Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
184/15.3T8CBR-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: PROCESSO TUTELAR CÍVEL
REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
DECISÃO PROVISÓRIA
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE DA DECISÃO
Data do Acordão: 06/02/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTS.3, 4, 12, 28 RGPTC ( LEI Nº 141/2015 DE 8/9), ARTS. 154, 607, 615 Nº1 B) CPC, 205 CRP
Sumário: I – Uma decisão provisória proferida no âmbito de providência tutelar cível de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais instaurada no âmbito do RGPTC, sendo processo de “jurisdição voluntária” (cf. art. 12º do RGPTC), deve ser fundamentada, por lhe serem aplicáveis as disposições que constam dos arts. 154º e 607º do n.C.P.Civil, este último por força das remissões que resultam da conjugação do disposto nos arts. 295º e 986º, nº 1, do mesmo diploma legal.

II – Assim, o julgador, em consonância com o preceituado no art. 607º, nº4 do n.C.P.Civil, ainda que em medida devidamente adaptada ao caso, deve fundamentar tanto no plano fáctico, como no plano jurídico, a decisão por si proferida.

III – Consequente e decorrentemente, não obstante o princípio da “simplificação instrutória” a que se alude no art. 4º do RGPTC, devia ter sido proferida decisão sobre os meios de prova requeridos para alicerçar a posição duma das partes no particular de facticidade controvertida, por mais do que conveniente se afigurar como necessária a sua produção em ordem à prolação de uma fundamentada decisão sobre tal questão.

IV – Face à omissão de formalidade imposta por lei e reportando-se a mesma à ausência de produção de meios de prova requeridos por uma das partes no processo, não pode deixar de concluir-se no sentido de que o tribunal recorrido incorreu em nulidade secundária relevante, por poder influir na decisão da causa (cf. art. 195º, nº1 do n.C.P.Civil), nulidade processual esta que se projeta na decisão recorrida e a inquina enquanto tal.

Decisão Texto Integral:            
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 - RELATÓRIO

            No âmbito de autos de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais respeitantes ao menor R (…), em que é Requerente F (…) e Requerida T (…), foi incorporado um requerimento deduzido por aquele visando a fixação judicial de um “regime de férias de Verão”, por não ter «conseguido alcançar entendimento extrajudicial com a Requerida», em que designadamente foi expressamente alegado por ele o seguinte:

«(…)

75º

Está aceite pelos progenitores que o menor ficará na companhia do pai de 05/07 a 19/07 e de 31/07 a 15/08.

76º

A Requerida pretende que o menor fique na sua companhia de 16/08 a 31/08,

77º

Ao que o Requerente não se opõe, desde que corresponda apenas a 2 semanas consecutivas de permanência.

78º

A Requerida pretende que o menor continue na sua companhia de 31/08 a 04/09,

79º

O que o Requerente não aceita, por configurar 3 semanas consecutivas na companhia da Requerida, privando-o do convívio e protecção do filho, e compensação de todas as regras e rotinas que o mesmo não tem junto da Requerida,

(…)»

Termos em que o dito Requerente concluiu formulando o seguinte pedido:

«Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente requerimento ser julgado procedente, por provado, fixando-se que no corrente ano de 2020, o menor estará de férias de Verão:

a) Por acordo expresso entre ambos os progenitores, na companhia do pai, de 05/07, pelas 19h00, altura em que a mãe o entregará em caso do pai, e até 19/07, pelas 19h00, altura em que o pai o entregará em casa da mãe;

b) E, também por acordo expresso entre ambos os progenitores, de 31/07 pelas 10h00, altura em que a mãe o entregará em casa do pai (para início de viagem), até 16/08, pelas 10h00, altura em que o pai o entregará em casa da mãe;

c) Na companhia da Requerida, por acordo expresso entre ambos os progenitores, e caso a Requerida se encontre efectiva e realmente de férias, a comprovar nestes autos, de 16/08, pelas 10h00, altura em que o pai o entregará em casa da mãe, até 31/08, pelas

19h00, altura em que a mãe o entregará em casa do pai.

d) Caso a Requerida não se encontre verdadeiramente de férias no período de 16 a 31/08, deverá a mesma usufruir de férias na companhia do menor no período que se vier a comprovar que foi autorizado pela sua entidade patronal e desde que tal período não colida com os períodos em que o menor se encontrará de férias com o Requerente.

e) Caso o período de férias solicitado pela Requerida junto da sua entidade patronal e por estes autorizado, seja coincidente com algum dos períodos agendados e previamente comunicados pelo Requerente, deverá apurar-se em que data a Requerida solicitou o agendamento das suas férias junto da sua entidade patronal, de modo a verificar se o fez antes ou depois do Requerente lhe ter comunicado as suas férias, ou seja, se o fez antes de 27/01/2020 e 29/01/2020.

f) Caso a Requerida tenha solicitado marcação de férias junto da sua entidade patronal antes ou simultaneamente ao Requerente, os progenitores deverão dividir entre si as férias coincidentes, sendo que:

a. No que concerne ao período de 05 a 19/07, o menor iniciará com o pai, em 05/07 pelas 19h00, (uma vez que nesta semana tem viagem marcada e paga com o Requerente), altura em que a mãe o entregará em casa do pai, até 12/07, pelas 19h00, altura em que o pai o entregará em casa da mãe;

b. No que concerne ao período de 31/07 a 16/08, o menor iniciará com o pai, a 31/07, pelas 10h00, com quem viajará para o Algarve, onde a Requerida o recolherá no dia 09/08, pelas 10h00, na cidade de x... , e de 09/08, pelas 10h00 a 16/08, pelas 10h00, altura em que o Requerente o recolherá em casa da mãe;

g) Caso a Requerida tenha solicitado a agendamento de férias junto da sua entidade patronal após o Requerente lhe ter comunicado o seu período, ou seja, após 27/01/2020, e caso o período de ambos seja coincidente, provando-se que a Requerida o fez propositadamente, não deve esta ser autorizada a estar na companhia do menor, a título de férias, em tal período, convidando-se a mesma a proceder à sua alteração, para período não coincidente com os agendados pelo Requerente e com a advertência de que o período a agendar não pode ser superior a 2 semanas consecutivas, sob pena de não usufruir de férias de Verão na companhia do menor no corrente ano.»

