Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
390/14.8PCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
ERRO NOTÓRIO
Data do Acordão: 09/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J L CRIMINAL – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 412.º, N.º 3, E 410.º, N.º 2, AL. C), DO CPP
Sumário: I - Na impugnação da matéria de facto, ao recorrente não basta fazer uma apreciação geral de toda a prova, fazendo dela a sua interpretação e tirar a conclusão de que todos os factos impugnados devem ser dados como provados na forma por si apontada.

II - O recorrente quedou-se pela interpretação que o próprio faz da prova produzida, mas esta não é manifestamente a forma de alterar a matéria de facto, pela via da impugnação ampla, ou seja com base em erro de julgamento, em que na reapreciação da concreta prova se vai constatar se a testemunha disse ou não o que foi vertido na sentença, que não tem a ver com a valoração que o tribunal dá ao depoimento.

III - Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum.

IV - Não se verifica o vício do erro quando o tribunal, face às versões contraditórias, justifica devidamente a sua opção.

V - O vício do erro notório na apreciação da prova, contrariamente ao erro de julgamento, é intrínseco à sentença e deve resultar do próprio texto, isto é, da factualidade nela fixada e da respetiva motivação, da qual deve resultar a fundamentação da opção do julgador.

Decisão Texto Integral:








Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório
No processo supra identificado os assistentes A... e B... deduziram acusação contra:
C... , filho de (...) e de (...) , nascido em 5 de Outubro de 1953, na Freguesia (...) , Concelho do Porto, casado, operário fabril (actualmente reformado), residente no Rua (...) , Leiria.
D... , filha de (...) e de (...) , natural da Freguesia de (...) , Concelho do Porto, nascida em 9 de Abril de 1960, casada, cozinheira, residente na Rua (...) , Leiria,
     Imputando-lhes a prática, a cada um, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, pelos factos constantes das acusações de fls. 342 e ss e de fls. 346 e ss dos autos (acompanhadas pelo Ministério Público a fls. 352 e 353.
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Pelos assistentes foi ainda deduzido pedido de indemnização civil contra os arguidos, peticionando a condenação dos mesmos no pagamento de € 1.000,00 (quanto ao Assistente A... ) e da quantia de € 3.000,00 (quanto ao Assistente B... ), pelos danos não patrimoniais causados.
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Os arguidos apresentaram contestação, negando a prática dos factos.
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O tribunal decidiu:
a) Julgar totalmente improcedente, por não provada, a acusação pública deduzida e, em consequência, ABSOLVER os arguidos da prática dos crimes imputados.
b) Julgar totalmente improcedentes, por não provados, os pedidos de indemnização cível formulados pelos assistentes e, em consequência, ABSOLVER os arguidos/demandados dos mesmos.
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Recorreu o assistente B... o qual pugna pela condenação dos arguidos, formulando as seguintes conclusões:
«A – A D. Sentença ora recorrida entendeu que as declarações prestadas pelos arguidos, conjugadas com a prova testemunhal produzida, foram credíveis, desconsiderando, por completo, não só, os antecedentes criminais constantes no registo criminal de ambos os arguidos, mas também as contradições das declarações dos arguidos prestadas na audiência de julgamento relativamente ao que consta no Auto de notícia elaborado pelo agente da PSP, na queixa-crime que os arguidos apresentaram contra os assistentes, e a versão dos factos segundo o depoimento da testemunha E... (Agente da PSP).
B - Os arguidos, ouvidos apenas na fase final da audiência de Julgamento, negaram a prática daqueles crimes, com uma versão que não é, na modesta opinião do recorrente, de todo credível, desde logo, porque é contraditória com outras versões prestadas pelos mesmos.
