Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1274/19.9T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
INEPTIDÃO
FACTOS
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
Data do Acordão: 11/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.186 Nº1 A), 590 Nº4 CPC
Sumário: Se os factos estão na livre disponibilidade das partes e estas estão de acordo (princípio dispositivo) quanto aos factos geradores do dano e atribuição da culpa a uma delas, é irrelevante que nestes aspetos os factos tenham sido alegados de modo genérico e impreciso. Divergindo as partes apenas na valoração dos danos, o tribunal deve aceitar este modo de colocar perante si a resolução do litígio, não ocorrendo falta de causa de pedir, nos termos da al. a), do n.º 2, do artigo 186.º do Código de Processo Civil, nem necessidade de ordenar o aperfeiçoamento da petição naquele segmento, nos termos do artigo 590.º, n.º 4, do mesmo Código.
Decisão Texto Integral:








I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto do despacho que a seguir se transcreve em parte, por se afigurar que o segmento aqui exarado é suficiente para enquadrar a problemática colocada pelo recurso:

«A Autora A (…), Lda. recorreu aos presentes tendo em vista a condenação da Ré S (…), SA no pagamento, a seu favor, do montante global de 7.406,73 €, alicerçando a sua pretensão na ocorrência de um acidente de viação em que foram intervenientes uma viatura pertença da Autora e uma outra segurada da Ré, pretendendo, assim, fazer actuar os mecanismos da responsabilidade civil automóvel. (…).

Sucede, porém e desde logo no que respeita à dinâmica do acidente, que a Autora se limita a uma constatação genérica da sua ocorrência, sem alegar um único facto concretizador do sucedido, como, por exemplo, a sua concreta localização geográfica, o sentido de marcha de cada uma das viaturas, a velocidade de circulação, a utilização ou não de sinalética, o local do embate (tendo em conta a dimensão do concelho de Pombal), etc., vindo, posteriormente, a concluir, nos termos do respectivo artigo 4º, que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do condutor do veículo seguro da Ré sem, no entanto, indicar um único facto de onde uma tal conclusão possa emergir (artigos 2º a 4º da Petição Inicial). Do mesmo modo e no que em concreto respeita aos danos sofridos, limita-se a Autora à alegação genérica da sua verificação bem como do valor orçamentado para a sua reparação, omitindo, uma vez mais, a descrição da factualidade indicadora e conducente a tais conclusões (artigos 6º e 17º da Petição Inicial).

Verifica-se, assim, uma total ausência de factos que preencham estes requisitos da responsabilidade civil extracontratual – circunstância determinante, até, da inviabilidade de se alcançar qualquer conclusão quanto à ilicitude, outro dos requisitos do dever de reparação – na medida em que os conceitos vagos e as genéricas afirmações feitas a propósito do sinistro e dos seus intervenientes, absolutamente carentes de efectiva tradução em factos concretos – os quais devem constar do articulado e não apenas dos documentos ao mesmo juntos, já que estes servem, apenas, para prova dos factos alegados – são insuficientes para o preenchimento da exigência legal de alegação dos factos essenciais que servem de fundamento à acção, redundando numa verdadeira e própria falta de objecto do processo.

É certo, por outro lado, que, tal como a Autora salienta, a Ré aparenta ter conhecimento do acidente de viação invocado e reconhece a sua obrigação de indemnizar (artigo 4.º da Contestação). Todavia, tal reconhecimento limita-se à ocorrência do acontecimento (o acidente), não correspondendo ao reconhecimento da verificação de quaisquer factos que o traduzam (atinentes ao evento ou à culpa, desde logo), visto que foi completamente postergada a exigência da respectiva alegação. E se assim é, não obstante aquele reconhecimento, como pode o Tribunal apreciar se a conduta do segurado da Ré preencheu todos os sobreditos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, com vista à apreciação do pedido formulado?

