.9.2015

Moreira do Carmo ( Relator )

   Fonte Ramos

  Maria João Areias