C - Os arguidos nunca fizeram qualquer menção a ameaças que o assistente B... lhes tenha feito com uma faca, e que lhes ia por as tripas ao Sol. E, consequentemente, e ao contrário da versão dos arguidos, a polícia não foi chamada ao local por aqueles, muito menos derivado a essas ameaças. Conforme auto de notícia onde é mencionado que a razão pela qual a polícia foi chamada se deveu a crimes contra a honra, e não por ameaças.
D - Quanto á testemunha de defesa F... , no seu depoimento, foi incoerente, confuso, completamente condicionado, apenas sabendo aquilo que os pais (arguidos) lhe disseram (versão também ela nada credível).
E - No que respeita aos depoimentos dos assistentes e, especificamente, quanto às expressões que terão sido proferidas pelos arguidos, terão sido seguros, convictos e acertivos. A credibilidade do depoimento de ambos, e no que às injúrias diz respeito, é reforçada com o Auto de Noticia elaborado pelo Agente da PSP, o qual ocorreu ao local, após ter sido chamado, pelo motivo de crimes contra a honra. E vêm nesse mesmo auto descritas as expressões injuriosas, transmitidas pelos assistentes ao agente.
F - Segundo a experiência comum, não é de todo credível que, perante a ameaça de uma faca, uma ameaça contra a vida, chegada a policia ao local, os arguidos não façam qualquer tipo de referência sobre esses mesmos facto, e apenas se lembrem de falar em cheques e na divida que os donos do estabelecimento tinham para com o filho.
G - Como também não é credível que, perante uma ocorrência, os arguidos, não tendo cometido qualquer facto ilícito, não questionassem à polícia o motivo pelo qual estavam a ser identificados.
H – A D. Sentença ora recorrida ao dar como provados os factos em IV – A), n.º 1, apenas quanto “e tendo-lhes dito, entre outras coisas não concretamente apuradas, que (…), apresentando os cheques em Tribunal’” e como não provados os factos das Acusações Particulares, e referidas como não provadas, pela D. Sentença do tribunal “a quo”, constantes em IV – A) das presentes alegações, os quais aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos, padece de erro notório na apreciação da prova conforme disposto no art. 410., n.º 2 alinea c) do C.P.P.
I – Por quanto, na sempre modesta opinião do recorrente, duma análise criteriosa da prova produzida, mormente da parte dos depoimentos prestados pelos arguidos, assistentes, testemunhas de Defesa e Acusação, transcritos em B das presentes alegações e que aqui, de igual modo, se dão por integralmente reproduzidos,
J – deveria antes terem aqueles factos obtido respostas diametralmente opostas: ou seja, terem obtido resposta negativas (não provados) os factos em II n.º 1 quanto á parte sublinhada das presentes alegações, e resposta positiva (como provados) os factos constantes em IV – A) das presentes alegações ali melhor identificadas».
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Cumprido o art. 413.º, n.º 1, do CPP, o Ministério Público, sustenta, em síntese, que o recurso não merece provimento, uma vez que a matéria de facto não foi impugnada com base em erro de julgamento e a sentença não sofre de erro notório na apreciação da prova, pelo que se deve manter a sentença recorrida.
Os arguidos por sua vez alegam que o recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência.
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Nesta instância, os autos tiveram vista da Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, a qual, em síntese, emitiu douto parecer acompanhando de perto as contra-alegações do MP na 1.ª instância e conclui que seja negado provimento ao recurso.
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Notificados assistentes e os arguidos, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP, apenas estes responderam aderindo aos fundamentos do parecer.
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Foi cumprido o art. 418.º, do CPP, e uma vez colhidos os vistos legais, indo os autos à conferência, cumpre decidir.
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Vejamos pois a factualidade apurada pelo tribunal e respectiva motivação.
A) Factos provados:
«1. No dia 18 de Julho de 2014, os arguidos deslocaram-se ao estabelecimento de peixaria, sito na Rua (...) , em Leiria, pertença dos assistentes à data, tendo mantido conversação com os mesmos, a propósito de cheques emitidos pelos assistentes ao filho dos arguidos F... , não pagos pelo Banco sacado, e tendo-lhes dito, entre outras coisas não concretamente apuradas, que ‘haviam de pagar a bem ou a mal, apresentando os cheques em Tribunal’.