Deste modo, atenta a ausência absoluta da narração dos factos essenciais consubstanciadores da sua pretensão e integradores da causa de pedir, a Petição Inicial em apreço não alcança, sequer, o patamar da mera deficiência, pelo que, apesar do pela mesma pretendido, não se vislumbra como a Autora poderia, mesmo em resposta a um despacho de convite ao respectivo aperfeiçoamento – que, saliente-se, não lhe foi dirigido –, suprir uma tal omissão, já que este corresponderia a um convite para alegação da causa de pedir em falta, o que, como se aduziu já, se revela inadmissível face aos preceitos legais aplicáveis.

Nestes termos e por todo o exposto, o Tribunal decide julgar verificada a excepção dilatória de nulidade de todo o processo, por ineptidão da Petição Inicial, abstendo-se do conhecimento do mérito da causa e absolvendo a Ré Seguradoras Unidas, SA da instância, nos termos dos art.ºs 278.º, n.º 1, alínea b) e 577.º al. b) do CPC….»

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte da Autora, cujas conclusões são as seguintes:

«(…) C) Entendeu o Tribunal a quo que, no que respeita à dinâmica do acidente, a Autora se limitou “a uma constatação genérica da sua ocorrência, sem alegar um único facto concretizador do sucedido (…)”

D) Acrescenta que, no que concerne aos danos sofridos, a Autora se limitou “à alegação genérica da sua verificação, bem como do valor orçamentado para a sua reparação, omitindo, uma vez mais, a descrição da factualidade indicadora e conducente a tais conclusões.”

E) Ora, no que concerne à dinâmica do acidente, consta da petição inicial a data, hora e local onde ocorreu o sinistro – art. 2º da petição inicial.

F) Consta igualmente da petição inicial a identificação dos veículos intervenientes no acidente de viação em apreço, nomeadamente, marca, modelo e matrícula dos mesmos, bem como a indicação do proprietário e do condutor – cfr. artigo 3º da petição inicial.

G) Foi junta com a petição inicial a participação do acidente de viação - doc. 1.

H) No que concerne aos danos sofridos, resulta alegado na petição inicial que o veículo da Autora sofreu danos em toda a sua parte traseira e que ficou impossibilitado de circular, tendo sido transportado de reboque – cfr. artigo 6º e 7º da petição inicial.

I) Foi ainda alegado que a responsabilidade pela produção do sinistro cabe ao segurado da Ré (artigo 4º), tendo sido reproduzido o teor do documento emitido pela Ré através do qual esta declara que assume a responsabilidade pela regularização dos danos decorrentes do sinistro – cfr. artigo 15º da petição inicial e doc. n.º 3 junto com a mesma.

J) Através do douto despacho com a referência n.º 93331660, a MM. Juiz a quo convidou as partes a, querendo, pronunciar-se sobre a eventual verificação da exceção dilatória de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial.

K) A Autora respondeu ao convite concretizando os factos atinentes à dinâmica do acidente e aos danos causados.

L) Sucede, porém, que a MM. Juiz a quo entendeu que o despacho com a referência n.º 93331660, através do qual convidou as partes a pronunciar-se sobre a ineptidão da petição inicial não configura verdadeiramente um convite ao aperfeiçoamento, pelo que não atendeu ao alegado pela Autora em sede de pronúncia.

M) Ora, a Recorrente não pode conformar-se com tal entendimento.

N) Com efeito, entende a Recorrente, salvo o devido respeito que, caso não se entenda tratar-se de um convite ao aperfeiçoamento, tal despacho proferido foi inútil, considerando que não se convidam as partes a pronunciar-se sobre algo para o qual a sua pronúncia nada pode corrigir e que é de conhecimento oficioso.

O) Por outro lado, não se pode confundir petição inepta com petição irregular ou deficiente.

P) Com efeito, estamos perante a ineptidão da petição inicial quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, nos termos do disposto no art. 186º, n.º 2, a) do CPC.

Q) A causa de pedir são os concretos factos invocados de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer.

R) A ineptidão da causa de pedir implica uma ausência absoluta de alegação de factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o que não sucede no caso sub judice.

S) Na petição deficiente, o autor exprime corretamente o pedido e a causa de pedir, mas omite factos concretos necessários para o reconhecimento do seu direito.

