Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
403/10.2GBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: DESPACHO DE ARQUIVAMENTO
CASO JULGADO
LIMITES
Data do Acordão: 02/06/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 277º Nº 2 CPP
Sumário: 1.- O despacho de arquivamento de inquérito proferido nos termos e ao abrigo do art. 277, nº 2, do C. P. Penal, tem, como qualquer outro, o limite daquilo que efetivamente foi apreciado e decidido;
2.- Daí que se vierem a surgir “novos” elementos de prova, não apreciados no despacho de arquivamento, existindo um novo quadro probatório não apreciado na decisão de arquivamento, não existe caso julgado porque esse quadro não foi objeto de ponderação/fundamento;
3.- Assim a decisão de arquivamento perdura enquanto se mantiverem as circunstâncias que a determinaram, oferecendo semelhanças com o caso julgado rebus sic stantibus.
Decisão Texto Integral: I.
Após audiência pública de discussão e julgamento com exercício amplo do contraditório, foi proferida sentença, na qual o tribunal de 1ª instância decidiu:
- Condenar o arguido, A..., como autor material de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, sendo a suspensão acompanhada de um regime de prova que assenta num plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, durante o tempo de duração da suspensão.
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Inconformado com a sentença, dela recorre o arguido, formulando na motivação do recurso as seguintes CONCLUSÕES:
1) - 2) - 3) – Tratando-se do enunciado da decisão, já referida, não se reproduzem.
4) – O presente recurso abrange matéria de facto e de direito.
5) A douta sentença viola o princípio de caso julgado: os factos imputados ao arguido nos presente autos foram já objecto de inquérito no âmbito do processo nº 184/10.0PECBR que correu seus termos no DIAP (1ª secção) de Coimbra, tendo sido, no âmbito do mesmo, proferido despacho de arquivamento, nos termos do art. 277º, nº 2 do C.P.P., por não ter sido possível apurar que o arguido tenha praticado qualquer crime.
6) Tendo sido proferido despacho de arquivamento no âmbito dos referidos autos de inquérito, temos que essa decisão do Digno Magistrado do MP, de arquivamento por falta de indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes (art. 277º, nº 2 CPP), só pode ser sindicada através de reclamação hierárquica ou pela via de interposição de requerimento de abertura de instrução.
7) Não poderiam os mesmos factos, por isso, voltar a ser objecto de inquérito e sobre eles ser formulada acusação, sob pena de violação do principio ne bis in idem e ainda ofensa de caso julgado.
8) Foi violado o artigo 29º, n.º 5, da CRP, o qual deveria ser interpretado no sentido de que os mesmos factos imputados à mesma pessoa não podem ser objecto de processo penal mais do que uma vez.
9) As provas produzidas: Declarações do arguido …..merecerem resposta de não provados.
10) Quanto às declarações do arguido, reconhece o mesmo que se encontrava na posse de baterias, sem contudo ter praticado qualquer tipo de ilícito, desconhecendo o anterior proprietário das mesmas, visto que as mesmas foram encontradas em local abandonado, num pinhal perto de Tovim, em Coimbra.
11) Local que o mesmo se predispôs a identificar às autoridades e que as mesmas recusaram, limitando-se a “passar por lá”, conforme referido pelo agente da PSP … .
12) Já o legal representante, no seu depoimento, nada acrescenta de relevante que permita apurar a autoria do ilícito, ocorrido nas suas instalações, apenas fornecendo elementos válidos de tempo e lugar.
13) Mais informou que as instalações da … , Lda., não dispõem de sistema de videovigilância no exterior, dispondo unicamente quanto ao espaço interior, de simples alarme de intrusão ligado directamente à Securitas.
14) Pelo que não existem elementos que permitam apurar a autoria deste crime.
15) A testemunha … , (agente da PSP de Coimbra) referiu ter-se deslocado à residência do arguido onde apreendeu "umas 20 e tal, mais com as do carro dava umas 30 e tal baterias", número muito superior às baterias furtadas e participadas pelo representante legal da … o que vem confirmar a versão do arguido.
16) Pela análise destas declarações, é possível apurar tão somente que as mencionadas baterias se encontravam na posse do arguido e não, que o mesmo se tenha deslocado às instalações da … e que através do uso de material de corte se tenha introduzido nas instalações da mesma e subtraído o material em questão.
17) Quanto ao depoimento da testemunha … (agente da PSP), quando questionado acerca da busca efectuada na mata, perto de Tovim, começou por referir "não sei se era o local, uma mata é sempre um local …”, deixando subjacente nas suas palavras que obviamente não percorreram toda a mata, mas apenas parte desta, pelo que poderiam perfeitamente encontrar-se mais objectos idênticos aos encontrados, sem que disso dessem conta.
18) Quando questionado acerca do motivo que levou os agentes a deslocarem-se ao pinhal sem a presença do arguido, para sem quaisquer dúvidas, e sem mais demoras, localizar o local exacto onde o material foi encontrado, a testemunha limitou-se a balbuciar – “porque é assim…Porque depois entretanto começámos a …, isto é assim, temos vários tipos de serviço...", alterando imediatamente a sua postura, mostrando-se intranquilo, sem contudo avançar qualquer tipo de explicação lógica para o facto de violarem, de forma gravosa e escandalosa, o princípio básico da investigação e da descoberta da verdade material.
