Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
60/13.4PCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: NOVOS FACTOS
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PERTURBAÇÃO
VIDA PRIVADA

NULIDADE DE SENTENÇA
Data do Acordão: 01/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DECLARAÇÃO DE NULIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 152.º E 190.º, N.º 2, DO CP; ARTIGOS 1.º, AL. F), 358.º E 359.º, DO CPP
Sumário: I - Se, em sede de sentença, o julgador afastou o elemento subjectivo do crime de violência doméstica imputado ao arguido na acusação, dando-o como não provado, aditando, não obstante, ao acervo dado como provado, factos integradores do tipo subjectivo do crime de perturbação da vida privada p. e p. no artigo 190.º, n.º 2, do CP, e emitindo decisão condenatória pela ocorrência deste ilícito penal, ocorre uma alteração substancial de factos (e não, como entendimento do tribunal de 1.ª instância, uma mera alteração não substancial ou de qualificação jurídica), já que a condenação está ancorada em novos factos integradores de tipo de crime diverso, ou seja, cujo bem jurídico protegido difere dos acautelados pelo crime previsto no artigo 152.º do CP.

II - No contexto descrito, o instituto jurídico-processual a desencadear é o do artigo 359.º do CPP (e não o do artigo 358.º, utilizado pelo tribunal recorrido), com a consequente comunicação nos termos e para os efeitos previstos naquele normativo, conduzindo a sua inobservância à nulidade do artigo 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma.

Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 60/13.4PCLRA.C1 do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, mediante acusação pública, foi submetido a julgamento o arguido A..., melhor identificado nos autos, sendo-lhe, então, imputada a prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento - no decurso da qual foi comunicada a alteração da qualificação jurídica dos factos, susceptíveis de integrar a prática pelo arguido de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, p. e p. pelo artigo 190.º, n.º 2 do Código Penal - por sentença de 17.03.2014, depositada na mesma data, foi proferida decisão do seguinte teor [transcrição parcial]:

«Nestes termos, o Tribunal julga a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e decide:

Absolver o arguido A... da imputada prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido, pelo art. 152.º, n.º 1 al. b) e n.º 2 do Código Penal.

Declarar extinto o procedimento criminal pelo crime de injúria.

Condenar o arguido A... pela prática do crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, p. e p. pelo art.º 190º nº 2 do Código Penal na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de 7 € (sete), o que perfaz a quantia total de 840 € (oitocentos e quarenta euros) e, subsidiariamente, caso não pague a multa, em 80 (oitenta) dias de prisão subsidiária.

(…)».

3. Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, extraíndo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1.º Existe uma clara falta de fundamentação da decisão e uma vez que os factos dados como provados são notoriamente insuficientes para a condenação.

2.º Não foi produzida prova suficiente da existência de mensagens ofensivas, com excepção das duas admitidas pelo arguido.

3.º E mesmo que existissem, sofreriam decerto a mesma decisão de ver declarada a extinção do procedimento criminal que é referida quanto às ofensas e injúrias que são referidas, pelo que nenhum interesse prático terão para a decisão.

4.º Aliás: não existe sequer uma individualização e concretização, ao menos temporal, das condutas que se diz terem sido praticadas, pelo que sempre sofreriam da citada falta de fundamentação.

5.º As duas mensagens constantes da Douta Sentença jamais poderão ser consideradas como violadoras, per si, do art. 190.º n.º 2 do Código Penal, tendo em conta que se referem notoriamente a uma questão diferente: a regulação das responsabilidades parentais do menor filho do dissolvido casal.

6.º Sendo certo que toda a prova produzida confirma que os telefonemas efectuados se destinavam a saber do paradeiro da criança, e não para molestar ou de alguma forma violentar a vida privada da assistente.

7.º Não existe qualquer indício de prova das alegadas chamadas para colegas da assistente, não tendo uma única testemunha ou documento (para além da acusação …) referido algo sequer parecido.

