Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4/12.0PECTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
DETENÇÃO
HEROÍNA
Data do Acordão: 03/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO (2.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 21.º E 25.º, AL. A), DO DL 15/93, DE 22-01
Sumário: Resumindo-se a actividade da arguida à detenção, no interior da sua mala pessoal, de 24,650 g (peso líquido) de heroína, com um grau de pureza de 20,7%, que daria para 51 doses, e não se tendo apurado qualquer modus operandi, com recurso a meios complexos, nem tão pouco a existência de qualquer estrutura organizativa, a ilicitude global do facto justifica a definição do crime como tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º e 25.º, al. a), ambos do DL 15/93, de 22-01.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
1. No âmbito do processo comum colectivo n.º4/12.0PECTB, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, mediante acusação pública, foi a arguida A..., casada, nascida a 5 de Agosto de 1986, natural da Roménia, filha de (...) e de (...), residente na Rua (...), Castelo Branco, submetida a julgamento, sendo-lhe, então, imputada a prática em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1 do D.L. n.º 15/93;
           
2. Realizado o julgamento, por acórdão do Colectivo de 18.06.2013, foi proferida a seguinte decisão:
“Atento todo o exposto, julgamos parcialmente procedente, por provada, a acusação pública, em função do que:
1) Condenamos:
1.1. A arguida A..., pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 21.º, do Decreto-Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-A anexa ao referido diploma, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período de tempo, sob regime de prova.
Condena-se a arguida em taxa de justiça, que se fixa em 5 Ucs., e nas demais custas devidas, fixando-se a procuradoria no seu mínimo.
Após trânsito:
- Remeta boletins ao registo criminal e comunique à DGIRS, para efeitos do plano de readaptação social da arguida.
- Remeta cópia ao Instituto de Prevenção da Droga e da Toxicodependência ou seu actual sucedâneo.”
*
            3. Inconformada com a decisão recorreu a arguida, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1.ª - Quer da acusação quer do douto acórdão recorrido, não resulta qualquer factualidade acerca da forma como era exercida a actividade; as quantidades que transmitia; o período de duração da actividade; as formas de embalamento; os proventos; locais; etc.
2.a - Do depoimento do agente, B..., resulta que a arguida não está referenciada como traficante de droga (depoimento gravado no dia 18/06/2013, conforme consta da acta), existindo apenas algumas suspeitas de tal, sendo referenciada na PSP com outros tipos de crime, de onde se conclui que a arguida nunca introduziu droga no mercado.
3.a - Deve-se considerar provado que a arguida consumia heroína, o que resulta do depoimento da testemunha, C...., depoimento gravado em CD desde 09.38.13 a 09.43.14:
“Advogado: O Sr. sabe se alguma vez a Sra. consumiu heroína ou se é consumidora?
Testemunha - sim, pelo menos uma vez presenciei que ela consumia, numa festa.
Adv - O Sr. cedeu-lhe alguma coisa nessa altura ou sabe se ela traficava, vendia ou cedia de alguma forma?
Test. - Acho que não, nem faço isso dela.”
4.a - A quantidade e qualidade de droga apreendida à recorrente não é de tal modo exagerada que sirva de critério inabalável para a condenação da recorrente por tráfico de maior gravidade.
5.a - Conclui-se pela atipicidade da conduta do recorrente quanto ao crime de tráfico de maior gravidade.
6.a  Interpretar o art. 21° do D.L. n°15/93 da forma como o tribunal “a quo” o fez, isto é considerar que só simples facto de deter produto estupefacientes (heroína) na quantia de 24,65g com uma pureza de 20,7% sem mais factualidade é inconstitucional por violar o disposto nos arts. 32° da CRP, uma vez que a defesa da arguida é colocada em causa sendo condenado por uma das formas mais gravosas do crime de tráfico por o juiz permanecer numa zona “cinzenta” que não lhe permite decidir entra a maior e a menor gravidade do tráfico de estupefacientes.
7.a - Interpretar o art. 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro no sentido de que se manteve em vigor o artigo 40.º n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias trata-se de um interpretação inconstitucional, violando-se o disposto nos arts. 25.º n.º 1, 29.º n.ºs 1, 3, 32.º n.º 1, todos da Const. República Portuguesa.
8.a - Caso a arguida não seja absolvida ou condenada por um crime de consumo de droga, quanto muito considera-se que a recorrente deverá ser condenada por um crime de tráfico de menor gravidade.
9.a - A douta sentença recorrida é muito parca em factualidade provada que indicie a recorrente como uma grande e perigosa traficante, a quantidade e qualidade da droga apreendida, apesar de não ser desprezível e reprovável, não se mostra exagerada face ao que normalmente se julga nos tribunais Portugueses.
A arguida é primária neste tipo de crime e a apreensão tratou-se de um acto isolado resultante de uma denúncia anónima, tal como afirmado pela testemunha, agente B....
Deverá a arguida beneficiar da dúvida a seu favor, no sentido de ser condenada na forma menos gravosa, numa pena leve e suspensa na sua execução, visto que se trata de uma jovem emigrante que carece de ser inserida na sociedade de forma definitiva.
Nestes termos, requer a V. Exas se dignem considerar procedente e provado o recurso, revogando-se o acórdão recorrido, absolvendo-se a arguida.”