            Com este requerimento o progenitor Requerente juntou um total de 15 documentos, requereu a produção de prova testemunhal e bem assim a notificação da entidade patronal da Requerida para esta prestar um conjunto de informações sobre os concretos pedidos de férias por parte da Requerida e datas em que foram apresentados, bem como sobre o que é que tinha sido autorizado ser por ela usufruído.

                                                                       *

            No exercício do contraditório sobre tal Requerimento de fixação judicial de um “regime de férias de Verão”, a Requerida contrariou a pretensão do Requerente, sustentando, designadamente. que «resolver de forma consensual significa que os dois têm de chegar a entendimento e fazer “cedências” e não só a Requerida», sendo que ela já teria alterado o período de férias de agosto, mas exige agora injustificadamente o Requerente que esta também o faça para o mês de setembro.

Termos em que concluiu pela seguinte forma:

«Nesta concomitância a Vª Exª, a divisão das férias de verão:

a) - para o mês de agosto, em 2 períodos de 16 dias a cada progenitor (31 de julho a 15 de agosto para o progenitor e 16 a 31 de agosto para a progenitora).

b) - para o mês de setembro, do dia 1 a 4, com a progenitora;»

                                                                       *

            Na imediata sequência processual, foi, sem mais, com data de 24.03.2020, solucionada a questão pela Mmª Juiz a quo através do seguinte despacho (1ª parte):

«Requerimentos dos progenitores quanto a férias de verão :

Uma vez que existe algum acordo entre ambos, e fazendo coincidir a permanência do R... com os seus pais nos períodos em que este estão de férias, determino que o R... passe de 6/7/2020, às 10 horas a 19/7/2020, às 19 horas, e de 31/7/2020, às 10 horas a 16/8/2020, às 10 horas na companhia do pai e desde então até 4/9/2020, às 19 horas na companhia da mãe.

Para este efeito, a mãe vai levar o R... a casa do pai nos dias 6/7/2020, 31/7/2020 e 4/9/2020; e o pai vai levá-lo a casa da mãe nos dias 19/7/2020 e 16/8/2020.

Notifique.»

                                                                       *

            Inconformado com esse segmento da decisão proferida, dela interpôs recurso o dito Requerente, F (…), o qual finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:

            «1- Vem o presente recurso interposto dos despachos que em 17/03/2020 decidiu não admitir/indeferir liminarmente ou não ordenar a providência cautelar instaurada;

2- Bem como do despacho que em 24/03/2020 decidiu deferir o pedido de férias de Verão nos termos formulados pela Recorrida,

(…)

4- Considera-se que ambos os despachos padecem de falta de fundamentação e que o primeiro, deliberada e conscientemente, diminuiu os direitos de defesa do Recorrente e, consequentemente, de protecção do seu filho menor e do seu superior interesse.

(…)

118- No que concerne à decisão que fixou o regime de férias de Verão para o corrente ano, a mesma padece de falta de fundamento legal e factual,

119- Sendo que, além do mais, se verifica uma omissão de pronuncia sobre as diligencias probatórias solicitadas pelo Recorrente, o que determina a nulidade da decisão proferida.

120- O Tribunal a quo justificou a sua decisão na circunstância de existir “algum acordo entre ambos” (progenitores),

121- Todavia, decidiu para lá do acordo que real e efectivamente existe entre ambos!

122- Com efeito, ambos estão de acordo que o menor esteja na companhia do Recorrente de 06/07/2020 a 19/07/2020 e de 31/07/2020 a 16/08/2020,

123- E na companhia da Recorrida de 16/08/2020 a 31/08/2020,

124- Não havendo qualquer acordo (aliás o motivo de recurso ao Tribunal foi precisamente a existência de desacordo!!), quando ao período solicitado pela Recorrida, de 01 a 04/09/2020,

125- O qual o Recorrente expressamente não aceitou e informou quer a Recorrida, quer o Tribunal a quo,

126- E que este sem qualquer fundamentação legal ou factual entendeu deferir a favor da Recorrida.

127- A Recorrida é useira e vezeira em faltar à verdade sobre os seus períodos de férias, alegando em Tribunal estar de férias em momentos em que não está, única e exclusivamente para privar o menor de estar com o Recorrente e seu agregado, mantendo-o na sua companhia, levando-o para o seu local de trabalho ou entregando-o a terceiros (amigas) enquanto se encontra a trabalhar, como sucedido no ano de 2019,

128- Sujeitando-o a sucessivas negligências, que ainda hoje se mantêm, e que contendem com a sua saúde (falta da toma de medicação), falta de higiene, falta de alimentação (não toma de refeições e ingestão de alimentos que o levaram aos serviços médicos, a episódios de diarreia, etc.), falta de descanso e continuação de dormida com a mãe na cama desta, exposição a ambientes nocivos (entrega a terceiros sem priorização do progenitor), privação do contacto com a sua família paterna, etc.,

129- As quais parecem passar despercebidas ao Tribunal a quo, que este ano e sobre este assunto pretende autorizar que o menor permaneça na companhia da Recorrida por 3 semanas consecutivas!

130- O Recorrente tem feito uma marcação equitativa das suas férias de Verão, potenciando tanto o seu convívio efectivo com o menor, como o deste com a Recorrida, sem artimanhas e esquemas.