8.º E é notória na produção de prova a consideração que os muitos telefonemas feitos para a assistente, talvez exagerados mas bastante longe dos números referidos pela decisão em crise, se centravam na questão da criança.

9.º A conduta do arguido resume-se não a uma qualquer perturbação da vida da assistente, mas sim a legítimos pedidos de informação, ainda que exagerados, sobre o filho de ambos, normalmente porque o arguido não conseguia com ele contactar.

10.º Tudo se subsume, assim, a uma questão de relacionamento e de interpretação acerca da regulação de responsabilidades parentais em vigor, e não entra, de forma alguma, numa devassa, stalking ou qualquer outro acto de perseguição ou de mera perturbação da vida da assistente.

11.º As mensagens denominadas SMS não integram o conceito de telefonema do artigo 190.º n.º 2 do Código Penal, uma vez que o legislador podia tê-las integrado e optou por não o fazer.

12.º E isto independentemente do Douto Acórdão referido na decisão recorrida, que para mais nada tem a ver com os factos que aqui se falam.

13.º Aquilo que aqui se trata é não de 3200 mensagens em 8 dias, mas sim 2 mensagens e alguns telefonemas em 2 meses, para saber onde estava o filho.

14.º Os factos apurados e considerados provados são manifestamente insuficientes para a condenação proferida.

15.º Mesmo que assim não se pense, o que por mera hipótese académica se refere, sem conceder, o montante da condenação em multa diária é manifestamente exagerado tanto para os factos em si, como para as condições económicas do arguido.

16.º Sendo também excessivos os dias de condenação, que deverão ser grandemente reduzidos.

17.º A decisão proferida viola o disposto nos art. 190.º n.º 2 do Código Penal e 410.º do Código de Processo Penal, em especial as alíneas a) e c), devendo ser substituída por outra que absolva o arguido dos mencionados crimes ou, em alternativa, que reduza de forma clara a pena decretada, seguindo o processo os seus legais trâmites, com o que farão V. Excias. a costumada Justiça.

4. Por despacho de 16.05.2014 foi o recurso admitido, fixado o respectivo regime de subida e efeito.

5. Ao recurso respondeu o Ministério Público, concluindo:

1. A sentença recorrida não enferma de qualquer vício;

2. O arguido praticou o crime pelo qual foi condenado;

3. A pena é justa, adequada e equilibrada;

4. A sentença sub judice não violou qualquer disposição legal, pelo que deve ser mantida na íntegra.

6. Remetidos os autos à Relação pronunciou-se a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, conforme parecer junto a fls. 197 a 202, contrariando os fundamentos invocados pelo recorrente, pugnando pela improcedência do recurso.

7. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do CPP nenhum dos sujeitos processuais reagiu.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

      De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

Perante as conclusões apresentadas, cabe a este tribunal pronunciar-se sobre se:

- Padece a sentença de falta de fundamentação;

- Incorre a mesma no vício da insuficiência dos factos provados para a decisão e/ou de erro notório na apreciação da prova;

- É errónea a subsunção jurídica dos factos ao crime de perturbação da vida privada, p. e p. pelo artigo 190.º, n.º 2 do Código Penal;

- Se mostra desproporcionada a pena aplicada.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença recorrida [transcrição parcial]:

Produzida a prova e discutida a causa, com interesse para a decisão da causa provaram-se os seguintes factos:

1. O arguido e B... viveram, como se de marido e mulher se tratasse, durante nove anos.

2. A relação entre ambos terminou em abril de 2012.

3. Do relacionamento nasceu C..., atualmente com sete anos de idade.

4. A partir do nascimento do menor, o arguido tornou-se agressivo com B... e mantinha com esta discussões.

5. Dizendo-lhe que não tinha capacidade para tratar da criança e que, mesmo como enfermeira, não conseguia acalmá-la quando chorava.

6. No mês de abril de 2012, no interior da residência de ambos, na sequência de uma discussão gerada acerca do filho, o arguido disse a B...:”Assim se vê o tipo de mãe que és!”, levantando a mão em direção àquela, com intenção de lhe bater.

