Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1485/08.2TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 07/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º, N.º 1; 1287; 126.º; 1262.º;1543.º; 1544.º; 1547.º, N.º 1; CC
Sumário: 1. Para a declaração da existência de uma servidão de passagem é imprescindível que quem dela se arroga - o dono do prédio dominante - alegue e convença o tribunal da sua exacta configuração física e funcional, isto é, do modo e local em que ela se constituiu e exerce, modo e local que, naturalmente, se hão-de posicionar dentro dos limites materiais do suposto prédio serviente.

2. A constituição da servidão por usucapião repousa na posse (artigo 1287.º do CC), e esta carece de ser caracterizada, além do mais, pela boa fé ou má fé, que consiste na ignorância de lesar direito alheio (artigo 1260.º, nº 1 do CC), pela pacificidade (artigo 1261.º do CC.) e pela publicidade (art.º 1262.º do CC).

3. Compete ao pretenso titular do direito de servidão alegar e provar o uso ou a reiterada utilização do acesso, por si e antepossuidores, como direito seu, como sua posse, ocorrida, enquanto tal, de boa ou , e com publicidade, ou seja, à vista de todos e, principalmente, que tivesse sido acompanhada da convicção de se comportarem como titulares do direito correspondente (o chamado “animus”, ou elemento psicológico).

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... propôs no 2º Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande uma acção declarativa sob a forma de processo sumário contra B..., C... e D..., alegando sinopticamente que:

Por ter sido comprado por escritura pública de 16.06.1993 pelo casal que então formou com a sua ex-mulher, e depois a si adjudicado na partilha subsequente ao divórcio, é hoje o A. dono de um certo prédio urbano a que corresponde o artigo x.... da matriz urbana da freguesia de ...., concelho da Marinha Grande; este prédio é constituído por uma casa, duas dependências, e, bem assim, um logradouro, este com 986 metros quadrados; necessitando o A. de se deslocar a este logradouro, para o seu amanho agrícola, a pé e com tractor, sempre a ele teve acesso desde a via pública através de um caminho público com 2,5 metros de largura, continuado por um carreiro público, com 1 metro largura, um e outro localizados a sul dos ditos prédio urbano e logradouro, marginando-os a todo o comprimento; de há meia dúzia de anos para cá, pelo falecido pai dos RR. e, após a morte do mesmo, pelos próprios Réus, têm vindo a ser plantadas couves e colocadas pedras nos leitos dos referidos caminho e carreiro, impedindo a passagem do A. com o seu tractor, quando é certo que, até então, ela havia sido pacificamente permitida aos antepossuidores do A. e ao próprio A.; a servidão de passagem utilizada pelo A. possui sinais visíveis e permanentes; em Maio de 2008 os RR. fizeram desaparecer tal servidão, ocupando-a totalmente com o plantio de couves.

Remata pedindo que os Réus sejam condenados a:

a) Reconhecer que o seu prédio está onerado com:

1 - Uma servidão de pé e tractor com a largura de 2,5 metros no que se refere à servidão relativa ao antigo caminho público que se inicia na Rua das L.... e que percorre em comprimento a casa de habitação do A. até à parte rústica do seu prédio, servidão que ali sempre existiu, direito este constituído por usucapião a favor do A.;

2 - Uma servidão de pé com a largura de 1 metro no que se refere à servidão relativa ao carreiro público e que se inicia no final do já referido caminho público e que percorre em todo o comprimento o logradouro do A., servidão essa que também ela sempre ali existiu, direito este constituído por usucapião a favor do A.;

b) Reconhecer que o A. tem direito de passar por essa serventia com tractor e a pé para aceder à parte rústica do seu prédio (…).