            4. Ao recurso respondeu o MP concluindo:
“1.o
No que contende com a matéria de facto, a arguida limita-se a pugnar para que o Tribunal ad quem reanalise os concretos elementos de prova que transcreve sustentando que o Tribunal ad quem deve proferir decisão diferente da proferida na 1a instância valorando a prova de forma mais consentânea com o seu entendimento.
2.o
O recurso da matéria de facto perante o tribunal superior visa apenas a realização de uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados com base na avaliação das provas que se considera determinarem uma convicção diversa, pelo que a aludida pretensão da recorrente deve improceder e, consequentemente,
3.o
Não deve ser julgado provado que (parte ou toda) a heroína apreendida se destinava ao consumo da arguida.
4.º
Sendo improcedente o recurso quanto à matéria de facto e, consequentemente, não tendo sido julgado provado que a arguida consumia heroína, carece de fundamento legal a alusão à subsunção dos factos em apreço, no tipo legal de consumo, previsto e punido, pelo art. 40.º, n.º 2, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, ou no tipo legal de traficante consumidor, previsto e punido pelo art. 26.º também do citado diploma.
5.º
A factualidade apurada também não integra a prática do crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido, pelo art. 25.º, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, já que nada apontado no sentido de que a ilicitude dos factos praticados pela arguida se mostre particularmente diminuída.
6.º
Diferentemente, como bem se refere o acórdão recorrido de forma abundante, tudo aponta no sentido de que não existe qualquer diminuição da ilicitude do facto, pois a quantidade de heroína apreendida era suficiente para 51 doses; a sua pureza era elevada e a espécie de estupefaciente em causa (heroína) é dos mais prejudiciais para a saúde dos consumidores.
7.º
Bem andou o Tribunal a quo ao subsumir os factos pelos quais a arguida foi acusada no art. 21°, n.º 1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro.
8.º
Por identidade de fundamentos indicados na decisão recorrida, afigura-se-nos que a pena de 4 anos e 6 meses de prisão suspensa é a adequada ao caso.
Pelo exposto, com os fundamentos indicados e com os demais que V. Ex. as, por forma sábia, suprirão afigura-se-nos que o recurso deve ser julgado improcedente. Porém, como sempre, V. Ex.a decidirão como for de Justiça.”
            5. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este Tribunal.

            6. Na Relação, o Exmo Procurador – Geral Adjunto apôs o visto.

            7. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do CPP.

            8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

            II. Fundamentação

            1. Delimitação do objecto do recurso

            De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, só tendo o tribunal ad quem de se debruçar sobre as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente ainda que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].
Consequentemente, resulta prejudicado o conhecimento de eventuais aspectos que hajam sido suscitados em sede de motivação, sem que, contudo, tenham sido transpostos para as conclusões.
            A propósito, escreve o Professor Germano Maques da Silva “As conclusões devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas sumariadas que hão-de ser objecto de decisão. As conclusões resumem a motivação e, por isso, que todas as conclusões devem ser antes objecto de motivação”, acrescentando de seguida “É frequente, na prática, o desfasamento entre a motivação e as correspondentes conclusões ou porque as conclusões vão além da motivação ou ficam aquém. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal só poderá considerar as conclusões; se vão além também não devem ser consideradas porque as conclusões são o resumo da motivação e esta falta.” – [cf. “Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 2009, pág. 347].

            No caso em apreço questiona a recorrente:
- A matéria de facto – violação do artigo 127º do CPP e artigo 32º, nº 2 da CRP e dos princípios da presunção de inocência/in dubio pro reo - pretendendo que se julgue provado que é consumidora de estupefacientes.
- O enquadramento jurídico - penal da conduta imputada à arguida, pugnando pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 25º do D.L. nº 15/93, de 22.01;
- A vingar tal enquadramento jurídico – penal, a medida concreta da pena aplicada, considerando adequada uma “pena leve”.
           
