Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
57/11.9GAAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: PROVA PROIBIDA
DECLARAÇÕES INFORMAIS DE ARGUIDO
ÓRGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
Data do Acordão: 06/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 125.º, 128.º E 355.º E 356.º, N.º 7, DO CPP
Sumário: As declarações informais de arguido a órgão de polícia criminal constituem meio de prova não permitido, ocorram antes ou depois da obtenção formal daquele estatuto.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular nº 57/11.9GAAGN do Tribunal Judicial de Arganil, o arguido A..., identificado nos autos, foi submetido a julgamento acusado da prática, como autor material, em concurso efectivo, de um crime de falsificação ou contrafacção de documento p. e p. pela alínea e) do nº 1 e nº 3 do artigo 256º do Código Penal e de um crime de condução de veículo sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3º, nº 2 do Decreto-Lei nº 2/98 de 3 de Janeiro.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Face ao exposto, o Tribunal julga a acusação pública procedente por provada, pelo que, em consequência:

1.  Condena-se o arguido A..., como autor material de um crime de falsificação p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, al. e), e 3, do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis) euros, o que perfaz o montante global de € 1 200 (mil e duzentos) euros.

2. Condena-se o arguido A..., como autor material de um crime p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98 de 3 de Janeiro, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 6 (seis) euros, o que perfaz o montante global de € 480 (quatrocentos e oitenta) euros.

3. Condena-se o arguido A..., como autor material e em concurso efectivo de infracções, na pena única de € 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de e 6 (seis) euros, o que perfaz o montante global de € 1.500 (mil e quinhentos) euros.

O Tribunal condena o arguido nas custas crime do processo, fixando a taxa de justiça em 2 Ucs.

Inconformado, recorreu o arguido A..., extraindo da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:

1-O arguido não se conforma com a presente condenação atenta a ausência de prova que com segurança possa demonstrar que o arguido tinha conhecimento que o documento que apresentou como carta de condução o não era na realidade por se tratar de documento falso, pelo que impugna pois a matéria de facto dada por provada na parte final do ponto 4 "e, não obstante, quis conduzir nas referidas circunstâncias", pontos, 5, 6, 8, 9 da fundamentação da decisão recorrida.

2- Não existe qualquer prova testemunhal ou documental que corrobore a verificação de tal matéria julgada provada.

3- Considerando que do processo constam todos os elementos de prova que serviram de base à condenação, deve este Tribunal de recurso modificar a matéria de facto julgando-a não provada, para tanto se passando a enumerar as concretas provas, ou a ausência delas, que impõem decisão diversa da recorrida.

4- Tendo em conta que o arguido decidiu não prestar declarações, direito esse que lhe assiste não podendo ser prejudicado por o ter exercido, entendemos não poderem ser valorados os depoimentos dos agentes da GNR no que concerne ao que o arguido lhes terá dito por serem nessa parte um meio de prova proibido - e não se tendo produzido em audiência de julgamento outra prova relativamente ao conhecimento pelo arguido de que a carta de condução de que era portador não era válida, até porque o arguido não prestou declarações.

5- Se se admitir e valorar este tipo de depoimento indirecto dos órgãos de polícia criminal está a onerar-se a defesa e a impor ao arguido que abandone o exercício do seu direito ao silêncio para contrariar ou esclarecer as declarações que lhe são apontadas.

6- Se as declarações tivessem sido reduzidas a escrito não poderiam ser valoradas, pelo que também as declarações verbalmente prestadas perante órgão de polícia criminal o poderão ser, sob pena de constituir a derrogação dos preceitos legais imperativos e que tocam com garantias processuais do estatuto do arguido constitucionalmente tutelado no art.32 da CRP.

7-Entendemos pois que as declarações que os agentes da GNR referentes a factos que presenciaram directamente serão admissíveis mas já não o serão se apelarem a declarações do arguido para preencher espaços omissos para que, eventualmente com recurso a presunções judiciárias, o tribunal consiga imputar ao arguido e dar por verificados todos os elementos do tipo.

