Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5403/18.1T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: RENÚNCIA AO MANDATO
EFEITOS
PRAZO DE 20 DIAS
CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – J. L. CÍVEL DE VISEU – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 47º, Nº 3 DO CPC .
Sumário: a) O art. 47º, nº 3 CPC deve ser interpretado no sentido de que, nas ações em que é obrigatório o patrocínio, havendo o mandatário renunciado ao mandato sem que a parte, notificada pessoalmente, tenha constituído entretanto advogado, a renúncia ao mandato só produz efeitos após o decurso do prazo de vinte dias legalmente estabelecido para o mandante constituir novo mandatário, significando que durante esse período se mantém o mandato inicial.

b) O prazo de 20 dias, legalmente fixado, não suspende ou interrompe o prazo processual em curso.

c) A norma do art. 47º, nº 3 do CPC, assim interpretada, não é materialmente inconstitucional, por violação do art. 20º da CRP.

Decisão Texto Integral:






Acordam na Relação de Coimbra

1.- O Réu R... interpôs recurso de apelação da sentença condenatória de 29/11/2019.

          A Autora I... contra-alegou e suscitou a questão prévia da inadmissibilidade do recurso por ser extemporâneo, com a alegação de que havendo terminado o prazo em 31/1/2020, o Réu só apresentou recurso em 24/2/2020.

          O Réu/Apelante, notificado das contra-alegações, não respondeu à questão prévia.

2.- Por despacho do relator de 25/11/2020 decidiu-se julgar procedente a questão prévia da extemporaneidade do recurso e não se conhecer do mesmo.

          3.- O Réu R..., notificado do despacho, interpôs (15/12/2020) recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do art.70º, nº 1, b) da Lei 28/82, de 15/11(LOTC), alegando que a norma do art. 47º, nº 3 do CPC na interpretação feita no despacho, no sentido de que decorrido o prazo de 20 dias se mantém o mandato inicial é materialmente inconstitucional por violação do art. 20º, nºs 1, 2 e 4 da CRP.

          Alegou ainda haver suscitado a inconstitucionalidade no requerimento de 9/3/2020.

          4.- Por despacho de 20/1/2021 decidiu-se:

          Não admitir o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.

          Convolar o requerimento em reclamação para a conferência, nos termos do art. 652º, nº 3 CPC.

                    5. Apreciação em conferência:

5.1.- O despacho de não conhecimento do recurso, por preclusão do direito de recorrer, contém a seguinte fundamentação:

“2.Cumpre decidir:

          Consta do processo que:

          A sentença foi proferida em 29/11/2019

          A sentença foi notificada em 4/12/2019

          O senhor advogado, mandatário do Réu, renunciou ao mandato.

          O Réu foi pessoalmente notificado da renúncia em 21/1/2020.

          O recurso, com impugnação de facto e reapreciação da prova gravada, foi interposto em 24/2/2020.

          O recurso foi admitido por despacho de 18/9/2020.

Dispõe o art. 638º, nº 1 CPC que o prazo para a interposição de recurso é de 30 dias, contados da notificação da decisão. Estabelece o nº 7 do mesmo preceito legal um acréscimo de 10 dias se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada.

O prazo judicial ou processual é um período de tempo fixado para se produzir um determinado efeito processual, sendo estabelecido por lei ou fixado por despacho do juiz. O prazo para apresentação das alegações é de natureza processual, imposto por lei, peremptório, contínuo.

Notificadas as partes da sentença em 4/12/2019, presumindo-se feita a notificação em 9/12/2019, e suspendendo-se o prazo nas férias judiciais, entre 22/12/2019 e 3/1/2020, o prazo de interposição de 40 dias (30+10) terminou em 31/1/202l.

Resta saber se a renúncia ao mandato teve qualquer repercussão na contagem do prazo, nomeadamente se é causa de suspensão.

No despacho que determinou a notificação do Recorrente para pagar a multa prevista no art.139º, nº 5, b) e 6 CPC, considerou-se que o prazo do recurso terminou em 20/2/2020, com o argumento de que o prazo de interposição do recurso suspendeu-se por vinte dias a partir do dia 21/1/2020 (data da notificação pessoal da renúncia), por imperativo do art.47º, nº 3 CPC. Foi, de resto, neste pressuposto e com o pagamento da multa que o recurso foi recebido por despacho de 18/9/2020.