T) Porquanto, a figura da ineptidão da petição inicial implica que o processo careça de um objeto inteligível, e contrapõe-se à mera insuficiência na concretização adequada de alguns aspetos dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida.

U) Ora, a Autora fundamentou o seu pedido na ocorrência de um acidente de viação causado pelo segurado da Ré, tendo alegado as circunstâncias de tempo e de lugar em que o mesmo ocorreu, e no pagamento de indemnização pelos prejuízos causados, tendo alegado tais danos.

V) Assim, entende a aqui Recorrente que não inexiste uma completa falta de alegação de factos suscetíveis de integrar a causa de pedir, mas sim uma deficiência ou incompletude dos factos essenciais que servem de fundamento à ação.

W) Não podemos olvidar que a Ré apresentou contestação, através da qual revela inequivocamente que interpretou corretamente a petição inicial, o que evidencia que a Autora exprimiu convenientemente o pedido e a causa de pedir.

X) Com efeito, resulta expressamente da douta Contestação apresentada pela Ré (artigo 4º) que esta “não discute as circunstâncias do acidente ocorrido no dia 02/01/2018, pelas 18:10 horas, na localidade de Pombal, que envolveu a viatura com a matrícula QN (...) (Doravante, QN), propriedade da A. e conduzida pelo seu proprietário e segurado da ora Ré, Orlando Augusto Esteves, porque aceitou indemnizar dentro dos critérios legais e jurisprudenciais em vigor.” (sublinhado nosso).

Y) Entende a Recorrente que a MM. Juiz deveria ter formulado convite ao aperfeiçoamento, uma vez que não estamos perante uma situação em que falte de todo a formulação da causa de pedir.

Z) Considerando-se a causa de pedir deficientemente formulada, incompleta, no que concerne à descrição dos factos constitutivos do direito a que se arroga a Autora, em que não falte nem seja ininteligível a causa de pedir, impendia sobre o Tribunal a quo o convite ao aperfeiçoamento previsto no artigo 590º, n.º 4 do CPC.

AA) A decisão recorrida, ao considerar inepta a petição inicial assenta num equívoco, o qual consiste na confusão entre falta de indicação da causa de pedir e deficiência na indicação de factos para a afirmação do direito da Autora.

BB) Foram violadas as normas legais previstas no artigo 540º, n.º 4, artigo 278º, n.º 1, alínea b) e artigo 577º, alínea b) do CPC.

NESTES TERMOS, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogada a douta sentença proferida que declara inepta a petição inicial, ordenando-se o prosseguimento dos autos, a fim de serem apreciados os pedidos formulados pela ora Recorrente, assim se fazendo a Costumada Justiça!

c) Não há contra-alegações.

II. Objeto do recurso.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o recurso coloca apenas a questão de saber se a petição é inepta por falta de causa de pedir – artigo 186, n.º 2, al. a) do CPC.

III. Fundamentação

a) Matéria a considerar

A matéria a considerar é a que resulta do relatório que antecede.

b) Apreciação da questão objeto do recurso

Vejamos se a petição é inepta por falta de causa de pedir.

1 - Nos termos do artigo 186.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil, a petição é inepta «Quando falte ou seja ininteligível a indicação (…) da causa de pedir».

Como referiram Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora, «A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido» - Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 245.

Referindo ainda os autores que «Não basta, para o preenchimento da exigência legal, a indicação vaga ou genérica dos factos em que o autor fundamenta a sua pretensão (dizendo, p. ex., na acção possessória de manutenção, que o réu tem praticado actos de perturbação do seu direito; na acção de divórcio, que o réu tem violado os seus deveres conjugais, sem mais precisão; na acção de reivindicação, não indicando todos os factos concretos que interessam à aquisição do domínio…» - Ob. cit., pág. 245, nota 2.

Ainda no que respeita ao facto, Miguel Teixeira de Sousa explicita que «Um facto é um elemento de uma cadeia temporal com todos os componentes que o demarcam dos demais. Porém, muito raramente os factos se acham isoladamente presentes na causa de pedir. O mais frequente é a formação desta por um composto fáctico que esgota um acontecimento ou deste é uma parcela» - Sobre a Teoria do Processo Declarativo. Coimbra Editora, 1980, pág. 159.