8-As declarações prestadas por uma pessoa a uma autoridade judiciária ou órgão de policia criminal antes de formalmente ser constituída arguida não poderão ser utilizadas no processo, pelo que, no nosso modesto entender, não podem estes órgãos ser admitidos a depor sobre tais declarações.

9- Caso assim se não entenda e sejam valoradas as declarações dos agentes da GNR sobre as declarações prestadas pelo arguido, tal igualmente não é suficiente, no nosso entender, para demonstrar que o arguido conhecesse a falsidade do documento que neste momento face à prova pericial produzida não questiona, pois que o próprio arguido se mostrou surpreendido com a possibilidade levantada pelos agentes da carta não ser válida e verdadeira referindo que já havia sido fiscalizado anteriormente sem que essa questão fosse suscitada.

10- Presumir que o arguido sabia da falsidade do depoimento, sem apoio em qualquer outro facto que não seja a também presumida experiência de vida do arguido quanto à normalidade da tramitação para obtenção de carta de condução, consubstancia no nosso entender uma violação do princípio da presunção da inocência, pois que na dúvida o arguido devia ter sido absolvido.

11- Ao assim não julgar, a decisão recorrida violou o disposto no art. 32 n.º 2 da CRP e as disposições legais que admitem a prova por presunção verificados que estejam os respectivos requisitos legais isto é o art. 349 e 351 do C. Civil por remissão do art. 125.° do CPP.

Termos em que julgando procedente o presente recurso e alterando a decisão da matéria de facto por outra que julgue não provados os factos constantes da parte final do ponto 4 "e, não obstante, quis conduzir nas referidas circunstâncias", pontos, 5, 6, 8, 9 da fundamentação da decisão recorrida, absolvendo, em consequência, o arguido, farão Vossas Excelências sã, serena e objectiva JUSTIÇA.

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:

1. As declarações de um suspeito, em momento prévio á sua constituição como arguido e decorrentes das diligencias cautelares levadas a cabo pelos OPC s/ não constituem prova proibida, para efeitos do disposto no art. 356º, n.º 7/ do C.P.P.

2. Com efeito e como bem explica o Acórdão do STJ de 24 de Fevereiro de 1993/ podemos assim concluir que só não é permitida a inquirição e consequente valoração de depoimentos prestados por agentes de autoridade quando aqueles recaem sobre declarações prestadas pelo suspeito ou arguido em auto, por lhe assistir a faculdade de não prestar declarações na audiência de julgamento.

3. Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que o silêncio do arguido, ainda que não O possa desfavorecer, decerto também não o poderá favorecer, sendo certo que a matéria de facto provada constante dos pontos 1 a 4 constituem matéria de facto suficiente para permitir ao julgador concluir pela verificação do tipo objectivo e subjectivo do ilícito em questão.

4. Com efeito, decorre da matéria de facto provada nos pontos 1 a 4 da douta decisão ora recorrida, que no dia 14 de Abril de 2012/ o arguido conduzia um veículo ligeiro de mercadorias quando foi fiscalizado pela GNR de Góis, sendo certo que o documento apresentado pelo arguido era falso, tendo o IMTT informado que o arguido não possuía qualquer licença de condução.

5. Não tendo o arguido efectuado qualquer procedimento legal com vista á obtenção de uma licença de condução válida, como obviamente se constata pela informação do IMTT, teremos de concluir que, ou o arguido não tem conhecimento do funcionamento das instituições em Portugal, o que é altamente improvável, ou sabia claramente que tinha em seu poder um documento que não era válido.

6. Decorre necessariamente desta conjugação de premissas que o arguido teria forçosamente que saber que não possuía uma licença de condução na medida em que, de acordo com o IMTI, ela não existe.

7. O Tribunal não fundou o seu juízo numa qualquer presunção, antes baseou a sua convicção em regras da experiência comum transversais á sociedade, assentando pois a sua decisão, num raciocínio estruturado, racional e lógico, partindo das premissas existentes nos autos, para a partir daí formar a necessária conclusão.