131- O Recorrente não tem qualquer dúvida que a Recorrida agiu e continua a agir de má-fé no que às férias de Verão do corrente ano respeita,

132- Não só porque desde a conferência de pais de 27/01/2020, sabe que o Recorrente tem férias marcadas e já parcialmente pagas para a primeira quinzena de Agosto, nada tendo a Recorrida referido ou oposto nessa altura,

133- Como também porque ao dizer ao Recorrente que queria marcar a primeira quinzena de Agosto de férias e sendo esta a quinzena em que o Recorrente sempre vai de férias (como a mesma confessou saber nas suas comunicações via email), a Recorrida sabia que este lhe ia solicitar que alterasse a sua intenção,

134- O que a levaria a marcar a quinzena que desde sempre marca, ou seja, a segunda quinzena de Agosto, e mantendo a intenção de marcar a primeira semana de Setembro também como “férias”, acabaria por ficar com o menor por 3 semanas consecutivas.

135- Portanto, toda a presente situação é o resultado de um plano capciosa e ardilosamente elaborado pela Recorrida para tentar ficar com o seu filho por 3 semanas consecutivas, alegadamente de “férias”.

136- Não resulta das regras da experiência comum e do normal acontecer, nem tão pode é exigível a um homem comum colocado nesta situação, que acredite que a entidade patronal da Recorrida lhe conceda, em pleno Verão, 3 semanas de férias consecutivas!

137- O Tribunal a quo conhece estas partes e todas as vicissitudes que se vêm a verificar no que a este (e muitos outros assuntos) concerne, desde 2015, bem sabendo que desde aquela data até à presente, a fixação do regime de férias de Verão só se dá pela via judicial.

138- O Tribunal a quo está soberbamente municiado de documentação comprovativa das incongruências e contradições da Recorrida no que às férias respeita, plasmados nos sucessivos relatórios sociais e de EMAT (cfr. Apenso F),

139- Não podendo, por essa razão, decidir, com o devido respeito, da forma leviana como decidiu, ignorando as diligências probatórias solicitadas pelo Recorrente.

140- No ano passado, por esta mesma altura, o menor encontrava-se a residir de forma exclusiva, junto do pai, a quem o Tribunal a quo conferiu a guarda e residência exclusiva por contas das negligências da Recorrida, o que vigorou por mais de 1 ano e 2 meses, até 27/01/2020.

141- O único parágrafo constante do despacho datado de 24/03/2020 que fixa o regime de férias de Verão de 2020, não apresenta sustentação factual e legal, omite a decisão sobre os meios probatórios requeridos pelo Recorrente, sendo por conseguinte nulo.

142- Tal despacho deve ser substituído por outro que ordene ao Tribunal a quo que se pronuncie sobre as diligências probatórias requeridas pelo Recorrente, ordenando-as e fixando um regime de férias de Verão, no que à Recorrida respeita, em função do que resultar da concretização de tais diligências.

143- Torna-se imperioso que as decisões sobre as questões inerentes a cada caso garantam ordem e segurança jurídica.

144- Os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança são elementos constitutivos do Estado de direito.

145- O princípio de Estado de direito democrático postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas.

146- As decisões que por sua natureza, obviem de forma intolerável, arbitrária ou demasiada opressiva aqueles mínimos de certeza e segurança, que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terão de ser entendidas como não consentidas pela lei básica.

147- A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, quando for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes.

148- No caso em apreço, torna-se evidente a violação destes dois princípios, na medida em que, com a sua actuação, o Tribunal a quo fez com que deixasse de ser possível ao Recorrente proteger o seu filho, saúde e vida, com consequências gravosas e imprevisíveis (no caso de contágio), e, consequentemente, deixando de poder confiar nas decisões judiciais, sua imparcialidade e proporcionalidade, face aos direitos e interesses em causa (com relevância constitucional).

149- O direito que o Recorrente pretendeu acautelar foi o superior interesse do seu filho, na vertente de protecção da sua saúde e vida.

150- Não se considera que estejamos perante uma situação de colisão de direitos (art. 335º do Código Civil), porquanto, os direitos do seu filho sobrepunham-se ao direito de visita da Recorrida.

151- Ao não julgar dessa forma, e salvo o devido respeito por melhor entendimento, o Tribunal a quo abusou do poder que lhe estava confiado, dando preferência aos direitos maternos em detrimento do direito do filho.

152- A sobreposição dos direitos da Recorrida, face ao superior interesse do menor e seus direitos constitucionais de saúde e vida, configura, igualmente um abuso de direito daquela perante o menor.

153- Os tribunais são independentes, estando sujeitos à lei.

154- É a Lei que determina que o superior interesse do menor se sobreponha aos legítimos direitos dos seus progenitores, podendo estes, em situações excepcionais, ser afastados para protecção dos próprios menores.

155- O Tribunal a quo, ao abrigo da lei e porque sujeito a ela, deveria ter feito uma ponderação das circunstâncias do caso de forma diversa da que fez, aplicando os normativos legais pela hierarquia em que se apresentam e não preterindo direitos constitucionais do menor, a favor de direitos de menor valoração da Recorrida.

156- Foram múltiplas as diligências probatórias solicitadas pelo Recorrente ao Tribunal a quo no que concerne a cada um dos assuntos colocados à sua consideração (fixação de regime de férias de Verão e providência cautelar).

157- Sem qualquer motivação ou fundamentação, todos eles foram postergados pelo mencionado Tribunal, que nem sequer sobre os mesmos se pronunciou.

158- Consequentemente, verifica-se uma omissão de pronuncia que, nos termos legais, determina a consequente nulidade do despacho,

159- Acresce que não tendo sido ordenada qualquer diligência probatória, fosse em relação ao regime de férias de Verão a fixar, fosse em relação à providência cautelar, o que se verifica é que a apreciação feita aos dois assuntos foi imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária.

160- A discricionariedade da apreciação da prova está limitada pelo dever de perseguir a “verdade material”, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo.

(…)

180- No que concerne ao despacho que fixou um regime de férias para o Verão de 2020, ainda que considerando a delonga a que este recurso estará sujeito, crê-se que o mesmo sempre será apreciado e decidido em tempo útil, o que se requer.