7. Facto que não concretizou.

8. Após a separação e por várias vezes, aos sábados de manhã, o arguido ia buscar o seu filho ao parque de estacionamento do Centro Hospitalar de S. Francisco em Leiria, onde a ofendida trabalhava.

9. Quando se encontrava com B..., chamava-lhe: “puta, cabra e vadia”.

10. Na presença da criança.

11. O que também fez através de mensagens enviadas para o telefone de B....

12. No dia 22 de março de 2013, pelas 22h39m enviou a B... uma mensagem com o seguinte teor: “És uma mãe manipuladora influenciável etc. Dizer que é mãe todo o mundo diz, mas agir como uma de verdade, nem todas. Queres liquidar e fazeres a folha á relação Pai e Filho nem com mentiras tu ou alguém vai conseguir”.

13. No dia 5 de maio de 2013, pelas 6h58m, o arguido enviou uma mensagem de texto a B... dizendo-lhe “… És a maior porca, NOGENTA borlona golpista falsa mentirosa etc. que conheço. Via com esse teu grupo venenosos p´ró INFERNO”.

14. Repetindo estas afirmações perante amigas de B....

15. As quais telefonava várias vezes, chegando a faze-lo 60 vezes num dia.

16. Bem como a B....

17. O arguido agiu sempre livre, voluntaria e deliberadamente.

18. Com as condutas descritas, o arguido quis e conseguiu perturbar a vida privada, a paz e o sossego da assistente.

19. O arguido não tem antecedentes criminais.

20. A subsistência do arguido depende do arrendamento do imóvel de que é proprietário, no valor mensal de 1.100€, a que deduz despesas fixas com renda de casa no valor de 89€, 450€ de crédito à habitação e 150€ relativo à prestação de alimentos do filho, perfazendo um total de 689€.

21. O arguido tem o 9º ano de escolaridade.

22. Do relatório social consta o seguinte: Decorridos catorze anos do seu divórcio dum primeiro casamento, o arguido estabeleceu um novo relacionamento afetivo com B..., ofendida neste processo. Nessa fase, o arguido estava a reconstruir uma vivenda na região de origem, vindo a fixar-se aí e a redefinir um novo projeto de vida em comum. Menciona o facto de não estar no seus planos voltar a ter filhos, o que acabou por acontecer, sendo um motivo de satisfação. Considera que o desgaste deste relacionamento está associado a divergências no que se refere à gestão financeira, alegando um progressivo desinteresse por parte da mãe do seu filho mais novo e ofendida neste processo.

Á data dos factos, o arguido encontrava-se num processo de separação da mãe do seu filho mais novo. Refere-se a sentimentos de enorme deceção perante a iminência desta rutura conjugal, verificando-se a partir daí um clima de forte divergência na gestão do regime de visitas (…) O arguido encontra-se desempregado há sensivelmente dois anos, perspectivando vir a trabalhar em breve, à comissão, como mediador imobiliário, área de atividade dominante na sua vida profissional e que durante muitos anos lhe garantiu um bom nível de vida (…). Ao que se refere aos factos de que está indiciado, o arguido adota postura de negação minimização utilizando argumentos de legitimação para a sua conduta, associados à deceção deste relacionamento e às dificuldades de entendimento no acerto do regime de visita, frisando empenhamento em manter-se presente na vida do seu filho. Assume o termo deste relacionamento com maior distanciamento emocional”.

Matéria de facto não provada

Não se provaram quaisquer outros factos, constantes da acusação e com relevância para a decisão da causa, nomeadamente que o arguido agiu querendo afetar a ofendida, como afetou no seu bem-estar físico e psíquico, na sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais.