Contudo, o despacho de recebimento do recurso não vincula o tribunal superior (art. 641º, nº 5 CPC).

O regime da renúncia ao mandato está regulado no art. 47º do CPC, estabelecendo a lei ( nº 2) que a renúncia produz efeitos a partir da notificação pessoal ao mandante, “sem prejuízo do disposto nos números seguintes”.

Estatui o nº 3: “Nos casos em que seja obrigatória a constituição de advogado, se a parte, depois de notificada da renúncia, não constituir novo mandatário no prazo de 20 dias:

a) Suspende-se a instância, se a falta for do autor ou do exequente;

b) O processos segue os seus termos, se a falta for do réu, do executado ou do requerido, aproveitando-se os actos anteriormente praticados;”

A questão que se coloca é a de saber se o art. 47º, nº 3 CPC postula a interpretação no sentido de que a renúncia produz efeitos com a notificação pessoal, ou seja, se cessa o mandato com a notificação, suspendendo-se o prazo processual por 20 dias a partir daí (como entendeu o tribunal) ou se o prazo de vinte dias está estabelecido para o mandante constituir novo mandatário significando que durante esse período (20 dias) se mantém o mandato inicial (entendimento da Apelada).

O art. 47º do CPC não prevê expressamente a suspensão do prazo em curso a partir da declaração de renúncia, nem da notificação desta ao mandante.

Apesar disso, uma tese minoritária defende a suspensão do prazo a partir da notificação da renúncia, com o argumento da quebra da relação de confiança e do princípio da proibição a indefesa, significando que os efeitos da renúncia operam com a referida notificação pessoal ao mandante, cessando desde logo o mandato. Ao fim e ao cabo, esse período para o mandante constituir novo mandatário, agora positivado legislativamente em 20 dias, implicaria a suspensão da instância por “motivo justificado” e, por via dela, a suspensão do prazo em curso ( cf., por ex., Ac RE de 4/10/2007 ( proc. nº 2167/07), em www dgsi.pt).

Não parece ser esta a melhor interpretação, aderindo-se aqui à orientação dominante, no sentido de que os efeitos da renúncia só operam decorrido o prazo de vinte dias sem que o mandante tenha constituído mandatário.

O primeiro argumento é de natureza literal, visto que a norma refere expressamente que os efeitos “produzem-se a partir da notificação, sem prejuízo do disposto nos números seguintes (…)”, o que significa que a eficácia extintiva não se dá de imediato com a notificação. O “sem prejuízo” revela que que a lei difere os efeitos da renúncia ao mandato para o termo do prazo de vinte dias.

A evolução histórica aponta também neste sentido. Na redacção do art. 39º CPC, anterior ao DL nº 329-A/95, previa-se expressamente que, sendo obrigatória a constituição de advogado, a renúncia ao mandato apenas produzia efeito depois de constituído novo mandatário. Mas como a lei não fixava prazo, o mandatário renunciante teria que o requerer e só decorrido o mesmo é que se considerava extinto o mandato.

A alteração legislativa (reforma de 1995/1996) e a positivação de um prazo para o mandante constituir novo mandatário) não teve por objectivo a suspensão da instância ou do prazo, mas apenas a de “não deixar o mandatário-renunciante ad eternum no exercício do mandato, já que na primitiva redacção do preceito inexistia previsto o prazo razoável de 20 dias para o mandante constituir novo advogado, o que redundava em severa sanção para quem desejava retirar-se do patrocínio forense” (cf. Ac STJ de 12/11/2009 ( proc. nº 2822/06), em www dgsi.pt).

Interpretando a nova redacção do art. 39º CPC, escreve Lopes do Rego –  “os nºs 2 e 5 do artigo 39.º reformularam substancialmente o regime da renúncia ao mandato nas causas em que é obrigatório o patrocínio, por se haver considerado desproporcionado o sistema que, como regra, impunha ao mandatário renunciante a continuação do patrocínio até que a parte constituísse novo mandatário, como acontecia antes da reforma do processo civil ocorrida em 1995/1996 (operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12/12, e pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25/09). Assim, a) A renúncia começa por ser notificada às partes, por força do n.º 1, devendo a notificação ao mandante ser pessoal, nos termos do disposto no artigo 256.º, e conter a advertência dos efeitos cominados no n.º 3, dispondo de um prazo que se considere razoável para constituir novo mandatário (20 dias), dispensando-se, deste modo a intervenção do juiz, a requerimento do mandatário renunciante, para fixar o concreto prazo judicial para tal constituição, nos termos que decorriam do preceituado no n.º 3 deste artigo 39º, na redacção anterior à reforma; b) Findos esses 20 dias, contados da notificação, para a parte constituir novo mandatário, produzem-se de pleno os efeitos típicos da renúncia ao mandato e da extinção deste: suspende-se a instância, se a falta de constituição de novo mandatário for imputável ao autor; e se for ao réu, o processo segue os seus termos, aproveitando-se os actos praticados pelo mandatário renunciante (tais efeitos correspondem, aliás, aos que já decorriam do preceituado na parte final deste artigo, na redacção anterior à reforma)” (Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª edição, volume I, pág. 77).