181- Violadas ficaram, pois, as normas constantes dos art. 4º, nº.1, al. b) e 5º do Decreto-Lei nº. 2-A/2020 de 20/03; 13º, 20º, 24º, 25º, 64º, 202º, 203º, 205º, nº.1 e 208º da Constituição da República Portuguesa; 334º do Código Civil; 2º e 6º da Convenção dos Direitos da Criança; 3º da Convenção sobre os Direitos da Criança; 3º e 4º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo; 52º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível; 3º do Decreto nº. 52/2008, adoptada em Haia; 22º da Lei de Organização do Sistema Judiciário; 154º, 3652º e 615, nº.1, al. b) do Código de Processo Civil, bem como o Decreto-Lei nº. 10-A/2020, de 13/03.

Termos em que, com o douto suprimento de V.ªs Ex.ªs., deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:

a) (…);

b) Ser revogado o despacho datado de 24/03/2020, substituindo-o por outro que:

a. No que concerne à fixação de regime de férias de Verão 2020, ordene a realização das diligências probatórias solicitadas pelo Recorrente no seu requerimento datado de 07/03/2020, com a referência Citius 5658496,

b. (…)

Assim se fazendo, aliás como sempre,

JUSTIÇA!»

                                                                       *

            Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                       *

            De referir que quanto à arguição das nulidades da decisão proferida, a Exma. Juíza que prolatou a mesma, indeferiu a sua verificação, aduzindo para tanto que «Já o despacho de 24/3/2020, relativo às férias de verão, esquece-se o recorrente de atentar na parte em que se afirmou pretender-se fazer «coincidir a permanência do R... com os seus pais nos períodos em que estes estão de férias ». Em suma, não estamos perante qualquer uma das nulidades invocadas, ou qualquer outra.»

                                                                       *

Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso[2], cumpre apreciar e decidir.

                                                           *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- a das nulidades da decisão recorrida, por alegada omissão de pronúncia e por ausência de motivação ou fundamentação;

- em qualquer caso, desacerto da decisão recorrida, por materialmente injusta.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade que interessa ao conhecimento do presente recurso é a que consta do precedente relatório, para o qual se remete, por economia processual.         

                                                                       *                   

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Que dizer quanto às arguidas nulidades da decisão recorrida, por alegada omissão de pronúncia e por ausência de motivação ou fundamentação?

Preliminarmente cumpre referir que face aos dados da situação a que este Tribunal de recurso teve acesso, a decisão recorrida e ora em apreciação – que operou a fixação judicial de um “regime de férias de Verão” – foi proferida no contexto dos pendentes autos de alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais respeitantes ao menor R (…), na medida em que nada até então havia sido decidido/fixado quanto a esse particular, e ante a confessada/reconhecida falta de acordo dos progenitores sobre tal aspeto.

Ora se assim é, cremos que também se pode reconduzir uma tal decisão ao quadro do artigo 28º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (aprovada pela Lei nº 141/2015, de 8 de Setembro)[3] onde se prevê que, durante a pendência de um processo de regulação das responsabilidades parentais, pode (e deve) o Tribunal decidir, a título provisório, as matérias que devam ser apreciadas no final do processo.

Assente isto, que condições é que devem ser observadas antes da prolação de uma tal decisão?

E, vista a questão sobre outro prisma, a que requisitos é que uma tal decisão deve obedecer?

Será à luz destes pressupostos, salvo o devido respeito, que se elucida o critério e diretriz da apreciação das questões sob recurso.

Senão vejamos.

Consabidamente, no âmbito da regulação do exercício das responsabilidades parentais nem sempre a regulação dos interesses conflituantes pode aguardar a prolação de uma decisão definitiva do tribunal.

Na verdade, pode tornar-se necessário obter uma composição provisória da situação controvertida antes da decisão definitiva, sendo certo que, nos termos gerais, tal composição justifica-se sempre que ela seja necessária para assegurar a utilidade da decisão ou a efetividade da tutela jurisdicional – art. 2º, nº 2, in fine, do n.C.P.Civil, ex vi do art. 33º, nº1, do citado RGPTC, e art. 28º, nº1, deste último diploma legal.

Neste contexto, obviamente que a tutela processual provisória decorrente das decisões provisórias e cautelares é instrumental perante as situações jurídicas decorrentes do direito substantivo.

Dito de outra forma: na pendência da providência tutelar cível de regulação do exercício do poder paternal, pode mostrar-se necessário acautelar certos efeitos dessa regulação ou definir regimes provisórios relativamente a alguns desses efeitos, donde tal justificar a consagração legal de algumas providências provisórias e cautelares específicas que podem ser cumuladas com o respectivo processo definitivo – dito art. 28º, nº 1, do RGPTC.

            Por outro lado, não olvidamos que, ao contrário do que sucede quanto às providências tipificadas no C.P.Civil, as decisões provisórias proferidas em processo tutelar cível são reguladas segundo critérios de conveniência – art. 28º, nos 1 e 3 do RGPTC.

Simplesmente a estas ditas decisões provisórias proferidas em processo tutelar cível aplica-se o princípio geral decorrente do art. 154º, nº1, do n.C.P.Civil, a saber, encontra-se neste imposto um dever geral de fundamentação de todas as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo, acrescentando no nº2 que a justificação não pode consistir na mera adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, sendo certo que o art. 21º do RGPTC alude expressamente à “fundamentação da decisão”.

            Acrescendo que em igual sentido se prescreve no art. 205º, nº1 da Constituição da República Portuguesa (doravante “CRP”), o qual nos diz que «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.»

            Mas o que se deve entender afinal por dever de “fundamentação”?

            Conforme flui deste citado art. 205º, nº 1 da CRP, a fundamentação das decisões no nosso ordenamento jurídico é um elemento essencial, constituindo fonte de legitimação.

Temos presente que desde logo a lei impõe como critério e base essencial da fundamentação da decisão em matéria de facto, o «exame crítico das provas», mas não define, nem expressa elementos sobre algum modelo de integração da noção.

O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto – , mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.