2. Os arguidos são casados entre si.
3. Vivem em casa arrendada, pela qual pagam € 300,00 mensais, a que acrescem as despesas de água, luz e gás da referida habitação.
4. Vivem juntos, com dois filhos a seu cargo (sendo um deles maior de idade).
5. 4. O arguido C... encontra-se reformado há cerca de 2 a 3 anos, auferindo € 430,00 mensais de pensão de reforma.
6. A arguida D... aufere, pela sua actividade de cozinheira, € 600,00 mensais.
7. Os arguidos recebem ainda abono da filha menor, no valor de cerca de € 70,00 mensais.
8. Como habilitações literárias, o arguido tem o 10º ano de escolaridade e a arguida o 4º ano de escolaridade.
9. Os arguidos registam os antecedentes criminais constantes de fls. 433 e 434 e fls. 437 a 447, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
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B) Factos não provados:
a) Que, nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, os arguidos dirigiram aos assistentes as expressões “cabrões”, “filhos da puta”, “venham cá para fora seus vigaristas”;
b) Que tais expressões foram proferidas pelos arguidos em voz alta e na presença de todos os clientes que se encontravam no supermercado onde se integra a peixaria que os assistentes exploravam;
c) Que os arguidos proferiram as expressões supra descritas com o propósito de colocar em causa a honra e consideração dos assistentes;
d) Que os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei;
e) Que com a conduta dos demandados, os assistentes ficaram extremamente envergonhados perante amigos, vizinhos, clientes e fornecedores;
f) Que os assistentes ficaram deprimidos, angustiados, entristecidos com os factos praticados pelos arguidos.
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C) Motivação:
A fixação dos factos provados e não provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e a livre convicção que o Tribunal granjeou obter sobre a mesma.
Nos termos do disposto no artigo 127º, do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente.
Refere o Professor Figueiredo Dias (in “Lições Coligidas de Direito Processual Penal”, edição de 1988/1989, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p.141) que «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo».
A audiência de julgamento decorreu com o registo, em suporte digital, dos depoimentos e esclarecimentos nela prestados.
Tal circunstância que deve, também nesta fase do processo, revestir-se de utilidade, dispensa o relato detalhado dos depoimentos produzidos.
Quanto à questão da culpabilidade:
A motivação do Tribunal no que respeita à matéria fáctica considerada provada e não provada assentou na conjugação das declarações prestadas pelos arguidos na audiência com a prova testemunhal produzida, analisadas à luz das regras da normalidade e experiência comum.
Alguns aspectos importa, contudo, realçar.
A prova dos factos imputados aos arguidos nos autos assenta nas declarações prestadas pelos assistentes sobre os mesmos, no depoimento do Agente da PSP que assomou ao local dos factos (corroborado pelo auto de ocorrência de fls. 6) e no depoimento da testemunha G... .
O depoimento do assistente A... afigurou-se ao Tribunal, no essencial, seguro, detalhado e credível, no que respeita à presença dos arguidos no estabelecimento, à hora de chegada dos mesmos e ao assunto que se destinavam a resolver.
Já no que respeita ao concreto teor da conversação mantida com os mesmos e à duração dos factos, o seu depoimento não mereceu confirmação pela demais prova produzida, não servindo por isso a prova dos factos imputados aos arguidos nos autos.
Na verdade, as declarações prestadas pelo assistente B... contrariam, desde logo, as declarações do assistente A... , no que respeita à sua presença no estabelecimento desde o início dos factos, assim como ao momento de chegada da testemunha G... ao local.
Referiu o assistente A... que estava no estabelecimento, juntamente com o seu sócio B... e a testemunha G... , quando os arguidos ali se dirigiram.
