Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
686/19.2T8CLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: NEGÓCIO JURÍDICO
FALTA E VÍCIOS DE VONTADE
DECLARAÇÃO NÃO SÉRIA
Data do Acordão: 04/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CÍVEL DAS CALDAS DA RAINHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 240º, Nº 1; 244º, Nº 1; E 245º, Nº 1 DO C. CIVIL.
Sumário: I – Na teoria do negócio jurídico, a propósito da falta e vícios da vontade, de que os mesmos possam enfermar, encontramos a categoria dos negócios em que se pode verificar uma divergência intencional entre a vontade e a declaração.

II - Dentro desta categoria deparamo-nos legalmente com as figuras da simulação, reserva mental e declarações não sérias.

III - A diferença essencial é que nas duas primeiras existe uma declaração negocial com o intuito de enganar terceiros ou o declaratário e na última figura não se quer enganar ninguém (arts. 240º, nº 1, 244º, nº 1, e 245º, nº 1, do CC).

IV - Há declaração não séria se o declaratário conhecia a falta de seriedade da declaração ou ela era exteriormente perceptível.

V - São declarações negociais não sérias (art. 245º, nº 1, do CC) as jocosas, cénicas, etc, não havendo nelas o intuito de enganar, e há mesmo a expetativa do declarante que não sejam tomadas a sério.

VI - Estão em causa situações em que existe um comportamento juridicamente valorado como declaração negocial, sem que contudo o seu autor o haja dirigido à produção de quaisquer efeitos jurídicos.

VII - Aquela “expetativa” deve alicerçar-se em algo de substancial seja objetivamente (todos percebem a falta de seriedade) seja subjetivamente (o concreto destinatário deveria aperceber-se disso dado, por exemplo, o historial de brincadeiras entre ambos existente): de sorte que a declaração seja patentemente não séria.

VIII - É nada ou pouco compaginável com as regras da experiência comum que os outorgantes façam declarações não sérias em sede de uma escritura pública, nomeadamente qual será o objetivo de os interessados efetuarem uma partilha não séria, e ainda acrescentarem, adicionalmente, que as tornas já foram pagas/recebidas, fazendo-o por mera brincadeira, gozo ou encenação - salvo simulação -, ou ser só um outorgante, o declarante, a brincar com o outro, o declaratário, na expetativa que este não desconheça essa encenação ou declaração jocosa, tanto mais que a celebração de uma escritura pública é, desde logo, um acto solene em relação ao qual o cidadão de entendimento médio o assume como acto sério, de elevada responsabilidade, e que, ademais, pressupõe a prévia marcação do acto, apresentação de documentos, presença de notário, leitura do documento, e pagamento do respetivo custo.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. S..., residente em …, propôs acção declarativa contra S..., residente no …, peticionando que seja declarada nula, por não séria, a declaração, por si efectuada, de recebimento e quitação das tornas devidas no âmbito da partilha entre ambos efectuado e que, em consequência, também fosse declarada nula tal partilha, e, ainda, por via disso, declarada nula a doação realizada pelo réu a seus pais do imóvel partilhado, com efeitos registrais. Em alternativa peticionou que fosse o réu condenado no pagamento da quantia de 46.254,96€, correspondente a tornas devidas e não pagas pela partilha do imóvel indicado, acrescido de juros de mora à taxa legal a contar da citação e subsidiariamente tal quantia, mais juros, a título de enriquecimento sem causa.

Alegou, em síntese, que não obstante haver celebrado com o réu, em 2010, na sequência do divórcio de ambos, escritura de partilha dos bens comuns do casal, na qual declarou ter recebido o valor de 46.254,94€, respeitante às tornas devidas, tal declaração não era séria, nada tendo recebido, pois iria receber tais tornas no prazo de 6 meses, conforme acordado com o réu. Os efeitos da nulidade da referida declaração não séria devem estender-se à nulidade da própria partilha, nulidade esta que, por sua vez, também se deve estender à doação aos pais do réu do imóvel partilhado entre este e a autora.     

O réu contestou, impugnando os factos alegados pela autora, afirmando que as declarações negociais foram sérias e pagou as tornas à mesma, sendo estranho que só 9 anos depois venha formular o que pediu.

Através de incidente de intervenção provocada deduzido pela autora e deferido, os pais do réu, D... e M..., intervieram nos autos, fazendo seus o articulado apresentado pelo réu.

*

A final foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo-se os RR do peticionado.

2. A A. recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:

...

3. O R. contra-alegou, concluindo que:

...

II – Factos Provados

...

Factos não provados:

...

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da decisão da matéria de facto.

- Apurar se é não séria a declaração de recebimento do preço efectuada pela A. na escritura de partilhas celebrada com o R.

- Em caso afirmativo suas consequências.

2. Não vamos apreciar a impugnação da decisão da matéria de facto porque mesmo que fosse totalmente deferida ela não importaria decisão diferente, pelas razões que infra (em 3.) vamos explicitar.