O exame é a análise das provas; a crítica, na semântica, é a abordagem da valia de cada um dos meios de prova, em ordem a ancorar a convicção probatória e que vai permitir ao tribunal credibilizar alguns desses meios e refutar outros.

No nosso sistema processual as decisões de facto não assentam puramente no íntimo convencimento do julgador, num mero intuicionismo, antes se exigindo um convencimento racional, devendo, pois, o juiz pesar com justo critério lógico o valor das provas produzidas, o que está em conexão com o também neste aspecto chamado “princípio da publicidade”, o qual já foi doutamente definido como sendo «aquele segundo o qual o processo - e portanto a actividade probatória e demonstrativa - deve ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo e presumivelmente se convença como o julgador (...)»[4], o que, no entanto, não exclui a intuição ou conhecimento por outros sentidos, em si insusceptíveis de serem demonstrados exteriormente.

«Na impossibilidade de submeter a apreciação da prova a critérios objectivos (como são os que exigem uma demonstração por leis científicas) a lei apela à convicção íntima ou subjectiva do tribunal. Essa convicção exigida para a demonstração do facto é uma convicção que, para além de dever respeitar as leis da ciência e do raciocínio, pode assentar numa regra máxima da experiência. A convicção sobre a prova do facto fundamenta-se em regras de experiência baseadas na normalidade das coisas e aptas a servirem de argumento justificativo dessa convicção. Essas regras de experiência podem corresponder ao senso comum (...) ou a um conhecimento técnico ou científico especializado. A convicção do tribunal extraída dessas regras da experiência é uma convicção argumentativa, isto é, uma convicção demonstrável através de um argumento. A regra de experiência que o tribunal pode utilizar para fundamentar a sua convicção sobre a prova realizada é a mesma que pode ser usada pela parte como argumento para a formação dessa convicção. Quer dizer: a máxima de experiência que pode convencer o tribunal da veracidade do facto é a mesma que pode ser utilizada para a fundamentação da decisão desse órgão sobre a apreciação da prova»[5].

A análise crítica das provas obriga o juiz a verificar e a controlar os meios de prova produzidos, aferindo em conjunto a respectiva força probatória; tem pois, a função endoprocessual de formar a convicção íntima do juiz.

Com a imposição dessa análise crítica das provas produzidas, visa-se a formação da convicção através de «um processo racional, alicerçado e, de certa maneira, objectivado e transparente – na análise criticamente comparativa dos diversos dados trazidos através das provas e na ponderação e maturação dos fundamentos e motivações essencialmente determinantes da opção feita e cuja enunciação, por exigência legal, representa o assumir das responsabilidades do julgador inerentes ao carácter público da administração da justiça»[6].

            Deste modo, para ser cumprido o referido dever de fundamentação pelo julgador, não basta, assim, o mesmo expressar que tal é fruto da convicção a que chegou (foro íntimo e insindicável), importando verdadeiramente que este consigne a manifestação ou exteriorização dessa convicção na decisão proferida.

Ora se assim é, obviamente que o juiz não se pode limitar a enunciar a conclusão do seu raciocínio sem indicar as premissas que a ele conduziram.

Vejamos então e mais uma vez o segmento nuclear e realmente questionado pelo presente recurso da decisão do tribunal de 1ª instância:

«Requerimentos dos progenitores quanto a férias de verão :

Uma vez que existe algum acordo entre ambos, e fazendo coincidir a permanência do R... com os seus pais nos períodos em que este estão de férias, determino que o R... passe de 6/7/2020, às 10 horas a 19/7/2020, às 19 horas, e de 31/7/2020, às 10 horas a 16/8/2020, às 10 horas na companhia do pai e desde então até 4/9/2020, às 19 horas na companhia da mãe.

Para este efeito, a mãe vai levar o R... a casa do pai nos dias 6/7/2020, 31/7/2020 e 4/9/2020; e o pai vai levá-lo a casa da mãe nos dias 19/7/2020 e 16/8/2020.

Notifique.»

Cremos que, s.m.j., a decisão recorrida denuncia ela própria uma limitação de base, qual seja, a de que o acordo dos pais era apenas parcial.

Ora se assim é, salvo o devido respeito, tinham que ser os elementos da discordância/desacordo claramente expostos e enunciados, em ordem a que a decisão optativa proferida se afigurasse como efetivamente ponderada relativamente ao que estava em causa.

Ainda que se reconheça ser a decisão recorrida apenas destinada às férias de Verão de 2020, donde “provisória” por natureza, e em atenção ao pressuposto, meramente implícito, da necessidade/oportunidade da sua fixação, não se apreciou do ponto de vista jurídico a necessidade de fixação daquele regime provisório e o porquê do conteúdo do mesmo.

Mais concretamente não se apresenta justificação e razão de ser para se ter dado prevalência ao pedido da Requerida no tocante ao período correspondente ao início do mês de Setembro, a saber, de 31/08 a 04/09.

Ora aqui entronca a necessidade de realização de prova.

Na verdade, era disputado/controvertido entre as partes o direito da Requerida a ter o menor nesse período correspondente ao início do mês de Setembro.

Sendo que para fundamentar as razões da sua discordância, no requerimento em que pediu a fixação judicial em referência, o Requerente para além de ter junto um total de 15 documentos, requereu a produção de prova testemunhal e bem assim a notificação da entidade patronal da Requerida para esta prestar um conjunto de informações sobre os concretos pedidos de férias por parte da Requerida e datas em que foram apresentados, bem como sobre o que é que tinha sido autorizado ser por ela usufruído.

Contudo, a Exma. Juíza a quo não proferiu qualquer despacho relativamente a esses meios de prova, optando por proferir sem mais a decisão recorrida, a qual se mostra singela e linearmente fundamentada nos termos supra transcritos.

 Isto é, para além de não resultar que tenha sido produzida qualquer prova, nem sobre esse requerimento ter havido qualquer pronúncia, deveria a decisão proferida conter a fundamentação, quer factual, quer jurídica, justificativa do sentido das suas opções.