Referiu o assistente B... que foi contactado pelo assistente A... para se dirigir ao estabelecimento, onde já estavam os arguidos à sua espera.
Por outro lado, referiu o assistente A... que os arguidos continuaram a proferir expressões injuriosas, como ‘és um merdas’ e ‘tens de pagar’, na presença do Agente da PSP, que teve mesmo necessidade de pedir aos arguidos que se acalmassem, tendo o assistente A... pedido ao Agente em causa que tomasse nota de tais expressões proferidas na sua presença no relatório que elaborava – o que foi negado pelo Agente inquirido.
O assistente B... , por seu turno, referiu que os arguidos ‘cresceram para ele’ na presença da Polícia, o que também não mereceu confirmação por banda do Agente inquirido, responsável pela elaboração do auto de ocorrência constante de fls. 6 dos autos.
Mais referiu o assistente A... que, enquanto os factos ocorreram, entraram no estabelecimento duas clientes, tendo uma saído logo de seguida e a outra comprado peixe.
Referiu o assistente B... que, durante a discussão mantida com os arguidos, entraram no estabelecimento 4 ou 5 clientes.
Referiu ainda que só depois de chegar ao estabelecimento surgiu o seu pai, a testemunha G... , que lá passou por coincidência – sendo que, nesta parte, havia referido o assistente A... que a testemunha G... lá esteve desde o início e que tal testemunha era apenas um cliente do estabelecimento.
O Agente da PSP inquirido não confirmou a presença de qualquer testemunha no local dos factos, não tendo sequer mencionado tal situação no auto que elaborou, o que teria feito caso ali estivesse alguma testemunha, segundo referiu.
O depoimento prestado pelo referido Agente revelou-se ao Tribunal isento, detalhado, objectivo e totalmente descomprometido, ao contrário das declarações dos assistentes e do depoimento da testemunha G... .
Negou o Agente da PSP ter ouvido qualquer injúria ou ter existido qualquer aproximação entre as partes, enquanto esteve no local, pese embora as mesmas estivessem exaltadas e falassem alto. Caso tivesse presenciado alguma injúria ou ameaça, tê-la-ia feito constar do auto que elaborou, o que não sucedeu.
Na verdade, é mesmo a vontade de incriminação dos arguidos por banda dos assistentes, assim como da testemunha G... , somada às variadas contradições existentes nos seus depoimentos, que retiram credibilidade a tal prova, mesmo assumindo como possível que a conversa mantida entre todos possa não ter sido calma e tranquila e que tenha havido exaltação de parte a parte.
Por outro lado, e tendo o assistente A... referido que uma cliente presenciou parte dos factos ocorridos, que a voltou a ver depois dos factos e que lhe pediu desculpa pelo sucedido, não se compreende porque os assistentes não arrolaram como testemunha a referida cliente, a qual não teria qualquer ligação familiar ou de amizade com as partes, ao contrário da generalidade das testemunhas ouvidas.
De facto, não é difícil ao Tribunal imaginar que os factos possam ter acontecido conforme relatado nos autos, atenta a deslocação dos arguidos ao referido estabelecimento para cobrar uma dívida do seu filho.
Contudo, o Tribunal não julga com base em suposições e incertezas, mas sim com base em prova que seja segura, lógica e coerente, o que não sucedeu nas declarações prestadas pelos assistentes e no depoimento da testemunha G... .
O depoimento desta testemunha afigurou-se-nos hesitante, comprometido, inseguro e incongruente, sendo certo que a mesma revelou em audiência uma acentuada dificuldade de audição e referiu, em simultâneo, ter ouvido muito bem as expressões proferidas pelo arguido C... , na data em causa, encontrando-se estes a 4 a 5 metros de si, e pese embora desconheça o conteúdo da demais conversação mantida entre todos.
Referiu a testemunha G... que, quando chegou ao estabelecimento, já todos lá estavam a discutir – o que é contrariado pelas declarações do assistente A... , que diz que a testemunha G... lá esteve desde o início.