8. Acresce que o Tribunal obedeceu necessariamente ao principio da imediação decorrente do disposto no art. 355º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o qual engloba todas as manifestações exteriores perceptíveis numa sala de audiências, a que não é igualmente alheia a postura dos intervenientes e a maior ou menor convicção de verdade que os mesmos intervenientes inculcam no julgador.

9. Não basta uma qualquer dúvida, antes se torna necessário que essa dúvida seja apta a abalar ou confundir a convicção do julgador acerca do concreto cometimento do ilícito.

10. Conforme explica o Tribunal da Relação de Coimbra em acórdão de 7 de Dezembro de 2005, o princípio in dubio pro reo é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver a certeza sobre factos decisivos para a solução da causa: Mas daqui não resulta que, tendo havido versões diferentes a até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido

11. No caso em apreço, não restam quaisquer dúvidas que o arguido sabia perfeitamente que aquele documento não o habilitava a conduzir automóveis e não basta remeter-se ao silêncio para ludibriar uma decisão baseada em princípios de normalidade e sustentada nas regras da experiencia comum.

12. As premissas são claras e peremptórias: De acordo com a informação do IMTI, o arguido nunca possuiu licença de condução. O arguido conduzia com um documento, pese embora nunca tenha efectuado os procedimentos necessários para obter a licença de condução.

13. Da conjugação destas premissas nasce forçosamente a convicção de que o arguido sabia perfeitamente que a licença de condução em causa não o habilitava a conduzir veículos automóveis na via pública.

14. Pelo que, no caso em concreto, salvo o devido respeito, a douta decisão ora recorrida carece de qualquer reparo, porquanto se mostra conforme ás regras do direito e da experiência comum.

15. Em conclusão, em face da prova existente nos autos e atentos os depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, bem andou o Tribunal ao condenar o arguido pela prática do crime de falsificação de documento, em face do preenchimento dos elementos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito em causa.

Nestes termos, deverá negar-se provimento ao recurso ora interposto, mantendo-se a decisão nos precisos termos em que foi formulada, fazendo, desta forma, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, a costumada JUSTIÇA.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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            II. Fundamentos da decisão recorrida

A decisão recorrida contém os seguintes fundamentos de facto:

Factos provados:

1. No dia 14 de Abril de 2011, cerca das 18h25m, na Estrada Nacional nº 342, km 83,800, na localidade de Bordeiro, Góis, o arguido conduzia um veículo ligeiro de mercadorias que circulava no sentido Góis-Arganil, quando foi interceptado no âmbito de uma operação de fiscalização levada a cabo pela G.N.R. do P.T. de Góis.

2. Aquando dessa fiscalização a G.N.R. do P.T. de Góis verificou que o arguido apresentava uma carta de condução suspeita, pelo que a mesma foi apreendida e remetida ao Laboratório de Polícia Cientifica a fim de ser submetida a exame pericial.

3. Examinada a carta de condução apresentada pelo arguido, constatou-se que a mesma era falsa e que o mesmo não era titular de carta de condução que o habilitasse a conduzir.

4. O arguido conduziu o referido veículo sem que para o efeito estivesse habilitado com carta de condução válida ou qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir e, não obstante, quis conduzir nas referidas circunstâncias.

5. O arguido sabia que a carta de condução que possuía não foi emitida por entidade competente para o efeito, porquanto não se submeteu aos exames necessários à sua obtenção.

6. Mais sabia o arguido que ao utilizar o referido documento, atentas as semelhanças do mesmo com um documento autêntico, fazia crer que tal documento era legítimo e verdadeiro.

7. O documento apresentado pelo arguido nos termos em que o fez e atentas as suas características era idóneo a criar a convicção de que a sua obtenção era legítima e que o documento era emitido por entidade competente para o efeito.

8. O arguido ao deter e utilizar a referida carta de condução estava ciente de que tal documento não era verdadeiro e fê-lo movido pelo propósito concretizado de exercer condução de veículos automóveis sem que para tal tivesse sido legalmente habilitado.

9. Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente nas circunstâncias descritas, não ignorando que os seus comportamentos eram contrários ao direito e penalmente censuráveis.

Mais se provou que:

10. O arguido é pintor da construção civil auferindo mensalmente do exercício dessa actividade um rendimento de cerca de € 580,00.

11. A esposa do arguido é operária fabril auferindo mensalmente um salário no valor de € 485,00.

12. O arguido e a sua esposa têm a seu cargo uma filha com 6 anos de idade.

13. Vivem em casa própria, pagando o arguido e sua esposa para amortização do empréstimo bancário que contraíram para aquisição do referido imóvel cerca de € 300,00 mensais.

14. O arguido tem o 4º ano de escolaridade.

15. O arguido não tem antecedentes criminais.

Motivação da decisão de facto positiva:

            O Tribunal alicerçou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova, e apesar de o arguido não ter querido prestar declarações quanto aos factos que lhe eram imputados no libelo acusatório, nos seguintes termos:

Factos 1 a 9:  Nos depoimentos das testemunhas B...e C..., ambos militares da GNR que à data dos factos prestavam serviço no P.T de Góis, depuseram de forma genuína, espontânea e isenta, revelaram ter conhecimento directo dos factos, por terem procedido pessoalmente à operação de fiscalização ao arguido, em especial a testemunha B... que foi quem interpelou directamente o arguido, tendo-o confrontado com a origem do documento (carta de condução que aquele possuía na altura), referiu que o arguido lhe disse que tinha realizado exame de condução no mesmo dia, no Largo do Rato, em Lisboa, que pagou a um Engenheiro que desconhece o nome o montante de 120.000$00 PTE pela carta. Mais disse que o arguido lhe referiu ainda que já tinha utilizado a carta noutras ocasiões e que em anteriores fiscalizações de trânsito nunca tinha acontecido nada, tinha sido a primeira vez.

            Foi ainda ponderado o teor da restante documentação junta aos autos – cfr. auto de notícia de fls. 2 a 4, auto de apreensão de fls. 6, pedido de informação de fls. 7, informação do IMTT de fls. 8, fls. 9, informação de fls. 15, relatório de exame e saco de prova de fls. 17 a 19.

            Quanto à actuação dolosa e ilícita do arguido, o Tribunal fundou-se nas regras da experiência comum e da normalidade social conjugado com os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento e restante documentação junta aos autos, pois que o arguido não podia ignorar e portanto tinha necessariamente consciência de que a carta obtida da forma como relatou ao agente da autoridade quando da fiscalização tinha que ser falsa, pois bem sabia que não tinha feito qualquer exame válido para a obter, além de que - não obstante ter apenas o 4º ano de escolaridade, é uma pessoa com experiência de vida, como o demonstram os factos dados como provados quanto às suas condições de vida, incluindo a respectiva idade - tal não o impedia de saber como sabia, pois é facto público e notório que ninguém obtém num só dia uma carta de condução de veículos automóveis ligeiros, além disso também não podia ignorar como não ignorava, e sabia que a entidade pública competente nunca poderia emitir e entregar cartas de condução na sequência de uma exame de condução feito num único dia por um engenheiro que nem sequer sabia o nome. E nessa sequência, sabendo que a “carta de condução” que possuía não era verdadeira, o arguido também sabia que não tinha qualquer título legítimo e válido que o habilitasse a conduzir veículos automóveis e ainda assim não se coibiu de prosseguir com os seus intentos, ou seja, utilizou documento falso criando a convicção em terceiros (incluindo entidades policiais) que era possuidor de titulo válido e legitimo para o exercício da condução.

Factos 10 a 14: nas declarações do arguido quanto às suas condições de vida que não foram infirmadas por nenhum outro meio de prova.

Facto 15: no teor do CRC do arguido junto aos autos.

Factos não provados com interesse para a decisão da causa: não há.