19) Por último, a testemunha … , pelas suas declarações, veio confirmar as declarações do arguido, afirmando estar presente quando encontraram as baterias no pinhal, acrescentando ainda, encontrar-se mais material no referido local.
20) Mais disse que, junto dos agentes da PSP, tanto esta testemunha como o arguido se ofereceram para identificar o local exacto onde descobriram tais baterias, sem que os mesmos os tenham contactado para esse efeito.
21) Com esta conduta, assumida pelos agentes, foram violados o princípio do contraditório e o princípio da investigação e da descoberta da verdade material.
22) Assim, tanto a prova testemunhal como a documental, expressa e analisada nas motivações, determinam que os factos 1, 3 a 5, 8 e 9 mereçam resposta de não provados.
23) Não se verificam elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito criminal pelo qual o arguido vem acusado.
24) Ainda que assim não se entenda, sempre em obediência ao princípio in dúbio pro reo, o arguido deveria ser absolvido do crime pelo qual vem acusado.
25) O tribunal recorrido violou princípios básicos do direito processual penal, dos quais, o princípio de caso julgado, o princípio ne bis in idem, o princípio in dubio pro reo.
26) Violou ainda os artigos 29º, nº 5 da CRP, 124º, n.º1, 277º, nº 2 e 340º, nºs 1 e 2 todos do CPP.
27) Se o Tribunal "a quo" tivesse aplicado criteriosamente os princípios de direito supra mencionados, os ensinamentos da experiência comum, e fazendo uma correcta e interpretação e aplicação dos mesmos, não teria condenado o arguido da autoria deste ilícito e teria a final, ainda que pela aplicação do principio in dúbio pró reo, absolvido o arguido deste crime.
28) Assim, pelas razões supra expostas, nomeadamente por não se verificarem os pressupostos processuais de que dependia a realização deste julgamento, atento o princípio de caso julgado e do princípio ne bis in idem, deverá o processo ser "arquivado".
29) Ainda que assim não se entenda, sempre deve o arguido ser absolvido do crime de que vem acusado, atenta a análise de provas que impunham decisão diversa, da insuficiência para a decisão da causa, do erro notório na apreciação da prova, da violação do princípio in dubio pro reo, do princípio da investigação e da descoberta da verdade material.
Termos em que deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, assim se fazendo inteira JUSTIÇA
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Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido rebatendo, ponto por ponto, a motivação do recurso para concluir pela sua total improcedência.
No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual argumenta no sentido de demonstrar a inexistência de violação do princípio do caso julgado, remetendo, no que à impugnação da matéria de faço diz respeito, para a resposta apresentada em 1ª instância.
Corridos vistos, cumpre decidir.
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II.
1. Tendo em vista as conclusões, que definem o objecto do recurso, este versa sobre: violação de caso julgado; omissão de diligência probatória, erro de apreciação da prova. Fazendo ainda o recorrente referência - com base nos mesmos fundamentos – a insuficiência para a decisão da causa e erro notório de apreciação da prova
As questões suscitadas serão analisadas pela ordem de precedência lógica indicada nos artigos 368º/369º do CPP, por remissão do art. 424º, n.º2 do mesmo diploma.

2. Caso julgado – violação do princípio ne bis in idem
O CPP vigente não define ou consagra, de forma explícita, a figura do caso julgado nem da litispendência, que assentam no mesmo pressuposto da repetição da mesma causa relativa aos mesmos sujeitos processuais.
Esta omissão de regulamentação terá sido um dos aspectos em o novo CPP, poderia ter aproveitado melhor a experiência acumulada na vigência do CPP de 1929. Diploma que, nos seus artigos 148º, 149º, 153º e 446º, estabelecia critérios definidores do âmbito deste instituto, para além de nos artigos 447º/448º delimitar os poderes de cognição do juiz de forma a que os efeitos do caso julgado se articulavam com esses poderes.
Com efeito Estabelecia, lapidarmente, C P Penal de 1929 no seu artigo 149º: "Quando por acórdão, sentença ou despacho com trânsito em julgado, se tenha decidido que um arguido não praticou certos factos, que por eles não é responsável ou que a respectiva acção penal se extinguiu, não poderá contra ele propor-se nova acção penal por infracção constituída, no todo ou em parte, por esses factos, ainda que se lhe atribua comparticipação de diversa natureza”.
Numa clareza que o legislador de 1987 não teve, manifestamente.
De qualquer forma, apesar da aludida omissão sistemática, no CPP vigente existem disposições dispersas sobre o caso julgado, em sede de admissibilidade de recursos e de execução das decisões penais – cfr. designadamente a conjugação dos artigos. 396º, n.º4; 399º; 400º; 411º; 427º; 432º; 438º; 447º, n.º1; 449º, n.º1; 467º; 487º: 492; 498º, n.º3.
Por outro lado, a proibição de repetição de processos/julgamento sobre os mesmos factos, relativamente ao mesmo agente, para além de elementares razões de economia processual, resulta desde logo do princípio “non bis in idem” consagrado no art. 29º, n.º 5 da Constituição da República ao estabelecer que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Lei Fundamental cujos preceitos, neste âmbito, “são directamente aplicáveis e vinculam entidades públicas e privadas” conforme prevê o ser artigo 18º.
Referindo-se a Constituição da República apenas a “julgamento”, poderia considerar-se que a questão do caso julgado se coloca apenas relativamente a decisões proferidas nessa fase e não também relativamente às proferidas em fases processuais anteriores. Porém impõem-se a sua aplicação não só à sentença, como a outras decisões finais.
