Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
234/20.1T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA MELO
Descritores: DOAÇÃO POR MORTE
NULIDADE
CONVERSÃO DO NEGÓCIO
DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA
EXIGÊNCIAS DE FORMA
CONTA BANCÁRIA
Data do Acordão: 04/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 946.º, N.º 2, E 293.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Embora a lei estabeleça que a doação por morte é nula, poderá a doação por morte do testador ser havida como disposição testamentária, se tiverem sido cumpridas as formalidades dos testamentos (nº 2 do art. 946º do CC). Neste caso haverá a conversão do negócio nulo num negócio de tipo diferente, de harmonia com o disposto no art. 293º do CC. Relevante será que as formalidades do testamento, o negócio diverso, sejam observadas.

II – Tal não ocorre quando o doador se limitou a incluir a donatária como 2ª titular da conta de que era titular no Novo Banco, o que não satisfaz a exigência legal.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo nº 234/20.1T8CTB.C1

Relatora: Helena Melo
1.º Adjunto: José Avelino Gonçalves
2.º Adjunto: Arlindo Oliveira

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

AA,  representado pelo seu filho BB, na qualidade de único herdeiro e cabeça de casal da Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC, sendo que, entretanto, já no decurso da ação, foram declarados habilitados como sucessores do autor AA, os seus filhos, BB e DD, na qualidade de herdeiros/sucessores daquele, instaurou contra EE,  ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, pedindo que: a) Se reconheça que o montante de €75.000,00 que transferiu para uma conta sua pertence ao acervo patrimonial da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC, da qual o autor é único herdeiro e cabeça de casal; e, 

b) Se condene a R. a entregar ao autor, na qualidade de único herdeiro e cabeça de casal da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC essa quantia (€75.000,00), acrescida de juros de mora computados à taxa legal desde 14/10/2019 (data da transferência) e juros vincendos até integral pagamento.

Alegou, em síntese, que o A. era o único herdeiro do seu irmão CC, falecido no dia .../.../2019, o qual, era titular, juntamente com a ré, de uma conta (solidária)  à ordem no Novo Banco com o n.º ...04, sendo o dinheiro existente na conta exclusivamente seu. Acontece, porém, que no próprio dia do falecimento, mas já depois deste, a ré movimentou a sobredita conta, o que fez mediante uma transferência no montante de €75.000,00 para outra conta bancária de que é titular.

A ré contestou alegando, em síntese, que o falecido a aditou como titular na aludida conta bancária para a movimentar se e quando entendesse fazê-lo. Quando procedeu a tal alteração de titularidade, o falecido manifestou que todo o dinheiro que tivesse à data da sua morte era para a ré EE, para a compensar pelos cuidados que tinha com ele.

Manifestou várias vezes e perante diversas pessoas que a sua herdeira era a ré, por ser ela quem dele cuidava e quem com ele se preocupava.

Afirmou e deixou claro que lhe doava todo o dinheiro que à data da sua morte existisse e se encontrasse nas suas contas bancárias, concluindo pela sua absolvição do pedido.

O autor respondeu refutando a materialidade em causa e o efeito jurídico pretendido.

Foi saneado o processo, tendo sido definidos o objeto do litígio e os temas da prova.

Realizado o julgamento foi proferida sentença cujo teor dispositivo é o seguinte:

“Em face do exposto, julga-se procedente a presente ação e, em consequência;

a) – Reconhece-se que o montante de €75.000,00 que a ré transferiu para uma conta sua, pertence ao acervo patrimonial da HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE CC, da qual o autor é único herdeiro e cabeça de casal.

b) – Condena-se a ré a entregar ao autor (agora aos seus filhos, BB, e DD, na qualidade de herdeiros/sucessores daquele), na qualidade de único herdeiro e cabeça de casal da HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE CC à HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE CC essa quantia (€75.000,00), acrescida de juros de mora computados à taxa legal desde 14/10/2019 (data da transferência) e juros vincendos até integral pagamento.”

A R. não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo concluído as suas alegações com as seguintes conclusões:

– A recorrente considera incorretamente julgada a matéria de facto correspondente aos pontos 2, 3, 4 e 5 dos temas de prova, que o tribunal deu como NÃO PROVADA, que consiste no seguinte:

PONTO DOIS: - O falecido adicionou a ré como titular na aludida conta bancária para a movimentar se quando entendesse fazê-lo?

PONTO TRÊS: - Quando procedeu a tal alteração de titularidade, o falecido manifestou que todo o dinheiro que tivesse à data da sua morte era para a Ré, EE, para a compensar pelos cuidados que tinha com ele?

PONTO QUATRO: - manifestou várias vezes e perante diversas pessoas que a sua herdeira era a Ré, por ser ela quem dele cuidava e quem com ele se preocupava?

PONTO CINCO: - Afirmou e deixou claro que lhe doava todo o dinheiro que à data da sua morte existisse e se encontrasse nas suas contas bancárias?

2ª – Dado que os PONTOS 2, 3, 4 e 5 dos temas de prova estão concatenados uns com os outros e os meios de prova que, em nosso entender, impunham decisão diversa da proferido pelo tribunal recorrido são, no essencial, os mesmos, procederemos à sua análise indicação das razões de discordância conjuntamente.

3ª - Das declarações de parte de EE (depoimento gravado no ficheiro nº 20220711093436_1788003_2870662), conjugadas com a prova documental junta aos autos, e ainda dos depoimentos prestados pelas testemunhas FF (registo gravado no ficheiro 20220711120701_1788003_2870662), GG (registo gravado nos ficheiros 20220711105442_1788003_2870662 e 20220711112320_1788003_2870662) e HH (registo gravado no ficheiro 20220711113057_1788003_2870662), resulta inequivocamente que o falecido CC aditou a Ré (Recorrente) como titular da conta bancária em causa nos autos para esta a movimentar se e quando entendesse fazê-lo.

4ª – Da prova documental resulta que estamos perante uma conta solidária, de que era titular o falecido CC, à qual este adicionou como cotitular a aqui Recorrente, em 6 de abril de 2015, podendo a mesma ser movimentada com a assinatura de qualquer um deles, isoladamente.