            2. O acórdão recorrido
            No que respeita à decisão de facto ficou consignado no acórdão recorrido:
“Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1.
No dia 13 de Abril de 2012, cerca das 17 horas e 5 minutos, na Rua de Santa Maria, em Castelo Branco, a arguida, foi interceptada pela Polícia de Segurança Publica de Castelo Branco, tendo no interior da sua mala pessoal Heroína com o peso líquido de 24,650 gramas, com um grau de pureza de 20,7%, que daria para 51 doses.
3.
A arguida actuou de forma livre, consciente e deliberadamente, ao deter a heroína, conhecendo as suas características e actuou querendo isso mesmo.
4.
A arguida sabia que a sua conduta era proibida por lei.
*
São conhecidos à arguida os seguintes antecedentes criminais:
- Foi condenada por sentença transitada em julgado, a 08.07.2010, datada de 08.06.2010, relativamente a factos integrantes de um crime de condução sem habilitação legal, praticados a 13.05.2010, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de €5, 00, que pagou.
A... nasceu na Roménia há 27 anos, sendo filha única.
A infância foi um período que recorda como marcado por dificuldades económicas.
Os progenitores desenvolviam a actividade de trabalhadores rurais.
Iniciou a escolaridade em idade própria, tendo dado continuidade até à conclusão do equivalente ao 9.° ano da escolaridade, após o que inicia actividade profissional de âmbito rural.
Aos 19 anos contrai matrimónio, e pouco depois emigra para Portugal com o marido, onde ocorre a separação do casal.
Ao nível familiar a progenitora também emigra para o mesmo país, após o términus da relação conjugal, vindo a iniciar novo relacionamento afectivo em Castelo Branco. A...permaneceu inserida no agregado da mãe até há cerca de um mês.
Ao nível profissional, a arguida não menciona nenhuma actividade estável e regular, referindo apenas num breve período de tempo se ter dedicado à exploração de um café no Entroncamento.
A... encontra-se a viver com o companheiro em (...), desde o passado mês de Abril.
A habitação onde reside é propriedade do companheiro, o qual está associado à exploração de bares e espaços de diversão nocturna onde a terá conhecido.
Na deslocação à residência observou tratar-se de uma vivenda reconstruída, dotada das infra-estruturas e saneamento básico, denotando falta de organização do espaço.
Ao nível profissional, a arguida refere que trabalha com o companheiro, actualmente na distribuição e manutenção de jogos colocados em cafés e estabelecimentos comerciais. Economicamente, subsiste dos rendimentos provenientes desta actividade, considerando que permitem a satisfação das necessidades.
Do agregado familiar fazem parte A... e o companheiro, contando por vezes com a presença dos filhos deste, os quais dividem o tempo entre a casa da avó paterna e a do pai.
No meio, não se verificam sentimentos de alarme em virtude dos factos não terem ocorrido na localidade de (...), e por a arguida ser desconhecida na nova zona de residência.
Estamos perante uma arguida de naturalidade romena, conotada com a actividade em bares e estabelecimentos de diversão nocturna. Ao nível económico apresenta uma situação de dependência do companheiro, sem actividades estruturadas e sem hábitos de trabalho.
*
B)        Factos não provados
Além dos que estão em contradição com os assentes e daqueles que se encontram prejudicados pela resposta dada a outros e dos formulados em termos conclusivos, não se provou1:
Da Acusação Pública:
A arguida não é consumidora de heroína.
            Mantém-se a numeração da acusação pública, por facilidade de contraste.
*
Provas que serviram para formar a convicção do tribunal:
Da acusação pública:
A arguida remeteu-se ao silêncio.
A testemunha B... confirmou o auto de apreensão de fls. 8-10, em particular a apreensão do produto estupefaciente.
Quanto ao facto de a arguida não ser consumidora, limitou-se a mesma testemunha a referir que aquela, na PSP de Castelo Branco e segundo o seu conhecimento, não é referenciada como consumidora.
Ao nível das testemunhas de defesa, C..., conhecido da arguida desde há cerca de 5 anos, numa altura em que a mesma trabalhava como alternadeira, em estabelecimentos de diversão nocturna, deu conta de, por uma vez, a ter visto a consumir produto estupefaciente - desconhecendo-se a espécie - numa festa, o que teria acontecido há cerca de um ano. Depois disso, não voltou a vê-la nesse estado. Estranhamente, afirmou de seguida que a arguida terá deixado de consumir desde que reside com o actual companheiro, o que acontece há cerca de 2 anos.
Independentemente disso, o certo é que a prova dos factos negativos é processualmente muito difícil, mesmo que dispuséssemos, no processo, de resultados analíticos relativos à presença, ou não de substâncias estupefacientes no organismo da arguida, porquanto, nesta circunstância, qualquer resultado seria datado.
De qualquer forma, não se vislumbra qualquer contradição na decisão de facto, pois que não foi alegado, pela arguida, ser a mesma consumidora ou tê-lo sido e ainda que o tivesse feito a não prova de que a mesma fosse (ou tivesse sido) consumidora não arrastava necessariamente a prova positiva de que a mesma não era consumidora de produtos de tal natureza. Com efeito - mais uma vez - estamos perante facto de prova pericial (o não consumo), o que não bule com a realidade respectiva.
Mais tivemos em consideração o relatório pericial de fls. 109 dos autos, relativo ao auto de apreensão de fls. 8 a 10.
Quanto à intenção criminosa da arguida, voluntariedade da respectiva conduta e sua consciência da ilicitude, uma vez que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção, socorrendo-nos de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência2.
É legítimo o recurso à prova por presunção judicial, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.° do Código de Processo Penal).
Por outro lado, o artigo 349.°, do Código Civil, prescreve que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um fato conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351.° deste mesmo diploma legal).
2          Neste sentido, entre outros, o Ac. da RE, de 27.09.2011, proc. 761/10.9PAOLH.E1, in www.dgsi.pt.
As presunções judiciais são, no fundo, o produto das regras de experiência. O juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto.
A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente certos factos são a consequência de outros.
Logo, da materialidade assente, em conjugação, aliás, com o conhecimento generalizado de que a simples detenção de produto estupefaciente constitui crime, só pode concluir-se subjectivamente da forma consignada.
*
Outros Factos:
Atendemos ao CRC e ao relatório social juntos aos autos.”