Com efeito, vigorando o princípio da instrumentalidade do processo em relação ao direito substantivo (cfr. F. Dias Direito processual Penal, ed. de 1974, p. 33) e o princípio da adequação da lei adjectiva ao direito substantivo (art. 265º-A do CPC, aplicável ex vi do art. 4º do CPP) da proibição do duplo julgamento decorre a impossibilidade de duplo processo com o mesmo objecto. Até porque, além de por em causa elementares princípios de segurança jurídica, constituiria um acto inútil abrir um segundo processo precisamente com o mesmo objecto de um outro, anterior, quer esteja ainda a correr termos quer tenha sido já objecto de decisão final.
Assim o art. 29º, n.º 5 da CRP, ao proibir o mais - duplo julgamento – proíbe o menos, ou seja, a existência de um duplo processo, uma dupla acusação ou pronúncia do mesmo arguido, pelos mesmos factos.
A proibição de ne bis in idem tem uma intenção de garantia do arguido exactamente como proibição do «duplo processo» (sobre o mesmo facto) - cfr. DAMIÃO DA CUNHA, em O Caso Julgado Parcial, Publicações da UC, 2002, p. 485-486.
A proibição do duplo julgamento envolve a proibição do “duplo processo”, sendo o duplo julgamento constituído não só pela sentença como pelo despacho de arquivamento que se pronuncie sobre o objecto do processo, rebus sic stantibus.
Com efeito, nos termos do art. 673º do CPC, aplicável por remissão do art. 4º do CPP ou como definidor de um princípios geral de direito processual, “a sentença constitui caso julgado nos precisos termos em que julga”.
O caso julgado pressupõe assim que o tribunal tenha que se pronunciar de novo sobre uma questão idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir – art. 498º, n.º1 do CPC. Ou seja quando o tribunal tenha que apreciar de novo a mesma questão, relativa à mesma pessoa, com os mesmos fundamentos.
Visando evitar “que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior” – cf. art. 497º, n.º2 do CPC. O mesmo é dizer, evitar que o tribunal tenha que repetir o mesmo juízo ou possa, no limite, tomar posições distintas sobre a mesma coisa. Cumprindo ainda um elementar escopo de economia e segurança jurídicas e de defesa dos cidadãos.
Tendo em vista a garantia e salvaguarda dos direito do cidadão que não poderá ser submetido a novo processo e julgamento com os mesmos fundamentos - ne bis in idem material e processual ou da posição de arguido, como refere Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, ed. Da Universidade Católica do Porto, p. 141 e 483º.
Sempre no pressuposto da verificação do binómio da identidade da questão e dos seus fundamentos. Até porque só assim pode haver, em abstracto, contradição de julgados.
Com efeito a “repetição da causa” pressupõe, para além da identidade de sujeitos da relação jurídica, a identidade dos fundamentos em que assenta e a identidade do efeito pretendido ou da pretensão formulada com base naquele fundamento – cfr. art. 497º do CPC que se refere a “identidade de partes e de pedido”.
Qualificando o art. 498º do CPC nos seus n.ºs 3 e 4 o pedido como o “efeito jurídico” pretendido e a causa de pedir como o “facto jurídico de que procede pretensão deduzida” nas duas acções ou processos.
Assim, para que se verifique a existência de caso julgado impõe-se que o tribunal tenha apreciado efectivamente a mesma questão com os mesmos fundamentos, ou que os mesmos fundamentos sejam submetidos à sua apreciação tendo em vista o mesmo efeito jurídico.
Focando o caso dos autos, verifica-se que o recorrente confunde o inquérito preliminar iniciado na comarca de Pombal (que deu origem aos presentes autos), pelos factos ali denunciados e ali ocorridos, apreciados na sentença ora recorrida, com o inquérito preliminar que correu termos na comarca de Coimbra (184/10.0PECBR) – relativo a múltiplos bens de origem duvidosa, ali encontrados na posse do recorrente.
Sendo certo que o despacho de arquivamento foi proferido nos presentes autos (cfr. fls. 23) por não ter havido qualquer prova sobre os autores dos factos – apenas sobre o desaparecimento, objectivo, dos bens do estaleiro da queixosa, durante a noite.
Por outro lado, o inquérito que deu origem aos presentes autos foi reaberto – cfr. despacho de fls. 62 – “perante a existência de novos elementos” decorrentes da circunstância de “Do teor da certidão de fls. 28 e segs. resulta que os objectos subtraídos das instalações da empresa “ … , Lda.” sitas no IC2 (…) Pombal foram apreendidos em Coimbra a A...…”.
Tendo pois a reabertura do inquérito por fundamento/base o novo elemento de prova constituído pela certidão junta a fls. 28-61, relativa à apreensão efectuada em Coimbra de bens subtraídos em Pombal, nos termos de despacho exarado – deixando o inquérito de Coimbra de correr, por esse efeito, quanto ao crime denunciado em Pombal – cfr. despacho de fls.61, proferido no Inquérito de Coimbra (184/10.0PECBR) .
Ora, estando em causa o despacho de arquivamento (proferido nos presentes autos), a natureza do caso julgado exige, além da identidade de sujeito e da factualidade típica que lhe é imputada, a identidade de fundamentos (causa, suporte material) da decisão de arquivamento.