Motivação da decisão de facto

A convicção do Tribunal formou-se, no que tange à situação sócio-económica do arguido, nas suas próprias declarações, bem como no relatório social junto aos autos. Relativamente aos factos o arguido admitiu ter enviado as mensagens com o teor supra dado como provado, mas negou peremtoriamente que alguma vez tenha levantado a mão á ofendida ou tivesse intenção de lhe bater, embora admita que em discussões lhe tenha dito que não tinha capacidade para tratar do filho e “assim se vê a mãe que és”. Igualmente, negou que chamasse “puta, cabra e vadia” à ofendida na presença da criança, ou que tenha repetido as expressões que escreveu nas mensagens perante amigas daquela. Relativamente aos telefonemas, afirmou tê-los feito com o intuito de saber do filho de ambos, uma vez que a ofendida algumas das vezes não atendia.

Foi sopesado o depoimento da ofendida B..., corroborou o relacionamento que manteve com o arguido durante nove anos e indicou como terminus o dia 11 de abril de 2012, bem como, o facto de terem um filho em comum nascido a 19.1.2007, e confirmou que o arguido lhe levantou a mão, mas não a agrediu. Afirmou que quando se encontrava a trabalhar no Centro Hospitalar S. Francisco, o arguido ia para a porta chamar-lhe “vaca, puta, cabra, burlona” e dizia-lhe que o filho não ia ser feliz, e o mesmo acontecia á porta de sua casa. Num só dia, referiu ter recebido mais de 80 chamadas telefónicas do arguido e afirmou que recebia, constantemente, mensagens escritas, que contabilizou em mais de 100.

Sopesados foram ainda os depoimentos das testemunhas: D..., enfermeira, afirmou ter assistido a um encontro entre o arguido e a ofendida, uma vez que foi com esta entregar-lhe o filho e este disse-lhe que a B... era uma golpista, uma borlona e chegou a ler mensagens onde ele lhe chamava “nojenta e vaca”. E..., segurança no Centro Hospitalar de São Francisco em Leiria, referiu que quando se encontrava de serviço ouviu o arguido chamar à enfermeira B... “cabra, vaca, que não prestava e não era boa mãe”. F..., enfermeira, trabalha com a ofendida há cerca de vinte anos e referiu que ouviu um telefonema onde esta disse para o arguido que o filho estava com pessoas que não eram estranhas e chegou a ler mensagens ofensivas assinadas como sendo o “Pai do C...”. G..., auxiliar de acção médica, referiu ter visto mensagens enviadas pelo arguido à ofendida, onde lhe chamava “puta” e “vaca”. H..., reformado, pai da ofendida, esclareceu ter lido mensagens que o arguido enviou à filha onde lhe dizia que “eles não eram boas pessoas para criar o menino” e lhe chamava “puta”, “cabra”, “nojenta”. I..., formadora, irmã da ofendida, referiu, igualmente ter lido mensagens onde o arguido chamava “puta” e “vaca” à ofendida e se referia à família desta como sendo “golpistas”.

O Tribunal teve ainda, por base, na sua convicção, a análise dos fotogramas de fls. 21 e 22; no que tange aos antecedentes criminais, o certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 71 e o relatório social de fls. 99 a 101.

Face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, o Tribunal convenceu-se, com segurança, que o arguido praticou os factos supra descritos, no contexto e quando se encontrava num processo de separação da ofendida, verificando-se a partir de então um clima de divergência e de “medição de forças” na gestão do regime de visitas. Igualmente se convenceu o Tribunal, apesar de negado pelo arguido, que o mesmo proferiu as expressões descritas na acusação, por várias vezes, e nas ocasiões ali referidas, visando a pessoa da ofendida, sua ex-companheira e mãe de um filho menor de ambos, querendo ofende-la na sua honra e consideração. Com efeito, a ofendida confirmou com credibilidade as expressões de que foi alvo, as quais foram corroboradas pelas testemunhas inquiridas.

