Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
318/07.1TTAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DIREITO A REPARAÇÃO
PRESTAÇÃO EM ESPÉCIE
AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 03/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 10º, Nº 1, AL. A), DA LEI Nº 100/97, DE 13/09; 23º, Nº 1, AL. H), DO DEC. LEI Nº 143/99, DE 30/04
Sumário: I – Conforme resulta da economia da al. a) do nº 1 do artº 10º da Lei nº 100/97, de 13/09, uma coisa é o restabelecimento da capacidade de trabalho do sinistrado e outra diferente é a sua recuperação para a sua vida activa, não referindo ou exigindo a lei que esta vida activa seja a vida activa laboral, à qual se refere outra das partes do preceito.
II – Por “reabilitação funcional” deverá entender-se a recuperação por parte do sinistrado das funções que os seus membros inferiores tinham antes da ocorrência do acidente, ou seja, da sua mobilidade que não só é conseguida com a atribuição de uma cadeira de rodas mas também com a atribuição de um micro-carro.

III – Sendo praticamente impossível, em face dos conhecimentos técnico-científicos actuais, colocar o sinistrado novamente a caminhar, haverá que lhe disponibilizar os meios em espécie que mais se possam substituir aos seus membros inferiores, de forma a permitir-lhe a maior mobilidade possível, designadamente um micro-carro, se dele necessitar o sinistrado.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I A COMPANHIA DE SEGUROS A..., ré na presente acção declarativa especial emergente de acidente de trabalho em que é autor B... (patrocinado pelo MºPº), inconformada com o despacho que decidiu atribuir a este, para mais fácil locomoção, um micro carro e respectivo curso de condução, dele interpôs recurso, o qual foi recebido e mandado seguir como agravo.


***

II – Nas alegações apresentadas, concluiu:

[………………………………………………...]


+

Na resposta pugna o autor pela confirmação do julgado pois, no seu entendimento, a atribuição de um micro carro e correspondente instrução de condução é susceptível de caber no conceito de direito à reparação em espécie plasmado na al. a) do artigo 10º da Lei nº 100/97 de 13 de Setembro, na parte em que nesta se alude à “recuperação para a vida activa” com referência à “reabilitação funcional” referida no artigo 23º nº 1 alínea h) (artigo 23°,nº l.al h) do Dec. Lei 143/99 de 30/04

+

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***

III Dos factos:

Dos elementos constantes dos autos dá-se por assente, com interesse para a decisão do recurso, a seguinte matéria de facto, que se fixa:

1) No dia 1 de Junho de 2006 o sinistrado sofreu um acidente de trabalho que consistiu em ter sido atingido por um ramo seco quando procedia ao corte de uma árvore.

2) Em consequência do acidente resultou para o sinistrado traumatismo da coluna dorsal (fractura de D7 e D8), lesões estas melhor descritas no auto de fls 188 e 189.

3) As partes conciliaram-se nos termos do auto de conciliação de fls. 198, acordo este que foi devidamente homologado.

3) Como sequelas do acidente ficou o sinistrado paraplégico dos membros inferiores, necessitando do uso de cadeiras de rodas, mantendo a força muscular ao nível dos membros superiores.

4) O sinistrado a partir da alta concedida em 02/07/08 ficou afectado com uma IPP de 80% com IPATH, necessitando da ajuda de 3ª pessoa para as actividades da vida diária e de tratamentos regulares de fisioterapia.

5) Por requerimento de 22/09/09 (fls. 227), o sinistrado veio requerer a realização de exame médico para que a Srª Perita se pronuncie sobre a eventual necessidade de ser lhe ser atribuído um micro carro – e respectivo curso de condução – como meio mais fácil de locomoção.

6) No exame médico realizado na sequência do requerido a Srª Perita pronunciou-se no sentido que deverá “ser-lhe concedido um micro carro para se poder deslocar, uma vez que não possuir carta de condução de veículo automóvel para poder conduzir um adaptado”.

7. No seguimento deste exame veio a ser proferido despacho (ora recorrido) que, procedência do requerido pelo sinistrado, determinou a atribuição ao sinistrado por parte da responsável de um micro carro, custeando o respectivo curso de condução


***

V - Do direito:

A questão a decidir no presente recurso reside em saber se a atribuição de um micro carro com pagamento do respectivo curso de condução a um sinistrado paraplégico dos membros inferiores que necessita do uso de cadeiras de rodas e da ajuda de 3ª pessoa para as actividades da sua vida diária se integra na reparação em espécie prevista na Lei dos Acidentes de Trabalho.

O despacho recorrido decidiu atribuir ao sinistrado um micro carro com pagamento do curso de condução, fundamentando assim a sua decisão: “cabendo na previsão do art. 10º, nº1, al .a) da Lei 100/97, todos os meios técnicos necessários e adequados quer ao restabelecimento do estado de saúde, quer da capacidade de trabalho e de ganho do sinistrado, quer à sua recuperação para a vida activa, cremos que também o micro carro necessário para a sua locomoção e o respectivo curso de condução lhe devem ser fornecidos pela seguradora.

É certo que a legislação infortunístico-laboral privilegia essencialmente o restabelecimento da capacidade de trabalho, vendo o sinistrado essencialmente como uma unidade produtiva.

Mas tal não significa que exclua totalmente da reparação todos os demais aspectos da vida da vítima ligados à sua condição humana, daí que neste âmbito das prestações em espécie inclua as necessárias e adequadas e à sua recuperação para a vida activa que não se restringe à actividade laboral - Sobre esta questão veja-se, entre outros, Carlos Alegre Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais – Regime Jurídico Anotado - 2ª edição, pág. 73 a 75.