Disse ainda que, quando a Polícia chegou, já tudo havia sucedido, nada havendo acontecido em frente à Polícia – o que contraria as declarações dos assistentes, mas corrobora o depoimento do Agente da PSP inquirido.
Referiu ainda apenas ter ouvido o arguido C... proferir expressões injuriosas, e não a arguida, o que contraria as declarações prestadas pelos assistentes, que referem que ambos os injuriaram, embora o arguido com maior intensidade.
Referiu esta testemunha que se deslocou ao estabelecimento pelas 7h00m da manhã e que depois foi vender peixe ou tomar café, tendo regressado mais tarde
O assistente A... diz que esta testemunha esteve no estabelecimento desde que lá chegou, assim como o assistente B... chegou antes dos arguidos.
O assistente B... diz que a testemunha G... , seu pai, chegou ao estabelecimento depois de si.
Os arguidos dizem que a testemunha G... chegou ao local já depois de a Polícia lá estar, não havendo presenciado qualquer facto – o que é compatível com o facto de o seu nome não constar, como testemunha, do auto elaborado pelo Agente da PSP que assomou ao local.
Os arguidos negam ainda peremptoriamente a prática dos factos imputados, assumindo ter estado presentes no local, na data em causa, e alegando terem sido ameaçados pelos assistentes. A queixa apresentada pelos arguidos contra os assistentes mereceu despacho de arquivamento nos autos.
Do auto elaborado pelo Agente da PSP inquirido consta que este assomou ao local, onde os assistentes apresentaram queixa contra os arguidos por estes os haverem injuriado, tendo os arguidos referido ter-se ali deslocado para cobrar uma dívida.
Não consta do auto elaborado, nem foi referido em audiência pelo Agente autuante, que os arguidos proferiram expressões injuriosas contra os assistentes na presença do referido Agente policial – contrariamente ao referido na audiência pelo Assistente A... , ou que ‘cresceram’ para o Assistente B... , na presença da Polícia, conforme referido pelo mesmo.
Do exposto resulta que:
- as declarações prestadas pelos assistentes são contraditórias entre si, no que respeita ao momento de chegada ao local e à presença da testemunha G... ,
- as declarações prestadas pelos assistentes, no que respeita aos factos ocorridos na presença da Polícia, não resultam confirmadas por qualquer elemento probatório, devendo ter sido confirmadas pelo depoimento do Agente inquirido, que revelou memória dos factos, ou pelo auto de notícia elaborado pelo mesmo;
- os assistentes são parte interessada nos autos;
- o depoimento da testemunha G... não foi merecedor de credibilidade, crendo-se que a referido testemunha não presenciou a conversação mantida entre os arguidos e os assistentes;
- os arguidos negam a prática dos factos;
- e inexiste qualquer outro elemento probatório que permita concluir que os factos ocorreram conforme consta das acusações deduzidas (com excepção das queixas apresentadas).
Em face do exposto, e ante a insuficiência e incongruência da prova produzida, não resta senão julgar não provado que os arguidos dirigiram aos assistentes as expressões injuriosas constantes das acusações particulares deduzidas.
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Quanto à situação pessoal dos arguidos:
No que respeita à situação pessoal dos arguidos, a convicção do Tribunal assentou na conjugação das declarações prestadas pelos mesmos, de forma detalhada e descomprometida, na audiência, com o teor dos certificados de registo criminal dos arguidos juntos aos autos»
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II- O Direito
As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questões a decidir:
a) Impugnação da matéria constante do ponto 1, dado como provado e dos pontos a) a d), dados como não provados.
b) Erro notório na apreciação da prova.

Apreciando:
O recorrente aqui assistente B... impugna a matéria constante do ponto 1, dado como provado e dos pontos a) a d), dados como não provados, tendo em vista a alteração daquela matéria de facto, por via da impugnação ampla, por haver erro de julgamento, cuja impugnação deve ser nos termos do art. 412.º, n.º 3, 4 e 6, do CPP.