Contestaram os RR., dizendo que o carreiro público que delimitava a norte o seu prédio do prédio do A. deixou de ser usado há mais de 15 anos, dado que a fonte pública a que, desde poente, só ele conduzia - a denominada Fonte dos FS.... - passou a ser servida por duas ruas, nos sentidos norte-sul e poente-nascente; que o A. parece confundir carreiro público, caminho público e serventia; que não é verdade que alguma vez o A. ou antepossuidores do mesmo prédio tivessem passado pelo dito carreiro. Em reconvenção, pedem que se declare que o prédio de que são proprietários não está onerado com qualquer servidão a favor do prédio do A., e que o carreiro público que separa o prédio do A. do prédio dos RR. está abolido nos termos dos art.ºs y.... e z....do CC; que se condenem os AA. a abster-se de praticar quaisquer actos que colidam com o direito de propriedade dos RR.; subsidiariamente, para o caso de se provar a existência de uma servidão a onerar o seu prédio, que o A. seja condenado a ver declarada a respectiva extinção por desnecessidade.

A final foi a acção julgada parcialmente procedente por parcialmente provada, em consequência do que “se determinou:

O reconhecimento de uma servidão de passagem, com a largura de um metro, do prédio do A. sobre o prédio dos RR. nos seguintes termos:

A extinção da servidão por desnecessidade superveniente.”

Inconformado, desta sentença recorreu o Autor, recurso admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.   

Dispensados os vistos, cumpre agora decidir.

São os seguintes os factos que foram dados como provados na 1ª instância:

1 - B...., C.... e D...., são filhos e herdeiros de E..., falecido em 11 de Janeiro de 2008.

2 - B.... é a Cabeça de Casal da Herança aberta por óbito de E.....

3 - O A. é dono e legitimo proprietário de um prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da Freguesia da .... sob o n.º x.... e descrito na Conservatória do Registo Predial da Marinha Grande sob o nº w.... da Freguesia de ...., Concelho da Marinha.

4 - O prédio referido em 3. confina de norte com Rua das L...., sul com caminho público poente com Rua da f.... e nascente com R.....

5 - O prédio referido em 3. foi adquirido pelo A. e sua esposa por Escritura de Compra e Venda de 16 de Junho de 1993, mas ficou adjudicado ao A. após Partilha por Divórcio por Mútuo Consentimento entre o A. e sua esposa.

6 - Em 24 de Março de 1993, o A. e sua esposa haviam assinado um contrato de promessa de compra e venda a fim de adquirirem o referido prédio.

7 - Aquando da assinatura do Contrato Promessa de Compra e Venda referido em 6. lhes havia sido mostrado pelo vendedor uma certidão das Finanças na qual constavam dois prédios, sendo um deles um prédio rústico inscrito na matriz sob o nº k...., e outro um prédio urbano inscrito sob o nº x.....

8 - E ambos os prédios confinavam com caminho público.

9 - O prédio rústico com o nº k.... confinava de sul com carreiro público, e o prédio urbano da Freguesia de .... com o nº x.... confinava de sul e poente com caminho público.

10 - Aquando da Escritura de Compra e Venda referida em 5., o A. e sua esposa foram representados por procuradora, e na respectiva escritura de compra e venda, tal como aconteceu no contrato promessa de compra e venda, consta que o prédio rústico nº k.... fora absorvido pelo prédio urbano n.º x.....

11. Tendo o referido prédio urbano sido sujeito a uma rectificação de área, a fim de obter as áreas que se encontram actualmente registadas na Conservatória do Registo Predial e inscritas nas Finanças da Marinha Grande.

12. Sendo essas áreas as seguintes: superfície coberta com 39 m2, uma dependência com 15,60 m2, outra dependência com 14,40 m2 e logradouro com 986 m2.

13. O A. sempre teve acesso ao logradouro do seu prédio através de um caminho público situado a sul de sua casa de habitação, bem como através de um carreiro público situado a sul do seu logradouro.

14. O carreiro público sempre foi a continuação "em linha" do caminho público que se inicia na Rua da f.....

15. O A. cultiva, desde que comprou o prédio, o terreno que compõe o logradouro, do dito prédio necessitando de aceder a esse seu terreno através do caminho público.

16. O logradouro pertencente ao A. e que anteriormente compunha o prédio rústico nº k.... e que foi absorvido pelo prédio urbano nº x...., nunca confrontou directamente com qualquer estrada pública, mas antes, com o carreiro público.

17. O A. necessita, para cultivar o seu terreno, de passar pelo caminho público e carreiro público que sempre existiram nesse local, a sul da sua propriedade.