Não sofre dúvida que o despacho de arquivamento proferido pelo Mº Pº, embora não seja uma sentença, tem força de caso decidido - Ac. do TRE, de 2008.12.16, em CJ, 2008. V, 268. No entanto, atenta a natureza do caso julgado, tal apenas ocorre “nos estritos termos em que decide”, o mesmo é dizer, em relação aos concretos fundamentos/ pressupostos apreciados pelo despacho de arquivamento.
Ora, no caso em análise, o arquivamento decidido teve por motivação/fundamento o disposto no art. 277°, n° 2, do C. P. Penal. O mesmo é dizer, por, em face dos elementos disponíveis, não ter sido possível ao Ministério Público obter indícios da identidade do agente do crime.
É o que resulta do documento junto a fls. 211 e 212, onde, para além da citação do art. 277º, n.º2 do CPP, se afirma que "não foi possível apurar que A... tenha praticado qualquer crime".
O despacho de arquivamento de inquérito proferido nos termos e ao abrigo do art. 277, nº 2, do C. P. Penal, tem, como qualquer outro, o limite daquilo que efectivamente foi apreciado e decidido. Daí que tendo determinado (em face do quadro probatório carreado para os autos) o processo ficava a aguardar melhor prova, a decisão não podia ter previsto, nem ponderado “outras” provas que pudessem vir a aparecer – aliás ressalva essa possibilidade de “melhor prova”.
Podendo assim o processo ser reaberto a todo o tempo (tendo por limite o decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal), se, entretanto, surgissem novos elementos de prova não previstos nem apreciados na decisão de arquivamento.
Tal como dispõe, de forma explícita, o artigo 279º do CPPP.
Ou seja, o despacho de arquivamento constitui decisão definitiva mas apenas no que toca aos pressupostos efectivamente apreciados. De onde que se vierem a surgir “novos” elementos de prova, não apreciados no despacho de arquivamento, existindo um novo quadro probatório não apreciado na decisão de arquivamento, não existe caso julgado porque esse quadro não foi objecto de ponderação/fundamento. Porque a entidade decisora “não apreciou” aquele novo fundamento probatório.
Assim a decisão de arquivamento “perdura enquanto se mantiverem as circunstâncias que a determinaram, oferecendo semelhanças com o caso julgado rebus sic stantibus" - cf. Ac. do STJ, de 2006.09.28, recurso nº 2814/06 – 5ª Secção.
Ora, no caso, a reabertura do inquérito, embora relativa aos mesmos factos, teve por base/fundamento, o surgimento, superveniente, de novos elementos de prova – a apreensão, superveniente, do produto/objectos do crime na posse do arguido. Apreensão que ocorreu, aliás, numa comarca distante (Coimbra) quando o crime denunciado ocorrera na comarca de Pombal, onde foi determinado o arquivamento. Teve pois por base, tal como os termos subsequentes do processo, um meio de prova superveniente que não foi nem podia ter sido apreciado nem conhecido na decisão de arquivamento.
Sendo certo que não existe qualquer outro processo (muito menos condenação) pela prática dos factos dos presentes autos, a que se reporta o auto de notícia que lhe deu início (fls. 2 dos autos), situados na madrugada de 20 para 21 de Julho, na comarca de Pombal, em que figura como ofendida a empresa “...”, que apresentou a queixa.
Não existe, pois, violação do princípio ne bis in idem, consagrado no en. 29°, nº 5, da CRP nem do princípio do caso julgado que dele decorre.
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A apreciação das restantes questões suscitadas exige que se tenha presente a decisão da matéria de facto e sua fundamentação.
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3. A decisão da matéria de facto, com a motivação probatória que a suporta é a seguinte:
A) Matéria de facto provada
1. Na período compreendido entre as 19h30 do dia 20 de Julho de 2010 e as 07h40 do dia 21 de Julho de 2010, o arguido A... dirigiu-se às instalações da sociedade “... –, Ldª”, sitas no … , Pombal, no veículo automóvel de marca Volkwagen, modelo Passat, com a matrícula … ;
2. Nas traseiras das instalações da sociedade “...” situa-se um parque de viaturas totalmente vedado com rede assente num muro de cimento;
3. O arguido, servindo-se de tesoura/alicate de corte, cortou a rede que vedava o parque de viaturas e introduziu-se no interior do mesmo;
4. No interior do parque, o arguido dirigiu-se às máquinas industriais que ali estavam estacionadas e apoderou-se de:
- uma bateria-auto, de marca Tudor de 62 amperes;
- uma bateria-auto, de marca Recauto, de 110 amperes;
- duas baterias-auto, de linha branca, sendo uma de 80 amperes e outra de 110 amperes;
- uma bateria-auto, de marca Moura, de 110 amperes;
- uma bateria-auto, de marca Trojan, de 110 amperes;
- duas baterias-auto, de marca Spark, sendo uma de 55 amperes e outra de 110 amperes;
- uma bateria-auto, da marca AMS de 45 amperes;
- duas baterias-auto, de marca JP-Power de 140 amperes;
- três baterias-auto, de marca Cronos de 110 amperes;
- duas baterias-auto, de marca Alphine de 110 amperes;
- uma bateria-auto, de marca Tudor, de 120 amperes;
- uma bateria-auto, de marca Start de 120 amperes;
- uma bateria-auto, de marca Hagen de 140 amperes;
- uma bateria-auto de marca JBC de 120 amperes;
- duas chaves de rodas e dois rabos de força;
- uma bomba injectora de marca consistente;
5. De seguida transportou os objectos para o interior do seu veículo e abandonou o local;
6. Os objectos acima descritos valiam cerca de € 3.000,00 e pertenciam à ..., Ldª;
7. Os objectos foram recuperados pela PSP de Coimbra e entregues ao representante legal da sociedade ofendida;