3. Apreciando
            Em sede de conclusões parece a recorrente pretender impugnar a matéria de facto provada, fazendo-o, contudo, na perspectiva da violação do princípio da livre apreciação da prova [artigo 127.º do CPP], bem como da violação do princípio da presunção de inocência, na vertente do in dubio pro reo.
A arguida limita-se a impugnar para que o Tribunal ad quem reanalise os concretos elementos de prova que transcreve parcialmente, sustentando que o Tribunal ad quem deve proferir decisão diferente da proferida na 1a instância valorando a prova de forma mais consentânea com o seu entendimento. Especificamente, a arguida sustenta que o Tribunal a quo deveria ter dado como provado que ela consumia heroína.
Analisada a petição recursiva – motivação e conclusões -, impõe-se reconhecer que a questão colocada - pretensão de que se considere provado que a arguida é consumidora de estupefacientes - surge por contraposição à afirmação constante da acusação, que o tribunal recorrido considerou não provado.
Com efeito, a arguida não alegou que à data dos factos era consumidora, e na audiência de julgamento remeteu-se ao silêncio.
 O que justifica que a recorrente não indique, sequer na motivação, o facto impugnado.
A arguida sustenta que o tribunal a quo deveria ter dado como provado que ela consumia heroína com base no depoimento da testemunha C....
Feita a audição deste depoimento, resulta que a testemunha afirmou que apenas uma vez, há cerca de um ano, presenciou a arguida a consumir estupefaciente, quando trabalhava como alternadeira num estabelecimento de diversão nocturno. Não voltou a vê-la em tal estado. Porém, veio a contradizer-se pois referiu de seguida que a arguida deixara de consumir quando foi residir com o actual companheiro, há cerca de 2 anos.
Da restante prova produzida em audiência não se extrai qualquer outro elemento probatório que a referencie como consumidora de estupefacientes.
Bem andou pois o tribunal a quo ao desconsiderar o depoimento da referida testemunha.
Por outro lado, a não prova de facto negativo não significa necessariamente a prova do facto positivo.
Ou seja, embora julgado não provado que a arguida não era consumidora de estupefacientes, tal não conduz automaticamente à prova do contrário, de que a arguida era consumidora de estupefacientes.
Aliás, como acima se percebeu, a única prova indicada para esse efeito, o depoimento de C..., não mereceu credibilidade por virtude da contradição assinalada.
Não assiste pois razão à recorrente, porque não resulta da decisão que o Colectivo haja valorado os diferentes meios de prova contra as regras da experiência ou em violação dos seus momentos estritamente vinculados
É manifesto que não ocorreu violação da presunção da inocência, designadamente na vertente do princípio in dubio pro reo, a qual só pode ser afirmada quando em face da prova produzida resulte, ou deva resultar, uma dúvida razoável, o que não decorre haja acontecido relativamente à recorrente, tão pouco considerando este tribunal de recurso – até em face das provas convocadas– que tal colhesse justificação.
Como é sabido mas convém recordar, o recurso da matéria de facto perante o tribunal superior visa apenas a realização de uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados com base na avaliação das provas que se considera determinarem uma convicção diversa
            Em síntese, não se detecta qualquer violação dos princípios matriciais respeitantes à prova, designadamente ao artigo 127º do CPP, dos princípios da presunção de inocência e/ou in dubio pro reo – artigo 32º, nº 2 da CRP -, sucumbindo a argumentação recursiva, inidónea a fazer suscitar a dúvida razoável, - e não qualquer outra - de forma a abalar a prova produzida apreciada à luz das mais elementares regras da experiência.
Como última nota, realçada pelo MP na resposta, o consumo relevante ao nível da subsunção dos factos aos tipos legais de crime previstos pelo DL 15/93, de 22 de Janeiro, é o contemporâneo à data dos factos.
            Assim, no que respeita ao julgamento da matéria de facto, o recurso é improcedente.