No que tange às mensagens escritas, o arguido admitiu-as, bem como os telefonemas por si realizados, dizendo, porém, que a sua única intenção era saber do filho, o certo é que o Tribunal se convenceu firme e seguramente que a intenção do arguido era a de perturbar a paz e o sossego da ofendida, a pretexto de querer saber do filho de ambos, via telemóvel e através de telefonemas e mensagens.

Em conclusão, a convicção do Tribunal sobre estes factos foi determinada pela consideração de toda a prova produzida, interpretada de acordo com juízos de experiência.

3. Apreciação

Sem embargo das questões suscitadas pelo recorrente, afigura-se-nos ocorrer circunstância idónea a fulminar a sentença da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP, «vício», esse, que, sendo de conhecimento oficioso, pelas consequências que daí advém deverá, desde já, ser encarado.

Vejamos.

Revisitando a acusação, resulta vir imputada ao arguido/recorrente a prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do C. Penal, acabando o mesmo por sofrer condenação pela prática de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, p. e p. pelo artigo 190.º, n.º 2 do mesmo compêndio normativo.

Urge, pois, dilucidar como chegou o tribunal à condenação do arguido por um crime diverso do constante da acusação.

Perscrutados os autos deparamo-nos com o despacho exarado na acta de 10.03.2014 (fls. 112/113), cujo teor importa, agora, transcrever.

Reza assim:

«O Ministério Público deduziu acusação, em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, contra o arguido A..., imputando-lhe a prática de factos suscetíveis de integrarem, em autoria material, um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º nº 1 al. b) e nº 2 do Código Penal.

Percorrendo os factos imputados ao arguido na douta acusação e os factos provados em julgamento, importa averiguar se estamos perante uma alteração substancial ou não substancial dos factos descritos na acusação.

Para efeitos do disposto no C.P.P., considera-se alteração substancial dos factos, “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis” – cfr. art. 1º, al. f) do citado diploma.

Conforme defende Leones Dantas (in Revista do Ministério Público, n.º 63, pág. 99) “o conceito de alteração substancial vai dizer-nos quais as mudanças que aquele acontecimento pode sofrer na sua configuração sem que se ponham em crise os valores essenciais do processo, nomeadamente os que se prendem com a sua estrutura e com a unidade e indivisibilidade do respetivo objeto”.

Acrescenta este autor que haverá alteração substancial sempre que “os factos na sua conformação resultante da alteração sejam vistos no contexto social como um acontecimento diverso daquele que decorria do objeto do processo inicialmente considerado (…).

Dispõe o art. 359º do C.P.P., que uma alteração substancial dos factos descritos na acusação não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso; mas a comunicação da alteração ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos. Ressalva-se, no entanto, os casos em que o Ministério Público e o arguido estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.

Por outro lado o artº 358º prevê a alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, como é o caso dos autos.

Ora, a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação efetuada na sentença constitui alteração substancial dos factos, sendo que a falta de comunicação dessa alteração ao arguido antes da prolação da sentença, determina a nulidade desta (…).

Pelo exposto, comunica-se a presente alteração ao arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 358º nº 1 e nº 3 do CPP cumprindo apurar, apenas, se a conduta do arguido integra a prática pelo mesmo de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, p. e p. pelo artº 190º nº 2 do Código Penal».

Colocadas as coisas nos termos em que o foram, não obstante a alusão à alteração não substancial dos factos, o que – ainda assim com boa vontade – se pode extrair do despacho vindo de transcrever é mostrar-se o mesmo circunscrito à comunicação da alteração da qualificação jurídica, a qual, consabidamente, se traduz em realidade distinta da alteração, substancial ou não substancial, dos factos.