5ª – Das declarações de parte da Recorrente resulta que esta, por insistência do falecido CC, era titular dum cartão de débito, desde a data em que foi adicionada como cotitular de tal conta, e que a mesma solicitou outro cartão de débito em 2019, quando, encontrando-se este hospitalizado, reaplicou um valor que se encontrava em depósito a prazo, que, entretanto, se vencera, fazendo-o como bem entendeu, sem consultar o falecido CC.

6ª – Ao dar como não provado o ponto dois dos temas da prova o tribunal “a quo” fê-lo ao arrepio da prova documental, da prova por declarações de parte e da prova testemunhal produzida nos autos, pelo que é manifesto o erro de apreciação da mesma e, consequentemente, o erro de julgamento.

7ª – Deve, assim, dar-se como provado que o falecido aditou a ré como titular na aludida conta bancária para a movimentar se e quando entendesse fazê-lo.

8ª – Em declarações de parte, a Ré, aqui Recorrente, afirmou que o falecido lhe disse, na presença da gestora da conta, quando se deslocaram ao Banco para a adicionar como cotitular da mesma, que o dinheiro que tinha chegava perfeitamente para aquilo que ele precisasse e que todo o resto era para a declarante, expressando, inequivocamente, que lho doava (minutos 25;00 a 27;00).

Por seu turno, a testemunha FF declarou que aconselhou o falecido CC a fazer “qualquer coisa” em relação ao seu património, a favor dos primos, a Ré e seus pais, uma vez que eram estes que cuidavam dele (minuto 06;50 a 08;34); que o falecido CC lhe disse, em 2015, quando esteve doente e a testemunha o visitou, “há uma parte que eu já resolvi” (minutos 8;00 a 08,55) e “Eu tenho já, eu tenho a II, está no meu coração, é a pessoa com quem tenho realmente mais carinho e mais afeto, ainda para mais agora que está com uma doença oncológica; eu vou dar-lhe tudo o que puder e vou fazer aquilo que a Drª disse (…) o pecúlio que eu tenho no Banco é todo para a II e para mais ninguém, porque eu até me revoltaria lá no sítio onde eu estivesse seu eu, por qualquer motivo, viesse a saber que o meu irmão ou os meus sobrinhos beneficiassem fosse do que fosse”; e depois perguntou-lhe essa minha prima:

“então e já fez o testamento?”, ao que respondeu: “ainda não fiz, mas é o próximo passo” (minutos 08;34 a 10;19), dizendo ainda, em 2019, que já tinha colocado a Ré como titular da conta bancária (minutos 10;19 a 12;21) e que lhe manifestou que queria que a II ficasse com tudo (minuto 11;21 a 13;04).

A testemunha GG (registo gravado nos ficheiros 20220711105442_1788003_2870662 e 20220711112320_1788003_2870662), referiu que, em 2019, quando o falecido esteva hospitalizado, numa visita que lhe fez no hospital, ele perguntou-lhe pela Ré, ao que a testemunha respondeu que estava a recuperar

de uma grande crise, tendo-lhe aquele pedido para lhe dizer o seguinte: “diz-lhe a ela que não se esqueça daquilo que eu já lhe disse, que faça o que deve ser feito” (minuto 24;00), tendo a testemunha transmitiu tal pedido à Ré, sua filha, e só nessa altura é que soube, através desta, que, a pedido do falecido, era cotitular da conta bancária deste e que ele queria que todo o dinheiro que nela existente fosse para ela (minutos 24;00 a 27;00) Por outro lado, a testemunha HH (registo gravado no ficheiro 20220711113057_1788003_2870662), a instâncias do Mº Juiz “a quo”, afirmou que, no final duma visita que fez ao falecido durante a segunda hospitalização deste, ele lhe disse o seguinte: “Olha, diz à II que faça aquilo que nós combinámos”, dizendo, no entanto, que naquele momento não sabia a que é que o falecido se referia (minutos 14;41 a 16;00), referindo que tal pedido foi feito também na presença da esposa e que veio a saber, pela sua filha, que o falecido pretendia que ela passasse o dinheiro que

tinha na conta dele para a conta dela, porque queria doar-lho (minutos 17;00 a 18;57.

9ª – Da conjugação da prova testemunhal com as declarações de parte da Ré resulta que o falecido CC era solteiro e tinha como familiares um irmão e dois sobrinhos, filho deste, com quem não se relacionava, não conhecendo sequer os filhos destes, não obstante todos residissem na mesma localidade.

10ª – Também da conjugação da prova testemunhal com as declarações de parte da Ré resulta que o falecido CC era primo em 2º grau da mãe da declarante e em 3º grau desta (minuto 04;00); que existia um relacionamento forte e frequente entre aquele a Declarante, os pais e o irmão daquela, considerando-o a declarante como o tio que não teve e a mãe desta como irmão (minuto 10;00); que o mesmo frequentava com regularidade a casa dos pais da Declarante, em ..., aí passando dias inteiros, onde esta também passava grande parte do tempo, tendo esta, inclusivamente, tirado uma semana de férias na sequência da hospitalização deste, em 2015, para cuidar dele durante a sua convalescença após alta hospitalar (minutos 9;50 a 10;00, 10;10 a 12;50 e 14;00 a 15;00), existindo uma grande cumplicidade com a mãe da declarante e uma grande confiança na declarante (minutos 17;00 a 17;30.

11ª – Assim, da conjugação da prova testemunhal com as declarações de parte, resulta inequivocamente que o falecido CC não pretendia que o seu património fosse herdado pelos seus herdeiros legais – o irmão ou os sobrinhos -, mas, sim, pela Ré, a favor de quem ainda pretendia fazer testamento.

12ª – Os depoimentos das testemunhas, tal como as declarações de parte da Ré, revelaram-se objetivos, imparciais e coerentes, merecendo credibilidade e força suficientes para que o tribunal tivesse dado como provada a factualidade correspondente aos pontos 2, 3, 4 e 5 dos temas de prova.

13ª – Ao não o fazer, o tribunal “a quo” incorreu em manifestou erro de julgamento, que esta instância, no exercício efetivo do segundo grau de jurisdição que o legislador lhe conferiu, deverá reparar, dando tais factos como provados.

14ª - A procedência do presente recurso na parte respeitante à decisão da matéria de facto implica, consequentemente, a absolvição da ré quanto aos pedidos contra si formulados.