18. Sendo o único acesso que o A. tem para aceder com um tractor ao logradouro do seu prédio a fim de poder cultivar esse seu terreno e através de uma serventia que se inicia na Rua das L...., correndo ao longo da casa de habitação do A. e do seu logradouro.

19. Foi por essa serventia que o A. e os antepossuidores sempre passaram desde há mais de cem anos, de pé e com carro de vacas.

20. Essas serventias - caminho público e carreiro público - sempre foram respeitadas pelo falecido marido e pai dos Réus, bem como pelo A e seus ante possuidores.

21.Os réus vêm cultivando parte desse terreno.

22. Lavrando outra parte desse mesmo terreno.

23. Plantando couves no terreno.

24. Os Réus não permitem desde há cerca de 6 anos ao A, a passagem para aceder ao seu terreno.

25. Passagem essa que sempre foi permitida, pública e pacificamente à vista de todo a gente, aos antepossuidores do A e ao A durante muitos anos.

26. Essas serventias, ou seja, o caminho público e o carreiro público, sempre foram utilizadas por vários outros proprietários de prédios confinantes.

27. Antes de existir a Estrada Pública, ou seja, a Rua das L...., essas serventias eram locais de passagem utilizados pelos moradores da localidade.

28. Essas serventias eram a única passagem que existia para os lugares de CL.... e Fonte.

29. A utilização da servidão de passagem por parte da A. dura há mais de quinze anos.

30. A servidão de passagem utilizada pelo A., é real, possuindo sinais visíveis, claros

e permanentes do seu exercício.

31. O A. já tentou dialogar inúmeras vezes com os Réus, como já tinha tentado com o seu falecido pai, a fim de resolver a situação.

32. Os Réus continuam a negar-lhe o acesso à sua propriedade.

33. Em meados do mês de Maio de 2008 o A. verificou que grande parte da servidão de passagem tinha desaparecido.

34. Os Réus tinham cultivado couves em plena servidão de passagem.

35. Existe uma fonte a nascente do prédio do A. e dos RR, conhecida como fonte dos FS.... ou fonte de CL.....

36. O acesso a essa fonte era feito por um carreiro com menos de um metro de largura, que se iniciava na rua que hoje é conhecida por rua das L.... e atravessava diversos terrenos.

37. No prédio dos réus o carreiro seguia em linha recta, sobre o topo norte do terreno e quando atingia o logradouro do prédio do A., por via de uma pequena inclinação, flectia ligeiramente a norte seguindo em linha recta pelo prédio do A. até atingir outro prédio mais a nascente.

38. Era e sempre foi o carreiro que demarcou e delimitou o prédio do A. e dos RR, servindo também desde tempos imemoriais de linha divisória entre ambos.

39. Por esse carreiro foram passando, ao longo dos tempos os habitantes do lugar. sempre que se dirigiam, desde poente, á fonte dos FS.... ou do CL.....

40. Há cerca de 20, 30 anos, a freguesia de .... e o Lugar de CL.... passaram a beneficiar de novas ruas públicas, asfaltadas, sendo que a fonte dos FS.... ou de CL.... ficou servida, no sentido norte/sul pela rua Fonte dos FS.... e no sentido poente/nascente pela rua do P.....

41. Todas as pessoas que se dirigiam á fonte passaram a poder fazê-lo por intermédio dessas vias de comunicação, com melhores e mais cómodas condições de acesso.

42. O prédio do A. tem uma frente para a estrada pública com cerca de 10 metros de comprimento, encontrando-se murado e com porta virada para a rua das L.... por onde o A. entra e sai.

43. Quer o referido muro de vedação quer a porta que dita directamente para a rua foram edificados pelo A. no seu exclusivo interesse, do modo e nas condições que melhor entendeu.

                                                                                *

A apelação.