II Enquadramento jurídico – penal dos factos
            1 - Não tendo sido julgado provado que a arguida à data dos factos consumia heroína, carece de fundamento legal a subsunção dos factos em apreço no tipo legal de consumo, previsto e punido, pelo art. 40°, n.º 2, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, ou no tipo legal de traficante consumidor, previsto e punido pelo art. 26° do citado diploma.
2 - Do crime previsto no artigo 25.º, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro.
No caso em apreço, o tribunal a quo teceu as seguintes considerações de ordem geral sobre a conformação do tipo matricial (art. 21º) e do tipo privilegiado (art. 25º):
            De harmonia com o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder, ou, por qualquer título, receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar, ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40°, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.”.
Neste artigo está previsto o tipo essencial, relativo ao tratamento penal da actividade de tráfico de estupefacientes, constituindo um tipo de crime que assume na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo abstracto (assentando na presunção da lei de que a actividade desenvolvida é perigosa juris eu de jure, constituindo um risco para o bem-estar tutelado). Ou seja, nas condutas ali descritas, basta-se a lei, com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores, a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão inter-individual das unidades de organização fundamental da sociedade, considerando integrado o tipo logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine, fazendo a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.
A construção e a estrutura dos crimes ditos de tráfico de estupefacientes, como crimes de perigo, de protecção, total, recuada a momentos anteriores a qualquer manifestação de consequências danosas e com a descrição típica alargada pressupõe, porém, a graduação em escalas diversas dos diferentes padrões de ilicitude em que se manifeste a intensidade, a potencialidade do perigo, que é abstrato-concreto, para os bens jurídicos protegidos. De contrário, o tipo fundamental, com os índices de intensidade da ilicitude pré-avaliados pela moldura abstracta das penas previstas, poderia fazer corresponder a um grau de ilicitude menor, uma pena relativamente grave, com risco de afectação de uma ideia fundamental de proporcionalidade que imperiosamente deve existir na definição dos crimes e das correspondentes penas.
Por isso, a fragmentação por escala dos crimes de tráfico, mais fragmentação dos tipos de ilicitude do que da factualidade típica, que permanece no essencial, respondendo às diferentes realidades, do ponto de vista das condutas e do agente, que necessariamente preexistem à compreensão do legislador: a delimitação pensada para o tráfico de elevada gravidade, artigo 24.°, para o grande tráfico, artigos 21.° e 22.°; para os pequenos e médios traficantes, artigo 25.° e para os traficantes consumidores (artigo 26.°/3).
O bem jurídico protegido no crime de tráfico (qualquer que seja a sua gravidade) é a saúde alheia, a incomodidades pública considerada no seu aspecto peculiar ligado à saúde pública, conjugada com a liberdade do cidadão, aqui se manifestando uma alusão implícita à dependência que a droga gera.
Como se referiu já, o crime de tráfico de estupefacientes configura um crime de perigo abstracto, não sendo pressuposto da sua existência nem a verificação de um dano, nem a produção de um perigo concretamente definido ou identificado. Requer apenas uma acção potencialmente criadora de perigo para o bem jurídico protegido pela norma incriminadora. Tal premissa constitui jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça que considera que “o crime de tráfico de estupefacientes, em qualquer uma das suas modalidades, é um crime de perigo abstracto, não sendo, por isso, exigível, para a sua consumação, o dano efectivo e real do bem jurídico protegido - saúde pública - mas apenas o perigo ou o risco de dano.
De tal forma assim é que a mera detenção ou transporte doloso de produto estupefaciente já é punido como crime consumado, pela potencialidade do perigo que encerra, pois a experiência mostra que ninguém detém plantas substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV para seu deleite ou por mera curiosidade científica, independentemente de ulterior destinação.
A nível subjectivo, este tipo-de-ilícito pressupõe a existência de uma vontade livremente dirigida à prática de qualquer das acções descritas no tipo incriminador e por ele proibidas.
O crime base do artigo 21.° está projectado para assumir a função típica de acolhimento dos casos de tráfico de média e grande dimensão, tanto pela larga descrição das variadas acções típicas, como pela amplitude dos limites da moldura penal, que indiciam a susceptibilidade de aplicação a todas as situações, graves e mesmo muito graves, de crimes de tráfico.
Por fim, frise-se que, para o preenchimento do tipo penal, basta a simples detenção, distribuição e trânsito do produto estupefaciente4 5.
Diferentemente, no caso do tipo privilegiado do tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25°, do mesmo diploma, “ se, nos casos dos artigos 21° e 22°, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de: a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;”
            Neste sentido Acórdão do S.T.J. de 5 de Junho de 1991 in B.M.J. n. 408 página 162.
            Por outro lado, não é necessário o contacto físico com o estupefaciente como por exemplo no caso de compra e venda, actos jurídicos que não exigem necessariamente a presença do seu objecto no momento da transacção (neste sentido Acórdão do S.T.J. de 8 de Março de 1990 in Col. J. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Tomo I, página 35).
Decorre do citado artigo 25.º, que o privilegiamento do crime de tráfico aí previsto resulta de a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em consideração, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade dos produtos estupefacientes.
A aplicação deste preceito legal pressupõe um juízo positivo sobre a ilicitude, que constate uma substancial diminuição desta. Para tanto, a lei enumera, de modo não taxativo, diversos índices, alguns atinentes à própria acção típica (meios utilizados, modalidade, circunstâncias da acção) e outros ao objecto da acção típica (qualidade ou quantidade do estupefaciente).
Um dos índices preponderantes vem a ser a quantidade da droga, embora tal não seja, por si só, decisivo para formular um juízo de considerável diminuição da ilicitude, antes haverá que articulá-lo com os demais índices.
O entendimento da jurisprudência, em especial da emanada do Supremo Tribunal de Justiça, vai no sentido de que, para se aplicar este preceito legal a quantidade das drogas aí referidas não pode ultrapassar a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias, em analogia, aliás, com a norma do art. 26°, n.º 3, do citado Regime.
Nos termos do art. 71°, n.º 1, c), do Regime em referência, “os Ministros da Justiça e da Saúde (...) determinam, mediante portaria:
c) Os limites quantitativos diários máximos de princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente”.
Atenta a celeuma jurisprudencial gerada pela questão dos limites a que esta última norma alude, o Tribunal Constitucional pronunciou-se neste sentido:
 “Interpretar a norma constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 71°, do Decreto-Lei n.º 15/93, no sentido de que, ao remeter para a portaria nela referida a definição dos limites quantitativos máximos de princípio activo para cada dose individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente, (...), o faz com o valor de prova pericial”.
E é dito no desenrolar do pensamento que desembocou naquela jurisprudência:
“Assim, os limites fixados na portaria, tendo meramente um valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, não constituem verdadeiramente, dentro do espírito e da letra do artigo 71°, do Decreto-Lei n.º 15/93, uma delimitação negativa da norma penal que prevê o tipo de crime privilegiado. [Apenas está em causa] a remissão para valores indicativos, cujo afastamento pelo tribunal é possível, embora acompanhado da devida fundamentação”.
A Portaria 94/96, de 26.3, fixa os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei 15/93, de 22.1.
