Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2460/03.9TALRA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: AUDIÊNCIA
CONTINUIDADE
PROVA
GRAVAÇÃO
Data do Acordão: 10/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 328º, Nº 6, DO CPP
Sumário: 1. A falta de gravação da prova não contende com a validade da convicção formada pelo tribunal em função da prova produzida e a única finalidade subjacente à sua renovação, determinada por força do vício de que padece a gravação, é a de garantir aos interessados a possibilidade de recurso sobre a matéria de facto.
2. Com efeito, o art. 328º, nº 6, do CPP, ao estatuir que “perde eficácia a produção de prova já realizada” tem apenas em vista as situações em que a produção de prova ainda não foi concluída, visando a garantia dos princípios da continuidade e da concentração.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum que correram termos pelo 1º Juízo de Competência Criminal de Leiria, foi interposto recurso da sentença proferida em primeira instância a fls. 195 e ss.. O recurso veio a ser apreciado por acórdão da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra que, anulando a sentença recorrida (fls. 483 e ss.), decidiu assim:
“Termos em que se anula a sentença que -, colmatadas que sejam em nova audiência as deficiências apontadas quanto à gravação da prova oral -, deverá ser substituída por outra em que se proceda ao exame crítico das provas.”
Devolvidos os autos à 1ª instância, foi proferido o seguinte despacho, a fls. 501:
“ Em estrita obediência ao acórdão da Relação junto aos autos, designo, para realização de audiência de discussão e julgamento, com vista à reinquirição das testemunhas A... e J..., assistente C... e arguido L... (estes últimos apenas quanto aos esclarecimentos finais prestados pelo arguido e assistente, após tais depoimentos), o dia 07-07-09, pelas 14 h.”
Notificado do teor deste despacho, o arguido suscitou a respectiva nulidade, indeferida por despacho com o seguinte teor (fls. 523):
“Fls. 521-2:
Não assiste razão ao arguido na nulidade invocada.
O julgamento nestes autos teve lugar, foi proferida sentença e, após, interposto recurso da sentença.
O tribunal superior decidiu anular a sentença, decidindo que “colmatadas que sejam em nova audiência as deficiências apontadas quanto à gravação da prova oral-, deverá ser substituída por outra [sentença] em que se proceda ao exame crítico das provas”.
Pela Ex.ma colega que presidiu à audiência de julgamento em 1ª instância foi decidido, de resto em obediência ao determinado pelo tribunal superior, que se realizassem os actos de prova indicados no respectivo despacho (fls. 501), a fim de suprir as deficiências apontadas por aquele alto tribunal.
Não se coloca a questão da perda da eficácia da prova – já recolhida -, como alega agora o arguido, uma vez que o tribunal de 1ª instância cumpriu com os prazos e regras da continuidade da prova, importando agora proceder às diligências necessárias, complementares, para atender ao determinado pelo tribunal superior, apenas para efeitos de a sentença recorrida ser substituída por outra onde se proceda ao exame crítico das provas, face à deficiente gravação, o que é coisa diferente de produção de novas provas.
Não foi, portanto, o julgamento que foi anulado, mas sim a sentença dele decorrente.
Indefere-se, assim, a arguida nulidade, inexistente, aguardando os autos a data já designada para a audiência, com a presença dos intervenientes convocados.
Notifique.
D.N.”.
Inconformado, o arguido interpôs recurso deste despacho, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1. A audiência de discussão e julgamento realizada nos presentes autos conheceu duas sessões, em 11 e 18 de Maio de 2005.
2. Nestas sessões foram ouvidos o arguido, o assistente e quatro testemunhas de defesa.
3. O aliás douto despacho sob recurso manteve a nova data de audiência de julgamento para o dia 7 de Julho de 2009, restrita aos depoimentos finais do arguido e do assistente e de duas testemunhas de defesa, conforme fora determinado pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.
4. Entre a data que se designou e as duas sessões do mesmo julgamento mediaram mais de 4 anos.
5. O que ocorreu em colisão com o disposto no artigo 328.°, n.º 6 do C. Proc. Penal que estatui a impossibilidade da audiência ser adiada por mais de trinta dias, determinando a ultrapassagem de tal prazo a perda da eficácia da prova já realizada.
6. Tal disposição radica na oralidade e na imediação da prova, tendo que ver apenas com a produção da prova e a concentração no decurso da audiência e até ao encerramento desta: não rege, pois, sobre incidências procedimentais posteriores.
7. Há fundamento para aplicar ao caso o estatuído no art. 328.°, n.º 6, do CPP, ou seja, a perda da eficácia da prova oral produzida nas duas primeiras sessões de julgamento, porquanto a sentença do tribunal a quo foi anulada em recurso pelo Tribunal da Relação de Coimbra que determinou que o suprimento das nulidades determinava não só o esclarecimento da fundamentação (por incumprimento do art. 374.°, n.º 2, 2.a parte, do CPP), mas nova deliberação do tribunal a quo, pelo que não é indiferente o tempo decorrido desde o encerramento da discussão da causa até à nova data que se designou, em que tal discussão iria ser "retomada".
8. O artigo 328.°, n.º 6 do Código de Processo Penal é inconstitucional quando interpretado no sentido da não aplicação do prazo de 30 dias a todo e qualquer caso em que a audiência de discussão e julgamento em que haja produção de prova oral venha a ser retomada, ainda que por via de recurso, por violação do n.º 1 do artigo 32.° da Constituição.
9. A decisão recorrida viola as disposições legais enunciadas nestas conclusões.
10. Deve-se conceder provimento ao presente recurso e, consequentemente, declarar-se nulo o despacho de fls. 501, devendo-se ordenar a perda da eficácia de toda a prova oral já produzida a qual deverá ser toda repetida, designando-se, para tanto, nova data para a realização da audiência de discussão e julgamento.
O M.P. respondeu, pronunciando-se pela improcedência do recurso.