O recorrente encerra a respectiva alegação circunscrevendo o objecto do recurso às questões que decorrem do seguinte enunciado conclusivo:

1 - A douta sentença recorrida enferma de nulidade por força do disposto na alínea c) do nº 1 do art.º 668 do CPC;

2 - O apelante invocou e provou a existência de uma servidão de passagem com dois metros e meio, constituída por usucapião, de acordo com o estabelecido nos art.ºs 1543 do Código Civil conjugado com o art.º 1260 e seguintes do mesmo diploma legal;

3 - Os apelados não provaram, como lhes competia, de acordo com o disposto no nº 2 do art.º 1569 do C. Civil, a desnecessidade da servidão, prova essa que diga-se competia a eles;

4 - Os apelados não demonstraram que as necessidades do prédio do apelante haviam cessado,

5 - Também não provaram que é impossível por via da servidão constituída satisfazê-las, porque caso não tivessem plantado couves na serventia (cfr. sentença) a mesma continuaria a ser usada como sempre foi a pé e de carro pois teria as dimensões necessárias para o efeito;

6 - Nem tão pouco provaram que o apelante consegue satisfazer as necessidades que a serventia lhe permite por outro meio mais cómodo;

7 - O conjunto da prova produzida, nomeadamente a documental junta com o articulado inicial, bem como dos depoimentos das testemunhas do apelante e apelados, ora transcritos, impõem, contrariamente ao decidido, a procedência da acção e a necessária improcedência do pedido reconvencional;

8 - Estes depoimentos têm como consequência permitir concluir afirmativamente e com rigorosa segurança pela existência de uma servidão de passagem com dois metros e meio constituída por usucapião;

9 - Têm ainda como consequência permitir concluir que os apelados plantaram propositadamente na servidão para diminuir a sua largura e assim impedir a passagem de carros ou tractores;

10 - Permitem ainda concluir que os apelados não provaram a desnecessidade da servidão com dois metros e meio de largura.

Contra-alegaram os apelados, pugnando pela falta de fundamento do recurso, e requerendo também a ampliação do respectivo objecto, nos termos do art.º 684-A do CPC, para o caso de o mesmo proceder no tocante à questão da extinção da servidão, hipótese em que a acção deverá improceder com base no abuso do direito que seria representado pelo exercício da pretensa servidão.

As questões suscitadas podem esquematizar-se nos problemas de saber se:

A - A sentença é nula, nos termos do art.º 668, nº 1, alínea c), do CPC;

B - Em função da prova testemunhal e documental produzida, deveria dar-se como provada a constituição de uma servidão de passagem a favor do prédio do A. com a largura de dois metros e meio (e não de um metro como decretado); a ofensa dessa servidão pelos RR. com a ocupação a que procederam; e não provada a desnecessidade do A. dessa exacta servidão de passagem.

C - Em todo o caso, se os apelados não provaram, como lhes competia, a desnecessidade da servidão;

D - Face à ampliação do objecto do recurso requerida pelos apelados nos termos do art.º 684-A, nº 1, do CPC, na procedência de alguma das questões da apelação, se o apelante actua com abuso do direito.

Sobre a nulidade da sentença.

Começa o recorrente por arguir a nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão, clarificando que o faz por entender que a prova produzida apontaria para uma diferente decisão.

Sucede que - como está hoje doutrinária e jurisprudencialmente perfeitamente consolidado - o eventual erro de julgamento a que o apelante efectivamente se reporta não integra o aludido vício. Com efeito, este reduz-se à mera incongruência lógica entre a conclusão e as premissas do silogismo em que se traduz a sentença, que é coisa inteiramente diversa.

Inexiste, pois, a apontada nulidade.

Quanto ao primeiro aspecto da 2ª questão:

A existência de prova de ter sido adquirida a favor do prédio do A. uma servidão de passagem com 2,5 metros, com base em usucapião.    

Previamente à abordagem desta questão há que observar que o dispositivo da sentença deixou omissa - aparentemente por esquecimento - a definição concreta dos termos em que declarava a “servidão de passagem com a largura de um metro, do prédio do A. sobre o prédio dos Réus”. Isto porque, na sequência que à mesma declaração foi imprimida, o pronunciamento do tribunal se cingiu a decretar a extinção por desnecessidade dessa mesma servidão.

De todo o modo, tendo em vista as deficiências que acompanham a propositura da acção, e a seguir serão explicitadas, aquela omissão não surtirá qualquer efeito prático.