Na verdade, quanto a este último particular – o da fundamentação – da leitura da decisão recorrida não resulta que se tenha efectuado qualquer apreciação jurídica da necessidade da fixação dum regime provisório, decorrente de factos que se tenham apurado, nem do conteúdo desse regime, limitando-se ela a estabelecer uma divisão do período de férias, nomeadamente no que ao período temporal disputado/controvertido (período de 31/08 a 04/09) sem qualquer específica e expressa razão justificativa.

Assim sendo, desconhecem-se verdadeiramente as premissas em que se baseou para fixar provisoriamente aquele regime de férias – a ele presidindo e sendo critério da opção – em ordem a dar prevalência ao pedido da Requerida no tocante ao período correspondente ao início do mês de Setembro (mais concretamente de 31/08 a 04/09).

Em suma, desconhece-se nos seus termos essenciais o percurso lógico que foi feito pela Mmª Juíza a quo no sentido de fixar o dito segmento do período de férias correspondente ao início do mês de Setembro (mais concretamente de 31/08 a 04/09) que acima se transcreveu.

A decisão omite a factualidade em que se baseia, e a referência genérica nela constante não pode entender-se como satisfazendo o mínimo de fundamentação.

A decisão da Exma. Juiza a quo surge, assim, meramente como um resultado, como a conclusão de um raciocínio.

Isto é, na decisão sob recurso conclusivamente expôs-se a convicção a que se chegou, mas com base em premissas não explicitadas ou cujo sentido seja apreensível…

É certo que quando se fala, a tal propósito, em “falta de fundamentação” – isto para que se considere verificado o vício da nulidade da falta de fundamentação da decisão [cf. al.b) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil] – está-se a aludir à falta absoluta e não às situações em que a fundamentação é deficiente, incompleta ou não convincente.

Sem embargo, importa ter presente que se constitui como mais completo e rigoroso o entendimento de que também e ainda ocorre essa nulidade “quando a fundamentação de facto ou de direito seja insuficiente e em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial[7].

Na verdade, este mais completo conceito de dever de fundamentação cumpre ainda uma função primordial: pela necessidade das partes, com vista a apurar do seu acerto ou desacerto e a decidir da sua eventual impugnação, precisarem de conhecer a sua base fáctico-jurídica; para que não só as partes, como a própria sociedade, entendam as decisões judiciais, e não as sintam como um acto autoritário, importa que tais decisões se articulem de forma lógica; a fundamentação da sentença revela-se indispensável em caso de recurso, pois na reapreciação da causa, a Relação tem de saber em que se fundou a decisão recorrida; mesmo porque os processos de jurisdição voluntária, como é o caso dos autos, têm também outras características singulares de que se destaca a predominância do princípio do inquisitório na investigação dos factos e na obtenção das provas (art. 986º, nº2 do n.C.P.Civil) e a alterabilidade das decisões com base em alteração superveniente das circunstâncias que as determinaram (art. 988º, nº1 do mesmo n.C.P.Civil), face ao que, nestes processos (de jurisdição voluntária), as decisões, ao invés do que sucede nos outros tipos de processo, não são, após o seu trânsito em julgado, definitivas e imutáveis. Elas são alteráveis sempre que se alterarem as circunstâncias em que se fundaram. Trata-se duma espécie de caso julgado, sujeito a uma cláusula “rebus sic stantibus” ou seja um caso julgado com efeitos temporalmente limitados[8], donde carecer de ficar explicitada na decisão todo o concreto acervo factual que a fundou, sob pena de postergação do direito constitucional a uma tutela jurisdicional efetiva.

O Tribunal Constitucional já deixou escrito a este mesmo respeito, no seu acórdão n.º 778/2014, o seguinte: «O artigo 20.º da Constituição, sob a epígrafe «Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva», garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legí­timos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efective através de um processo equitativo (n.º 4).

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais implica a ga­rantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, cujo âmbito normativo abrange, nomeadamente: (a) o direito de acção, no sen­tido do direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao pro­cesso, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão funda­mentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a deci­são haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumarie­dade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º 440/94).

Acresce ainda que o direito de ação ou direito de agir em juízo terá de efectivar-se através de um processo equitativo, o qual deve ser entendido não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais.

A jurisprudência e a doutrina têm procurado densificar o conceito de processo equitativo essencialmente através dos seguintes princípios: (1) direito à igualdade de armas ou igualdade de posição no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; (2) proibição da indefesa e direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras; (3) direito a prazos razoáveis de acção e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiados exíguos; (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em prazo razoável; (6) direito de conhecimento dos dados do processo (dossier); (7) direito à prova; (8) direito a um processo orientado para a justiça material (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Ano­tada, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, Volume I, págs. 415 e 416).

Importa ainda salientar que a exigência de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo. No entanto, no seu núcleo essencial, tal exigência impõe que os regimes adjectivos proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efectiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva.» (v., também, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 235/2011, 350/2012, 839/2013, 204/2015 ou 569/2015).»[9] (com sublinhado nosso).

Importa ter presente, também, que o direito de acesso à justiça comporta indiscutivelmente o direito à produção de prova.[10]

Consabidamente, a instrução do processo[11] tem por objecto factos controvertidos – através dela procede-se com vista à demonstração desses factos ou, pelo contrário, com vista a impedir essa demonstração (depende da perspectiva da parte), isto é, a actividade instrutória destina-se «à produção das provas destinadas à formação da convicção do tribunal quanto aos factos alegados que interessam à decisão e hajam sido impugnados».[12]

O que tudo serve para dizer que não pode deixar de se reconhecer que a obtenção das aludidas informações junto da entidade patronal da Requerida, para efeitos de prova pelo Requerente, não se nos afigura impertinente nem dilatória, afigurando-se antes como necessária.

Donde, devia ter-se dado acolhimento à pretensão formulada pelo Requerente e ora Recorrente de obtenção daquelas concretas informações pelo Tribunal.