8. O arguido agiu do modo descrito com intenção de se apropriar das baterias e ferramentas descritas, que sabia não lhe pertencerem sabendo que o fazia contra a vontade do seu legítimo proprietário;
9. O arguido agiu de forma consciente, livre e voluntário, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
10. O arguido está desempregado há um ano, não auferindo quaisquer rendimentos;
11. Vive com a sua companheira e com uma filha de dois anos de idade em casa dos seus pais, os quais providenciam pelo seu sustento;
12. A companheira do arguido não trabalha nem aufere quaisquer rendimentos;
13. De escolaridade o arguido tem o 9º ano do curso profissional;
14. O arguido foi condenado, por sentença de 17.11.2008, pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de 15 meses de prisão, suspensa por 15 meses, por factos praticados em 02.01.2007;
15. Por sentença de 09.02.2009, o arguido foi condenado pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, um crime de furto qualificado e um crime de furto simples, na pena única de 550 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, por factos praticados em 20.03.2007;
16. Por sentença de 12.02.2009, o arguido foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, por factos praticados em 31.05.2010;
17. Por sentença de 17.05.2010, o arguido foi condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, por factos praticados em 13.04.2008;
18. Por sentença de 25.06.2010, o arguido foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado na forma tentada, na pena de 12 meses de prisão suspensa por 12 meses sujeito a regime de prova mediante plano de reinserção social a elaborar pela DGRS, por factos praticados em 14.07.2008;
19. Por sentença de 12.01.2011 o arguido foi condenado pela prática de um crime de receptação, na pena de 4 meses de prisão substituída por 120 horas de trabalho, por factos praticados a 09.09.2007.

B) Matéria de facto não provada:
Nada mais se provou com relevância para a decisão da causa.

C) Motivação / análise crítica da prova

A convicção do tribunal no que respeita à factualidade provada formou-se com base no relatório de inspecção de fls. 8 e 9, nas fotografias de fls. 10 a 16, nos autos de apreensão de fls. 33, 34 e 43, no auto de reconhecimento de fls. 58, na certidão de registo comercial de fls. 66 a 77 e com base na análise crítica e ponderada da prova produzida em julgamento analisada à luz das regras da experiência, de acordo com o disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Apesar de o arguido ter negado a prática dos factos que lhe são imputados, apresentando uma outra versão dos factos, as suas declarações não se nos afiguraram credíveis, nem coerentes com os restantes testemunhos ouvidos em julgamento e muito menos compatíveis com as regras da experiência comum. De facto, o arguido referiu ao Tribunal que apesar de deter os objectos que foram apreendidos nos autos não os furtou das instalações da sociedade ..., pois que tais objectos foram encontrados no pinhal perto do Tovim, em Coimbra.
A testemunha … confirmou esta versão dos factos. Todavia, o seu testemunho não mereceu a nossa credibilidade tanto mais que o mesmo referiu que as ditas baterias estavam no pinhal à beira da estrada e eram visíveis da estrada. Tal situação, para além de não se nos afigurar verosímel, pois que não é normal segundo as regras da experiência comum, baterias como as que foram apreendidas serem abandonadas num pinhal que se situa perto de zonas habitacionais da cidade de Coimbra, não foi confirmada pelo agente da PSP que referiu que ainda se deslocou ao pinhal junto ao Tovim e nunca detectou a existência de baterias no dito pinhal.
Concluímos, pois, que a versão dos factos dada pelo arguido não colheu a nossa credibilidade.
Na verdade, foi considerado o depoimento espontâneo e credível da testemunha … , legal representante da empresa ..., Ldª, que referiu que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas nos factos provados detectou que alguém se tinha introduzido no parque e viaturas situado nas traseiras das instalações da referida sociedade, tendo para o efeito cortado a rede que vedava o dito parque e furtado baterias que ali se encontravam no valor de cerca de € 3.000,00. Mais explicou que foi chamado à PSP para reconhecer as ditas baterias tendo efectivamente reconhecido os objectos pertencentes à ..., sendo que o material furtado lhe foi entregue.
Por outro lado, o tribunal atendeu ao depoimento claro e objectivo da testemunha … , agente da PSP de Coimbra que, apesar de não ter assistido aos factos em causa nos autos, explicou ao Tribunal o modo como foram encontradas as baterias em causa nos autos. Com efeito, referiu que no dia 21 de Julho de 2010 estava de piquete às ocorrências quando recebe uma chamada telefónica que denunciava a existência de uma viatura estacionada na zona do Tovim, em Coimbra que estaria muito carregada. Foi ao local e detectou a presença do automóvel identificado nos factos provados a qual se encontrava muito carregada. Apreendeu as baterias que se encontravam no logradouro da habitação onde então residia o arguido e removeu e apreendeu a viatura na qual se encontravam mais de 20 baterias. Depois contactou com os vários OPC da zona de Coimbra tendo tido conhecimento do furto que ocorreu nas instalações da ..., em Pombal. Esclareceu, no entanto, que das baterias apreendidas só algumas é que eram propriedade da dita sociedade.