Ora, o sinistrado em virtude do acidente ficou paraplégico e o micro carro pode proporcionar-lhe maior autonomia e capacidade de deambulação no exterior.

E se tal é importante na generalidade dos casos, neste assume particular relevância atenta a idade do sinistrado, actualmente com trinta anos. Com efeito, o micro carro permitir-lhe-á sair de casa, mantendo algumas relações sociais essenciais para a estabilização do seu estado de saúde e equilíbrio emocional.

Esta prestação está, como já dissemos, incluída no do âmbito da alínea a) do art. 10º da Lei 100/94 e 23º, nº1 do D.L. 143/99, pois não contribui directamente para o restabelecimento da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado mas é adequada e necessária para a sua reabilitação funcional e recuperação para a vida activa que não se limitam à actividade profissional.

E nunca podemos olvidar que há que garantir aos sinistrados uma existência condigna ainda que a sua capacidade de trabalho esteja gravemente comprometida”.

A responsável discorda desta fundamentação pois, no seu entender, a lei não permite a interpretação que foi feita pelo tribunal recorrido, não se englobando a atribuição de um micro carro na reparação em espécie prevista na legislação infortunística.

Esta reparação deve, ainda no seu entendimento, ser adequada e necessária ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado, e à sua recuperação para a vida activa.

E, acrescenta a recorrente que a aquisição pelo trabalhador sinistrado de uma vida e existência condignas deve fazer-se pela via do seu regresso, tanto quanto possível, à vida laboral[1] activa, essa sim uma via de recuperação por excelência, potenciadora de uma mais perfeita integração social e até, porque não dizê-lo, de felicidade e de realização

Daí concluir que qualquer pretensão do sinistrado no sentido de lhe ser atribuído um veículo para se deslocar teria de ser acompanhada de um seu projecto de reabilitação profissional[2], ou seja, que essa melhor locomoção seja tornada necessária no quadro de um seu projecto de reabilitação profissional, e não porque pretende simplesmente melhorar a sua locomoção

O quadro legal em que deve ser resolvida a questão é o seguinte.

Artigo 10º alínea a) da Lei 100/97 de 13/09 que dispõe: “o direito à reparação compreende, nos termos que vierem a ser regulamentados, as seguintes prestações: em espécie: prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa.

Artigo 23º nº 1 alínea h) do Dec. Lei 143/99 de 30/04 que dispões: “as prestações em espécie previstas na alínea a) do artigo 10º da lei têm por modalidades: reabilitação funcional”.

Ora, conforme resulta da economia da alínea do citado artigo 10º, uma coisa é o restabelecimento da capacidade de trabalho do sinistrado e outra diferente é a sua recuperação para a sua vida activa, não referindo ou exigindo a lei que esta vida activa seja a vida activa laboral, à qual se refere outra das partes do preceito.

Por isso, e desde logo, não podemos acompanhar o entendimento da recorrente quando esta pretende que a vida activa se refere à vida laboral e que a atribuição do micro carro só é legalmente possível se as necessidades de deslocação do sinistrado se inserirem num projecto de reabilitação profissional.

Por outro lado, também a alínea h) do nº 1 do citado artigo 23º não fala em reabilitação profissional mas sim em reabilitação funcional, que é coisa diferente.

Etimologicamente reabilitação significa recuperar, restabelecer, readquirir, voltar à situação anterior, enquanto palavra funcional se refere às funções de um órgão.

Assim por reabilitação funcional deverá entender-se a recuperação por parte do sinistrado das funções que os seus membros inferiores tinham antes da ocorrência do acidente, ou seja, da sua mobilidade que não só é conseguida com a atribuição de uma cadeira de rodas mas também, naturalmente, com a atribuição do micro carro; e esta mobilidade, pelas razões atrás deixadas consignadas, não se refere exclusivamente à necessária mobilidade no âmbito de uma reabilitação profissional.

Acresce que a recuperação do sinistrado se prende com o princípio geral de responsabilidade civil da restauração natural (artigo 562º do Cód.Civil[3]), em que por via da obrigação de indemnizar se pretende restabelecer a situação anterior.

Como no caso será praticamente impossível em face dos conhecimentos técnicos actuais colocar o sinistrado novamente a andar (relembre-se que o mesmo é paraplégico dos membros inferiores) haverá que lhe disponibilizar os meios em espécie[4] que mais se possam substituir os seus membros naturais de forma a permitir-lhe a maior mobilidade possível, assim se aproximando da almejada, mas inviável, restauração natural.

Por tudo isto, ressalvando sempre melhor entendimento, entende-se que bem andou o despacho recorrido ao decidir como decidiu, pois que está medicamente demonstrado que o sinistrado necessita de um micro carro para se poder deslocar, dado não possuir carta de condução de veículo automóvel para poder conduzir um adaptado.


***

VI Termos em que se delibera julgar improcedente o agravo e com integral confirmação da decisão recorrida.

+

Custas pela recorrente


[1] Sublinhado nosso.

[2] Sublinhado nosso.
[3] Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
[4] A distinção feita no artigo 10º da Lei 100/97 de 13/09 entre reparação em espécie e em dinheiro “é de certo modo incorrecta, pois pode não corresponder, verdadeiramente, à realidade” – Pedro Romano Martinez , Direito do Trabalho, 3ª edição, págª 839.