Reaberta a audiência para repetição da prova deficientemente gravada, o arguido formulou requerimento no sentido do respectivo adiamento com base na falta das testemunhas A... e João Justo. Sobre esse requerimento incidiu o seguinte despacho, exarado em acta a fls. 553:
“Considerando que as testemunhas J… e A…, cujo depoimento deveria ser gravado em audiência conforme o ordenado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, seriam as testemunhas a apresentar pelo arguido considerando a contestação de fls. 115/120, quanto à testemunha A... e verificando-se já a falta da testemunha J… na sessão anterior foi expedida notificação pelo O.P.C. competente para a morada indicada no mesmo rol apresentado pelo arguido. Inexiste, pois, razão para impedir o prosseguimento da audiência, não cabendo ao tribunal indagar da localização das testemunhas, uma vez que os mesmos são apresentados pelo arguido. Assim, e no seguimento do ordenado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, apenas será possível proceder à gravação dos esclarecimentos finais prestados pelo arguido e pelo assistente, o que se fará de imediato”.
Inconformado com este despacho, o arguido interpôs novo recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1. A M.rna Juiza deveria ter adiado a audiência de julgamento tal como preceitua o referido art. 3310 do C. P. Penal, uma vez que era indispensável para a descoberta da verdade ouvir as testemunhas do arguido J… e A... como lhe foi imposto pelo Tribunal da Relação de Coimbra,
2. Deve prevalecer sempre a verdade material em detrimento doutros valores que lhe são hierarquicamente inferiores, como é o caso da celeridade processual, o que não ocorreu com a decisão recorrida,
3. Também, o art. 340.0 n.º 1 do CPP estipula que "o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa" o que se traduz um afloramento, para a audiência, do principio da investigação ou da verdade material que enforma o processo penal.
4. O Tribunal deveria ter ele próprio, oficiosamente, providenciado para notificar as testemunhas pelos meios legais para as ouvir, para cumprir a ordem do tribunal superior que lhe foi determinada, a fim de puder ter uma visão completa do processo em causa.
5. O princípio da descoberta da verdade material deve prevalecer sempre em detrimento doutros valores que lhe são hierarquicamente inferiores, como é o da celeridade processual.
6. Assim, ao não adiar o julgamento e com isso obstar à audição das sobreditas testemunhas, cometeu e tribunal a que a nulidade a que alude o art. 120º, nº 2, d) do C. P. Penal, por omissão de diligência essencial à descoberta da verdade.
7. A decisão recorrida viola as disposições legais enunciadas nestas conclusões.
8. O despacho recorrido deve ser substituído por outro que, em face da falta de comparência das testemunhas cuja audição foi determinada superiormente declare nulos os actos posteriores ao despacho de fls. 553 (designadamente, a decisão condenatória) e, em consequência, designe nova data para a audiência a fim de proceder à respectiva inquirição (notificando-as para o efeito nos termos legais e sem prejuízo de repetir toda a prova que, entretanto, perdeu eficácia).
O M.P. respondeu, pronunciando-se pela improcedência do recurso.