Sem embargo de uma congénita inviabilidade da acção - que nunca seria sanável pelo mecanismo depurador do art.º 508, al.ª b), nºs 2 e 3 do CPC - propõe-se o recorrente ab initio impugnar a decisão sobre a matéria de facto, trazendo à colação a prova que decorre de  documentos e de um conjunto de depoimentos gravados.

Não especifica, porém, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, como é exigido pelo art.º 685-B, nº 1, do CPC.

Assim, ao abrigo da parte final deste normativo (“sob pena de rejeição”), esta omissão acarreta a imediata rejeição de tal impugnação.      

 

Visa a acção a condenação dos Réus a reconhecer a existência de uma servidão de passagem de e carro que teria sido adquirida a favor do prédio do Autor com base em usucapião, encargo que oneraria certo prédio dos Réus.

Na verdade, não há que exagerar no rigor em que caem os Réus na resposta ao recurso, ao argumentarem que, por vir pedida a declaração da servidão em benefício do Autor, tal formulação do pedido acarretaria a improcedência da acção visto a servidão consistir num direito que se exerce sempre em proveito ou benefício de um determinado prédio, e não da pessoa do seu proprietário.

Sendo exacto que o A. alegou ser dono de certo prédio, há apenas que interpretar aquela referência como sendo destinada ao prédio que lhe pertence.

No entanto, vejamos quais são os requisitos de que a lei faz depender o reconhecimento da constituição de uma servidão e, nomeadamente, de uma servidão cuja fonte constitutiva seja a usucapião.

A servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia (art.º 1543 do CC).

São quatro as notas destacadas nesse conceito legal: a) a servidão é um encargo; b) o encargo recai sobre um prédio; c) aproveita exclusivamente a outro prédio; d) devendo os prédios pertencer a donos diferentes.    

Essencial é, desde logo, que os prédios pertençam a donos diferentes, em homenagem ao princípio de direito romano nemine res sua servit. Como salientam P. de Lima e A. Varela (C.C. Anotado, 1972, V. III, p. 567) "se o proprietário de um prédio (como tal inscrito na matriz ou descrito no registo predial) fizer através dele a passagem das pessoas, coisas ou animais utilizados na exploração de um outro prédio, que também seja pertença sua, só impropriamente se diria que ele exerce um direito de servidão sobre este último, visto que para legitimar tal passagem basta a invocação da sua plena potestas. Ele utiliza os prédios, nesse caso, não iure servitutis, mas iure domini".

Com efeito, a declaração de uma servidão depende, como se pode constatar da definição legal que se acha delineada nos art.ºs 1543 e 1544 do CC, da comprovação do pressuposto de um diferente domínio que justifica a sujeição de um deles a proporcionar um certa utilidade ao outro.

Não há servidão sem a verificação de uma utilidade susceptível de gozo por intermédio de um determinado prédio e a existência de um outro que, pertencente a um diferente dono, tipicamente a suporta.

De acordo com o disposto no art.º 1547. nº 1, do C. Civil, as servidões prediais podem constituir-se por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família.

 

A invocação e prova de que uma certa servidão, com uma funcionalidade precisa e concretamente verificável, onera um determinado prédio é, portanto, absolutamente crucial.

A individualização dessa funcionalidade é, indiscutivelmente, um elemento constitutivo do direito real de gozo que é a servidão predial, cuja prova sempre competirá a quem dela se quiser aproveitar (art.º 342, nº 1 do CC).

Tratando-se de uma servidão de passagem é, pois, imprescindível que quem dela se arroga - o dono do prédio dominante - alegue e convença o tribunal da sua exacta configuração física e funcional, isto é, do modo e local em que ela se constituiu e exerce, modo e local que, naturalmente, se hão-de posicionar dentro dos limites materiais do suosto prédio serviente.

Ora nada disto logrou o A. carrear para a vertente acção.