Torna-se, portanto, inútil tal apreciação. 

3. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Alega a Autora que a sua declaração de recebimento das tornas que lhe eram devidas não correspondeu à verdade, o que era do conhecimento do Réu, consubstanciando uma declaração não séria.

Dispõe o art.245º, nº 1 do Código Civil que “a declaração não séria, feita na expectativa de que a falta de seriedade não seja desconhecida, carece de qualquer efeito.”

Ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado vol.I, pg.231 “são declarações não sérias as jocosas, cénicas ou didácticas. Não há nelas o intuito de enganar e há mesmo a expectativa do declarante que não sejam tomadas a sério.”

Estão, assim, em causa situações “em que existe um comportamento humano juridicamente valorado como declaração negocial (nos termos do art.217º) sem que contudo o seu autor o haja dirigido à produção de quaisquer efeitos jurídicos” (cfr. José Alberto Vieira, in Negócio Jurídico – Anotações ao regime do Código Civil, pg.56).

Como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 1/3/2018, já supra citado, “para que ocorra uma situação de declarações não sérias é necessário que exista uma divergência intencional entre a vontade real e a vontade declarada na escritura pública por parte do confitente, divergência que é por aquele querida, mas que ao assim proceder não tem como intuito enganar ninguém, posto que age na expectativa de que a falta de seriedade da sua declaração não passa despercebida, como é o caso das declarações jocosas, cénicas, didácticas, publicitárias, etc.”

Porém, continua o mesmo Acórdão, “a celebração de uma escritura pública é, desde logo um acto solene, em relação ao qual o cidadão de entendimento médio assume como acto sério, de elevada responsabilidade, ao ponto de o legislador não se satisfazer com o recurso à forma verbal ou a uma forma escrita menos solene para celebrar o tipo de negócio que o documento encerra. Logo, será pouco compaginável com as regras da experiência comum, que os outorgantes façam declarações não sérias em sede de uma escritura pública.”

Mas, ainda que se admita a possibilidade de declarações não sérias no âmbito de uma escritura pública, sempre haverá que alegar e provar as razões fácticas concretas ocorridas antes e no momento da celebração escritura pública que permitam concluir estar-se efectivamente perante uma declaração não séria.”.

Na teoria do negócio jurídico, a propósito da falta e vícios da vontade, de que os mesmos possam enfermar, encontramos a categoria dos negócios em que se pode verificar uma divergência intencional entre a vontade e a declaração. Dentro desta categoria, deparamo-nos legalmente com as figuras da simulação, reserva mental e declarações não sérias. A diferença essencial é que nas duas primeiras existe uma declaração negocial com o intuito de enganar terceiros ou o declaratário e na última figura não se quer enganar ninguém (arts. 240º, nº 1, 244º, nº 1, e 245º, nº 1, do CC).

A A. elegeu como causa de pedir a declaração não séria, o que se afigura coerente com a circunstância de na sua p.i. não ter alegado que ela e o R. quisessem enganar terceiros ou ela quisesse enganar o R.

Previna-se que este vício jurídico é de rara verificação. E no nosso caso concreto ele é mesmo de estranha ocorrência, pois não se consegue entender cabalmente, dentro da normalidade social, qual será o objectivo de os interessados efectuarem uma partilha não séria, não verdadeira, e ainda acrescentarem, adicionalmente, que as tornas já foram pagas/recebidas, fazendo-o por mera brincadeira, gozo ou encenação – salvo se quisessem simular tal negócio, que está fora de causa, pois na p.i. nada se alegou nesse aspecto.

Ou, em vez de serem ambos os interessados contratantes, ser só um, o declarante, a A., a brincar com o outro, o declaratário, o R., na expectativa que este não desconheça essa encenação ou declaração jocosa ??

Tanto mais que, como se relembra na sentença apelada, a celebração de uma escritura pública é, desde logo, um acto solene, em relação ao qual o cidadão de entendimento médio o assume como acto sério, de elevada responsabilidade. E que, ademais, pressupõe a prévia marcação do acto, apresentação de documentos, presença de notário, leitura do documento, pagamento do respectivo custo.

Para quê ter este trabalho, qual o insondável objectivo, se na declaração não séria o seu autor não tem vontade negocial, não a dirige à produção de quaisquer efeitos jurídicos ??

É, assim, nada ou pouco compaginável com as regras da experiência comum, que os outorgantes façam declarações não sérias em sede de uma escritura pública !         

Avancemos, contudo.

Mota Pinto (em T. G. D. Civil, 1ª Ed., pág. 374) esclarece que há declaração não séria, se o declaratário conhecia a falta de seriedade da declaração ou ela era exteriormente perceptível.