Por outro lado, impugna a mesma matéria de facto por via da revista alargada, isto é, por existência de vício de erro na apreciação da prova, cuja impugnação deve ser nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP.
Fundamentalmente o recorrente limita-se a impugnar a matéria de facto de forma genérica, de forma que discordando da matéria de facto que o tribunal a quo deu como assente e como não provada, prende que seja alterada segundo a sua versão dos factos.
Em conclusão o recorrente pretende um segundo julgamento, sendo que a impugnação da matéria de facto, por erro de julgamento tem por fim corrigir cirurgicamente os pontos mal julgados, devendo para isso, apontar os factos concretos e em que passagem do depoimento a testemunha disse uma coisa e tribunal deu como provada outra.
Nos termos do art. 412.º, n.º 1, do CPP a motivação deve especificar os fundamentos e as razões em que alicerça o recurso, devendo terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, devendo ainda obedecer às prescrições dos n.ºs 2 a 5.
Em bom rigor, quando seja impugnada a matéria de facto, com base em erro de julgamento, o art. 412.º, n.º 3, do CPP impõe o seguinte:
«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devam ser renovadas».
Formal e substancialmente o recorrente não cumpre minimamente as exigências legais de impugnação da matéria de facto, com base em erro de julgamento.
O recorrente limita-se a indicar os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e que em seu entender se mostram mal julgados, por discordar da valoração dada á prova pelo tribunal a quo.
O assistente aqui recorrente mais não fez, que fazer uma apreciação geral de toda a prova, fazendo dela a sua interpretação e tirar a conclusão de que todos os factos impugnados devem ser dados como provados na forma por si apontada, e consequentemente serem os arguidos condenados pelo crime que lhes é imputado na acusação.
Obviamente que o tribunal deve apreciar de forma crítica todos os elementos probatórios e interpretá-los, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, onde as regras da experiência são trave mestra.
Nos termos do art. 412.º, n.º 4, do CPP, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações da al. b), devem ser feitas por referência ao consignado em acta, nos termos do disposto no n.º 2, do art. 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Ora, no caso dos autos, o recorrente não impugnou a matéria de facto, com base em erro de julgamento, porque não indicou as concretas passagens em que funda a impugnação, mas remetendo para a generalidade dos depoimentos, limitando-se a indicar a sua versão, pondo em causa a credibilidade da versão dos arguidos, acolhida pelo tribunal a quo, em detrimento da sua versão.
Assim, no caso concreto dos autos, pretendendo-se a reapreciação das provas indicadas, produzidas oralmente, de acordo com o disposto no art. 412.º, n.º 4, do CPP, quando estas provas tenham sido gravadas, as especificações previstas na al. b), do n.º 3, deviam fazer-se por referência ao consignado na acta, nos termos do art. 364.º, n.º 2, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação, relativamente a cada facto concreto que pretende impugnar.  
Então que fez o recorrente?
Transcreve os depoimentos produzidos e oferece a seguinte prova:
- Quanto ao arguido C... , limita-se a indicar o ficheiro e transcreve o depoimento (fls. 552 a 556).
- Quanto à arguida D... , limita-se a indicar o ficheiro e transcreve o depoimento (fls. 556 a 559).
 - Quanto à testemunha E... , agente da PSP, limita-se a indicar o ficheiro e transcreve o depoimento (fls. 559 a 564) e refere que este transmitiu o que lhe disseram os assistentes, sendo que no auto fez constar as expressões que os assistentes dizer terem proferido os arguidos (fls. 6).
- Quanto à testemunha F... , filho dos arguidos, limita-se a indicar o ficheiro e transcreve o depoimento (fls. 564 565). O recorrente põe em causa a sua credibilidade (fls. 566 a 574).