Entretanto, foi proferida sentença decidindo nos termos seguintes:
(…)
Assim, e pelo exposto:
a) Condeno o arguido L… pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, crime previsto e punido no artigo 11º, n.º 1, alínea a) e 2 do Decreto-Lei n.º 454/91 de 28 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 316/97 de 19 de Novembro, na pena única de 300 dias de multa a uma taxa diária de 10, perfazendo um montante global de 3000 euros.
a) Condeno o arguido e a M… – Metalomecânica, Ld.ª, solidariamente (nos termos do art.º 11,4 DL 454/91), no pagamento do pedido cível contra si deduzido pela assistente U… –, Ld.ª, no valor de 25.502,59 euros, a que acrescem juros legais desde 17-6-03, até integral pagamento, à taxa de juro legal aplicável.
a) Condeno o arguido, nos termos dos artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal, 74º, n.º 1, 85º, n.º 1, alínea b) e 89º do Código das Custas Judiciais, nas custas do processo, fixando em 2 UC’s o valor da taxa de justiça (acrescida de 1%, nos termos do n.º 3 do artigo 13º do Decreto-Lei n.º 423/91 de 30 de Outubro).
a) Em relação ao pedido cível, custas pelo demandado (cfr. art.º 446 CPC, art.º 520,a) CPP conjugado com o Ac. de fixação de Jurisprudência 3/93 de 27-1 ( DR I-A de 10-3-93), art.º 306,1 CPC, art.ºs 5,1, 13, 1 e 2, 14,e) e 88 CCJ.
(…)
O arguido interpôs recurso da sentença, concluindo nos termos seguintes:
1. A sentença recorrida não fez um exame critico das provas, pois não indica os motivos porque deu credibilidade ao depoimento do gerente da assistente e não deu essa credibilidade ao depoimento do arguido, ficando nós sem saber qual a lógica que presidiu ao raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
2. A sentença recorrida deve ser declarada nula, uma vez que o exame crítico das provas é requisito da sentença, cfr., respectivamente, os arts. 379.°, n.º 1, al. c) e 374.°, n.º 2, ambos do Cód. de Proc. Penal (doravante CPP).
3. Os factos sob 1. 2. e 3. da fundamentação da sentença recorrida não deveriam ser julgados provados.
4. Porquanto, quanto ao facto provado sob 1., o arguido declara que o cheque ajuizado, n.º 9530091581, foi por si preenchido em meados de Abril, no restaurante do Sr. Carlota, em Leiria, tendo-lhe sido aposta a data de 10 de Junho de 2003.
5. Porquanto, relativamente ao mesmo facto, nesta gravação foi, ainda, dito pelo arguido que a assistente/sociedade “U…, Ld.” não concluiu o trabalho que a M…-Metalomecânica, Ld.a lhe encomendara, designadamente que não foi fornecido o suporte de caminho de rolamento, nem terminou a cobertura.
6. Porquanto, referiu, ainda o arguido na gravação registada na cassete n.º 2, lado A, com inicio no n.º 0000 e fim no n.º 0415, que o cheque ajuizado foi dado como garantia do fornecimento pela assistente do material que faltava e pela conclusão por parte desta da obra em questão.
7. Porquanto, o senhor C... afirmou (cfr. depoimento que se encontra gravado na cassete n.º 2, lado B, com início no n.º 0938 e fim no n.o 0951) que efectivamente o arguido lhe passou o cheque num jantar em que estava presente tal testemunha, realizado em Abril, e que passado um ou dois dias o arguido lhe telefonou a dizer que esse cheque não tinha validade e que depois lhe passaria um cheque à ordem, o que ocorreu em 10/06/2004 e quanto ao cheque emitido em Abril alegou tê-lo destruído.
8. Porquanto, relativamente ao destino do cheque, C... informou (cfr. depoimentos gravados na cassete n.º 2, lado A, com início no n.º 0416 e fim no n.º 0790) que o mesmo se destinava à continuação dos trabalhos em obra e que para concluir esta faltava menos de meio, pois a estrutura metálica estava toda montada e a cobertura estava mais ou menos a meio.
9. Do mesmo passo, o arguido impugna o teor dos pontos sob 2 e 3 julgados provados na fundamentação de facto da sentença, na medida em que mais não se tratam do que desenvolvimentos e conclusões da prova do facto vertido sob 1.
10- De acordo os factos expendidos nos anteriores pontos 4 a 8, destas conclusões, impunha-se que o tribunal desse como provados os seguintes factos:
- O cheque apenas foi entregue pelo arguido à assistente como garantia de pagamento da quantia nele aposta;
- A U…, Ld.a, só forneceria a restante telha de cobertura e o caminho de rolamento e sua montagem contra a entrega de um terceiro cheque de € 27.500;
- No dia 17-4, o ora arguido, preencheu e entregou ao Eng.º C… o cheque ajuizado, apondo-lhe a data de 10106/2003; e
- Acordou-se com o aludido gerente da U…, Ld.ª, que só com a conclusão total das obras é que podia proceder ao seu pagamento.
11. Os factos que antecedem são também corroborados pelo arguido na sessão de 21.09.2009, na cassete 1, lado A, de 14.10 a 14:15:35, onde refere inter alia que o cheque era para pagar dai a dois meses, que esse cheque tinha que ser cautelosamente guardado e que a cliente só pagaria à firma que geria e à firma-assistente depois da obra concluída.
12. A vingar a alteração da matéria de facto julgada provada e não provada que foi alvo da nossa crítica, significa que o cheque em questão é pré-datado ou pós-datado, operando o art. 11.°, n.º 3 do DL n.º 316/97, o que deverá ser declarado.
13. Entendemos, igualmente, que o "prejuízo patrimonial", exigido pelo tipo legal de crime de emissão de cheque sem provisão no corpo do n.º 1 do art. 11.° do DL n.º 316/97, de 19-11, não se verifica no caso dos autos.
14. Atendendo aos dois números anteriores e porque o cheque dos autos se destinava a pagar uma obrigação futura que não chegou a ocorrer da respectiva emissão e da verificação da sua falta de provisão não resulta qualquer prejuízo para a demandante cível.
15. Se se considerar que o cheque de Junho veio substituir o de Abril, que foi destruído pela assistente, significa que nesta altura a M… já estava em dívida para com a assistente, ou seja a emissão do cheque ajuizado não causou per se prejuizo patrimonial à portadora do cheque, uma vez que este já existiria pelo menos desde Abril de 2003.
16. O facto de ter sido emitido um cheque com data anterior que o gerente da assistente, sem mais, inutilizou, indicia de uma forma fortíssima que afinal não houve qualquer cheque emitido, entregue e com data de vencimento em 10 de Junho de 2003 e que o cheque ajuizado foi emitido e entregue em Abril de 2003.
17. Face às regras da lógica e da experiência comum o facto provado sob um da fundamentação de facto é inverosímil quando conjugado com o texto da motivação de facto e com a prova oral (audível) produzida.
18. Perante a existência de factos incertos e perante uma dúvida irremovível e razoável deverá atender-se ao princípio in dubio pro reo, favorecendo o arguido, no sentido de não se darem como provados os factos que lhe são imputados na acusação.
19. Deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra, que absolva o arguido do crime que lhe foi imputado e do mesmo passo o absolva do pedido cível que lhe foi formulado.
20. Para os efeitos do art. 412.°, n.º 5 do CPP o recorrente vem dizer expressamente que mantém interesse nos dois recursos interlocutórios oportunamente interpostos: um, de fls. 531 a 538 e o outro impugnando o despacho de fls. 553.
21. A decisão recorrida viola as disposições legais enunciadas nestas conclusões.
Também a este recurso o M.P. respondeu, pronunciando-se pela sua parcial procedência e consequente anulação da sentença com base na falta de exame crítico da prova produzida.

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se pela negação de provimento relativamente a todos os recursos interpostos pelo arguido.