Por outro lado, de acordo com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2008, “não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º, da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só ‘ quanto ao cultivo’ como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.
De acordo com o dito mapa anexo à Portaria n.º 94/96, de 26.03 e tendo em conta a perícia dos autos - que, de forma completa, aferiu do número de doses em que a quantidade apreendida à arguida se poderia dividir, sendo certo que se trata de um facto de prova pericial vinculada estão em causa 51 doses de heroína6.
As referências objectivas contidas no tipo para aferir da menor gravidade situam-se nos meios; na modalidade ou circunstâncias da acção e na qualidade e quantidade das plantas. Na sua essência o que pretende é estabelecer-se a destrinça entre realidades criminológicas distintas que, entre si, apenas têm de comum o facto de constituírem segmentos distintos de um mesmo processo envolvido no perigo de lesão. Na verdade, o legislador sentiu a aporia a que era conduzido pela integração no mesmo tipo leal de crime de condutas de matriz tão diverso como o tráfico internacional envolvendo estruturas organizativas integradas e produto de quantidades e qualidades muito significativas e negócio do dealer de rua, último estádio de um processo de comercialização actuando isoladamente, sem estrutura, e como mero distribuidor. Num segmento intermédio, mas nem por isso despojado, em abstracto, de significativa ilicitude situa-se o tráfico interno, muitas vezes com uma organização rudimentar (e com tendência a uma compartimentação cada vez maior dificultando a investigação).
Função essencial na interpretação do tipo em questão assume a referência feita pelo legislador no proémio do D.L. 430/83 quando já aí demonstrava a sensibilidade à diversidade de perfis de actuação criminosa dizendo que “daí a revisão em termos que permitam ao julgador distinguir os casos de tráfico importante e significativo, do tráfico menor que, apesar de tudo, não pode ser aligeirado de modo a esquecer o papel essencial que os dealers de rua representam no grande tráfico. Haverá assim que deixar uma válvula de segurança para que situações efectivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que ao invés se force ou use indevidamente uma atenuante especial”.
A relevância de tal pressuposto também é adequada para a prossecução de relevantes finalidades de prevenção geral e especial, justifica as opções legais tendentes à adequada diferenciação do tratamento penal entre os grandes traficantes (artigos 21.º, 22.º e 24.º) e os pequenos e médios (artigo 25.º), e ainda daqueles que desenvolvem um pequeno tráfico com a finalidade exclusiva de obter para si as substâncias que consomem (artigo 26.º).
Sem qualquer margem para dúvida, a inexistência de uma estrutura organizativa e/ou a redução do acto ilícito a um único negócio de rua, sem recurso a qualquer a qualquer técnica ou meio especial, dão uma matriz de simplicidade que, por alguma forma conflui com a gravidade do ilícito.
Como elementos coadjuvantes relevantes e decisivos surgem, então, a quantidade e a qualidade da droga.
A apreciação da quantidade detida deve apoiar-se em módulos do carácter qualitativo, entre os quais é possível enfatizar:
a) O grau de pureza da substância estupefaciente;
b) O perigo da substância é também fundamento.
Poderá oferecer relevância a consideração de que a droga, quando chega as mãos do consumidor, é frequentemente muito misturada e adulterada (com glucose e outros produtos), o que provoca que, para obter os efeitos pretendidos, aquele compra quantidades superiores às que adquiriria se o produto chegasse até ele no estado puro.”
E em termos de conclusão consignou:
“Revertendo para a matéria assente, em atenção à qualidade e à quantidade de droga em causa, só poderemos concluir pela subsunção da conduta da arguida ao tipo fundamental do art. 21°, do D.L. n.° 15/93.”
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3 - Vejamos:
            Para verificação do tipo atenuado exige a lei que a ilicitude do facto se mostre consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.
Desde há vários anos o STJ vem repetindo que , “(...) o advérbio “consideravelmente”, da cláusula geral, não está lá por acaso. No seu significado etimológico, prevalece a ideia de digno de consideração, notável, grande, importante ou avultado ”- neste sentido, vide Ac. S.T.J., de 3/7/96, CJ-S- IV, II, 206.
A tipificação do referido artigo 25.º parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza (de elevada gravidade considerando a grande relevância dos valores postos em perigo com a sua prática e a frequência desta), encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, fica aquém da gravidade do ilícito justificativa da tipificação do artigo 21.º do mesmo diploma e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas no artigo 25.º.
            Como se salienta no Acórdão do STJ, de 17.03.2010, in www.dgsi.pt, o crime de tráfico de menor gravidade, previsto no art. 25.º do DL 15/93,de 22-01, como a sua própria denominação legal sugere, caracteriza-se por constituir um minus relativamente ao crime matricial, ou seja, ao crime do art. 21.º, do citado DL 15/93.                                               Trata-se de um facto típico cujo elemento distintivo do crime tipo reside, apenas, na diminuição da ilicitude do facto, redução que o legislador impõe seja considerável, indicando como factores aferidores de menorização da ilicitude do facto, a título meramente exemplificativo, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção e a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações. É pois a partir do tipo fundamental, concretamente da ilicitude nele pressuposta, que se deve aferir se uma qualquer situação de tráfico se deve ou não qualificar como de menor gravidade.
Segundo tal acórdão, a referida aferição, consabido que a ilicitude do facto se revela, essencialmente, no seu segmento objectivo, com destaque para o desvalor da acção e do resultado, deverá ser feita a partir de todas as circunstâncias que, em concreto, se revelem e sejam susceptíveis de aumentar ou diminuir a quantidade do ilícito, quer do ponto de vista da acção, quer do ponto de vista do resultado.
O Acórdão do S.T.J., de 23/11/2011, Processo n.º 127/09.3PEFUN.S1 - 5ª Secção - inwww.dgsi.pt, após descrever, de modo exaustivo, a evolução que a interpretação do citado artigo tem sofrido na nossa jurisprudência, elenca alguns factores que devem estar presentes no caso a apreciar, de modo a que possamos estar perante a prática do citado crime:
Diríamos, em suma, que o agente do crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, deverá estar nas circunstâncias seguidamente enunciadas, tendencialmente cumulativas:
i) A actividade de tráfico é exercida por contacto directo do agente com quem consome (venda, cedência, etc.), isto é, sem recurso a intermediários ou a indivíduos contratados, e com os meios normais que as pessoas usam para se relacionarem (contacto pessoal, telefónico, internet);        
j) Há que atentar nas quantidades que esse vendedor transmitia individualmente a cada um dos consumidores, se são adequadas ao consumo individual dos mesmos, sem adicionar todas as substâncias vendidas em determinado período, e verificar ainda se a quantidade que ele detinha num determinado momento é compatível com a sua pequena venda num período de tempo razoavelmente curto;                            k) O período de duração da actividade pode prolongar-se até a um período de tempo tal que não se possa considerar o agente como “abastecedor”, a quem os consumidores recorriam sistematicamente em certa área há mais de um ano, salvo tratando-se de indivíduo que utiliza os proventos assim obtidos, essencialmente, para satisfazer o seu próprio consumo, caso em que aquele período poderá ser mais dilatado;               l) As operações de cultivo ou de corte e embalagem do produto são pouco sofisticadas;
m) Os meios de transporte empregues na dita actividade são os que o agente usa na vida diária para outros fins lícitos;
n) Os proventos obtidos são os necessários para a subsistência própria ou dos familiares dependentes, com um nível de vida necessariamente modesto e semelhante ao das outras pessoas do meio onde vivem, ou então os necessários para serem utilizados, essencialmente, no consumo próprio de produtos estupefacientes;
o) A actividade em causa deve ser exercida em área geográfica restrita;
p) Ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art.º 24.º do DL 15/93.”