Ou, nas palavras do ora relator exaradas noutro local, «os factos são fragmentos da realidade existentes num certo tempo e local (porções de espaço-tempo), singulares e irrepetíveis, compostos por combinações de objetos que formam um estado de coisas com sentido, quer os objetos sejam diretamente percecionados pelos sentidos ou instrumentos técnicos, quer estejam localizados no foro interno das pessoas ou façam parte do mundo das ideias objetivas produzidas pela mente» - (Processo Civil – Matéria de Facto: conceitos, juízos (factuais simples e complexos, de valor, de direito). Alegação dos factos e prova). Estudos em Comemoração dos 100 Anos do Tribunal da Relação de Coimbra. Almedina, 2018, pág. 12.

Ou seja, não há dúvida que o autor deve narrar na petição os factos históricos que ocorreram num certo lugar e tempo e respetivos agentes se os houver.

E deve descrevê-los de modo a que, quer o juiz, quer a outra parte, possam criar uma imagem mental o mais possível comum, para deste modo todos terem mais ou menos a mesma representação dos factos e não ocorrerem equívocos.

Isso implica descer aos pormenores e utilizar uma linguagem despida de adjetivos e de outros juízos, quer de valor, quer factuais.

2 - Vejamos sucintamente o que consta da petição e da contestação.

A Recorrente alegou o seguinte na petição:

«No dia 2 de janeiro de 2018, pelas 18h10m, na localidade de Pombal, concelho e distrito de Leiria, ocorreu um acidente de viação» - artigo 2.º

Indicou depois no artigo 3.º a identidade dos veículos, condutores e proprietários, acrescentando «…conforme consta da participação do acidente de viação, que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - cfr. doc. n.º 1 que aqui se junta».

No artigo 4.º alegou: «O acidente deveu-se a culpa, única e exclusiva, do condutor do veículo com a matrícula LC (...) » e no artigo 5.º o contrato de seguro que permite demandar a Ré.

No artigo 6.º alegou «Como consequência direta e necessária do acidente, o veículo da A. sofreu graves e múltiplos danos materiais, concretamente, em toda a parte traseira, ficando impossibilitado de circular».

No artigo 9 refere que foi feita peritagem ao veículo por perito mandatado pela Ré, tendo indicado mais á frente que a reparação foi orçamentada em €6.181,68, consoante doc. n.º 2.

No artigo 10.º transcreveu uma «Proposta condicional de perda parcial» que a Ré seguradora lhe remeteu.

Referiu que a Ré se recusou a reparar o veículo e a pagar-lhe o necessário para adquirir um idêntico ao seu, o que implicava despender pelo menos em €3.750,00 – artigo 19.

Não tendo conseguido entender-se com a «…optou por proceder pelos seus próprios meios, à reparação do veículo sinistrado, uma vez que a mesma era tecnicamente viável e apta a deixar a viatura nas condições em que se encontrava antes do acidente» - artigo 23.º -, no que despendeu €6.181,68 – artigo 27 -, que exige da Ré, além de indemnização por privação do seu uso.

Por sua vez a Ré seguradora na contestação disse o seguinte:

«4º A ora Ré não discute as circunstâncias do acidente ocorrido no dia 02/01/2018, pelas 18:10 horas, na localidade de Pombal, que envolveu a viatura com a matrícula QN (...) [Doravante, QN], propriedade da A. e conduzida por V (…) e a viatura com a matrícula LC (...) conduzida pelo seu proprietário e segurado da ora Ré, O (…), porque aceitou indemnizar dentro dos critérios legais e jurisprudenciais em vigor.

Posto isto, C. Quanto aos danos: a) Viatura:

5º Face à participação efectuada, a ora Ré efectuou a peritagem à viatura QN na oficina escolhida pela A., cuja reparação foi estimada, sem desmontagem, em 6.181,68 €, que se junta e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, por isso foi considerado perda total, também designado por perda parcial (Doc. n.º 1)».