15ª - Assim, em face da factualidade que enforma a situação sub judice, atento o regime legal aplicável, a jurisprudência e a doutrina supra referenciadas, deve considerar-se que a situação dos autos reconduz-se a uma doação verbal dos valores do saldo da conta da conta solidária a que a Ré foi adicionada pelo falecido CC como cotitular, que releva enquanto tradição nos termos e para os efeitos do nº 2, do artigo 947º, do Código Civil, pois, no caso, a doação foi manifestada de forma expressa, embora verbal, aquando da constituição da conta solidária e posteriormente, manifestando claramente o falecido CC que com aquele ato (adição da Recorrente como cotitular da conta bancária) quis que o dinheiro nela existente passasse a ser também propriedade desta, que passou a poder dispor desses valores como entendesse, quer em vida deste, quer após a sua morte.

16ª - A sentença recorrida, ao julgar a ação procedente e, consequentemente, ao condenar a ré nos termos peticionados pelo autor, fez uma errada interpretação da lei aplicável ao caso concreto, nomeadamente dos artigos 940º, 947º e 1263º, alínea b), todos do Código Civil, e contrariou, manifestamente, as orientações da jurisprudência e da doutrina, o que

consubstancia uma solução não só absurda, como absolutamente injusta e contrária à intenção e vontade do falecido CC.

17ª – Em face do exposto, deve revogar-se a sentença recorrida, proferindo-se acórdão que julgue a ação totalmente improcedente, com todas as legais consequências, como é de inteira JUSTIÇA!

A parte contrária contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…).

II – Objeto do recurso

De acordo com as conclusões da apelação, as quais delimitam o objeto do recurso, as questões a conhecer são as seguintes:

. se os pontos  nºs 2 a 5 dos factos dados como não provados, devem ser dados como provados; e,

. se em consequência da alteração, deve a ação improceder.

 

III-Fundamentação

Na primeira instância foram considerados provados e não provados os seguintes factos:

1.Factos Provados:

1.A Factos assentes em virtude das posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados; bem como em função do teor dos documentos autênticos que instruem os autos, nos termos do artigo 607.º/4, do Código de Processo Civil (como consignado no despacho saneador):

1) No dia .../.../2019, pelas 05.30 hrs, faleceu CC, natural da freguesia ..., no estado de solteiro, com última residência na Rua ..., na freguesia ..., Concelho ... (doc. 1 – cf. certidão de assento de óbito n.º...32 do ano de 2019, da CRC ...).

2) Aquele CC não deixou descendentes ou ascendentes.

3) Consta de escritura pública exarada a folhas cento e vinte e nove a folhas cento e vinte nove verso do Cartório Notarial ..., aí lavrada a 18.10.2019, intitulada de “HABILITAÇÃO DE HERDEIROS”, que AA declarou naquele acto:

“Que é a ele a quem compete o cargo de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu irmão CC.

Que nessa qualidade declarada que no dia ... de ... de dois mil e dezanove, na União de freguesias ... e ..., Concelho ..., faleceu, sem descendentes, ascendentes, testamento ou outra disposição de última vontade CC (….).

Que lhe sucedeu como único e universal herdeiro seu irmão germano AA, ora outorgante (…).

Que não há outras pessoas, que segundo a lei, preferira ao indicado herdeiro ou que com ele possam concorrer na sucessão à mencionada herança.” (cf. certidão patenteada nos autos a fls.10-v a fls.11-v).

4) O falecido CC era titular, juntamente com a ré EE (conta solidária), de uma conta à ordem no NOVO BANCO com o n.º ...04.

5) A tal conta estava associado um depósito a prazo com o n.º ...76.

6) No dia 14/10/2019, data do óbito do autor da herança, a conta à ordem apresentava o saldo de €86.097,33 (doc. n.º 3).

7) A conta poupança estava provisionada nessa data com a quantia de €75.000,00, depósito esse constituído em 02/10/2019 (Vide doc. n.º 3).

8) No próprio dia do falecimento, mas já depois deste, a ré EE movimentou a sobredita conta, o que fez mediante uma transferência no montante de €75.000,00 para outra conta bancária de que é titular (Vide doc. n.º 3).

9) Após a transferência a conta à ordem ficou com o saldo de €11.484,93 (Vide doc. n.º 3).

10) Na data em que a ré foi adicionada como 2ª titular da conta à ordem, o que ocorreu em .../.../2015 (doc. n.º 4), essa conta apresentava o saldo de €7.523,30, encontrando constituído um depósito a prazo no valor de €71.000,00 (doc. n.º 5 que se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

11) Quando a ré passou a ser a 2ª titular da conta, esta já se encontrava provisionada com o montante global de €80.176,62 (vide doc. n.º 5),

12) Sendo que, desde essa data até à data do óbito, em tal conta apenas foram depositados os rendimentos do “de cujus”, provenientes da sua pensão de reforma (docs. 6, 7 e 8 que se juntam).

13) O falecido solicitou a alteração de titularidade da sua conta bancária de Depósitos à Ordem, aberta no Novo Banco, com o número ...04, aditando a Contestante como titular, em regime de solidariedade.

14) A ré não beneficiou de um único cêntimo da conta em vida do “de cujus”.

15) O falecido aditou a ré como titular na aludida conta bancária, em regime de solidariedade, cujo regime implica a existência de poderes para a movimentar apenas com a assinatura de qualquer um dos titulares, sem necessidade de intervenção do outro.

X

1. B. Factos controvertidos que se consideram provados (com relação aos temas da prova que, entende-se, sintetizam, no essencial, nesses pontos, a matéria alegada pelas partes):

Recordando, são temas da prova:

Aferir se:

1) A referida conta sempre foi exclusivamente movimentada pelo falecido CC?

2) O falecido aditou a ré como titular na aludida conta bancária para a movimentar se e quando entendesse fazê-lo?

3) Quando procedeu a tal alteração de titularidade, o falecido manifestou que todo o dinheiro que tivesse à data da sua morte era para a ré EE, para a compensar pelos cuidados que tinha com ele?

4) Manifestou várias vezes e perante diversas pessoas que a sua herdeira era a ré, por ser ela quem dele cuidava e quem com ele se preocupava?

5) Afirmou e deixou claro que lhe doava todo o dinheiro que à data da sua morte existisse e se encontrasse nas suas contas bancárias?