            Acerca da correlação entre os crimes do artigo 21º e 25º do D.L nº 15/93, de 22.01 refere o acórdão do STJ de 29.10.2008 [proc. nº 08P2961], disponível em www.dgsi.pt]: A essência da distinção entre os tipos fundamental (art. 21º) e privilegiado (art. 25º) reverte ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), aferida em função de um conjunto de itens de natureza objectiva que se revelem em concreto, e que devem ser globalmente valorados por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei (…). As referências objectivas contidas no tipo para aferir da menor gravidade situam-se nos meios, na modalidade ou circunstâncias da acção e na qualidade e quantidade das plantas.
            De facto, a tipificação do artigo 25.º … parece ter o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza (de elevada gravidade, considerando a grande relevância dos valores postos em perigo com a sua prática e frequência desta), encontre a medida justa da punição para casos que, embora de gravidade significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativa da tipificação do art. 21º e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas no preceito em causa. Ao indagar do preenchimento do tipo legal do art. 25º haverá que proceder a uma valorização global do facto, sopesando todas e cada uma das circunstâncias aí referidas, para além de todas as demais susceptíveis de interferir na graduação da gravidade do facto, designadamente as que traduzem uma menor perigosidade da acção e/ou desvalor do resultado, em que a ofensa ou o perigo de ofensa aos bens jurídicos protegidos se mostre significativamente atenuado. Trata-se de um facto típico cujo elemento distintivo do crime tipo reside, apenas, na diminuição da ilicitude, redução que o legislador impõe seja considerável, indicando factores aferidores de menorização da ilicitude, a título meramente exemplificativo, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção e a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.
           