De igual modo, também Lebre de Freitas: “Estabeleceu-se um prazo legal de vinte dias para o mandante constituir novo mandatário, durante o qual se mantém o patrocínio inicial (embora a lei tenha deixado de o dizer expressamente, tal resulta do prosseguimento do processo até ao termo do prazo). Simplificou-se assim o regime anterior, segundo o qual o estabelecimento do prazo (judicial) estava na disponibilidade do mandatário renunciante. Logo que, dentro do prazo, a parte constitua novo advogado, a renúncia produz os seus efeitos, o mesmo acontecendo no termo do prazo, se não o constituir. Neste caso, deixando a parte de ter mandatário, dá-se a suspensão da instância no caso de faltar advogado ao autor, mas prossegue o processo, por não poder ser penalizado o autor, no caso de faltar advogado ao réu” ( Código de Processo Civil Anotado, Vol.1º, pág. 80).

No actual art. 47º CPC (corresponde redacção à do DL nº 329-A/95) o legislador fixou, desde logo, um prazo ( vinte dias ), mas com esta alteração o que apenas se pretendeu foi clarificar o regime da renúncia ao mandato, em que é obrigatória a constituição de advogado, no sentido de que os efeitos da renúncia se produzem decorrido o prazo legalmente fixado para a parte constituir novo mandatário, sem necessidade de prévio requerimento, e não a suspensão ou interrupção dos prazos.

Neste sentido e no plano jurisprudencial, por ex., Ac RC de 3/7/2002 (proc.1439/2002), Ac RC de 29/11/2011 (proc. nº 2191/2003), Ac RC de 24/1/2017 ( proc. nº 412/2009 ), disponíveis em www dgsi.pt.

Neste contexto, tem razão a Apelada, pois o prazo para a interposição do recurso terminou em 31/1/2020 ( e não em 20/2/2020) e como o decurso do prazo extingue o direito de praticar o acto (art.139º, nº 3 CPC), significa haver precludido o direito de recorrer, o que implica o não conhecimento do recurso (arts.652º, nº 1, b) e 655º CPC), procedendo a questão prévia da inadmissibilidade do recurso”.

5.2. Na reclamação para a conferência problematiza-se a inconstitucionalidade material da norma do art. 47º, nº 3 CPC, na interpretação dada no despacho, por violação do art. 20º, nºs 1, 2 e 4 CRP e art. 6º CEDH.

Com efeito, alega o Réu, tal como o fizera no requerimento de 9/3/2020, que a norma viola o direito de defesa, o direito de acesso, o direito ao patrocínio e o direito a um processo equitativo.

É sabido que o controlo da constitucionalidade tem natureza estritamente normativa e no tocante à fiscalização concreta, o Tribunal Constitucional admite a possibilidade de os respectivos recursos poderem incidir sobre normas, como reportarem-se a determinadas interpretações normativas, “ em que a norma é tomada, não com o sentido genérico e objectivo plasmado no preceito (ou fonte) que a contem, mas em função do modo como foi perspectivada e aplicada à dirimição de certo caso concreto pelo julgador “ (cf. Lopes do Rego, “O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional“, Jurisprudência Constitucional nº 3, Julho/Setembro 2004, pág.7).

          Com o devido respeito, parece que, a coberto da arguição de inconstitucionalidade, o reclamante impugna o acto de julgamento, ou seja, a concreta aplicação que a decisão singular fez do art. 47º do CPC, pois não especifica o critério normativo, genérico e abstractamente concebido, seguido na interpretação do preceito.