Factos controvertidos que se consideram provados

16) (relativamente ao ponto 1.º, dos temas da prova)- Provado que: A conta em causa sempre foi exclusivamente movimentada pelo falecido CC, salvo uma única vez, a .../.../2019, altura em que a ré instruiu o banco no sentido de constituir um depósito a prazo.

XXX

b) Factualidade que se considera não provada:

Os referidos pontos 2), 3), 4) e 5), dos temas da prova.

Da impugnação da matéria de facto

A Relação pode alterar a matéria de facto se a prova produzida impuser decisão diversa (artº 662º, nº 1 do CPC).

A apelante considera que ocorreu erro de julgamento do tribunal a quo ao dar como não provados os pontos 2, 3, 4, 5 dos temas da prova.

Vejamos, os pontos impugnados:

2) O falecido aditou a ré como titular na aludida conta bancária para a movimentar se e quando entendesse fazê-lo?

A apelante fundamenta-se nas suas declarações de parte, no depoimento das testemunhas FF, GG e HH.

Não obstante a apelante ter juntado com o seu recurso a transcrição das declarações e depoimentos prestados que lemos, procedemos também à audição integral da prova produzida[1].

Foram ouvidas na única sessão de audiência final:

. a Ré que prestou declarações de parte;

Testemunhas arroladas pelo A.

. JJ, mulher do habilitado BB;

Testemunhas arroladas pela R.

. GG, mãe da Ré;

. HH, pai da Ré;

. KK, irmão da Ré; e,

. FF, prima das partes e advogada.

Está em causa nestes autos parte do dinheiro que o falecido CC, primo da R., tinha depositado numa conta no Novo Banco, conta da qual a R. passou a ser 2ª titular, a partir de 6 de abril de 2015.

           

Entende o apelante que ficou provado que o falecido CC, ao aditar à conta de que era titular no  Novo Banco , a R., como segunda titular,  pretendeu que ela movimentasse a conta se e quando entendesse fazê-lo, podendo fazê-lo em vida dele e deixando claro que o que existisse à data da sua morte era exclusivamente para ela, para a compensar pelos cuidados que tinha para com ele e porque tinha um especial afeto por ela.

Na sentença recorrida consignou-se o seguinte, a propósito deste ponto da matéria de facto:

“Neste ponto não está propriamente em causa saber se a ré tinha poderes para junto do banco movimentar a conta.

Tal é matéria assente e decorre do tipo de conta – plural solidária – em apreço (tinha poderes, ponto final).

O sentido da pergunta tem que ver com o tipo de acordo existente entre a ré e o falecido CC para a movimentação da conta (o que foi conversado a esse respeito entre ambos). Qual o grau de liberdade/autonomia que o falecido CC consentiu à ré para movimentar a conta em apreço?

Esta matéria tem afinidades ou liga-se com a questão de eventual doação. Ora, neste ponto, até pelos termos das próprias declarações de parte da ré EE ficou claro que não houve qualquer intenção de doar coeva à alteração da titularidade da conta – no sentido do imediato apossamento dos valores existente na conta do falecido por parte da ré (aliás, tal é a posição que transparece do articulado de contestação).

Donde, fica algo prejudicada a hipótese de o falecido CC ter acordado em facultar à ré plenos poderes para movimentar a sua conta, designadamente em seu (dela) próprio proveito (não é tanto a possibilidade de poderes para movimentar a conta no interesse e em proveito do falecido CC que aqui nos interessa).

Ou seja, até das próprias declarações da ré, ficou claro (pelo menos do essencial das suas declarações) que não foi intenção do falecido doar à ré – total ou parcialmente – com efeitos imediatos (coevos à alteração da titularidade) os valores existentes na conta do falecido.

Seguindo a narrativa da ré, a mesma aventou que na sequência da relatada hospitalização do falecido no ano de 2015 (JAN2015), aquele abordou-a no sentido de passar a constar como cotitular da conta em apreço (até na sequência dos conselhos da gestora de conta).

Fê-lo, segundo ela, porque por um lado confiava na ré, sublinhando a afetividade existente entre ambos (segundo ela, ele considerava-a como uma sobrinha; e à mãe da ré via-a como uma irmã); e, nesse sentido, sabia o falecido que se acontecesse alguma coisa, jamais o deixaria; havendo ainda uma segunda intenção (objetivo): teria o falecido expressado que o que ele “construiu” era para quem tratava dele para quem ele queria.

Segundo ela, até perante a gestora de conta, ele (o falecido) teria dito que ela (ré) sabia cuidar dele; que iria arranjar o melhor sítio se ficasse dependente; que sabia que só iria para um lar se fosse necessário, no fundo que ela (ré) e a família dele cuidariam.

Assim, considerava o falecido que o dinheiro que tinha chegava perfeitamente para o que viesse a necessitar e tudo o resto era para a ré.

Seria, em síntese, e pegando até nas suas palavras, uma doação do que sobrasse do dinheiro que tinha.

Ora, toda aquela narrativa aponta para o facto de não ter havido qualquer intenção do falecido em ficar privado do seu dinheiro enquanto fosse vivo, contando com ele para a sua velhice (ficando a ré como uma espécie de gestora/mandatária do seu dinheiro, mas em benefício do próprio (para a sua velhice).

Por outras palavras, a própria ré dalguma forma reconhece que o falecido nunca pretendeu dar-lhe dinheiro, enquanto fosse vivo, contando com ele para a sua velhice e inerentes despesas.

Não houve, por isso, até nas próprias palavras da ré, qualquer animus donandi coevo com a alteração da titularidade da conta (no sentido do apossamento imediato).

Quando muito, nas suas palavras, tratar-se-ia de uma doação do que sobrasse do dinheiro que tinha (ou seja, para o momento da morte).

É, no fundo, a posição assumida na contestação.

Por isso, como se disse, fica prejudicada a hipótese de o falecido CC ter acordado em facultar à ré plenos poderes para movimentar a sua conta, designadamente em seu (dela) próprio proveito (de forma livre, digamos; e “sem prestar contas”), enquanto vivo fosse.

E tanto assim é que a própria ré reconheceu que, podendo movimentar a conta em apreço, atento o regime da conta, sendo que até teria ficado com um (1º) cartão de débito (por vontade do falecido), nunca fez uso do cartão (nem sabe onde está). Apenas o experimentou uma vez na presença do falecido CC (não se sabe concretamente em que termos – que tipo de operação).

Esta foi a tónica das próprias declarações de parte da ré.