Com efeito - certamente ciente de que os factos descritos na acusação não consentiam, sem alteração, a condenação pela prática do crime p. e p. pelo artigo 190.º, n.º 2 do C. Penal –, só em sede de sentença sentiu o julgador a necessidade de afastar o elemento subjectivo do crime tal como descrito na acusação, dando-o como não provado – [cf. o segmento «Não se provaram quaisquer outros factos, constantes da acusação e com relevância para a decisão da causa, nomeadamente que o arguido agiu querendo afetar a ofendida, como afetou no seu bem-estar físico e psíquico, na sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais»] -, substituindo-o pela fórmula vertida no ponto 18. dos factos provados, passando, assim, a constar: «Com as condutas descritas, o arguido quis e conseguiu perturbar a vida privada, a paz e o sossego da assistente», transpondo, deste modo, para o acervo factual a nomenclatura inscrita na norma, circunstância que redunda em violação do acusatório, bem como do princípio da vinculação temática e que, consequentemente, nunca se poderia manter.

Dito de um modo simplificado, «anunciou-se» a alteração não substancial dos factos e da respectiva qualificação jurídica – com referência ao artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do CPP - «comunicou-se» - com deficit de clareza, embora – tão só a alteração da qualificação jurídica e «condenou-se», para tanto produzindo - apenas em sede de sentença - uma alteração nos factos descritos na acusação, por crime diverso do imputado no libelo acusatório.

Acresce que da conjugação dos [novos] factos transpostos na sentença [enfatiza-se nunca antes comunicados] com a alteração da qualificação jurídica, não se traduzindo aqueles numa mera redução dos descritos na acusação, cifrando-se, antes, num deslocar da esfera de protecção dos bens jurídicos - que, mesmo olhados atomisticamente, integram a complexidade de bens subjacentes ao tipo de violência doméstica - para a paz e sossego da vítima, centrado na sua vida privada [inscrevendo-se o tipo em questão (artigo 190.º do C. Penal) nos «crimes contra a reserva da vida privada e não já nos crimes «contra a liberdade pessoal»], surge-nos relativamente pacífico envolver a condenação do arguido/recorrente pelo crime em referência uma alteração substancial dos factos tal como definida na alínea f), do artigo 1.º do CPP, pois que foi por intermédio da respectiva alteração que se tornou possível a imputação rectius a condenação por um crime diverso, cujo bem jurídico protegido difere daquele ou daqueles outros que sustentam a incriminação da violência doméstica, assistindo-se, a final, à valoração/ponderação de realidade que exorbita destes, reflectida na substituição do desígnio com tradução no elemento subjectivo tal como consta da acusação por um outro à mesma alheio, descentrando-se, assim, a tutela penal para a paz e sossego da assistente com referência à sua vida privada, ultrapassando-se, desse modo, os limites preexistentes do objecto do processo.

É certo que levada a efeito a «comunicação da alteração» em acta pela forma acima transcrita não mereceu a respectiva valia outra reacção por parte dos sujeitos intervenientes, designadamente do arguido, que não fosse a de nada ter a opor, aspecto irrelevante, porém, no quadro traçado.

Com efeito, como vem referido no acórdão do TC n.º 463/2004 … a comunicação ao arguido de que a alteração temática do processo tem a natureza de alteração não substancial quando, em boa verdade, ela tem natureza substancial corresponde a dar-lhe conhecimento de um estatuto substantivo diferente relativo à sua posição processual de arguido em uma tal situação, estatuto esse que comporta, mesmo à face do direito infraconstitucional uma diminuição dos seus direitos de defesa e, consequentemente, não pode deixar de considerar-se como violando o n.º 1 do art.º 32º da CRP. Na verdade, o estatuto comunicado não exige que o julgamento apenas possa continuar se ele der o seu acordo a essa continuação (…). Por outro lado, são também diferentes as condições de que o arguido goza para poder preparar a sua defesa (…).

Por outro lado, a comunicação feita pelo tribunal não poderá deixar de ser vista pelo prisma do princípio de processo de fair trial, ou seja, um processo leal, apanágio do processo penal de um Estado de direito (…).