Foi então proferida decisão sumária, a fls. 662, recaindo sobre o primeiro dos recursos interpostos e julgando-o manifestamente improcedente.
O arguido reclamou para a conferência, sustentando, em conclusão, o seguinte:
1. O prazo de 30 dias a que alude o n.º 6 do art. 328.° do CPP, aplica-se a todo e qualquer caso em que audiência de discussão e julgamento em que haja produção de prova oral venha a ser retomada, ainda que por via de recurso.
2. Se o tribunal de 1ª instância decidisse repetir toda a prova sujeita ao princípio da imediação - tal como o arguido lhe propôs - não só estaria a observar o decidido pelo douto acórdão da Relação de Coimbra, porquanto este satisfazia-se com a produção dos depoimentos que indicou, como também estaria a respeitar o disposto na Constituição e na lei, em cumprimento do disposto no art. 32,°, nº 1 da CRP e no nº 6 do art. 328.° do CPP.
3. A repetição de determinados depoimentos só pode significar que os depoimentos dos intervenientes processuais omitidos na gravação ou deficientemente gravados perderam a validade, não prestam, deixaram de contar para o processo, o que pressupõe que ainda não está decidida a matéria de facto.
4. A repetição dos depoimentos deficientes não se destina apenas a possibilitar aos interessados o recurso da decisão factual, mas, na medida em que se substituiriam aos depoimentos inválidos, a serem apreciados, valorados e, em conformidade, decididos pelo julgador.
5. O TRC quando decidiu ordenar a repetição de determinados depoimentos e não de outros cumpriu a lei porque só aqueles estavam em equação,
6. A douta decisão sob reclamação, em concordância aliás com a decisão recorrida, de considerar que o tempo decorrido entre a última sessão da audiência de julgamento, ocorrida em 18.05,2005, e a audiência [do mesmo julgamento, acrescentamos nós] que veio a ser designada na sequência da anulação da sentença, marcada para 07.07.2009, não determinou a ineficácia da prova anteriormente produzida, nos termos do disposto no art. 328.°, n.º 6 do CPP, faz uma interpretação inconstitucional do referido normativo.
7, O artigo 328.°, nº 6 do Código de Processo Penal é inconstitucional quando interpretado no sentido da não aplicação do prazo de 30 dias a todo e qualquer caso em que a audiência de discussão e julgamento em que haja produção de prova oral venha a ser retomada, ainda que por via de recurso, por violação do nº 1 do artigo 32.° da Constituição.
8. Destarte e pelo que será doutamente suprido, deve dar-se provimento à presente reclamação mandando-se admitir o recurso interposto de fls. 531/538.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões dos recursos e reclamação interpostos pelo arguido, há que decidir as seguintes questões:

- Recurso do despacho de fls. 501:
- Perda da eficácia da prova produzida nas primeiras sessões da audiência de julgamento;
- Inconstitucionalidade do art. 328º, nº 6, do CPP quando interpretado no sentido da não aplicação do prazo de 30 dias a todo e qualquer caso em que haja produção de prova oral e esta venha a ser retomada, por violação do art. 32º da CRP.

- Recurso do despacho de fls. 553:
- Nulidade decorrente da omissão de diligência essencial à descoberta da verdade, por não ter sido adiada a audiência de julgamento com fundamento na falta de testemunhas;

- Recurso da sentença:
- Nulidade decorrente da falta de exame crítico da prova;
- Impugnação da matéria de facto;
- Cheque pré-datado, implicando funcionamento do art. 11º, nº 3, do DL 316/97;
- Ausência de prejuízo patrimonial;
- Violação do princípio in dubio pro reo.

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
1. Em 10/6/2003, o arguido, actuando na qualidade de sócio-gerente e legal representante da sociedade M… – Metalomecânica, Lda, em nome e proveito lesta, preencheu, assinou e entregou à queixosa “U…, Lda”, o cheque junto a fls. 3, n° 9530091581, com aquela data de 10/6/2003, no montante de € 27 500,00 e sacado sobre a conta n.º 21915440001, do BPI, S. A ., como meio de pagamento parcial do fornecimento de uma cobertura metálica e respectivos pilares e de um suporte de caminho de rolamento para ponte rolante, que adquiriu à queixosa.
2. Apresentado o cheque a pagamento na agência da CCAM desta cidade de Leiria, nesta cidade e comarca de Leiria, foi o mesmo devolvido por falta de provisão, pela 1ª vez, em 17/6/2003, ficando, em consequência, a queixosa desembolsada daquela importância sem qualquer contrapartida.
3. Ao preencher e abrir mão desse título, fê-lo, o arguido, ciente de que a aludida conta de depósito, na instituição bancária sacada, não oferecia saldo que garantisse, como devia, o correspondente desconto e de que incorria, assim, em responsabilidade criminal.
4. Em virtude de tal devolução, para além de não ter sido paga a quantia constante do cheque, a demandante teve que suportar as despesas de devolução no montante de € 2,59.
5. Até à presente data, a U…, Lda., nunca concluiu a obra acordada com a M…, Lda.
6. O arguido não tem antecedentes criminais.
7. É divorciado e tem dois filhos menores, pagando, a título de pensão de alimentos, 250 euros, no total.
7. Ganha 1200 euros na sua profissão.
8. Vive em casa arrendada, pela qual paga 350 euros.

Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:
Não se provou que:
- O cheque apenas foi entregue pelo arguido à assistente como garantia de pagamento da quantia nele aposta;
- A M…, Lda., após a conclusão daqueles trabalhos, pagaria à U…, cerca de 90.000 euros em três prestações, com um desconto de 3% efectuado pelo sócio gerente da U…, Lda., ao ora arguido, a que corresponderia uma dívida global no montante de 87.300 euros;
- A obra iniciou-se na 2ª quinzena de Novembro de 2002, comprometendo-se a assistente a fornecer, montar e terminar a obra num prazo máximo de 15 dias, a partir da data acima referida;
- Garantindo, ao arguido, que até final de 2002 a obra estaria fornecida e concluída;
- A assistente não efectuou aqueles trabalhos na data combinada, apenas forneceu parte dos pilares para o pavilhão e cobriu parcialmente o mesmo;
- E, apenas terminou o fornecimento daqueles pilares e sua montagem em 17 de Janeiro de 2003;
- A assistente, posteriormente, garantiu ao arguido que contra a entrega de um segundo cheque, no montante de 24.950 euros, concluiria a obra em quinze dias, ou seja, faria a colocação e a montagem do caminho de rolamento e forneceria toda a telha para a cobertura do pavilhão.
- O arguido entregou ao aludido sócio gerente da assistente, o cheque n° 1196967615 do BPI, de 7/02/2003, para garantir aquele pagamento
- Ficando, esta sociedade, de levantar o cheque, cerca de dois meses após a entrega do mesmo.
- A U…, Lda. só forneceria a restante telha de cobertura e o caminho de rolamento sua montagem contra a entrega de um terceiro cheque de 27.500 euros.
- No dia 17-4, o ora arguido, preencheu e entregou ao Eng.° C… o cheque ajuizado, apondo-lhe a data de 10/06/2003.
- Acordou-se com o aludido gerente da U…, Lda., que só com a conclusão total das obras é que podia proceder ao seu pagamento.

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:
Fundou o Tribunal a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente documentos juntos aos autos (cheque de fls. 3 e extracto de conta corrente – demonstrativo da insuficiência, perene, de fundos para fazer face ao montante inscrito no cheque) e prova testemunhal ouvida.
Defendeu o arguido que o cheque em causa nos autos foi passado como garantia de pagamento, e que procedeu à entrega do mesmo, ao sócio gerente da assistente em 17-4-03, como uma garantia de execução da obra. Disse ainda que quando assinou o cheque sabia da inexistência de fundos na conta, e que se encontrava a negociar com o BPI a atribuição de um crédito No entanto, relacionou sempre a entrega do cheque com a conclusão dos trabalhos no prazo de 15 dias (ou seja, início de Maio), o que não ocorreu, nesse prazo – não fica, portanto, explicada a dilação temporal entre a entrega do cheque como garantia de conclusão dos trabalhos – 15 dias, e a apresentação do cheque, dois meses mais tarde. Ou seja, o cheque foi apresentado em Junho, quando o arguido já há mês e meio sabia do alegado incumprimento da U…, não apresentando explicação para este largo espaço de tempo de inactividade de sua parte – continuava sem ter dinheiro na conta, e não solicitou a conclusão das obras. Pelo arguido, acrescente-se, sempre foi reiterado que sentia ter uma dívida para com o sócio gerente da assistente. Em conclusão, o depoimento do arguido não logrou convencer o tribunal.
O sócio gerente da assistente, por seu turno, disse, convincentemente, ter-lhe sido o cheque entregue em Junho, mais propriamente no dia 10. Refere que o cheque entregue em Abril foi inutilizado. E é isto que melhor se adequa com a normalidade – não tendo conseguido obter um empréstimo, o arguido, no prazo de 2 meses, terá pedido a anulação do 1.º cheque, com vista a protelar o pagamento.
J… presenciou a entrega do cheque, em Abril, mas não sabe dizer se tal cheque veio a obter pagamento, ou se foi substituído por outro. Logo, o seu depoimento não acrescenta nada à questão em discussão.
Relevou também o CRC junto aos autos.

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Vejamos então, num primeiro momento, as questões suscitadas no recurso que incidiu sobre o despacho de fls. 501, em ordem à decisão conjunta da reclamação e do recurso, nos termos previstos no art. 417º, nº 10, do CPP. Sustenta o recorrente que o tempo decorrido entre a última sessão da audiência de julgamento em 1ª instância anterior ao primeiro recurso que interpôs nos autos, ocorrida em 18/05/2005, e a audiência que veio a ser designada na sequência da anulação da sentença, determinou a ineficácia da prova anteriormente produzida, nos termos do disposto no art. 328º, nº 6, do Código de Processo Penal. Contudo, não lhe assiste razão. No recurso que incidiu sobre a primeira sentença proferida, o arguido suscitou, para além do mais, a nulidade da sentença por falta de exame crítico da prova e a deficiência da gravação da prova produzida em audiência, com reflexos na possibilidade de a sindicar em recurso. Reconhecida a razão que lhe assistia, o Tribunal da Relação proferiu acórdão anulando a sentença recorrida com a expressa indicação de que tal anulação se destinava a que fossem colmatadas em nova audiência as deficiências da gravação da prova oral e em nova sentença a deficiência relativa ao exame crítico da prova. Ou seja, o acórdão da Relação delimitou claramente o âmbito da renovação da prova aos depoimentos das testemunhas A… e J… e aos esclarecimentos finais prestados pelo arguido e pelo assistente, esclarecendo o objectivo dessa repetição: “(…) para que aos interessados não seja coarctado o direito ao recurso sobre a decisão de facto”. Quando essa anterior decisão do Tribunal da Relação de Coimbra foi proferida já tinha sido largamente excedido o prazo de 30 dias a que se reporta o artigo 328º, nº 6, do CPP. Nem o Tribunal da Relação equacionou a aplicabilidade desse prazo – não tinha que o fazer, já que a norma em questão não era aplicável ao caso – nem o recorrente questionou a decisão então proferida, que veio a transitar. Nessa medida, a decisão do Tribunal da Relação impôs-se inelutavelmente à primeira instância, vinculada por um dever de obediência às decisões dos tribunais superiores, pelo que o tribunal a quo não poderia ir além do decidido, ouvindo outras testemunhas, tanto mais que nem sequer estava em causa a alteração da matéria de facto. Na verdade, o vício verificado não era relativo à prova produzida, mas à sua documentação, cuja omissão prejudicava a possibilidade de recurso por banda do arguido e a possibilidade de o Tribunal da Relação sindicar o julgamento de facto. Dito de outro modo: a falta de gravação da prova não contende com a validade da convicção formada pelo tribunal em função da prova produzida e a única finalidade subjacente à sua renovação, determinada por força do vício de que padecia a gravação, era a de garantir aos interessados a possibilidade de recurso sobre a matéria de facto. Com efeito, o art. 328º, nº 6, do CPP, ao estatuir que “perde eficácia a produção de prova já realizada” tem apenas em vista as situações em que a produção de prova ainda não foi concluída, visando a garantia dos princípios da continuidade e da concentração. De resto, repete-se, aquela decisão do Tribunal da Relação transitou sem qualquer manifestação de inconformidade por banda do ora recorrente. Oferecem-se assim como manifestamente dilatórios os intuitos subjacentes à insistência do arguido na apreciação duma questão não suscitada no momento próprio – que era o do acórdão da Relação que decidiu e delimitou a finalidade da baixa do processo – e que colide com a força de caso julgado daquela anterior decisão.
Em conclusão, no que a esta questão concerne, não ocorre nulidade por perda da eficácia da prova em função do tempo decorrido nem se verifica a inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente, já que não resultam restringidas as garantias de defesa, nomeadamente, a decorrente da parte final do nº 2 do art. 32º da CRP, pelo que improcedem tanto o recurso do despacho de fls. 501, como a reclamação que incidiu sobre a decisão sumária que o rejeitou.