Para além disso, o tribunal considerou o depoimento isento e imparcial da testemunha … , agente da PSP em Coimbra que, pelo facto de ter instruído o processo em questão demonstrou ter conhecimento dos factos em causa nos autos. Efectivamente, referiu ao tribunal que o arguido dirigiu-se ao comando da PSP de Coimbra pelo facto de o seu veículo, o Volkswagen identificado nos factos provados ter sido apreendido pela PSP, confirmando que no interior do referido veículo se encontravam as baterias que tinham sido furtadas à ....
Da conjugação de todos estes elementos probatórios dúvidas não temos de que o arguido foi o autor do furto em causa nos autos.
Relativamente à situação económica e familiar do arguido consideraram-se as suas declarações.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido o tribunal teve em conta o teor do certificado de registo criminal juntos aos autos a fls.190 e seguintes.
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3. Impugnação da matéria de facto.
O recorrente impugna os pontos n.º 1, 3 a 5, 8 e 9 da matéria dada como provada pelo tribunal recorrido.
Invoca a violação do princípio da investigação e da descoberta da verdade material (síntese na conclusão n.º 18).
Fá-lo com o fundamento de que a PSP [quando encontrou a sua (do recorrente) viatura carregada com o objecto do crime - identificado no ponto 4 da matéria dada como provada], não ter ido “confirmar” ao aludido pinhal a existência de (outras, mais?) baterias.
Ora, trata-se de uma perspectiva falaciosa, porquanto:
- esquece a prova documental e fotográfica existente nos autos (invocada na sentença recorrida como fundamento da decisão e não posta em causa (relatório de inspecção de fls. 8 e 9: fotografias de fls. 10 a 16; autos de apreensão de fls. 33, 34 e 43; auto de reconhecimento de fls. 58, além do mais) que evidencia não só as circunstâncias em que foram subtraídas as baterias – dezasseis - na comarca de Pombal, bem como as circunstâncias em que foram encontradas, logo de manhã, em Coimbra, carregadas na viatura do recorrente (Volkswagen Passat) estacionada, carregada, junto á sua residência e da sua família;
- nunca o arguido e/ou o seu camarada identificaram com um mínimo de rigor o suposto local preciso do alegado pinhal de Coimbra onde poderia haver (tantas?! Logo por azar desaparecidas nessa mesma noite a dezenas de Km. de distância na comarca de Pombal!) baterias, por forma a que tão inusitada situação (pinhal depósito de baterias de qualidade abandonadas) pudesse ser confirmada. E trata-se de 16 (dezasseis) baterias, chave e bomba injectora (descritas no ponto 4, no valor total de € 3.000,00), além de muitos outros objectos de valor que, manifestamente, ninguém abandonaria;
- os agentes da PSP nos depoimentos invocados referiram que se deslocaram ao suposto pinhal onde abundariam baterias, nenhuma bateria ou coisa perecida ali viram;
- esquece que os objectos em causa foram subtraídos (em Redinha, Pombal) durante a noite/madrugada de 20 para 21 de Julho – cfr. auto de notícia de fls. 2;
- e que a viatura do recorrente – carregada com as baterias/objectos do crime dos autos e outros - foi descoberta pela PSP (mediante denúncia anónima da chegada do material durante a madrugada – cfr. auto de fls. 30-32 sob a epígrafe “informações complementares) nesse mesmo dia 21 de Julho, logo pelas 11 horas da manhã, na significativamente distante cidade de Coimbra (Tovim);.
- depois de identificada/apreendida a viatura e identificado o seu dono (o arguido) logo no momento em que a PSP se deslocou ao local, o arguido apenas compareceu na esquadra a identificar-se como dono da viatura no dia 25.07.2012 – cfr. aditamento ao auto de notícia a fls. 42;
- nunca o recorrente se queixou da falta ou subtracção da viatura e por outro esta encontrava-se junto à sua residência e foi prontamente identificada como sendo do recorrente pelos seus familiares, ali residentes.
Assim não só não foi preterida qualquer diligência relevante, como todo o material probatório foi amplamente discutido e contraditado pelo recorrente em audiência de discussão e julgamento, sem qualquer violação dos dispositivos invocados.
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Além das considerações, vagas, a que se fez referência acerca da não verificação do local onde supostamente o recorrente teria encontrado as baterias, invoca o recorrente excertos dos depoimentos prestados em audiência que, na sua perspectiva, devem levar a que se dê como “não provados” os aludidos factos.
Os tribunais da relação conhecem de facto e de direito – art. 428º do CPP.
A decisão da matéria de facto pode ser impugnada/sindicada com fundamento nos vícios do art. 410º, n.º2 do CPP ou com base na efectiva reapreciação dos meios de prova, nos termos previstos nos artigos 431ºdo CPP.
Os vícios do art. 410º têm como campo de aplicação privilegiado os casos em que o tribunal de recurso carece de competência para a reapreciação da matéria de facto (“nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito” diz o corpo do n.º2 do preceito). Designadamente os casos em que, na versão originária do CPP havia recurso “per saltum” da decisão do tribunal colectivo para o Supremo Tribunal, no regime da chamada “revista alargada”.
Com efeito, nos casos previstos no n.º2 do art. 410º, não existe reapreciação da prova produzida. Trata-se de vícios que emergem da própria estrutura da decisão recorrida ou do mero confronto da mesma com as regras da experiência comum, sem necessidade de análise ou reapreciação dos meios de prova produzidos. Constituindo “vícios ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confecção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão” – cfr. Ac. STJ de 07.12.2005, CJ-STJ, tomo III/2005, p. 224.Sendo, aliás, de conhecimento oficioso – cfr. Acórdão do STJ de para fixação de jurisprudência 19.10.1995, publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.