Como quer que seja, já na vigência do art. 39º, nº 2 do anterior CPC se entendeu não ser inconstitucional a norma interpretada no sentido de que o prazo de 20 dias conferido à parte para constituir novo mandatário não suspende ou interrompe o prazo processual em curso, afirmando-se, portanto, a sua conformação constitucional.

Neste sentido, por exemplo, o Ac STJ de 12/11/2009 (proc. nº 2822/06), em www dgsi.pt, sobre a idêntica interpretação do anterior art. 39º CPC, em cujo sumário se lê:

“A interpretação defendida pelos recorrentes considerando que a mera apresentação da renúncia ao mandato desvincula, ipso facto, o Advogado, suspendendo ou até interrompendo o prazo processual em curso, não tem apoio mínimo na letra da lei, sabendo-se que a alteração introduzida no art. 39º do Código de Processo Civil, pela Reforma Processual de 1995/96, foi a de não deixar o mandatário-renunciante ad eternum no exercício do mandato, já que na primitiva redacção do preceito inexistia previsto o prazo razoável de 20 dias para o mandante constituir novo advogado, o que redundava em severa sanção para quem desejava retirar-se do patrocínio forense.

“Não existe violação dos princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito, quando, confrontando a norma do art. 39º, nº 2, do Código de Processo Civil com o regime legal estabelecido na Lei nº 34/2004, de 29.7  – Acesso ao Direito e aos Tribunais – através do patrocínio oficioso por insuficiência económica, que estabelece, nos termos do art. 34º, nº 2, que o pedido de escusa do patrono nomeado interrompe o prazo que estiver em curso.

“Não é inconstitucional a norma do art. 39º, nº 2, do Código de Processo Civil na interpretação antes enunciada.”

E esta orientação mantém-se, pois no domínio do art. 47º do novo CPC a questão já foi submetida ao Tribunal Constitucional que por acórdão de 13/10/2017(proc. nº 929/16) decidiu “não julgar inconstitucional a interpretação do artigo 47.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (na redação introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), segundo a qual, sendo obrigatória a constituição de advogado, a renúncia ao mandato não produz efeitos enquanto não decorrer o prazo de 20 dias, concedido ao mandante para constituir mandatário”.

Nele se afasta a violação do art. 20º CRP, argumentando-se, a dado passo que:

“A norma em causa procede a uma conciliação entre os interesses do mandatário, os do mandante e ainda aos interesses da boa administração da justiça. Assim se compreende que a revogação e a renúncia do mandato judicial tenham lugar no próprio processo e que a renúncia seja pessoalmente notificada ao mandante, com a advertência dos efeitos previstos no n.º 3 (artigo 47.º, n.º 2, do CPC). O regime do artigo 47.º do CPC visa justamente acautelar a produção de efeitos negativos para a parte, quando o patrocínio é obrigatório e a parte não consegue imediatamente constituir novo mandatário. Daí que o advogado renunciante continue ligado ao mandato, durante 20 dias, até, dentro deste prazo – de dimensão perfeitamente razoável – o mandante constituir novo mandatário, extinguindo-se, então, o primeiro mandato.”

Acolhendo-se aqui esta fundamentação, a norma do art. 47º CPC na interpretação feita no despacho de não conhecimento do recurso de apelação não é materialmente inconstitucional, porque não viola o art. 20º CRP e art. 6º CEDH.

6.- Síntese conclusiva

a) O art. 47º, nº 3 CPC deve ser interpretado no sentido de que, nas ações em que é obrigatório o patrocínio, havendo o mandatário renunciado ao mandato sem que a parte, notificada pessoalmente, tenha constituído entretanto advogado, a renúncia ao mandato só produz efeitos após o decurso do prazo de vinte dias legalmente estabelecido para o mandante constituir novo mandatário, significando que durante esse período se mantém o mandato inicial.

b) O prazo de 20 dias, legalmente fixado, não suspende ou interrompe o prazo processual em curso.

c) A norma do art. 47º, nº 3 do CPC, assim interpretada, não é materialmente inconstitucional, por violação do art. 20º da CRP.

7. Pelo exposto, decidem:

Julgar improcedente a reclamação e manter o despacho de não conhecimento do recurso.

Custas pelo Reclamante.

Relação de Coimbra, 23 de Fevereiro de 2021.

Jorge Arcanjo ( Relator)

Isaías Pádua

Teresa Albuquerque