Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MOREIRA DO CARMO | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE INSOLVÊNCIA CULPOSA OCULTAÇÃO DO PATRIMÓNIO | ||
Data do Acordão: | 05/28/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | FORNOS DE ALGODRES | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS.120, 121, 186, 235, 238 CIRE | ||
Sumário: | 1.- Obsta ao deferimento da exoneração do passivo restante de pessoa singular que a mesma tenha culposamente criado ou agravado a situação de insolvência, nos termos do art. 186º do CIRE. 2.- Para efeito de qualificação da insolvência como culposa, o nº 2 do artigo 186º do CIRE elenca diversas situações concretas em que a insolvência há-de sempre ser considerada como culposa, instituindo a lei consequentemente uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência. 3.- Ao invés, o nº 3 do mencionado normativo legal estabelece apenas uma presunção de culpa grave, presunção juris tantum que pode ser elidida por prova em contrário, pelo que, mesmo que tal presunção se verifique, se exige ainda, para a actuação do insolvente como culposa, se demonstre que tenha sido a actuação/omissão do devedor a causar ou agravar a situação de insolvência, nos termos do nº 1 do citado art. 186º. 4.- A ocultação prevista no art. 186º, nº 2, a), do CIRE basta-se com uma actuação que, alterando a situação jurídica do bem - por ex: vendendo um imóvel a terceiro, com uma relação próxima directa ou indirecta com o alienante, ou ocultando o preço recebido - impeça ou dificulte a sua identificação, acesso ou accionamento pelo credor. | ||
Decisão Texto Integral: | I – Relatório 1. FJ (…) e FM (…), casados entre si, residentes em Fornos de Algodres, requereram no âmbito do respectivo pedido de insolvência de pessoa singular, a exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no art. 235º e segs. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Por sentença datada de 22.11.2012 foi declarada a insolvência dos requerentes. O Administrador de Insolvência apresentou o respectivo parecer, onde concluiu nada ter opor a que fosse proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante, sendo que o Ministério Público pronunciou-se em sentido semelhante. Em sede de assembleia de credores, os credores Millenium BCP e Caixa de Crédito Agrícola manifestaram oposição à concessão da exoneração do passivo restante. * Posteriormente, foi proferido despacho liminar que indeferiu a requerida exoneração do passivo. * 2. Os requerentes/insolventes interpuseram recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões: (…) 1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 685º-A, e 684º, nº 3, do CPC). Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte. Ora, decorre do texto legal (art. 186º, nº 1) que a qualificação da insolvência como culposa importa que tenha havido uma conduta do devedor, ou dos seus administradores, de facto ou de direito, que: a) tenha criado ou agravado a situação de insolvência; b) essa conduta seja dolosa ou com culpa grave; c) tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo. Bem como resulta do teor do nº 1 da referida norma, que a insolvência para ser qualificada como culposa se mostra necessário que tal actuação (ou omissão) tida como dolosa ou com culpa grave do devedor seja causal na criação ou no agravamento da situação de insolvência. Além disso, o nº 2 do mesmo artigo elenca diversas situações concretas em que a insolvência há-de ser sempre - iuris et de iure - considerada culposa, considerando-se, também, sempre que existe o referido nexo de causalidade, enquanto no nº 3 do mencionado normativo legal se estabelece uma presunção de culpa, presunção esta juris tantum, podendo, pois, ser elidida por prova em contrário, não dispensando, todavia, o aludido nexo de causalidade. Esta é a interpretação da lei que temos levado a cabo (foi a que expusemos e seguimos no acórdão proferido no Proc.407/09.8TBCNT, datado de 7.2.2012, em que o relator e 2º adjunto são os actuais relator e 1º adjunto) e que é largamente seguida pela maioria da jurisprudência. Vejamos, agora, a aplicação concreta de tal normativo que a decisão recorrida levou a cabo, ou seja a subsunção