Já foi doutamente sublinhado que se pode legitimamente falar de uma «(…) evolução (talvez mesmo de uma mudança da paradigma) do regime legal relativo à requisição de informações e documentos que abandona a perspetiva restritiva – compreensível num processo puro ou acentuadamente de partes - de um mero poder subsidiário, residual, excecional e discricionário do julgador quanto a tal procedimento para o transformar num verdadeiro poder-dever (ou, pelo menos e segundo ABÍLIO NETO, num poder discricionário vinculado), a exercer na primeira linha de combate da ação, quando necessário para a boa e correta composição do litígio e que é judicialmente sindicável por via recursória, cenário esse a que não é estranho o reforço dos princípios do inquisitório e da gestão processual por parte do juiz que se mostram previstos, entre outros, nos artigos 5.º da Lei n.º 41/2013, de 26/6 - que aprovou o novo Código deProcesso Civil - e 2.º, 3.º, 5.º, n.º 2, 6.º, 7.º, 526.º, 547.º, 590.º e 602.º do NCPC.»[13]

O que se aplica, s.m.j., paradigmaticamente no que ao pedido de informações junto da entidade patronal da Requerida!

Dito de outra forma: a situação ajuizada que se vem de expor é precisamente uma daquelas em que face ao tipo de elementos requeridos, sua relevância material e bem assim à sua necessidade para completa elucidação, designadamente, em função do seu cariz e conteúdo, o Tribunal não podia ter deixado de, com maior amplitude e abertura, deferir a sua prestação.

Com efeito, nada no caso vertente, permite legitimamente antever que em função da matéria/natureza das informações pretendidas poderiam surgir obstáculos à sua prestação pela entidade patronal da Requerida (nomeadamente por não ser caso de invocação com base no princípio da confidencialidade e proteção de dados pessoais), vinculada que está à satisfação do solicitado (cf. o art. 21º, nº3 do RGPTC).

O que, mutatis mutandis se poderá igualmente afirmar no tocante à igualmente requerida produção de prova testemunhal…

Acresce dizer que, estando como se estava no domínio dum processo de “jurisdição voluntária” (cf. art. 12º do RGPTC), tal não invalida que qualquer decisão nele proferida deva ser devidamente fundamentada – nesse sentido aponta a remissão para o art. 607º do n.C.P.Civil, constante do art. 295º, para que remete o art. 986º, nº1, ambos do mesmo n.C.P.Civil!

Flui da conjugação de quanto vem de referir-se que:

i) compete às partes num dado processo o direito a oferecerem prova dos factos que alegam e que consideram relevantes para a determinação do sentido da decisão final, sem perder de vista a regra da livre admissibilidade dos meios de prova associada ao princípio da livre convicção do julgador consagrado no art. 607º, nº5 do n.C.P.Civil;

ii)  em face dos meios de prova indicados pelas partes, compete ao juiz examinar se é legalmente permitida a produção dos meios de prova oferecidos, deferindo-a ou indeferindo-a, sendo que neste último caso deve fazê-lo com prévia observância do princípio do contraditório e de forma fundamentada, tudo sem perder de vista que a instrução tem por objeto os factos controvertidos e relevantes para o exame e decisão da causa tendo em conta as várias soluções plausíveis da questão de direito;

iii) estando em causa uma providência provisória no quadro do RGPTC, deve ter lugar, na medida do necessário e conveniente, a produção de meios de prova aptos à elucidação da facticidade controvertida que tal decisão implica.

Ora, no caso em apreço, não obstante a “simplificação instrutória” a que alude o art. 4º do RGPTC, o tribunal recorrido proferiu a decisão recorrida sem prévia e explicitamente ter deferido ou indeferido os meios de prova requeridos pelo Recorrente, sendo que por essa via incorreu em triplo vício: i) não produziu uma decisão que necessariamente deveria ter proferido no sentido de os admitir ou não, omitindo assim uma formalidade prescrita por lei; ii) violou o princípio do contraditório ao não ter proporcionado ao apelante a possibilidade de discutir efetivamente a produção ou não dos meios de prova por si arrolados; iii) violou o direito da recorrente a um processo equitativo pois que lhe vedou, sem contraditório e sem fundamentação, a produção de prova que tinha requerido e na qual tinha interesse.

Tratando-se de omissão de formalidade imposta por lei e reportando-se a mesma à ausência de produção de meios de prova requeridos por uma das partes no processo, não pode deixar de concluir-se no sentido de que o tribunal recorrido incorreu em nulidade secundária relevante por poder influir na decisão da causa (cf. art. 195º, nº1 do n.C.P.Civil).

Importa recordar que tendo tal nulidade decorrido de decisão judicial passível de impugnação judicial, o meio próprio de arguição da mesma era, como foi, o da interposição do presente recurso de apelação.

Com efeito, como já nos foi doutamente ensinado, «dos despachos recorre-se e contra as nulidades reclama-se»[14], extraindo-se desse ensinamento, designadamente, que quando há um despacho ou uma sentença final que contenha, encerre ou consolide um ato viciado, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida não é arguição ou reclamação da nulidade, mas a impugnação do respetivo despacho/sentença pela interposição do competente recurso, pois que a arguição duma nulidade só é admissível quando a infração processual não está ainda indireta ou implicitamente coberta por qualquer decisão judicial.

Dito de outra forma: nesta parte não se verifica a nulidade do art 615º, nº1, al.d), do n.C.P.Civil  [“O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”], nulidade típica da “sentença” e seu vício estrutural[15], mas antes uma nulidade processual que se projeta na decisão e a inquina enquanto tal[16].  

O que tudo serve para dizer o seguinte: deve anular-se a decisão recorrida e todos os atos subsequentes à mesma, devendo ser proferida decisão que de modo fundamentado admita ou não a produção dos meios de prova requeridos pelo Requerente e ora recorrente, assegurando-se posteriormente a tramitação processual que se julgue adequada; este vício prioritário consome qualquer outro eventual vício que seja logicamente posterior, sendo certo que como consequência da inobservância do igualmente referido dever de fundamentação, sempre se verificaria a nulidade do despacho recorrido, que não especificou os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão – cfr. dito art. 615º, nº 1, al. b) do n.C.P.Civil.