            Do que supra se deixou transcrito resulta, pois, claro ter sido decisivo para o enquadramento jurídico–penal a circunstância de a quantidade do estupefacientes em questão, assim como a sua natureza, assumir uma relevância especialmente significativa.
            Porém, analisando a factualidade apurada, resume-se a que a arguida no interior da sua mala pessoal detinha heroína com o peso líquido de 24,650 gramas, com um grau de pureza de 20,7%, que daria para 51 doses.
O facto provado é único, episódico, desconhecendo-se qualquer circunstancialismo relativo a eventual venda ou mero transporte por conta de outrem, pelo que quer pela natureza quer pela quantidade de estupefaciente, cujo destino se ignora, quer pela actuação da arguida - mera detenção, - não nos repugna a integração da conduta da arguida no tipo privilegiado.
            Com efeito, não obstante, a heroína apreendida ser suficiente para cerca de 51 doses individuais, não resulta apurado qualquer modus operandi, muito menos um modus operandi sofisticado, com recurso a meios complexos, nem se provou uma estrutura organizativa, antes resulta uma actuação desacompanhada da arguida – pelo menos não decorre da exígua matéria de facto provada.
            Neste quadro, sopesando a ausência das circunstâncias referidas, a ilicitude global do facto aponta, quanto a nós sem dúvida de maior, para o tipo privilegiado do artigo 25º, punível nos termos da al. a) não obstante a natureza dos estupefacientes em causa.
Efectivamente, nada aponta para que estejamos em face de um caso de grande tráfico.
            Na verdade, … depois de uma fase inicial de pouca receptividade da jurisprudência a esta “válvula de segurança” do sistema, destinada a evitar a parificação de situações de tráfico menor às do tráfico importante e significativo, com a corresponde desproporcionalidade das penas, acabou por a admitir generalizadamente, no seu objectivo de equilíbrio …, acolhendo vários fundamentos para o efeito: desde logo, procedendo à valorização global ou complexiva do episódio…” – cf. A. Lourenço Martins, in “Medida da Pena, Finalidades, Escolha, Abordagem Crítica de Doutrina e Jurisprudência”, Coimbra Editora, p. 288].
            Conclui-se, pois, ser de alterar, nesta parte, o acórdão recorrido, subsumindo os factos pelos quais a arguida foi acusada no art. 25°, do DL 15/93, de 22 de Janeiro.
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4 - Da medida da pena
            Em função da alteração da qualificação jurídico – penal dos factos pelos quais a arguida sofreu condenação, importa proceder à reapreciação da medida concreta da pena aplicada.
Como dispõe o artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. As finalidades das penas, na previsão, na aplicação e na execução, são assim na filosofia da lei penal vigente a protecção de bens jurídicos e a integração do agente do crime nos valores sociais afectados.
Na protecção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afectem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).
As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.
No caso concreto a finalidade de tutela e protecção de bens jurídicos há-de constituir o motivo fundamento da escolha do modelo e da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afectados - cfr. Anabela Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra, 1995, págs. 371 e 374 e Ac. STJ de 4-7-1996, CJSTJ, II, p. 225).
Sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, art. 40 nº 2 do C. Penal.
Decorre, assim, de tais normativos que a culpa e a prevenção constituem os parâmetros que importa ter em apreço na determinação da medida da pena.
Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser em cada caso prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização será encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa que, nos termos do artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal, constitui limite inultrapassável da prevenção a realizar através da pena (cfr. nomeadamente Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1ª edição, pags. 238 a 255).        
Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, preceitua, na senda do citado artigo 40.º, que a determinação concreta da pena, dentro dos limites legalmente definidos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o n.º 2 do mesmo artigo determina que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando algumas a título exemplificativo, circunstâncias estas que nos darão a medida das exigências de prevenção em concreto a realizar porque indicadoras do grau de violação do valor em causa e da prognose de no futuro o agente se poder determinar com o respeito pelo valor penalmente protegido (a necessidade da pena revela-se desse modo em função da menor ou maior exigência do exercício da prevenção e da reintegração).
O crime em apreço é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
A arguida não tem antecedentes criminais da mesma natureza averbados no registo criminal, tendo sido condenada em 2010 pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, em pena de multa, que pagou.
A quantidade do produto estupefaciente não é elevada, embora a respectiva qualidade integra as denominadas drogas duras.
A arguida trabalha com o companheiro na distribuição e manutenção de jogos colocados em cafés e estabelecimentos comerciais. Economicamente, subsiste dos rendimentos provenientes desta actividade, que permitem a satisfação das necessidades.
Do agregado familiar fazem parte A... e o companheiro, contando por vezes com a presença dos filhos deste, os quais dividem o tempo entre a casa da avó paterna e a do pai.
No meio, não se verificam sentimentos de alarme em virtude dos factos não terem ocorrido na localidade de (...), e por a arguida ser desconhecida na nova zona de residência.
Não tem hábitos de trabalho.
A pena só cumpre a sua finalidade enquanto sentida como tal pelo seu destinatário – cfr. Ac. desta Relação de 7-11-1996, in Col. Jurisp. tomo V, 47.
O grau de ilicitude do facto e consequências do crime são medianos. O modo de execução revelou-se simples. Agiu com dolo directo.
As razões de prevenção especial não são prementes, considerando os seus antecedentes criminais.
São porém elevadas as razões de prevenção geral, considerando não só o facto do crime de tráfico ser frequente e constituir um flagelo social, mas também a necessidade de desmotivar a prática deste tipo de crime.
 Considerando que a moldura penal para o crime entendemos como justa e adequada à culpa e às finalidades da pena, a pena de dois anos e seis meses de prisão.
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5 - Nos termos do disposto no artigo 50.°/1 do Código Penal, a pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos será suspensa se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente quer a protecção dos bens jurídicos, quer a reintegração do agente na sociedade.
A suspensão da execução da pena de prisão contemplada no artigo 50.º, do Código Penal, constitui um substitutivo das penas privativas da liberdade, aceite pelo legislador como instrumento capaz de sanar o mal produzido à comunidade pela acção do delinquente, sem outras consequências mais drásticas.
Sendo certo que, como tal, foi pensada para situações criminosas menos graves e quando seja de perspectivar, através de uma prognose favorável, assente em factores conhecidos (personalidade do agente, condições da sua vida, conduta anterior e posterior ao crime, circunstâncias deste), que é possível, mantendo o agente no seio da vida comunitária, proteger os bens jurídicos afectados pelo seu comportamento (protecção de bens jurídicos) e recuperar o infractor (reintegração do agente na sociedade).
Não obstante, a suspensão da pena de prisão, assumindo-se como medida pedagógica inscrita nas finalidades da punição e apresentando-se como uma das mais gratas apostas do legislador, tinha que revestir-se, como se reveste, das características de um poder-dever, o que significa que o julgador, perante uma situação que formalmente viabiliza o seu uso, tem que equacionar sempre a possibilidade de a ela recorrer, fundamentando a sua opção quando o não faça.
No caso concreto, considerando que os antecedentes criminais da arguida não são da mesma natureza dos factos por que ora se condena, é ainda possível operar um juízo de prognose favorável ao efeito suficientemente dissuasor da suspensão da execução da pena de prisão.
Nessa conformidade, decide-se manter a suspensão da execução da pena de prisão agora aplicada por igual período de tempo, sob regime de prova.
                       
            III. Dispositivo
            Termos em que acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:
            1 - Julgar parcialmente provido o recurso da arguida e, em consequência, condenar a arguida A... pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. º 25º, al. a), do Decreto-Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela l-A anexa ao referido diploma, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período de tempo, sob regime de prova.
2- Quanto ao mais negar provimento ao recurso, mantendo o acórdão recorrido.
Sem tributação.
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Coimbra, 26/03/2014

 (Isabel Valongo - relatora)
 (Fernanda Ventura - adjunta)