Atentando na factualidade que o A. descreve na petição inicial, pode desde logo constatar-se que ela não contém sequer a invocação de uma qualquer causa ou fonte de aquisição originária do direito de propriedade do A. sobre o pretenso prédio dominante: o prédio urbano, com logradouro, que hoje integra o artigo x.... da matriz respectiva (obviamente urbana) da freguesia de ...., concelho da Marinha Grande. Queda-se o A. - sem tão pouco aduzir que dispõe de qualquer registo de aquisição a seu favor, o que lhe conferiria a presunção de titularidade do direito nos termos do art.º 7º do Código do Reg. Predial - pela afirmação de que é dono do imóvel, por este ter sido comprado na vigência do seu dissolvido casamento e lhe ter sido transmitido por via de subsequente partilha. Esta alegação - da propriedade do prédio - foi impugnada pelos Réus. Não obstante, até veio a ser plasmada na matéria assente, como se estivesse admitida por acordo - cfr. a respectiva alínea C - tendo, assim, transitado para a matéria provada que foi elencada na sentença final (cfr. o nº 3 dos factos provados respectivos).

Todavia - como se sabe - a prova do direito de propriedade torna-se impraticável se, por um lado, não for aduzida uma forma originária de aquisição, e, por outro lado, o direito for negado pela contraparte, situação que teoricamente só seria ultrapassável pela chamada prova diabólica, ou seja, a de que o direito existiu na esfera jurídica de todos os anteriores transmitentes.

Como, porém, os recorridos não impugnam no recurso a consignação daquele facto pela sentença, não há agora que questioná-lo - art.º 684, nº 4, do CPC.

De toda a maneira, os vícios da petição inicial - que se traduzem necessariamente em vícios graves de estruturação substantiva da acção - não ficam por aqui.

Mais clamoroso ainda é aquele que respeita à falta de descrição do concreto local em que se situaria o suposto caminho de servidão, como caminho obviamente implantado no pretenso prédio serviente - o prédio rústico dos Réus, correspondente ao art.º 2053 da matriz, sito a sul do prédio do A.

Com efeito, refere-se o A. a uma servidão de passagem de pé e carro (agora tractor), constituída por usucapião, que corresponderia ao local onde teria existido - e, porventura, ainda não teria deixado de existir - um caminho público, com 1, 5 m de largura, adjacente à casa ou à parte edificada, continuado por um carreiro público, bordejando o logradouro, tendo este a largura de 1 m.

Não é minimamente aludida - ao menos - a extensão (ou comprimento) da suposta serventia.

Mais: fica mesmo na penumbra a definição do limite a norte do prédio dos RR., parecendo inelutável a indução de que esse limite já não abarcaria aquele caminho e carreiro públicos. Seria, aliás, paradoxal que o A. tivesse querido significar que aquele caminho e carreiro públicos também integravam o prédio dos Réus.

Em suma, não é possível saber-se - e, consequentemente, vir a demonstrar-se - se a passagem aludida pelo A., representada pelos aludidos caminho e carreiro públicos, alguma vez se situou no prédio dos RR., dito prédio serviente.       

Mas ainda que a existência da passagem a favor do prédio do A. se encontrasse implantada no prédio dos RR., jamais a demonstração do título aquisitivo - a usucapião - poderia proceder.

É que o conceito de usucapião repousa na posse (art.º 1287 do CC), e esta carece de ser caracterizada, além do mais, pela boa fé ou má fé, que consiste na ignorância de lesar direito alheio (art.º 1260, nº 1 do CC), pela pacificidade (art.º 1261 do m.d.) e pela publicidade (art.º 1262 do CC).

Afirmou o A. que a passagem por aquele caminho e carreiro (a e por carro de vacas) sempre foi permitida pacificamente e à vista de toda a gente aos antepossuidores do A. e ao A. (art.º 39 da p.i.), para logo acrescentar que essas serventias, ou seja o caminho público e o carreiro público sempre foram utilizadas por vários outros proprietários de prédios confinantes (art.º 40º da p.i.) e eram locais de passagem utilizados pelos moradores da localidade (art.º 41 da m. peça).    