                                                                       *

            O sentido da decisão conferida à primeira questão, prejudica o conhecimento da outra suscitada na apelação.

                                                                       *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Uma decisão provisória proferida no âmbito de providência tutelar cível de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais instaurada no âmbito do RGPTC, sendo processo de “jurisdição voluntária” (cf. art. 12º do RGPTC), deve ser fundamentada, por lhe serem aplicáveis as disposições que constam dos arts. 154º e 607º do n.C.P.Civil, este último por força das remissões que resultam da conjugação do disposto nos arts. 295º e 986º, nº 1, do mesmo diploma legal.

II – Assim, o julgador, em consonância com o preceituado no art. 607º, nº4 do n.C.P.Civil, ainda que em medida devidamente adaptada ao caso, deve fundamentar tanto no plano fáctico, como no plano jurídico, a decisão por si proferida.

III – Consequente e decorrentemente, não obstante o princípio da “simplificação instrutória” a que se alude no art. 4º do RGPTC, devia ter sido proferida decisão sobre os meios de prova requeridos para alicerçar a posição duma das partes no particular de facticidade controvertida, por mais do que conveniente se afigurar como necessária a sua produção em ordem à prolação de uma fundamentada decisão sobre tal questão.

IV – Face à omissão de formalidade imposta por lei e reportando-se a mesma à ausência de produção de meios de prova requeridos por uma das partes no processo, não pode deixar de concluir-se no sentido de que o tribunal recorrido incorreu em nulidade secundária relevante, por poder influir na decisão da causa (cf. art. 195º, nº1 do n.C.P.Civil), nulidade processual esta que se projeta na decisão recorrida e a inquina enquanto tal. 

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, em consequência, anula-se a decisão recorrida, proferida no dia 24 de Março de 2020, que procedeu à fixação judicial de um “regime de férias de Verão”, e todos os atos subsequentes à mesma concernentes a tal aspeto, devendo ser proferida decisão que de modo fundamentado admita ou não a produção dos meios de prova requeridos pelo Requerente e ora Recorrente, assegurando-se posteriormente a tramitação processual que se julgue adequada antes da oportuna prolação de decisão final fundamentada sobre aquela questão.

            Custas do presente recurso a cargo da Requerida ora Recorrida.

                                                                       *

            Coimbra, 2 de Junho de 2020  

             Luís Filipe Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

Ana Márcia Vieira


[1] Relator: Des. Luís Cravo
   1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
   2º Adjunto: Des. Ana Vieira
[2] De referir que foi igualmente interposto pelo Requerente e ora Recorrente um segundo recurso – visando o Despacho proferido no dia 17.03.2020 (que versou sobre a “providência cautelar” requerida), e bem assim o Despacho proferido no dia 24.03.2020, 3ª parte, isto é, na parte em que indeferiu o pedido de “suspensão da execução do regime de regulação das responsabilidades parentais em vigor e da definição de um regime provisório excecional” (objeto da dita “providência cautelar”) – mas em relação a esse recurso, por despacho preliminar do aqui Relator nos termos e para os efeitos do disposto no art. 652º, nº1, al.h) do n.C.P.Civil, foi considerado que ocorreu a sua manifesta inutilidade superveniente, donde se ter julgado findo tal recurso por não haver que conhecer do seu objeto (cf. despacho proferido em 2020.05.13).
[3] Doravante “RGPTC”.
[4] Assim por CASTRO MENDES in “Do Conceito de Prova”, a págs. 302.
[5] Cfr. TEIXEIRA DE SOUSA, in “As Partes, o Objecto e a Prova na acção declarativa”, 1995, a págs. 239.
[6] Cfr. PEREIRA BAPTISTA, in “Reforma do Processo Civil”, 1997, 90 e segs,.
[7] cf., “inter alia”, o ac. do TRC de 17-04-2012, no processo nº 1483/09.9TBTMR.C1, acessível in www.dgsi.pt/jtrc, com entendimento que persiste como perfeitamente válido no presente quadro normativo.

[8] Cfr. J.P. REMÉDIO MARQUES, in “Algumas notas sobre alimentos (devidos a menores)” – Centro de Direito de família – vol. 2 , a págs. 106.



[9] sobre esta temática do direito de acesso aos tribunais e a um processo justo e equitativo, nas diferentes valências em que os mesmos devem concretizar-se, pode também consultar-se o acórdão do Tribunal Constitucional nº 462/2016 – estando todos os arestos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
[10] Neste sentido vide M. TEIXEIRA DE SOUSA, “As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, Lisboa, 1995, a págs.. 228 e segs; NUNO LEMOS JORGE, “Direito à prova: brevíssimo roteiro jurisprudencial”, in Revª Julgar, n.º 6, Lisboa, 2008, a págs. 99 a 106; MICHELLE TARUFFO, “Il Diritto alla prova nel processo civile”, in Riv. dir. proc., 1984, a págs. 77 e 78; G. WALTER, “Il diritto alla prova in Svizzera”, Riv. trim. di dir. e proc. civ. 1991, a págs. 1198.
[11] Decorre, em geral, do art. 410º do n.C.P.Civil que a instrução tem por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova.
[12] Citámos FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, in “Direito Processual Civil”, Livª Almedina, 2015, vol. II, a págs. 220.
[13] Neste sentido a Decisão Individual de 03-05-2016 do T.Rel. de Lisboa, proferida no proc. nº. 3149/15.1T8BRR-A.L1-4, acessível em www.dgsi.pt/jtrl
[14] Por ALBERTO DOS REIS, in “Comentário ao CPC”, Volume 2º, a págs. 507.
[15] Atente-se que “Questões” submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
[16] Mais aprofundadamente sobre este aspeto, vide A. ABRANTES GERALDES, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Livª Almedina, 2013, a págs. 21-23.