Houve apenas uma única exceção ou nuance a esta narrativa.

Com efeito, e tal foi o mais perto que tivéssemos da concessão por parte do falecido CC à ré da liberdade de movimentação da conta, e, em certa medida, o mais próximo que temos de uma doação (ou intenção de doação) ainda em vida do falecido, ainda segundo a ré, já depois da alteração da titularidade, manteve teve conversas com o falecido no contexto das quais este a pôs à vontade para usar o cartão da conta em causa, caso necessitasse para fazer face às despesas de saúde dela (o que ela nunca fez). Neste particular foi clara, nunca movimentou a conta em proveito dela (enquanto foi vivo o cotitular, leia-se).

E, mesmo neste caso, pela lógica normal das coisas, não estaríamos a falar em valores avultados (mormente do tipo dos que estão em causa nos autos).

Sem embargo, ainda neste ponto, quanto ao pôr a ré à vontade para movimentar a conta (efetuando porventura levantamentos de dinheiro ou pagamento despesas que a sua situação de saúde demandasse), para movimentar a conta como quisesse, apenas temos as declarações da ré – que, naturalmente, é parte interessada.

Com efeito, realça-se neste aspeto que o tribunal não se pode bastar apenas o mérito das declarações de parte da ré (sem mais), considerando o seu óbvio interesse no desfecho dos autos, e, nesta medida, a sua inerente falta de imparcialidade, equidistância e isenção[2].

Note-se que, neste ponto, nem mesmo a mãe da ré, a testemunha GG, nem o pai da ré, a testemunha HH, ou o irmão da ré, a testemunha KK, sabiam sequer que a ré era cotitular de uma conta com o falecido CC, apenas tendo sabido disso em .../.../2019 (às vésperas da morte do falecido CC). Naturalmente que nada saberiam (nem denotaram saber) sobre eventuais acordos para a movimentação da conta em apreço.

A testemunha FF; advogada e prima da ré, também não denotou saber nada relativamente a esta matéria específica (quanto aos acordos para a movimentação da conta).

No final, nem sequer logrou ser segura (não estava certa) sobre se o aventado desejo do falecido em que a ré ficasse com o dinheiro dele era para uma altura em que estivesse vivo, ou relativamente ao dinheiro que existisse aquando da morte.

Daí dar-se como não provada a matéria em apreço.”

Ouvida a prova, não detetámos qualquer erro de julgamento.

Não se põe em causa que entre o falecido e a R. existia uma relação de afeto e que este tinha confiança nela,  empenhando-se a R. em prestar-lhe  apoio e em com ele conviver, assim como os seus pais e irmão. Foi notória a emoção manifestada pela declarante ao longo do seu depoimento, quando falava do falecido, que nos soou sincera.

Resulta da prova produzida que o falecido, atenta a sua idade - tinha 85 anos à data da sua morte (ocorrida em 14.10.2019) - após ter sofrido um internamento,  depois de ter saído do hospital, em 26.01.2015, e ter permanecido alguns dias em casa dos pais da R., onde recebeu os cuidados da R., até se sentir recuperado, pediu-lhe para ir com ele ao Novo Banco, onde tinha depositado o seu dinheiro, para que ela passasse a ser também titular da sua conta e tivesse acesso a um cartão multibanco.

Mas, como se refere na fundamentação da sentença, deste facto, não se pode extrair com segurança que a intenção do falecido CC fosse nessa altura autorizar a R. a utilizar esse dinheiro como entendesse, enquanto ele fosse vivo, doando a totalidade do dinheiro aí depositado ou parte determinada do mesmo, nesse ato.

O que se pode dar como certo é que o falecido, sabendo da sua idade e não tendo filhos, nem quaisquer relações com os seus sobrinhos, filhos do seu único irmão AA, e tendo confiança na Ré, pretendeu dar-lhe poderes para movimentar a sua conta, na sequência de um conselho da sua gestora de conta no sentido de incluir outro titular na conta. O facto de se autorizar alguém a efetuar movimentos da conta, não significa que se pretenda dar-lhe esse dinheiro, podendo apenas pretender assegurar-se que, em caso de impossibilidade do próprio movimentar a conta (mormente por doença), outra pessoa poderá levantar o dinheiro de que venha a necessitar.

Relativamente aos pais da R., estes nada souberam esclarecer a este propósito, até porque só tiveram conhecimento de que a R. era segunda titular da conta do falecido, por esta e apenas em 2019, mais de 4 anos após a R. ter passado a ser titular da conta, quando o CC já se encontrava internado e dias antes da sua morte.

Também a testemunha FF  nada soube esclarecer a este propósito, referindo que “não sei dizer concretamente” qual foi a intenção do CC ao adicionar a Ré à conta de que era titular.

Refere o Mmo. Juiz a quo que, quanto ao animus do de cujus, apenas existem as declarações da Ré, o que se não lhe afigurou suficiente.

O novo meio de prova por declarações de parte instituído no CPC de 2013 veio acolher uma determinada corrente que vinha defendendo que o depoimento de parte podia recair sobre factos favoráveis ao depoente, ficando neste caso, porque desprovido do carácter confessório, sujeito à livre apreciação pelo tribunal.

Sobre a função e valoração das declarações de parte há vários entendimentos. A eles se refere  com clareza o acórdão da Relação de Lisboa, de 26/04/2017, proc. 18591/15.0T8SNT.L1-7[3], mencionando três teses  essenciais, nomeadamente a tese do princípio de prova, exigindo a confirmação do declarado pela parte por outros meios de prova (seguida na sentença recorria) e princípio da autossuficiência das declarações de parte.

Entendemos que o tribunal se poderá fundamentar nas declarações de parte para dar como provados determinados factos, analisadas e ponderadas com a necessária cautela,  por se tratar de depoimento interessado, cautelas que o tribunal também não deixa de ter quando o depoimento é prestado por testemunha com interesse no desfecho dos autos, desde que, e como também se verifica na prova testemunhal, elas alcancem o standard de prova exigível, para que um facto possa ser considerado provado pelo tribunal, tendo presente que para que o Tribunal possa dar como provado um determinado facto não tem de se convencer da certeza absoluta da sua verificação, mas tem de se convencer com alguma segurança, tem de ocorrer pelo menos um alto grau de probabilidade suficiente de que determinados factos ocorreram ou não ocorreram.