No recurso do despacho de fls. 553 sustenta o arguido a verificação de nulidade decorrente da omissão de diligência essencial à descoberta da verdade, por o tribunal não ter procedido ao adiamento da audiência de julgamento com fundamento na falta das testemunhas cuja inquirição fora ordenada pelo Tribunal da Relação, uma vez mais sem razão, como se verá, já que os autos retratam a correcção do procedimento adoptado.
Com a contestação que apresentou, o arguido arrolou testemunhas (fls. 120), identificando a primeira como “A..., casado, engenheiro civil, residente em Sevilha, Espanha, a apresentar pelo ora arguido” e a terceira como “J…, solteiro, engenheiro civil, residente na Rua …, 1800 Lisboa”.
Na audiência realizada em 18 de Maio de 2005, o arguido apresentou a testemunha A…, como se havia comprometido. A testemunha J… apresentou-se em audiência, apesar de as notificações que lhe foram enviadas, primeiro, para a morada indicada no rol de testemunhas e depois, para a nova morada indicada pelo arguido (Rua …), terem sido devolvidas com a indicação de «não reclamada».
Proferida sentença, interposto recurso para esta Relação que ordenou a repetição da prova deficientemente gravada e agendada data para a audiência visando essa finalidade, a testemunha J… foi notificada para a última morada conhecida nos autos, tendo a notificação sido devolvida com a indicação de «Mudou-se». O mandatário do arguido foi notificado da devolução da carta registada e nada disse (cfr. fls. 514 e 517).
Na sequência de promoção do M.P. nesse sentido, foi tentada a notificação pessoal da testemunha, mas ainda assim não foi possível notificá-la nem recolher informações úteis relativamente ao seu paradeiro (cfr. fls. 545, acta, a fls. 551 e fls. 580vº).
Na audiência designada para o dia 7 de Julho de 2009, o arguido não apresentou a testemunha A... e a testemunha J… não compareceu, não se encontrando notificada, embora esta última circunstância fosse ainda desconhecida do tribunal, já que o ofício enviado ao Órgão de Polícia Criminal com vista à obtenção da sua notificação ainda não havia sido devolvido. Por essa razão – falta das testemunhas a inquirir – foi adiada a audiência para o dia 21 de Setembro de 2009.
Até esta última data jamais o arguido se pronunciou sobre o paradeiro das referidas testemunhas, assim como não requereu qualquer diligência com vista à sua localização ou notificação. Apenas na audiência de julgamento veio requerer o respectivo adiamento, o que o tribunal indeferiu (fls. 553). E indeferiu bem, diga-se de passagem, porquanto não se perspectivava qualquer diligência, para além das já efectuadas, que previsivelmente permitisse a notificação e comparência das referidas testemunhas. Na verdade, e contrariamente ao que parece sustentar o arguido, nem ao tribunal a quo se impunha uma actuação até aos limites do impossível para lograr a repetição da prova não gravada, nem o recorrente ficou desobrigado de prestar a sua colaboração para o êxito daquela diligência, pela qual ele próprio havia pugnado. Desde logo, ao tribunal só compete notificar as testemunhas indicadas por quem se não tiver comprometido a apresentá-las na audiência, conforme expressamente dispõe o art. 317º, nº 1, do CPP. Nessa medida, a testemunha A... não tinha que ser notificada para comparecer na data designada para julgamento, tanto mais que o recorrente jamais indicou ao tribunal o respectivo domicílio, resultando dos autos que reside fora do país, em local desconhecido de Sevilha. Competia ao arguido, que a arrolou, apresentar aquela testemunha em audiência ou, tornando-se-lhe impossível fazê-lo, requerer o que tivesse por conveniente, eventualmente, a sua inquirição por carta rogatória, iniciativa que este não tomou em tempo útil. E também no que concerne à testemunha J…, não tendo sido possível notificá-la e nada tendo sido requerido pelo arguido com vista à sua notificação, não tinha o tribunal que proceder ao adiamento da audiência, tanto mais que não se perspectivava qualquer diligência susceptível de permitir a localização e notificação da testemunha. Registe-se que mesmo na audiência de julgamento, quando requereu o respectivo adiamento, o arguido limitou-se a formular a pretensão de que o tribunal procedesse à notificação das testemunhas, sem adiantar qualquer elemento que possibilitasse a notificação em causa.
Consequentemente, não se verifica a pretendida nulidade decorrente de omissão de diligência essencial à descoberta da verdade.