Mais desenvolvidamente Menezes Cordeiro (em Trat. Dir. Civ., II, Parte Geral, Negócio Jurídico, 4 ª Ed., 2014, págs. 813/815) professa que na declaração não séria, temos: - uma declaração linguisticamente capaz de exprimir uma declaração negocial eficaz; - acompanhada pela falta de vontade (consciência) de lhe emprestar uma dimensão jurídica; - em termos que, de algum modo, se reflitam seja no seu teor, seja nas circunstâncias que acompanhem o sucedido: uma falta de seriedade íntima, que não assuma uma dimensão de alteridade não releva para o Direito; - e na expectativa de que a falta de seriedade não seja desconhecida, isto é, de que o destinatário se aperceba dela; esta “expectativa” deve alicerçar-se em algo de substancial seja objectivamente (todos percebem a falta de seriedade) seja subjectivamente (o concreto destinatário deveria aperceber-se disso dado, por exemplo, o historial de brincadeiras entre ambos existente) – os sublinhados são da nossa autoria.

De sorte que:

- declaração patentemente não séria: aplica-se o art. 245º, nº 1:

- declaração secretamente não séria, aplica-se o regime da reserva mental, sendo o negócio válido e eficaz.

Assim, descendo ao caso concreto, ainda que se provassem integralmente os factos não provados, que a A. impugnou com vista a ficarem provados, os mesmos não demonstrariam que A. e R., ou só aquela, teriam produzido declarações não sérias. Na verdade, tal acervo factual não alicerçaria substantivamente tal não seriedade, seja objectivamente (todos percebem a falta de seriedade) seja subjectivamente (o concreto destinatário R. deveria aperceber-se disso por uma razão particular historicamente conectada à A.). Dessa factualidade não resulta que o R. conhecia a não seriedade da declaração da A. ou devia conhecer por ela ser exteriormente e patentemente não séria.

O que tal factualidade revelaria era o que a A. alegou na p.i. e repetiu nas suas conclusões de recurso F), G), L), O), S) e T): que A. e R. acordaram realmente na partilha, com a expectativa de aquela ir receber as correspondentes tornas por banda do R., em momento posterior à escritura.

Caso contrário, diz agora a A., não declararia a quitação.

Ora, a mencionada factualidade e alegação da A. revelam claramente que a A. queria efectuar a partilha, pressupondo que iria receber o valor das tornas. Não se trata, por isso, da emissão de uma qualquer declaração não séria, por brincadeira ou jocosa, nem patentemente não séria.

Se a A. não recebeu as tornas poderão pôr-se em equação outros fundamentos jurídicos para demandar o R., mas não com a causa de pedir invocada, a alegada declaração não séria de recebimento das tornas ou declaração não séria de querer efectuar partilha. 

Não procede esta parte do recurso.       

4. Face à resposta acabada de dar à questão da não seriedade da declaração de recebimento do preço efectuada pela A. na escritura de partilhas celebrada com o R., uma resposta negativa, então é de concluir pela validade da referida declaração e do subjacente negócio de partilhas. Como assim, não há lugar a qualquer pagamento de tornas, e juros, como a A. pretendia na sua p.i., e ora também reclamou na sua apelação (cfr. conclusão A:N) do seu recurso).

Não procede, pois, esta parte da apelação.

5. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC)

i) São declarações negociais não sérias (art. 245º, nº 1, do CC) as jocosas, cénicas, etc, não havendo nelas o intuito de enganar, e há mesmo a expectativa do declarante que não sejam tomadas a sério;

ii) Estão em causa situações em que existe um comportamento juridicamente valorado como declaração negocial, sem que contudo o seu autor o haja dirigido à produção de quaisquer efeitos jurídicos;

iii) Aquela “expectativa” deve alicerçar-se em algo de substancial seja objectivamente (todos percebem a falta de seriedade) seja subjectivamente (o concreto destinatário deveria aperceber-se disso dado, por exemplo, o historial de brincadeiras entre ambos existente): de sorte que a declaração seja patentemente não séria;

iv) É nada ou pouco compaginável com as regras da experiência comum, que os outorgantes façam declarações não sérias em sede de uma escritura pública, nomeadamente qual será o objectivo de os interessados efectuarem uma partilha não séria, e ainda acrescentarem, adicionalmente, que as tornas já foram pagas/recebidas, fazendo-o por mera brincadeira, gozo ou encenação, - salvo simulação -, ou ser só um outorgante, o declarante, a brincar com o outro, o declaratário, na expectativa que este não desconheça essa encenação ou declaração jocosa, tanto mais que a celebração de uma escritura pública é, desde logo, um acto solene em relação ao qual o cidadão de entendimento médio o assume como acto sério, de elevada responsabilidade, e que, ademais, pressupõe a prévia marcação do acto, apresentação de documentos, presença de notário, leitura do documento, e pagamento do respectivo custo.

IV- Decisão

Pelo exposto julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.

Custas a cargo da A.

                                                                  Coimbra, 20.4.2021

                                                             Moreira do Carmo

                                                              Fonte Ramos

                                                              Alberto Ruço