No entanto, no caso, das declarações prestadas pela R. não se consegue concluir no sentido pretendido. Elucidativo de que nem  a R. entendeu que ao adicionar o seu nome à conta de que era titular, o apelante pretendesse doar-lhe a totalidade ou parte do dinheiro que ali se encontrava depositado, foi o comportamento que adotou desde o início,  nunca se apossando de qualquer quantia aí depositada até à morte do CC,  tendo inclusive referido que recebeu efetivamente o cartão multibanco, mas que nunca o utilizou para qualquer levantamento, não sabendo sequer onde se encontrava. E no final do seu depoimento quando falava das vantagens em ter outra pessoa associada à conta, não tendo a conta um titular único, explicando que ela também tinha uma conta em conjunto com o seu irmão, para um dia, “se ela partir, se tiver lá alguma coisa, é para o irmão”, perguntada se era também esse o caso dos autos, respondeu afirmativamente. Resulta assim que a própria R. nunca entendeu que ao ser aditada  à conta do falecido, era para poder movimentar, em vida deste, a conta de que este era o 1º titular, como bem entendesse, por o dinheiro que aí estava depositado fosse seu.

Quando muito, nas suas palavras, tratar-se-ia de uma doação do que sobrasse do dinheiro que tinha (ou seja, para o momento da morte), como se afirmou na sentença recorrida.

Por outro lado, também do que a testemunha FF declarou, sobre a conversa que presenciou, onde interveio o falecido e uma prima sua (a mãe do coração ou mãe de afeto da testemunha) no sentido de que o dinheiro que  tinha era para a “II”, estando a referir-se à R., resulta que, ainda em 2019, ano em a conversa  teve lugar, o CC se continuava a considerar proprietário do saldo da sua conta bancário, pretendendo vir a beneficiar posteriormente a R. com o seu dinheiro. Se o dinheiro que tinha era para dar à II, então era porque ainda não o tinha dado, continuando o mesmo a pertencer-lhe.

Dir-se-á ainda que, não se conhecendo outra conta ao falecido, não está de acordo com as regras da experiência e do normal acontecer, que o falecido pretendesse doar em vida o seu dinheiro à R., levantando o que entendesse, o que poderia conduzir ao apossamento da totalidade da quantia que tinha depositada, deixando-o sem meios para fazer face às suas despesas, numa fase da vida em que por norma se receia ter elevadas despesas com a saúde e com a necessidade de acompanhamento permanente.

Não se verifica assim qualquer erro de julgamento.

Ponto 3 a 5 dos factos não provados[4]

3) Quando procedeu a tal alteração de titularidade, o falecido manifestou que todo o dinheiro que tivesse à data da sua morte era para a ré EE, para a compensar pelos cuidados que tinha com ele?

4) Manifestou várias vezes e perante diversas pessoas que a sua herdeira era a ré, por ser ela quem dele cuidava e quem com ele se preocupava?

5) Afirmou e deixou claro que lhe doava todo o dinheiro que à data da sua morte existisse e se encontrasse nas suas contas bancárias?

          A apelante fundamenta-se no depoimento das mesmas pessoas em que se baseou para impugnar o ponto antecedente,  defendendo que a intenção e vontade do falecido resulta claramente das declarações e depoimentos prestados.

          Na sentença recorrida, o Mmo Juiz a quo motivou de forma pormenorizada a sua convicção.

Na contestação a R. defende que o  falecido a aditou como titular na aludida conta bancária, com poderes para a movimentar apenas com a sua assinatura, se e quando entendesse fazê-lo (artº 56º) –ponto 2 dos factos não provados, analisado supra -  e que, quando procedeu a tal alteração de titularidade, o falecido manifestou que todo o dinheiro que tivesse à data da sua morte era para si, para a compensar pelos cuidados que tinha com ele (artº 57º).

Não se pode deixar de notar que poderá ocorrer alguma contradição entre o alegado nos artigos 56º e 57º da contestação, factualidade reproduzida nos pontos 2 e 3 dos factos não provados. Então se o dinheiro era para a A. dispor como entendesse em vida do primo CC,  o que abrange  possibilidade do seu dispêndio total, como conciliar com a alegação de que o dinheiro que o falecido tivesse à data da sua morte era para a apelante?

Apreciemos a impugnação.

Diz a apelante que, contrariamente ao afirmado na sentença recorrida em sede de fundamentação, a ré asseverou nas suas declarações, de forma clara, que era intenção do falecido facultar-lhe plenos  poderes para movimentar a sua conta, desde logo quando refere que o mesmo fez questão que ela ficasse com um cartão de débito para movimentar a conta, acrescentando que “podia movimentar o dinheiro como quisesse”, tendo a ré referido claramente que o falecido lhe disse para utilizar o dinheiro para tratamentos de saúde ela e para utilizar o cartão como bem entendesse.

A argumentação da apelante, no sentido de que podia movimentar a conta como quisesse,  não faz sentido, tendo em conta que o que se pergunta nestes pontos da matéria de facto é o destino dos bens, após a morte do CC e não em vida do falecido.

Alega ainda a apelante que a intenção e vontade do falecido resulta ainda do pedido que formulou ao pais da apelante, quando esteve hospitalizado pela última vez, pouco tempo antes da sua morte, ao dizer-lhes “Olha, diz à II que faça aquilo que nós combinámos” e “diz-lhe a ela que não se esqueça daquilo que eu já lhe disse, que faça o que deve ser feito”, conjugado com a prova documental, sendo que não concretiza qual a prova documental em que se alicerça.

Nestes pontos da matéria de facto está em causa a utilização do dinheiro, após a morte do falecido.

Como bem se refere na sentença recorrida, as frases que alegadamente o falecido terá pronunciado quando os pais da R. o visitaram, no hospital, em .../.../ 2019, poucos dias antes da sua morte que sobreveio em ... de..., têm um sentido enigmático, não tendo os pais da R. sequer  o entendido.    

Será que relativamente à disposição do dinheiro após a morte do CC, ao contrário do que ocorreu em vida, se poderá concluir com a necessária segurança que era intenção do falecido que o dinheiro fosse para a R.?