O vício de insuficiência verifica-se quando existe “uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito (…) havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher” – cfr. Simas Santos/Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 61. Insuficiência de apuramento de matéria relevante para a decisão que não de prova.
Por sua vez o erro notório na apreciação da prova constitui “um vício de raciocínio na apreciação das provas evidenciado pela simples leitura da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio” – cfr. Ac. STJ de 03.06.1998, processo n.º 272/98, citado por SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 68. Vício lógico, ostensivo, que não erro de apreciação dos meios de prova que exija a sua reapreciação.

Já no que toca ao recurso com base na reapreciação da prova, postula o art. 431º do CPP: Sem prejuízo do disposto no art. 410º, a decisão do tribunal e 1ªinstância sobre matéria de facto pode ser alterada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do art. 412º n.º3 do CPP.
No recurso com base na reapreciação dos meios de prova, ao contrário do que sucede com os vícios do art. 410º (aparentes, manifestos, de conhecimento oficioso) incide sobre o recorrente o ónus de identificar o erro apontado á decisão recorrida, como ainda o de o comprovar, especificando o conteúdo dos meios de prova tido por não valorado ou valorado erradamente pela decisão posta em crise, capaz de, numa apreciação conforme aos critérios legais em vigor, “impor” a revogação e/ou a substituição da decisão recorrida em conformidade com a pretensão formulada.
Com efeito, sobre a motivação do recurso com base na reapreciação da prova, dispõe o art. 412º do CPP (redacção introduzida pela Lei 48/2007 de 29.08):
(…)
3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em acta, nos termos do disposto no n.º2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
O recurso não se confunde, como sucede na praxis diária, com um novo ou segundo julgamento da mesma coisa. Constituindo antes o instrumento para obter a correcção de erros de procedimento ou de julgamento – concretos, identificados e comprovados, com base numa argumentação minimamente persuasiva, na motivação do recurso – cometidos na decisão recorrida.
Com efeito, parafraseando Cunha Rodrigues (Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, p. 387) “Como remédios jurídicos os recursos não podem ser utilizados com o único objectivo de melhor justiça. O recorrente tem que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida. A motivação dos recursos consiste exactamente na indicação daqueles vícios que se traduzem em erros in operando ou in judicando. A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação de direito material. Esta natureza dos recursos justifica, por outro lado, que se lhes aplique o princípio dispositivo e que se reconheça às partes um importante papel conformador”.
O recurso com base no disposto no art. 431º do CPP poderá ter como fundamento:
- a atribuição, pelo tribunal recorrido, aos meios de prova convocados como suporte da decisão, de conteúdo diverso daquele que efectivamente têm ou daquele que foi realmente produzido em audiência; ou
- a violação de critérios legais de valoração e apreciação da prova incorporada nos autos ou produzida oralmente em audiência): - pela valoração de meios de prova ilegais ou nulos; - pela violação de critérios de apreciação da prova vinculada (vg. prova documental e pericial) - pela violação de princípios gerais de apreciação da prova, designadamente o princípio da livre apreciação previsto no art. 127º do CPP e o princípio in dubio pro reo.
A reprodução da gravação dos depoimentos, no tribunal de recurso, como instrumento de garantia/comprovação da genuinidade dos mesmos e da eventual divergência entre o conteúdo material do depoimento prestado em audiência e o pressuposto na decisão recorrida, apenas tem sentido no caso de, segundo a motivação do recurso, a decisão recorrida ter atribuído, aos depoimentos prestados oralmente em audiência, conteúdo/afirmações relevantes, materialmente diversas daquelas que foram efectivamente produzido em audiência. Afinal quando o fundamento do recurso é o de que a testemunha ou o depoente afirmou em audiência “coisa” materialmente diversa daquela que é reportada/valorada como suporte da decisão recorrida e que, como tal, inquinou a decisão, impondo, por isso, a sua correcção pelo tribunal de recurso. Pois que, como instrumento de reprodução, apenas permite corrigir erros de “audição” do tribunal recorrido.
Competindo ao recorrente, em tal situação, especificar as “passagens” que confirmam a apontada desconformidade entre aquilo que foi dito em audiência e aquilo que foi valorado pelo tribunal recorrido como suporte da decisão impugnada.
A gravação (como instrumento de garantia da genuinidade dos depoimentos) nada adiantará quando o fundamento do recurso radica na violação de critérios de valoração – não reproduzidos pela gravação. Pois que, pela sua natureza, a gravação apenas reproduz e comprova o teor dos depoimentos gravados. Nada adiantando para efeito de apreciação da obediência aos critérios (legais) de ponderação/avaliação/valoração da prova - que resultam da lei e dos princípios gerais de direito processual penal.
Em termos de valoração material da prova, apesar da minuciosa regulamentação das provas efectuada pelo CPP, salvos os casos em que a lei define critérios legais de apreciação vinculada (vg. prova documental, prova pericial) vigora princípio geral de que a prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador - art. 127º do Código de Processo Penal.
Liberdade de convicção não pode nem deve significar o impressionista-emocional arbítrio ou a decisão irracional “puramente assente num incondicional subjectivismo alheio à fundamentação e a comunicação” – cfr. Castanheira Neves, citado por Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 1, 43.