Posto isto, apreciemos as questões suscitadas no recurso relativo à sentença proferida após repetição da prova deficientemente gravada:
Invoca o recorrente a falta de exame crítico da prova, com a consequente violação do disposto no nº 2 do art. 374º, sustentando verificar-se a nulidade de sentença prevista no art. 379º, nº 1, al. a), ambos do CPP.
O art. 374º do Código de Processo Penal estatui sobre os requisitos da sentença, dispondo o respectivo nº 2 que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, disposição que deve ser compaginada com o previsto no art. 127º quanto à livre apreciação da prova, em cujos termos, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Se é certo que da conjugação dos arts. 374º, nº 2 e 127º resulta com indesmentível clareza que a decisão de facto não pode resultar exclusivamente do puro convencimento do julgador, da sua mera intuição, vertida numa convicção subjectiva, antes devendo traduzir um convencimento racional, exigindo-se que o juiz fundamente, explicitando-o, o processo cognitivo e/ou lógico-dedutivo que o levou a considerar determinadas provas em detrimento de outras, revelando assim “uma convicção objectivável e motivável, portanto, capaz de impor-se aos outros” - Cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, pág. 205., não se poderá ignorar, no entanto, que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais” - idem.
Revertendo para a sentença em crise, verifica-se que o tribunal recorrido se socorreu, para formar a sua convicção, da análise das declarações do arguido, do sócio-gerente da assistente, de depoimento testemunhal e de prova documental.
Não oferece dúvida, pois, a constatação de que o tribunal recorrido indicou as provas em que baseou o julgamento da matéria de facto. E não se ficou por essa indicação, tendo identificado justificadamente quais os meios de prova que valorou, bem como a razão subjacente, dando assim cumprimento às exigências do nº 2 do art. 374º. Aliás, esta norma não exige a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, bastando-se com uma exposição (ainda que concisa), dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, não sendo exigível que o julgador mencione todas as inferências indutivas que conduziram ao provado ou que explicite, para cada facto provado, o modo como se sedimentou a sua convicção.
Como se refere no Ac. do Tribunal Constitucional nº 375/2005 - Publicado no D.R., II Série, de 21 de Setembro de 2005., a propósito do art. 374º, nº 2, do CPP, “Os motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem factos provados nem meios de prova, mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido (…) esse normativo não exige a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão-só uma exposição concisa dos motivos de facto (…) e de direito que fundamentam a decisão, com indicação (e só esta) das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não impondo a lei a menção das inferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contraprovas. Note-se que o art. 374º, nº 2, praticamente traduzido da al. e) do nº 1 do art. 546º do Código de Processo Penal Italiano, é omisso quanto à última parte deste normativo, onde precisamente se manda que o juiz enuncie as razões pelas quais considera não atendíveis as provas contrárias, omissão que não pode resultar de distracção do legislador português, mas de vontade inequívoca de excluir esse dispositivo (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Janeiro de 1997)”.
De todo o modo, o exame crítico, por muito completo que seja, ficará normalmente aquém daquilo que foi o processo cognitivo, intelectual e selectivo desenvolvido pelo julgador na livre valoração da prova, por força da quase impossibilidade que em muitas situações se evidenciará, de explicitar exaustivamente o complexo processo de formação da convicção.
Foi precisamente pelo reconhecimento da impraticabilidade de um sistema de fundamentação exaustiva - quer porque algumas valorações lógico-dedutivas são resultado da percepção abrangente e simultânea de vários sentidos (por exemplo, as dúvidas resultantes de um depoimento aparentemente seguro que no entanto, em momentos críticos, perante perguntas imprevisíveis, é acompanhado de inflexões na voz, hesitações antes da resposta, contradições com afirmações anteriores, deduções ilógicas), quer porque a actividade necessária para dar execução, ainda que aproximada, a uma tal sistema, condicionaria a eficácia da máquina da justiça penal ao nível da prolação da sentença - o legislador bastou-se com um sistema de fundamentação mitigada, assente numa exposição concisa, ainda que tendencialmente completa, dos fundamentos da decisão, em que ganha especial relevo a explicitação do processo cognitivo e lógico-dedutivo do provado, orientada para a demonstração de uma convicção objectivável e motivável.
No caso vertente, ainda que concisa e sintética, essa fundamentação consta da sentença recorrida. Conclui-se, pois, não ocorrer a nulidade prevista no art. 379º, nº 1, al. a), do CPP.