Das declarações e depoimentos prestados pode considerar-se que os factos foram praticados no seguinte circunstancialismo, demonstrativo do afeto que o falecido nutria pela R. e pela sua família e da confiança que nela depositava:

. o falecido não tinha qualquer relação com os seus sobrinhos, tendo a testemunha JJ, mulher do seu sobrinho, declarado que nunca fora a casa do tio, nem este a sua casa, estando casada há 32 anos e afirmado que não havia relacionamento entre as partes, o que queriam corrigir, se o CC tivesse recuperado da doença, o que não se verificou;

. o falecido também não tinha com o seu irmão uma ligação próxima, falando ambos essencialmente sobre interesses comuns relativos aos prédios deixados por morte dos pais de ambos (declarações da testemunha GG, mãe da Ré);

. era com a R. e a sua família, pais e irmão, que o CC convivia, almoçava e jantava frequentemente, tendo ido para casa deles, após ter saído do hospital em 2015, para recuperar,  tendo a R. utilizado dias de férias para lhe dar assistência (declarações da R. e depoimento dos seus pais, irmão e testemunha FF);

. foi a R. a pessoa que elegeu como sendo de confiança para constar como titular da conta que detinha no Novo Banco onde tinha depositado a essa data, .../.../2015, na conta à ordem €7.523,30 e a prazo a quantia de €71.000,00, uma quantia que se pode considerar elevada (declarações da Ré e documentação comprovativa de que a R. era 2ª titular da conta que o falecido CC detinha no Novo Banco), conta que atento o seu regime – conta solidária – poderia ser movimentada por qualquer dos seus titulares;

. na ocasião em que a A. se dirigiu ao Novo Banco para se constituir como 2ª titular da conta , o falecido referiu-lhe que era intenção deixar-lhe o que dinheiro que não precisasse, que viesse a sobrar;

. O CC declarou perante terceiros – a testemunha FF e a prima desta - que o “pecúlio” que tinha amealhado no Banco era para a II, referindo-se à R.;

. quando se encontrava internado pela segunda vez, o CC pediu ao sobrinho para ir chamar a família da R. que os queria ver (embora a testemunha JJ tivesse referido que o ir chamar a família da R. tinha sido da iniciativa do marido e não do falecido, esta versão não nos ofereceu credibilidade. Atenta a relação de afeto existente entre o CC e a família da R., afigura-se-nos estar de acordo com as regras da experiência e do normal acontecer que fosse a pedido daquele que o sobrinho se deslocou a casa dos pais da R. para lhes pedir que fossem visitar o tio no hospital e não o inverso, fazendo sentido a versão apresentada pela mãe da R. e por esta, de que o sobrinho as procurou e que lhe disse que vinha por determinação do tio).  

É certo que o CC não chegou a fazer testamento, tendo tido tempo para o fazer, não só a partir da data da intervenção de 2015, ano em que a R. passou a ser cotitular, como após a conversa ocorrida em .../ 2019, em casa da prima da testemunha FF, em que foi aconselhado a fazer testamento, mas não se pode daqui concluir que não o tenha chegado a fazer porque tenha mudado de ideias ou porque nunca foi sua intenção deixar-lhe tal dinheiro, após a sua morte, resultando da  prova produzida que estaria descansado relativamente ao destino do dinheiro, uma vez que a R. o poderia movimentar e verificando-se que entre a conversa, ocorrida em .../ 2019 e .../.../2019 passaram escassos meses.

Não se considera que o Tribunal a quo tenha descredibilizado o depoimento da testemunha FF a propósito da conversa que presenciou, como defende a parte contrária, tendo apenas salientado, com o que se concorda, que a testemunha relatou a relação entre o falecido e irmão, mais “negra” do que efetivamente era[5], mas que sem deste facto se possa concluir que o demais relatado não corresponda a factos presenciados.

Se bem que se concorde com a fundamentação expressa na sentença recorrida relativamente à falta de prova quanto à intenção do CC  doar, em vida à A.,  o dinheiro existente na conta no Novo Banco à R., já se nos afigura, tendo em conta o supra exposto, que se pode extrair das circunstâncias de facto descritas, com a segurança que se impõe, a intenção do CC deixar o dinheiro à R. após a sua morte. Afigura-se-nos ser essa a interpretação a conferir à expressão deixar o “pecúlio à II” e deixar o dinheiro que sobrasse/que não precisasse. Embora a R. tenha também referido que o CC lhe deu  liberdade para usar o dinheiro como entendesse, acabou por confirmar que afinal o que o de cujus pretendeu foi que ela, após a sua morte, ficasse com o dinheiro que se encontrasse depositado, tese que também defendeu na contestação (artº 57º), comportando-se de acordo com este entendimento, pois de que nada se apropriou até à morte do mesmo, como se referiu já supra, a propósito da apreciação da impugnação do ponto 2.

       Cremos assim, consequentemente, que ocorreu erro de julgamento, devendo dar-se como provado que:

3) Quando procedeu a tal alteração de titularidade, o falecido manifestou que todo o dinheiro que tivesse à data da sua morte era para a ré EE.

5) Afirmou perante terceiros que doava à R. todo o dinheiro que à data da sua morte existisse e se encontrasse nas suas contas bancárias.

             

          Mantém-se como não provado a factualidade constante do ponto 4, porque não foi produzida qualquer prova segura sobre a mesma, nunca tendo a própria R. referido que era intenção do CC deixar-lhe todo o seu património.

          Direito

         A doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada da tradição da coisa; não sendo acompanhada de tradição da coisa, só pode ser feita por escrito (artº 947º, nº 2 do CC).

        Defende a apelante que se deve entender que ocorreu doação em vida do dinheiro que se encontrava depositado na conta, a partir do momento em que a apelante passou a constar como segunda titular, tendo se provado o animus donandi, no seguimento do defendido nos Acs. que citou do STJ, de 06/10/2005, no âmbito do processo nº 04B2753 e de 03/03/2005, proferido no processo 04B3711.Nestes arestos, entendeu-se que a não entrega do dinheiro depositado na conta, não impedia que se entendesse que tinha ocorrido tradição da coisa, para os efeitos do artº  947º, nº 2 do CC,  uma vez que a conta conjunta, que pode ser livremente movimentada por qualquer dos seus contitulares é um meio idóneo para operar a tradição entre eles das quantias depositadas, apurado que seja o animus donandi.