Entendimento sufragado, entre outros, no acórdão do STJ de 15.06.2011, proferido no proc. n.º 1417/08.8TAVIS.S1, disponível em www.dgsi.pt/jstj, enquanto, a propósito da argumentação que vê no silêncio do arguido – por ocasião da comunicação errónea de alteração não substancial, quando se tratava, antes, de alteração substancial - o assentimento tácito no prosseguimento do julgamento, consigna: A linearidade da argumentação exposta, conducente a rectidão da actuação do tribunal recorrido, assenta, pois, em dois eixos fundamentais: - o facto de que é irrelevante o equívoco do tribunal quanto à correcta qualificação da alteração que teve por «não substancial» uma vez que o arguido foi posto ao corrente da essência da alteração conferindo-lhe todos os dados para ali se pronunciar e decidir a actuação que melhor se conformasse com o exercício dos seus aludidos direitos e, também, a existência de um acordo tácito do arguido no sentido da sua sujeição a julgamento com a sequente alteração dos factos. Consequentemente, o eventual erro de perspectiva do tribunal a quo em nada teria afectado os direitos de contradição e defesa, já que, em qualquer dos casos, isto é, fosse na previsão do artigo 358º, fosse na do artigo 359º, tal exercício nunca poderia ultrapassar a oposição à comunicação ou o mero requerimento para pedir prazo suplementar para o efeito.

E, neste contexto, tal erro de perspectiva, não teria passado de mera irregularidade, a ser arguida no acto – art.º 123º, do Código de Processo Penal.

Porém, tal argumentação colide com a circunstância de a comunicação ao arguido de que a alteração temática do processo tem a natureza de alteração não substancial, corresponde a dar-lhe conhecimento de um estatuto substantivo diferente relativo à sua posição processual de arguido em uma tal situação, estatuto esse que comporta uma diminuição dos seus direitos de defesa e, consequentemente, não pode deixar de considerar-se como violando o n.º 1 do art.º 32º da CRP.

Significa, pois, que tornando-se necessária para o prosseguimento do processo pelos novos factos – que encerram alteração substancial - a manifestação de concordância expressa, incondicional e clara, por parte dos sujeitos processuais, mormente do arguido – [cf. artigo 359.º, n.º 3 do CPP] – nunca o exigível «acordo» poderá ser afirmado quando o estatuto comunicado não corresponde ao que lhe devia ter sido, representando aquele uma diminuição dos seus direitos de defesa.

Assim, nenhuma relevância se pode atribuir à circunstância de os sujeitos processuais, conforme resulta da identificada acta de julgamento, perante a comunicação nos termos em que foi feita, haverem declarado nada ter a opor.

Termos em que se impõe concluir por padecer a sentença recorrida da nulidade prevista na alínea b), do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, por haver condenado o arguido/recorrente por crime diverso relativamente ao qual foi produzida [na sentença] a dita alteração dos factos, consubstanciado no aditamento atrás produzido no que ao elemento subjectivo concerne, acompanhado da «eliminação» do mesmo elemento tal como descrito na acusação, o que ocorreu sem que o tribunal haja procedido à respectiva comunicação nos termos do artigo 359º, com referência ao artigo 1.º, alínea f), ambos do CPP.

Donde decorre a necessidade de o processo ser remetido à 1.ª instância, com vista à sanação de tal nulidade, no caso através da reabertura da audiência de julgamento com a comunicação aos sujeitos processuais, contemplados no n.º 3 do artigo 359.º do CPP, da alteração substancial dos factos, seguindo-se, em conformidade com o que decorre da lei, os ulteriores termos processuais.

Mostra-se, assim, prejudicado o conhecimento das questões suscitadas no recurso interposto.

III. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar verificada, nos termos supra expostos, a nulidade da sentença prevista na alínea b), do n.º 1 do artigo 379.º e, em consequência, determinar a remessa dos autos à 1.ª instância com vista à respectiva sanação, no caso através da reabertura da audiência de julgamento com a comunicação aos sujeitos processuais da alteração substancial dos factos, seguindo-se, em conformidade com o que decorre da lei, os ulteriores termos do processo.

Sem custas

Coimbra, 21 de Janeiro de 2015

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)