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            III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso. E vistas essas conclusões a única questão a apreciar é a seguinte:

- Se ocorre erro de julgamento da matéria por consideração de meio de prova não permitido, devendo esta ser alterada com a consequente absolvição do arguido.

Apreciando:

O recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, considerando que foram mal julgados os factos que constam como provados na sentença sob o nº 4, parte final "não obstante quis conduzir nas referidas circunstâncias" e sob os nºs 5, 6, 8 e 9, ou seja os factos integradores dos elementos subjectivos dos crimes de falsificação e de condução de veículo sem habilitação legal por que foi condenado, sendo sua pretensão que esses factos sejam considerados não provados com a sua consequente absolvição.

Para tanto alega que não existe prova documental ou testemunhal que corrobore a verificação de tal matéria de facto, não podendo ser utilizadas para esse efeito, como foram na sentença recorrida os depoimentos dos agentes da GNR sobre as declarações prestadas pelo arguido antes de constituído nessa qualidade, não se podendo igualmente presumir que o arguido sabia da falsidade da carta de condução.

Confrontada a motivação constante da sentença recorrida, verificamos que sobre a factualidade impugnada dela consta que a convicção positiva assentou "Nos depoimentos das testemunhas B...e C..., ambos militares da GNR que à data dos factos prestavam serviço no P.T de Góis, depuseram de forma genuína, espontânea e isenta, revelaram ter conhecimento directo dos factos, por terem procedido pessoalmente à operação de fiscalização ao arguido, em especial a testemunha B... que foi quem interpelou directamente o arguido, tendo-o confrontado com a origem do documento (carta de condução que aquele possuía na altura), referiu que o arguido lhe disse que tinha realizado exame de condução no mesmo dia, no Largo do Rato, em Lisboa, que pagou a um Engenheiro que desconhece o nome o montante de 120.000$00 PTE pela carta. Mais disse que o arguido lhe referiu ainda que já tinha utilizado a carta noutras ocasiões e que em anteriores fiscalizações de trânsito nunca tinha acontecido nada, tinha sido a primeira vez."

As declarações informais de arguido a órgão de polícia criminal são, a nosso ver, meio de prova não permitido, ocorram antes ou depois de constituição nessa qualidade.

Como se menciona nomeadamente no Acórdão do STJ proferido no processo 4302/03 de 18.2.2004 publicado em www.dgsi.pt, o princípio da legalidade do processo e o estatuto do arguido impedem que sejam considerados como prova depoimentos de órgãos de polícia criminal, encarregados de actos de investigação, referindo declarações de arguido ou de alguém que devesse ser constituído como tal, mesmo sob a forma de conversas informais a esses órgãos de polícia, quando essas declarações não foram reduzidas a auto. Entendimento contrário implicaria que pudessem ser tomadas em conta para efeitos de prova declarações do arguido que o não poderiam ser se constantes de auto cuja leitura não fosse permitida em audiência nos termos do artigo 357º do Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 355º e 356º, nº 7. Constituiria manifesta ofensa do fim prosseguido pela lei com estas disposições, designadamente a salvaguarda dos princípios da oralidade, da imediação, da publicidade, do contraditório, da concentração.  

A invalidade do meio de prova em que se sustentou o Tribunal recorrido não implica que pura e simplesmente se deva considerar como não provada a factualidade subjectiva em causa.

Parte o recorrente do pressuposto de que a inexistência de prova directa de que tinha conhecimento da falsidade da carta de condução de que era detentor e que utilizou implicaria a falta de prova desse e dos restantes factos conexos relativos à intenção com que agiu.

Se assim fora a prova dos factos de cariz subjectivo, do domínio íntimo de quem age, apenas poderiam resultar de confissão, logo se revelando o absurdo dessa conclusão que conduziria à impunidade. 

Diga-se que a prova indirecta ou indiciária que contém momentos de presunção ou inferência pode igualmente justificar certeza bastante à convicção positiva do Tribunal desde que indique com base nas regras da experiência que o facto em causa corresponde à realidade.