Pelo contrário, o princípio da livre apreciação da prova, conjugado com o dever de fundamentação das decisões dos tribunais, exige uma apreciação motivada, crítica e racional, fundada nas regras da experiência mas também nas da lógica e da ciência. Devendo ser objectivada e motivada, únicas características que lhe permitem impor-se a terceiros.
A livre convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque para a sua formação concorrem a actividade cognitiva e ainda elementos racionalmente não explicáveis como a própria intuição.
Esta operação intelectual, não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente — aqui relevando, de forma especialíssima, os princípios da oralidade e da imediação — e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” - cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss..
A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: o juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca - derivados da(s) finalidade(s) do processo (Cristina Libano Monteiro, “Perigosidade de inimputáveis e «in dubio pro reo»”, Coimbra, 1997, pág. 13).
Sendo certo que a certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica – crf. Climent Durán, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch, p. 615.
O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto. Princípio atinente ao direito probatório, como tal relevante em termos da apreciação da questão de facto e não na superação de qualquer questão suscitada em matéria de direito – cfr. entre outros Cavaleiro Ferreira, Direito Penal Português, 1982, vol. 1, 111, Figueiredo Dias Direito Processual Penal, p. 215, Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-1968, p. 58. Constituindo um princípio geral de direito (processual penal) cuja violação conforma uma autêntica questão-de-direito – Cfr. Medina Seiça, Liber Discipulorum, p. 1420; Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1974, p. 217 e segs.), criticando o entendimento contrário do STJ.
A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável – neste sentido, Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (19966), p. 25.
De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido” – cfr. AC. STJ de 02.05.1996, CJ/STJ, tomo II/96, p. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspectivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.
Assim, mais do que uma limitação da livre convicção pela dúvida razoável, o critério da livre apreciação e o critério da dúvida razoável é o mesmo, têm o mesmo cerne - que há-de orientar “o fio da navalha” da decisão judicial sobre a prova do facto: a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio in dubio pro reo impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. Em ambos os casos, após a produção de toda a prova e da sua valoração em conformidade com os critérios de apreciação vinculada e, na falta deles, numa apreciação motivada, razoável, objectiva e racional.

No que toca à prova produzida oralmente em audiência assume ainda a maior relevância o princípio da oralidade e imediação, na plenitude do julgamento e do contraditório, a que só o tribunal de 1ª instância tem acesso. Princípio que enfatiza a constatação de que o tribunal de recurso não julga de novo a mesma coisa, mas apenas pode sindicar o julgamento efectuado, nos termos supra identificados. Sabendo-se a voz apenas representa uma perspectiva parcelar do processo global da comunicação entre pessoas.
Com efeito, “só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem uma plena audiência desses mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso” – Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, p. 233-234.
Pelo que os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas versões dos factos, só podem afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1ª instância, naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 347º, n.º2 do CPP – Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 126 e 127, que por sua vez cita o Prof. Figueiredo Dias – jurisprudência uniforme desta Relação, designadamente acórdãos 19.06.2002 e de 04.02.2004, nos recursos penais 1770/02 e 3960/03; 18.09.2002, recurso penal 1580/02; 13.02.2008, recurso 76/05.4PATNV.C1 2º Juízo Torres Novas. Como decidiu, entre outros, o Acórdão da Relação de Coimbra de 06.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, II, 44.... “quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face ás regras da experiência comum”.

Focando o caso dos autos, resulta do excurso supra efectuado acerca da omissão da visita ao suposto pinhal, suposto guardador de baterias, evidencia o equívoco em que repousa a construção do recorrente. Omitindo a prova material existente nos autos e as circunstâncias em que os bens subtraídos durante a noite, em Pombal, à queixosa, foram encontrados logo de manhã, carregados na carrinha do recorrente, estacionada em Coimbra (na sequência de denúncia anónima à PSP, de tamanha carga, de origem suspeita) em frente à residência do recorrente. Tudo confirmado, em audiência pelas testemunhas agentes da PSP e não infirmado pelos excertos dos depoimentos invocados pelo próprio recorrente.
De onde que a “desculpa” do arguido de as ter encontrado – durante a noite em que desapareceram em Pombal - ainda que sofismada pela testemunha amiga, não passa disso mesmo. Porque arredada, categoricamente pela “mudança” de lugar das baterias, durante a noite, e do seu poiso, matinal e em sossego, no carro do arguido, à porta de casa, em Coimbra, sem a mínima justificação plausível.
Não faz sentido invocar a violação do princípio in dubeo pro reo porquanto não existem duas perspectivas probatórias que impusessem, na dúvida séria e razoável, a opção pela favorável ao arguido. Mas apenas uma perspectiva com suporte probatório objectivo, sério e razoável que, como tal, impunha, face aos critérios de apreciação da prova supra definidos, a sua aceitação do tribunal recorrido.
Como não faz sentido invocar o vício de insuficiência de apuramento de matéria de facto relevante para a decisão da causa, porquanto, os fundamentos invocados pelo recorrente são relativos a insuficiência de prova e não de matéria de facto – que o recorrente não indica – e recobre os fundamentos do vício de erro notório de apreciação são exclusivamente os já apreciados e julgados improcedentes.
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III.
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso, com a consequente manutenção, integral, da decisão recorrida. ----
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) UC (recurso com impugnação da matéria de facto).