           

         No Ac. do STJ de 12 de junho de 2012, proc. 1874/09.5TBPVZ.P1.S1, entendeu-se  que são diferentes a situação em que a conta solidária é aberta ab initio com dois titulares que a podem movimentar, da situação em que a conta já existe, assim como o dinheiro nela depositado e posteriormente, é incluído outro titular. Transcreve-se o sumário que de forma concisa e clara, ilustra a posição assumida:

“I- Importa distinguir a situação em que há uma intenção de doação de valores móveis, quando da abertura de conta bancária em nome conjunto do donatário e do doador, de outra diversa situação em que, aberta a conta, o doador em momento ulterior decide doar verbalmente as quantias que dessa conta bancária constam.

II- Neste último caso estamos face a uma doação que é nula por não ser acompanhada de tradição da coisa doada, não havendo tradição quando a conta bancária conjunta permanece inalterada desde o momento da sua constituição nem quando os movimentos não revelam apropriação da parte que cabe a cada um dos cotitulares.

III- O levantamento da totalidade das quantias dessa conta verificado após o óbito de um dos cotitulares não releva enquanto tradição nos termos e para os efeitos do artigo 947.º/2 do Código Civil.”

            Na situação em apreço, tendo se mantido como não provado o ponto 2 dos factos não provados, o defendido pela apelante – doação em vida - carece, desde logo, de sustentação factual.

          Mas ainda que a impugnação da matéria de facto tivesse sido procedente, não se apuraram (nem foram alegados) factos demonstrativos da tradição da coisa,  porque a quantia depositada se manteve sem ser movimentada pela R. que só veio a levantar parte - cerca de 87% do depositado, no montante de 75.000,00 -  apenas após a morte do falecido cotitular, não podendo esse ato valer como tradição, cfr. se defendeu no Ac. do STJ de 2012, já citado.

             

          Face à alteração introduzida pela Relação, suscita-se a questão de ter havido doação para produzir efeitos após a morte do doador.

         Que dizer?

         Estabelece o artº 946º, nº 1 do CC que é proibida a doação por morte, salvo nos casos especialmente previstos na lei, estatuindo o nº 2 que será, porém,  havida como disposição testamentária a doação que houver de produzir os seus efeitos por morte do doador, se tiverem sido observadas as formalidades dos testamentos.

         A proibição da doação por morte é estabelecida pela lei de forma a possibilitar ao autor da sucessão a disponibilidade dos seus bens enquanto vivo, em paralelo com as disposições testamentárias em que a regra é (precisamente) a da sua revogabilidade (art. 2179º nº 1 do CC), não podendo o testador, inclusivamente, renunciar a tal faculdade (tendo-se por não escrita qualquer cláusula que contrarie a faculdade de revogação - art. 2311º nºs 1 e 2 -).

Conforme defende Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em especial, pág. 218, “A vontade da lei é a de que as disposições de última vontade correspondam efetivamente à última vontade do autor da sucessão, pelo que pretende que elas resultem de um negócio unilateral revogável como o testamento e não de um contrato”.

       Embora a lei estabeleça que a doação por morte é nula, poderá a doação por morte do testador ser havida como disposição testamentária, se tiverem sido cumpridas as formalidades dos testamentos (nº 2 do art. 946º do CC). Neste caso haverá a conversão do negócio nulo num negócio de tipo diferente, de harmonia com o disposto no art. 293º do CC. Relevante será que as formalidades do testamento[6], o negócio diverso, sejam observadas (cfr. se defende no Ac. do STJ, de 13.09.2016, proc. 986/12.2TBCSC.L1.S1 e defendem Pires de Lina e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, anotação ao artº 946º).

No caso e dado que na doação em exame não foram observadas as formalidades atinentes ao testamento, tal disposição não poderá deixar de se considerar nula (artº 219º, nº 1 do CC), devendo a R. ser condenada a restituir a importância de que dispôs no montante de euros 75.000,00. Pese embora fosse desejo do falecido que fosse a R. a beneficiar do dinheiro que estivesse depositado na sua conta após a sua morte, o que é certo é que não acautelou devidamente os interesses de ambos e não adotou a forma legal. A apelação tem assim, não obstante a alteração à matéria de facto, que improceder.

Sumário:

(…).

          IV – Decisão

          Pelo exposto, acordam os juízes desta seção em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

           Custas pela apelante.

           Notifique.

          Coimbra, 12 de abril de 2023


[1] A Relação oficiosamente, se entender que é necessário, pode ouvir toda a prova, em ordem a formar a sua própria convicção, como se retira do artº 640º, 2, b) do CPC, podendo basear a sua convicção em depoimentos prestados ou documentos juntos em que o recorrente não se baseou para impugnar a matéria de facto.

[2]Com efeito, acompanhando – como uma espécie de regra - o exarado em Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.09.2014, disponível em www.dgsi.pt, “As declarações de parte [artigo 466º do novo CPC] – que divergem do depoimento de parte – devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado. As mesmas, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação.

Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.”, lendo-se adiante que “inexistindo outros meios de prova que minimamente corroborem a versão da parte, o mesmo não deve ser valorado, sob pena de se desvirtuar na totalidade o ónus probatório e que as ações se decidam apenas com as declarações das próprias partes.”
Neste ponto, acompanhamos o consignado em acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-04-2017, relatado por LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, disponível no mesmo site, «Um segundo parâmetro particularmente relevante é o da existência de corroborações periféricas que confirmem o teor das declarações da parte. As corroborações periféricas consistem no facto das declarações da parte serem confirmadas por outros dados que, indiretamente, demonstram a veracidade da declaração. Esses dados podem provir de outros depoimentos realizados sobre a mesma factualidade e que sejam confluentes com a declaração em causa. Podem também emergir de factos que ocorreram ao mesmo tempo (ou mesmo com antecedência) que o facto principal, nomeadamente de circunstâncias que acompanham ou são inerentes à ocorrência do facto principal. Abarcam-se aqui sobretudo os factos-bases ou indícios de presunções judiciais.»    
[3] A que a sentença recorrida também faz referência.
[4] Seguiu-se a opção adotada pela apelante que analisou conjuntamente estes três pontos da matéria de facto, dado a sua interdependência.
[5] Tendo sido, no dizer da sentença recorrida “mais papista do que o Papa”.
[6] De acordo com Menezes Leitão, obra citada, pág. 219 e 220 e a doutrina que referencia, as formalidades necessárias serão a escritura pública ou forma notarial equivalente.