A prova indirecta (ou indiciária) não será um “minus” relativamente à prova directa, pois se até é certo que na prova indirecta intervém a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência e vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova directa poderá intervir um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.

Acresce que a nossa lei penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.

            Quando a base do juízo de facto é indirecta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros.

            Importa constatar, em primeiro lugar, uma pluralidade de elementos; em segundo lugar, importa que tais elementos sejam concordantes; em terceiro lugar, importa que, tendo em conta uma observação de acordo com as regras da experiência, tais indícios afastem, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam aqueles indícios probatórios (sobre a prova indiciária em processo penal veja-se com interesse, La Mínima Actividad Probatória en el Proceso Penal, J. M. Bosch Editor, 1997, M. Miranda Estrampes, páginas 231 a 249).

Se atentarmos no disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal concluiremos sem esforço que admite a chamada prova indirecta ou por presunção quando preceitua que a prova é apreciada segundo a livre convicção do julgador e as regras da experiência. E são precisamente as regras da experiência que permitem extrair ilações dos factos directamente percepcionados e conhecidos, chegando por essa via ao conhecimento de outros factos com o necessário grau de certeza.  

Com efeito, não é decisivo para se concluir pela realidade da acusação movida a um qualquer arguido, que haja provas directas e cabais do seu envolvimento nos factos, maxime que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticar os factos, ou que o arguido os assuma expressamente. Condição necessária, mas também suficiente é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa dentro do que é lógico e normal, de que as coisas sucederam como a acusação as define.

Pode ler-se no Acórdão do STJ de 12.9.2007 publicado em www.dgsi.ptVejamos que o indício apresenta-se de grande importância no processo penal, já que nem sempre se tem à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, como o esforço lógico-jurídico intelectual necessário antes que se gere a impunidade.” “ E sobre a prova indiciária (…) entende-se, ainda, que aquela é suficiente para determinar a participação no facto punível se (requisito de ordem formal) da sentença constarem os factos-base e se mostrarem provados, os quais vão servir de base à dedução ou inferência, se se explicitar o raciocínio através do qual se chegou à verificação do facto punível e da sua participação no facto de que é acusado, essa explicitação é imperativa para se controlar a racionalidade da inferência em sede de recurso. Requisito de ordem material é estarem os indícios completamente provados por prova directa, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência. O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência da vida; dos factos base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência.”

Ora, no caso, existe prova directa no sentido de que a carta de condução que o arguido detinha e usou não era emitida pela entidade competente, sendo por isso falsa. É do conhecimento da generalidade das pessoas o processo através do qual se pode obter carta de condução, como não podia deixar de ser conhecimento do arguido. Se tinha carta de condução não genuína não podia deixar de ter conhecimento desse facto porque não a pode ter obtido mediante o procedimento de inscrição em escola de condução, sujeição aos exames legalmente previstos e aprovação nesses exames.

Parece-nos, pois, meridianamente claro que a inferência no sentido de que o arguido conhecia a falsidade da carta de condução que detinha e que actuou com esse conhecimento se impõe porque obedece ao rigor necessário e a uma lógica que se encontra firmemente sustentada nas regras da experiência.

Assim, embora com fundamento diferente do que consta da sentença recorrida, a prova produzida consente e impõe que se considerem provados os factos que o recorrente impugna, sem que se mostrem violados os preceitos legais invocados e nomeadamente o princípio in dubio pro reo, cuja violação pressuporia a resolução de dúvida em desfavor do arguido. Como se demonstrou a falta de prova directa nem sempre corresponde a dúvida quando da prova directa se possa extrair com o necessário grau de certeza o facto a provar.

E mantendo-se a factualidade constante da sentença recorrida integradora da prática dos crimes imputados, igualmente deve ser mantida a condenação pela respectiva autoria.


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IV. Decisão

Nestes termos acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo a sentença recorrida.

Pelo seu decaimento em recurso vai o recorrente condenado em custas, fixando-se a taxa de justiça devida em quatro UC.


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(Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relatora)

 (José Eduardo Fernandes Martins)