- Quanto ao assistente A... , limita-se a indicar o ficheiro e transcreve o depoimento (fls. 574 a 579).
- Quanto ao assistente B... , limita-se a indicar o ficheiro e transcreve o depoimento (fls. 579 e580).
No fundo o recorrente escalpeliza toda a prova que transcreve e dela tirar a sua própria versão diferente da colhida pelo tribunal a quo.
Ora, não é esta a forma de atacar a matéria de facto, com base em erro de julgamento, pois não obedece ao prescrito no art. 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP, de modo a podermos concluir que existem provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida e em conformidade com a pretensão do recorrente.
Pelo contrário, o recorrente quedou-se pela interpretação que o próprio faz da prova produzida.
E esta não é manifestamente a forma de alterar a matéria de facto, pela via da impugnação ampla, ou seja com base em erro de julgamento, em que na reapreciação da concreta prova se vai constatar se a testemunha disse ou não o que foi vertido na sentença, que não tem a ver com a valoração que o tribunal dá ao depoimento.
Como já referimos, a impugnação da matéria de facto não se pode tornar numa repetição do julgamento da 1.ª instância, sob pena dos tribunais superiores deixarem de cumprir o que legalmente lhe está atribuído, que é julgar em sede de recurso, isto é, limitar-se a corrigir pontual e cirurgicamente o que estiver errado.
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Vejamos agora se a sentença sofre do vício de erro notório na apreciação da prova.
Sobre a apreciação da prova o recorrente alega que o tribunal a quo entendeu que as declarações prestadas pelos arguidos, conjugadas com a prova testemunhal produzida, foram credíveis, desconsiderando, por completo, não só, os antecedentes criminais constantes no registo criminal de ambos os arguidos, mas também as contradições das declarações dos arguidos prestadas na audiência de julgamento relativamente ao que consta no Auto de notícia elaborado pelo agente da PSP, na queixa-crime que os arguidos apresentaram contra os assistentes, e a versão dos factos segundo o depoimento do agente da PSP E... .
Em sua opinião a versão dos arguidos não é credível e é contraditória com outras versões prestadas pelos mesmos e o depoimento da testemunha de defesa F... , foi incoerente, confuso, completamente condicionado, apenas sabendo o que os arguidos, seus pais lhe disseram.
Depois conclui o recorrente que o tribunal a quo deu crédito à versão dos arguidos, em detrimento dos depoimentos dos assistentes, que considera seguros, convictos e assertivos, cujas expressões injuriosas, referidas em julgamento coincidem com as do auto de notícia transmitidas pelos assistentes ao agente.
Ora, o que se passou é que os assistentes confirmam os factos e os arguidos negam.
A agente da PSP que lavrou o auto de notícia apenas fez constar os factos que lhe narraram os participantes, não fazendo qualquer prova em julgamento.
Por outro lado, é estranho que o recorrente faça apelo ao CRC dos arguidos para daí tirar conclusões quanto à prática dos factos.
É manifesta a confusão entre impugnação da matéria de facto por erro de julgamento e por existência de erro notório na apreciação da prova.
A apreciação da prova pelo julgador é livre, embora a discricionariedade na apreciação da prova tenha o limite das regras da experiência comum, utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e de controlo, conforme ensina o Professor Figueiredo Dias, (in Lições Coligidas de Direito Processual Penal, edição de 1988/1989, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 141.
Neste mesmo sentido o TC no Ac. de 19/11/96, in BMJ, n.º 461, pág. 93.
Sendo o tribunal soberano na apreciação da prova, o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, só pode servir de fundamento à motivação do recurso, desde que resulte do texto do acórdão recorrido, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum.
A sentença recorrida está bem fundamentada neste segmento específico, na opção que fez em não valorar o depoimento dos ofendidos, não evidenciando que tenha sido violado o artigo 127.º, do CPP, segundo o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
Quanto à questão da culpabilidade, o tribunal a quo, na motivação da matéria de facto assentou na conjugação das declarações prestadas pelos arguidos em audiência com a prova testemunhal, cuja apreciação e valoração se mostra luz das regras da normalidade e experiência comum.