dos factos apurados à disposição especificamente estabelecida no apontado nº 2, a), do falado art. 186º. Como decorre do dispositivo legal, era necessário que se tivesse provado que ocorreram os factos nela descritos, que os insolventes, ora apelantes, tivessem ocultado no todo ou em parte considerável seu património. Ora, do acervo de factos provados, é possível extrair uma conclusão nesse sentido. Na realidade, como se ponderou no acórdão desta Relação referida na decisão recorrida (de 19.12.2012, em que o actual relator e 1º adjunto foram, respectivamente 1º e 2º adjuntos) “Efetivamente ao vender os bens nos termos em que o fez, ou seja, a uma sociedade constituída alguns dias antes por parentes seus e pessoas das suas relações e na qual o recorrente tinha, de facto, poderes de decisão, tem de concluir-se que ele pretendeu escapulir/ocultar tal património. E ao termo “ocultar” não pode ser dada a interpretação restrita defendida pelo insurgente, no sentido de que estando a venda sujeita a registo, não pode haver ocultação. Se assim fosse, efetivamente não haveria ocultação de imóveis, pelo que vazia ficava a previsão legal no a eles atinente e sendo certo que tal termo também se lhes refere, que não apenas aos bens móveis, porque tal segmento normativo não opera tal restrição. Nesta conformidade a ocultação outrossim deve abranger casos como o presente em que o bem é vendido a um terceiro, podendo, inclusive, este revendê-lo, e assim sucessivamente. Tal alienação, retirando os bens da esfera jurídica do devedor, implica um descaminho que pode impedir, ou, pelo menos - o que é o bastante para satisfazer a ratio legis -, dificultar, o seu acesso e o seu acionamento por parte do credor. A lei não exige a ocultação total no sentido de se tornar impossível o seu acesso ou conhecimento, mas apenas parcial no sentido de vontade, concretizada, de subtrair o bem ao direito/conhecimento do credor e respetiva ação legal, pelo que, e precisamente por isso, não exige ocultação no sentido físico, mas apenas no aspeto da situação jurídica do bem. Aliás concomitantemente à ocultação a lei prevê o desaparecimento, o qual se revela um mais, no sentido da gravidade do descaminho, …”. Nesse acórdão a Relação defrontou-se com uma situação em que o insolvente alienou um imóvel a terceiro, uma sociedade controlada por familiares seus e pessoas da sua confiança, e na qual o recorrente tinha, de facto, poderes de decisão, tendo concluído que ele pretendeu ocultar o seu património, já que o conceito de ocultação de bens do ponto de vista jurídico abarca necessariamente os imóveis – fisicamente os imóveis não podem ser ocultados, nem desaparecem, salvo se forem destruídos – visto que a lei nenhuma distinção faz entre imóveis e móveis. Aliás, não é difícil conceber hipóteses de ocultação de imóveis. Além da abordada directamente em tal acórdão (venda a sociedade controlada directa ou indirectamente pelo alienante/insolvente), concebem-se hipóteses de alienação de património a familiares chegados – a filhos, pais, irmãos ou sobrinhos (é o caso em apreço), em que o alienante/insolvente continua a deter o poder de facto sobre o património imobiliário -, àqueles outros exemplos clássicos, em que o alienante vende o imóvel e faz desaparecer o preço em dinheiro recebido ou transforma o preço em títulos ao portador (vide exemplificativamente A. Reis, CPC Anotado, Vol. II, pág. 24), assim se perdendo o rasto da quantia monetária que por contrapartida material entrou ou deveria ter entrado no património do alienante/insolvente). No nosso caso, estamos perante tal situação, pois os insolventes alienaram o dito imóvel ao seu sobrinho, hipotecado ao BCP, por dívida de mútuo, sem terem recebido a contrapartida declarada na escritura de 200.000 €, como se deduz claramente do facto de se ter provado que o comprador do imóvel ficou com a responsabilidade de liquidar o empréstimo bancário do BCP. Na verdade seria absolutamente inverosímil (como os recorrentes reconhecem no corpo das alegações, a pág. 9 das mesmas) que o comprador houvesse pago a quantia de 200.000 € sabendo da existência de uma hipoteca que garantia uma obrigação superior a 190.000 €. Ora, a dívida hipotecária não se