Depois, a Ré discute na contestação montantes relativos ao valor do veículo, valor da reparação e da paralisação.

3 - Verifica-se, por conseguinte, que não há qualquer discordância entre as partes quanto às circunstâncias factuais do acidente, culpa e responsabilidade.

De facto, a Ré declara no artigo 4.º da contestação que «não discute as circunstâncias do acidente (…) porque aceitou indemnizar dentro dos critérios legais e jurisprudenciais em vigor».

Há aqui um acordo entre as partes no sentido da Ré ser responsável por indemnizar a autora dos danos por esta sofridos com o acidente.

As divergências entre as partes também não se encontram na localização e extensão dos danos, havendo concordância quanto à peritagem feita aos danos verificados no veículo.

A discordância entre as partes reside na atribuição de um valor em dinheiro aos danos.

4- Nestas circunstâncias, não se pode concluir que a petição padece de ineptidão por ausência de causa de pedir.

E não padece de tal vício porque as partes, ao abrigo do princípio do dispositivo, ou seja, no uso da autonomia da vontade, dessa mesma autonomia da vontade que o Código Civil, no artigo 405.º, n.º 1, reconhece explicitamente no âmbito dos contratos, têm também poder para, agora no campo processual, configurarem os termos da lide como entenderem adequado de acordo com os seus interesses.

Efetivamente, com o referiu Manuel de Andrade, «As partes dispõem do processo, como da relação jurídica material (…) Donde a inércia, inactividade ou passividade do juiz, em contraste com a actividade das partes. Donde também que a sentença procure e declare a verdade formal (intra-processual) e não a verdade material (extra-processual) das partes» – Noções Elementares de Processo Civil. Coimbra Editora/1979, pág. 382.

Ou como disse Castro Mendes, «O processo regula a forma de chegar a uma decisão, não o seu conteúdo; e o processo civil é direito público, ao passo que o direito que regula o conteúdo da decisão é direito privado.

De novo nos encontramos em face do princípio segundo o qual às partes cabe dispor da matéria a decidir, mas não da forma de o fazer» – Do Conceito de Prova em Processo Civil. Lisboa: Edições Ática, 1961, pág. 605/606.

Por conseguinte, estando os factos na livre disponibilidade das partes e estas estão de acordo quanto aos factos geradores do dano e atribuição da culpa a uma delas, não se encontrando porém os factos adequadamente descritos nesta parte, divergindo elas apenas na valoração dos danos, o tribunal deve aceitar este modo de colocar perante si a resolução do litígio, não ocorrendo falta de causa de pedir, nem é caso para ordenar o aperfeiçoamento da petição nesse segmento, nos termos do artigo 590.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.

A falta de concretização apontada na decisão recorrida não implica, só por si, falta de causa de pedir, pois há outros factos que, embora genéricos, individualizam o acontecimento.

Em regra, como o ora relator já referiu, «As afirmações sobre factos, quer as exaradas nos articulados para efeitos de prova, quer as constantes dos factos declarados provados na sentença, devem ser veiculadas por palavras que revelem o máximo de densidade ou conteúdo empírico e isso acontecerá quando os conceitos utilizados se referem a factos e não são decomponíveis, com utilidade prática, em conceitos factuais mais simples» - Ob. cit., pág. 34.

Mas esta exigência pressupõe, claro está, que os factos careçam de produção de prova, que se trate de factos controvertidos.

Caso contrário, se os factos não carecerem de produção de prova (como ocorre com aqueles que não estão na livre disponibilidade das partes), como é, em parte, o caso dos autos, então as finalidades do processo, que residem na justa composição do litígio, bastam-se com uma alegação factual genérica nessa parte.

Improcede, por conseguinte, a invocada nulidade da petição por falta de causa de pedir.

Cumpre julgar o recurso procedente.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se o despacho recorrido para que os autos prossigam

Custas pela parte ou partes responsáveis a final.


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Coimbra, 17 de novembro de 2020

Alberto Ruço ( Relator)

Vítor Amaral

Luís Cravo