O tribunal não põe em caus o depoimento do assistente A... , quanto à presença dos arguidos no estabelecimento, à hora de chegada dos mesmos e ao assunto que se destinavam a resolver.
Porém, quanto ao teor da conversa mantida com os mesmos não mereceu confirmação pela demais prova produzida, pelo que não serviu por si só de prova dos factos imputados aos arguidos, já que as declarações do assistente B... contrariam, as declarações do assistente A... , no que respeita à sua presença no estabelecimento desde o início dos factos, assim como ao momento de chegada da testemunha G... ao local.
Por sua vez E... , gente da PSP, diz não ter ouvido qualquer expressão injuriosa, enquanto esteve no local e não confirmou a presença de qualquer testemunha no local dos factos, não tendo sequer mencionado tal situação no auto que elaborou, o que teria feito caso ali estivesse alguma testemunha, segundo referiu.
O tribunal, face às versões contraditórias, justifica devidamente a sua opção, conforme sinteticamente se depreende da seguinte passagem da motivação:
«Contudo, o Tribunal não julga com base em suposições e incertezas, mas sim com base em prova que seja segura, lógica e coerente, o que não sucedeu nas declarações prestadas pelos assistentes e no depoimento da testemunha G... .
O depoimento desta testemunha afigurou-se-nos hesitante, comprometido, inseguro e incongruente, sendo certo que a mesma revelou em audiência uma acentuada dificuldade de audição e referiu, em simultâneo, ter ouvido muito bem as expressões proferidas pelo arguido C... , na data em causa, encontrando-se estes a 4 a 5 metros de si, e pese embora desconheça o conteúdo da demais conversação mantida entre todos».
O tribunal na convicção fundamentou devidamente a razão por que não valorou a versão dos ofendidos, designadamente pela discrepância entre os seus depoimentos em aspectos essenciais e por não dar credibilidade ao depoimento da testemunha G... que considerou “hesitante”, “comprometido”, “inseguro” e “incongruente”.
O vício do erro notório na apreciação da prova, contrariamente ao erro de julgamento, é intrínseco á sentença e deve resultar do próprio texto, isto é, da factualidade nela fixada e da respectiva motivação, da qual deve resultar a fundamentação da opção do julgador. 
Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é ilógica e é inadmissível face às regras da experiência e ao senso comum.
A sentença recorrida está bem fundamentado quanto à apreciação crítica que fez da prova, pondo em causa a credibilidade do depoimentos dos ofendidos e da prova testemunhal que sustentava a sua versão, o que fez, apreciando a prova que soube conjugar de forma lógica e coerente, de acordo com observância das regras da experiência e da livre convicção, nos termos do art. 127. ° do CPP.
Não lograram pois os ofendidos fazer prova dos factos imputados aos arguidos, sendo que, tendo o processo penal estrutura acusatória, cabia-lhe fazer prova do crime imputados aos arguidos, nos termos do art. 42.º, n.º 5, da CRP, sob pena de violação do princípio in dubio pro reo, consagrado também constitucionalmente no n.º 2, do mesmo artigo. 
Nesta conformidade, concluímos não se verificar o vício de erro notório da apreciação da prova e consequentemente se dá como definitivamente assente a matéria de facto nos termos da sentença recorrida, mantendo-se assim a absolvição dos arguidos.
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III- Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4.ª Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, negar provimento ao recurso interposto pelo assistente B... , confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
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Custas pelo assistente recorrente, nos termos do art. 515.º, n.º 1, al. b), do CPP, cuja taxa de justiça se fixa em 3 UCs.
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NB: O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP. 
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Coimbra, 13 de Setembro de 2017
(Inácio Monteiro - Relator)
(Alice Santos - Adjunta)