Numa outra perspectiva, o recorrente impugna a matéria de facto provada, sustentando que da análise das provas gravadas não se pode concluir que existam elementos para se dar maior credibilidade à versão do assistente em detrimento da versão do arguido. Trata-se, não obstante, de uma mera opinião, que pretende questionar a livre convicção do juiz. Não é essa, na verdade, a finalidade da impugnação da matéria de facto. Vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados.
Entrando na apreciação da prova, é verdade que o arguido disse em audiência que o cheque constante dos autos tinha sido por si emitido “como garantia do fornecimento e cumprimento da obra em questão”. Em contrapartida, o sócio-gerente da assistente foi peremptório, afirmando que “houve pagamentos para execução da obra e houve um cheque que voltou para trás”. Esclareceu ao longo das declarações que foi prestando que iniciaram a obra e que o arguido foi efectuando pagamentos, tendo havido anteriormente ao cheque agora em causa, um cheque “… que voltou para trás, mas depois disse para colocar outra vez e entrou”. Quanto ao cheque dos autos, declarou ter sido preenchido à sua frente no dia 10, no feriado (reportava-se ao dia 10 de Junho), destinando-se ao pagamento da continuação da obra, afirmando que “os nossos contratos são assim”. Directamente questionado sobre a finalidade do cheque, nomeadamente, se este se destinava a servir de garantia, foi peremptório ao afirmar que era para pagamento da continuação da obra e que não continuou os trabalhos porque não recebeu. Esclareceu que o material estava todo na obra e que o cheque se destinava a esse pagamento, referindo que naquela altura estava paga menos de metade da obra e que para além do cheque ajuizado teria que haver pagamentos de valor superior aos já efectuados, referindo ainda o gravíssimo prejuízo sofrido pela empresa.
Ora, quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum - Neste sentido, veja-se o Ac. da Relação de Coimbra, de 6/03/2002 , CJ, ano XXVII, 2º, pág. 44.. Não se trata, na instância de recurso, de encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só de verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos - No sentido apontado, veja-se o Acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss.. No caso vertente, a prova produzida consente as ilações retiradas pelo julgador e as regras da experiência não a contradizem, nada indiciando que o sócio-gerente da assistente se tenha afastado da verdade. A oralidade e a imediação autorizam a opção do julgador em primeira instância e a validade dessa opção não é desmentida por qualquer elemento de prova que não tenha sido considerado ou pela audição da prova gravada. De resto, como claramente resulta do alegado na motivação do recurso, o que o recorrente fundamentalmente impugna é o modo de formação da convicção do julgador, a relevância subjectiva dos meios de prova invocados como fundamento da convicção, na vertente da relevância e credibilidade de cada um deles, questionando o juízo de normalidade decorrente da experiência comum que inspirou as conclusões que o julgador retirou da prova, pretendendo a substituição desse juízo pelo juízo que ele próprio, recorrente, entende que seria o ajustado à luz da experiência comum. O mesmo é dizer que o recorrente pretende ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida. Contudo, as conclusões extraídas pela primeira instância sobre a prova produzida, na parte em que pôde ser sindicada por este tribunal da Relação (prova houve que, por falta de colaboração do arguido, nos termos acima referidos, não pôde ser repetida) são compatíveis com os critérios de apreciação da prova, já que aferidas as declarações e depoimentos prestados à luz das regras da experiência e no âmbito do conjunto da prova produzida, nada permite questionar a correcção das conclusões retiradas em primeira instância relativamente ao significado da prova, que se oferece como coerentemente valorada.

Em linha com a impugnação da matéria de facto, sustenta o arguido ter sido violado o princípio in dubio pro reo. Contudo, a prova produzida, tal como foi analisada e explicitada, não gerou qualquer dúvida que devesse levar à consideração dos factos como não provados. Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com pleno respeito pelos princípios que disciplinam a prova sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação desse princípio que, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio in dubio pro reo afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal - Cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, pág. 213.. No caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação do provado, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando coerentemente os elementos que serviram para fundar a convicção do tribunal. O posicionamento do arguido, sustentando que deveria ter sido outro o quadro factual provado encontra-se totalmente à margem do condicionalismo legal. O erro notório na apreciação da prova em que se traduziria a violação do in dubio pro reo não reside na desconformidade entre a decisão de facto assumida pelo julgador e aquela que teria sido a do próprio recorrente - carecendo esta última de qualquer relevância jurídica - verificando-se apenas quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, resultar da motivação invocada uma conclusão diversa da que foi extraída pelo tribunal recorrido na fixação da matéria de facto. Nesta perspectiva, a violação do princípio em questão apenas poderia ser afirmada se, face aos factos que a 1ª instância teve como provados e aos respectivos fundamentos, se evidenciasse que, na dúvida, o tribunal recorrido tinha optado por decidir contra o arguido. Ora, a decisão sobre a matéria de facto foi motivada por referência às provas que fundamentaram a convicção do tribunal, efectuando a sua análise crítica com respeito pelas regras da experiência comum. Consequentemente, não ocorre violação daquele princípio.

Prosseguindo, sustenta o recorrente que o cheque em causa era um cheque pré-datado, o que implicaria o funcionamento do art. 11º, nº 3, do DL 316/97. Trata-se, não obstante, de questão cuja apreciação fica prejudicada pela matéria de facto assente, já que desta resulta claramente que se tratou de cheque emitido como meio de pagamento, implicando a demonstração da responsabilidade penal do arguido pelo crime de emissão de cheque sem provisão.

Por fim, alega o arguido a ausência de prejuízo patrimonial, mas uma vez mais sem razão. Sendo o cheque em causa nestes autos um meio de pagamento, contrapartida da obrigação subjacente à sua emissão, da falta de pagamento do cheque resulta necessariamente um prejuízo patrimonial, correspondente ao não recebimento pelo portador do montante inscrito no cheque.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, julga-se improcedente a reclamação e nega-se provimento aos recursos interpostos pelo arguido.
Por ter decaído integralmente nos recursos que interpôs, pagará o recorrente a taxa de justiça, já reduzida a metade, de 5 UC.

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Jorge Miranda Jacob (Relator)
Maria Pilar de Oliveira