mostra liquidada, pois o crédito reclamado pelo BCP, credor hipotecário, e devidamente reconhecido pelo administrador de insolvência, é de cerca de 192.000 €, valor que os insolventes reconheceram ter como dívida quando se apresentaram à insolvência (vide requerimento inicial e docs., que o acompanham). Quer dizer, a referida dívida hipotecária existe para os insolventes, mas o bem imóvel hipotecário desapareceu, por ter sido alienado a terceiro, sendo os próprios insolventes/apelantes que não o indicam no seu rol de activo patrimonial (como se vê do aludido requerimento inicial e docs. que o acompanham – aí o seu activo patrimonial resume-se a móveis e 1 prédio rústico no valor total de 18.810 €, como ficou provado). Acto de alienação/ocultação aquele que ocorreu menos de 3 anos antes da apresentação à insolvência. Presume-se, pois, inilidívelmente, o nexo de causalidade entre tal acto e a situação de insolvência. Não fora esta situação jurídica, outra se verificaria, inevitavelmente comprovativa de insolvência culposa. De facto, reza a lei, no mencionado art. 186º, nº 2, d), que se considera sempre culposa a insolvência do devedor quando o insolvente tenha disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros. Ponderando casuisticamente tal alínea, e face aos factos provados, temos que os insolventes alienaram o bem mais valioso do seu património ao seu sobrinho, transferindo a titularidade do direito de propriedade sobre o referido imóvel para ele, sem entrada de dinheiro correspondente ao preço. E sem desoneração do seu património, pois a hipoteca não se mostra expurgada pelo novo adquirente, o sobrinho dos ora apelantes, nos termos do art. 721º, a), do CC, nem a mencionada hipoteca se mostra extinta, por liquidação da dívida a que serve de garantia, nos termos do art. 730º, a), do CC, já que o crédito reclamado pelo BCP, credor hipotecário, e devidamente reconhecido pelo administrador de insolvência, é de cerca de 192.000 €, valor que os insolventes reconheceram ter como dívida quando se apresentaram à insolvência, como atrás referido. Mas, o bem imóvel hipotecário evaporou-se, pois já não existe no activo patrimonial dos insolventes. Tal conduta consubstanciaria, por conseguinte, em última instância, disposição de bens em proveito de terceiros, nos termos da d) do nº 2 do art. 186º do CIRE. Qualificação jurídica a mesma que face aos ditos factos provados não estaria vedada ao julgador, nos termos do art. 664º do CPC, pois a factualidade material a considerar é igualmente a mesma. E mesmo que o administrador venha a resolver tal venda a favor da massa insolvente, nos termos dos arts. 120º e 121º, do CIRE, tal como o mesmo se predispõe a fazer, como dá a conhecer no seu relatório, tal acto a posteriori já não retira o carácter culposo da conduta dos ora recorrentes/insolventes, inibidor legal, segundo o apontado art. 238º, nº 1, e), da concessão da exoneração do passivo por eles peticionado. 3. Sumariando (art. 713º, nº 7, do CPC): i) É previsão legal obstativa da exoneração do passivo de pessoa singular que a mesma tenha culposamente criado ou agravado a situação de insolvência nos termos do art. 186º do CIRE; ii) Para efeito de qualificação da insolvência como culposa o nº 2 do artigo 186º do CIRE elenca diversas situações concretas em que a insolvência há-de sempre ser considerada como culposa, instituindo a lei consequentemente uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência; iii) Ao invés, o nº 3 do mencionado normativo legal estabelece apenas uma presunção de culpa grave, presunção juris tantum que pode ser elidida por prova em contrário, pelo que, mesmo que tal presunção se verifique, se exige ainda, para a actuação do insolvente como culposa, se demonstre que tenha sido a actuação/omissão do devedor a causar ou agravar a situação de insolvência, nos termos do nº 1 do citado art. 186º; iv) A ocultação prevista no art. 186º, nº 2, a), do CIRE basta-se com uma actuação que, alterando a situação jurídica do bem - por ex: vendendo um imóvel a terceiro, com uma relação próxima directa ou indirecta com o alienante, ou ocultando o preço recebido - impeça ou dificulte a sua identificação, acesso ou accionamento pelo credor. |