Não está aqui alegado que o uso ou a reiterada utilização do acesso pelo A. e antepossuidores, como direito seu, como sua posse, tivesse ocorrido, enquanto tal, de boa ou , e com publicidade, ou seja, à vista de todos e, principalmente, que tivesse sido acompanhado da convicção de o A. e antepossuidores se comportarem como titulares do direito correspondente (o chamado “animus”, ou elemento psicológico). Boa ou que é requisito para o prazo da posse usucapível; publicidade cuja falta não permite a relevância da própria posse (cfr. os art.ºs 1260 a 1262 e 1294 a 1297 do CC); elemento subjectivo que distingue e autonomiza o verdadeiro possuidor. É que a não alegação do elemento volitivo da posse - que nada tem que ver com a sua presunção nos termos do art.º 1252, nº 2 do CC - não afasta a mera detenção referida no art.º 1253 do CC. De tal sorte que, sem essa invocação, nunca se pode ter por suficientemente excluído que o mencionado uso de uma passagem ou acesso, mesmo que público e duradouro, se tenha devido a mera tolerância dos donos do prédio em que foi tendo lugar, nem que os anteproprietários do A. e ele mesmo tenham actuado sem intenção de agir como beneficiários do direito.

O que acontece é que não só isso não foi invocado, como foi evidente e insuperavelmente negado.

Com efeito, se dúvidas restassem, bastaria compulsar o que vem referido nos art.ºs 54 e 55 da p.i. para se perceber que para o A. há uma total identificação entre a natureza pública da passagem e o que entende ser o direito a uma servidão de passagem a favor do seu prédio, adquirida por usucapião e onerando o prédio dos RR.

Persistindo o A. em confundir a pretensa servidão com o caminho e carreiro públicos, identificando aquela com estes, sem sequer indicar qualquer hiato ou sequência no tempo que os pudesse separar, é patente a inexorável contradição em que incorre.

O mais surpreendente é que a própria sentença, apesar de albergar no complexo fáctico apurado a qualificação da natureza pública do caminho e carreiro referidos - cfr. os factos provados em 13, 17, 18, 19 e 20 - não se coíbe de declarar a servidão de passagem a favor do prédio do A., assinalando como fundamentação o seguinte:

“De facto, quer o autor quer os antepossuidores do prédio, desde há mais de 100 anos, passaram a pé e com carro de vacas pelo caminho e carreiro públicos que existem a sul da sua propriedade [sublinhado nosso]. Procedendo à análise dos factos dados como provados terá que considerar-se que a posse de que beneficia o autor tem as características de boa fé, e de ser pública e pacífica (…)”.

A tudo isto ainda acresceria que, como requisito da constituição de servidões fundadas em usucapião, nenhum facto alegado (e provado) apontava para existência dos necessários sinais visíveis e permanentes que revelassem o seu exercício.

Na verdade, a sentença nem sequer se preocupou em averiguar este requisito à luz dos factos alegados. Limitou-se a dar como provada a matéria inequivocamente conclusiva e de direito ínsita no provado em 30: “A servidão de passagem utilizada pelo A. é real [ ? ], possuindo sinais visíveis, claros e permanentes do seu exercício.”

Em suma, uma notável sucessão de deficiências e contradições imporia que logo se julgasse a acção improcedente, de tão manifesta que esta improcedência se apresentava.

Neste contexto, não existindo fundamento para declarar qualquer servidão a favor do prédio do A., deixa de se justificar o tratamento de qualquer tema com ela conexionado.

Apesar de tudo, não tendo havido recurso por banda dos apelados, e beneficiando o recorrente da proibição da reformatio in pejus do veredicto recorrido - art.º 684, nº 4, do CPC - haverá que manter a sentença tal qual foi prolatada.

Uma vez que o modo como foi estruturada a acção impossibilita a declaração da servidão de passagem que foi pedida, encontra-se claramente prejudicada a apreciação das restantes questões recursivas: a relativa à extinção da suposta servidão, por desnecessidade do prédio dominante, e a susbsidiáriamente levantada pelos apelados (do abuso do direito de exercer a pretensa servidão).

Pelo exposto, julgam improcedente a apelação, e, apenas pela aplicação do princípio da proibição da “reformatio in pejus”, mantêm a sentença recorrida nos precisos termos em que se mostra proferida.  

Custas pelo apelante.

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins