Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
820/10.8T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: CADUCIDADE DE ARRENDAMENTO
PERDA DA COISA LOCADA
INCÊNDIO
Data do Acordão: 12/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL, JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 11º DO RAU E 1031º B) DO CC
Sumário: I – A caducidade do contrato de arrendamento como decorrência da perda da coisa locada – por impossibilidade objectiva da prestação – não ocorre apenas quando a coisa locada deixa de existir, no plano naturalístico (como acontece nos casos em que é totalmente destruída), mas também quando a coisa locada perde totalmente, por efeito da sua parcial destruição, a aptidão necessária à sua utilização para os fins previstos no contrato e desde que essa aptidão não possa ser reposta com a realização de obras que possam e devam ser exigidas ao senhorio.

II – Tendo ocorrido um incêndio que retirou ao locado (situado no rés-do-chão) as condições necessárias à sua utilização, que determinou a queda da cobertura e telhado do edifício e a total destruição do 1º andar – e não sendo sequer tecnicamente aconselhável a recuperação do edifício – não pode o senhorio ser obrigado a fazer as obras de reconstrução do edifício que seriam necessárias para repor a situação anterior e a aptidão e funcionalidade do locado, devendo considerar-se que tal situação configura uma perda da coisa locada, determinando a extinção do arrendamento por caducidade.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A..., melhor identificado nos autos, intentou acção, com processo ordinário, contra Imobiliária B..., Ldª, melhor identificada nos autos, alegando, em suma, que:

Mediante contrato escrito de arrendamento, celebrado em 02/09/1970, a Ré cedeu ao Autor o gozo do rés-do-chão do lado direito (duas divisões) do prédio que identifica, com destino ao exercício de comércio; no dia 02/10/2003, ocorreu um incêndio no 1º andar do referido prédio, o qual determinou a sua destruição parcial; tendo saído temporariamente do arrendado e aguardando as obras de reparação, recebeu comunicação da Ré a informar que o contrato havia terminado por caducidade, em virtude de o incêndio ter destruído a loja comercial; tal incêndio decorreu por falta de obras de conservação ordinária e extraordinária que deveriam ser executadas pela Ré e não destruiu totalmente o arrendado, sendo este susceptível de reparação.

Assim, sustentando que o contrato não caducou, alegando que o incêndio é imputável à Ré e referindo que a não realização das obras de reparação o impede de explorar o seu estabelecimento comercial e de auferir os respectivos rendimentos, pede que a Ré seja condenada a:

a) Executar ou mandar executar, à sua custa, em prazo não superior a trinta dias, as obras necessárias, de forma a que o Autor possa retomar a exploração do seu estabelecimento;

b) A pagar ao Autor a indemnização a liquidar em execução de sentença até que tenha efectiva autorização de retoma da exploração do estabelecimento;

c) A ver declarada suspensa a obrigação de o Autor pagar à Ré a renda convencionada pelo arrendamento desde 02/10/2003;

d) Nos termos do artigo 829º-A do Código Civil, na sanção pecuniária, a reverter, em partes iguais, para o Autor e para o Estado, de 100,00€ por cada dia de atraso no cumprimento da sua obrigação, em relação ao prazo fixado.

A Ré contestou, com os seguintes fundamentos:

- O Autor é parte ilegítima, por estar desacompanhado do seu cônjuge;

- Não é possível a procedência dos pedidos formulados nas alíneas a) e b), em virtude de o prédio já ter sido demolido e ter sido construído, no seu lugar, um novo edifício;

- O Autor actua com abuso de direito, na medida em que, tendo instalado o seu estabelecimento comercial num outro local que arrendou para o efeito, fez crer à Ré que aceitava a caducidade do contrato e apenas veio propor a presente acção depois de ter sido demolido o prédio e depois de ter sido construído um novo edifício;

- Impugnando diversos factos constantes da petição inicial, alega que o incêndio abrangeu todo o edifício e implicou a sua total destruição, sendo certo que não era possível nem aconselhável a sua recuperação por não apresentar condições de segurança.

Conclui pela improcedência da acção e pede, em reconvenção, que seja declarada a caducidade do contrato de arrendamento, na sequência do incêndio referidos nos autos.

O Autor respondeu, sustentando a improcedência das excepções invocadas e reafirmando – como já havia alegado na petição inicial – que o contrato não caducou e que a Ré está obrigada a efectuar obras de reparação.

Ampliando a causa de pedir, o Autor vem ainda alegar que a perda do locado implicará a perda do estabelecimento comercial e, invocando os prejuízos daí decorrentes, pede, a título subsidiário – e para o caso de o Tribunal julgar verificada a caducidade do contrato –, que a Ré seja condenada a pagar-lhe, a título de indemnização, a título de danos e lucros cessantes, pela perda do locado a quantia a liquidar em execução de sentença, a qual ascende, nessa data, à quantia de 18.000,00€.

A Ré respondeu e, na sequência de requerimento formulado nesse sentido, veio a ser admitida a intervir nos autos, como parte principal activa quanto à acção e passiva quanto à reconvenção, a requerente, G... (cônjuge do Autor).

Foi proferido o despacho saneador, foi efectuada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória e, após realização da audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença, que, julgando a acção improcedente e julgando procedente a reconvenção, absolveu a Ré do pedido e declarou extinto, por caducidade, o contrato de arrendamento celebrado entre o Autor e a Ré.

Inconformados com essa decisão, o Autor e a sua esposa (Interveniente) vieram interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

I. Em causa nos presentes autos está, por um lado, saber se o incêndio determinou a perda do locado ou se, ao invés, este é passível de ser recuperado mediante a execução de obras de recuperação;

II. E, por outro lado, saber se o incêndio é imputável a alguma das partes

III. O tribunal entendeu que o incêndio determinou a perda total do locado e que a causa do incêndio não poderá ser imputada a qualquer das partes:

IV. Da conjugação de toda a prova, quer documental quer testemunhal produzida nos presentes autos, não resultam estas conclusões;

V. Quanto à primeira questão, a conjugação dos factos provados (quesitos 5, 6, 7, 24, 25, 26 e 27), do auto de vistoria junto a fls. 148, das fotografias juntas a fls. 120 e do depoimento das testemunhas C ..., D ... e E ...permite chegar, sem qualquer margem para dúvidas, à conclusão de que o incêndio não determinou a destruição total do edifício, mas apenas a destruição do 1º andar;

VI. Por outro lado, conjugado o documento junto a fls. 144 dos autos com o depoimento da testemunha C ..., do depoimento de parte da Ré e da testemunha D ... resulta que a situação do prédio não impunha a sua demolição e que a sua reconstrução não era nem técnica nem muito menos economicamente desaconselhável;

VII. Para a resposta positiva aos quesitos 28 e 29 da base instrutória, o tribunal baseou-se no depoimento da testemunha D ..., que tem um interesse directo na causa, em detrimento da testemunha F ..., não fundamentando a razão da opção pelo depoimento desta testemunha em detrimento da outra;

VIII. Baseou-se, ainda, o tribunal, numa hipotética estimativa do custo da reconstrução alegadamente pedida a um gabinete de engenharia e num invocado parecer técnico emitido pelo Institutos da Construção da Universidade do Porto, os quais não se encontram juntos aos autos;

IX. A Ré não procedeu à reconstrução do edifício não porque a sua reconstrução fosse técnica ou economicamente desaconselhável ou inviável, mas porque pretendia “expulsar” os antigos inquilinos e celebrar novos contratos, com preços actuais, o que veio a acontecer;

X. Tal intuito é reforçado pelo facto de o novo edifício ter as condições necessárias para o Autor retomar a exploração do seu estabelecimento, já que continua a ter um rés-do-chão destinado a comércio, o que desde logo resulta do depoimento de parte da Ré e do depoimento da testemunha Maria de Fátima Valente;

XI. Impõe-se, assim, a alteração da resposta dada à matéria de facto, dando-se como não provados os quesitos 28 e 29 e como provados os quesitos 8 a 23;

XII. Quanto à questão da culpa do acidente, o tribunal julgou não provados os quesitos 2, 3 e 4 da base instrutória, sem, no entanto, avançar qualquer fundamentação para o efeito;

XIII. O tribunal não analisou os meios de prova nem indicou os meios de prova em que se baseou para responder aos indicados quesitos da forma como respondeu;

XIV. É assim, quanto a este ponto concreto, a sentença nula por falta de fundamentação, nulidade que aqui se expressamente se invoca para todos os efeitos legais;

XV. Por outro lado, do depoimento de parte da Ré verifica-se que nunca foram efectuadas quaisquer obras de conservação no edifício, nem na instalação eléctrica, o que determinou o seu colapso, dando origem ao acidente dos autos;

XVI. Assim, dúvidas não restam de que o incêndio se ficou a dever a culpa exclusiva da Ré, por não ter cumprido o dever de conservação do edifício que sobre si impendia;

XVII. Impõe-se, pois, a alteração da resposta dada à matéria de facto, dando-se como provados os quesitos 2, 3 e 4;

XVIII. Quanto ao quesito 34, o Autor declarou, aquando da prestação do seu depoimento, que havia instalado o seu estabelecimento num outro local a título provisório, pelo que se impõe que seja dada uma resposta restritiva a este quesito, no sentido de ser julgado provado apenas que “o autor instalou provisoriamente o seu estabelecimento noutro local que arrendou para o efeito”;

XIX. Não é certo que a perda do locado determine, ope legis, a caducidade do contrato de arrendamento;

XX. Por um lado, só a perda total do locado é apta a produzir tal efeito;

XXI. Perda total que, no caso, não aconteceu;

XXII. Por outro, a perda total do locado apenas determina a caducidade do contrato de arrendamento se a destruição do locado não decorrer de causa imputável, dolosa ou negligentemente, ao senhorio;

XXIII. O que também não é o caso dos autos, atento o facto de o incêndio ter tido origem na violação culposa, por parte da Ré, dos deveres de conservação do edifício que sobre si impendiam;

XXIV. Em face do exposto, impõe-se a revogação da sentença proferida e a sua substituição por outra que condene a Ré a permitir ao Autor retomar o estabelecimento comercial arrendado, por forma a aí exercer o seu comércio e a julgar improcedente, em consequência, a reconvenção deduzida;

XXV. Deve ainda a Ré ser condenada a pagar ao Autor uma indemnização em montante a liquidar em execução de sentença, até à efectiva comunicação da possibilidade de retoma do estabelecimento por parte do Autor, atento o facto de o incêndio ter deflagrado por sua culpa exclusiva, concretamente em virtude do incumprimento do dever legal de conservação do edifico que sobre si impendia, originando danos, por perda de clientela e diminuição de lucros, na esfera jurídica do Autor;

XXVI. Na hipótese – que não se concede, apenas por mero dever de patrocínio se admitindo – de se considerar que o incêndio determinou a perda do locado e consequente caducidade do contrato de arrendamento, deve a Ré ser condenada a pagar ao Autor uma indemnização em montante a liquidar em execução de sentença, por perda do locado, atento o facto de o incêndio ter deflagrado por culpa exclusiva da Ré, concretamente em virtude do incumprimento do dever legal de conservação do edifico que sobre si impendia, originando danos, por perda de clientela e diminuição de lucros, na esfera jurídica do Autor.

A Ré apresentou contra-alegações que sintetiza nas seguintes conclusões:

1 – A nulidade da sentença que os apelantes invocam não é uma nulidade da sentença. Se houve nulidade nos termos expostos era da decisão da matéria de facto por pretensa falta de fundamentação, face ao disposto no art. 653º, nº 2 do CPC.

2 – Se assim fosse, e se os Apelantes considerassem falta de motivação das respostas dadas deveriam ter reclamado após essa decisão, o que não fizeram. Podiam ainda ter requerido que o Tribunal de 1ª instância fundamentasse essa decisão tal como prevê o nº 5 do art. 712º do C.P.C., o que também não fizeram.

3 – De qualquer modo as respostas negativas dadas aos nºs 2, 3 e 4 da B.I. resultam da ausência de prova feita pelos Apelantes, a quem cabia o respectivo ónus de provar. Além disso, nessa decisão se refere que as respostas dadas resultam da ponderação dos documentos juntos aos autos e depoimentos das testemunhas.

4 – Por outro lado, nos termos do contrato de arrendamento era aos Apelantes que cabia fazer a conservação do local arrendado, incluindo a instalação eléctrica.

5 – Quanto às respostas aos nºs 28 e 29 e 8 a 23 da B.I.: não há nos autos meios de prova que, só por si, permitam uma resposta diversa da que foi dada. As respostas resultaram duma ponderação criteriosa de todos os meios de prova.

6 – Os factos dos nºs 2 a 8 e 28 e 2 da B.I. são entre si excludentes.

Aos Apelantes cabia o ónus da prova dos factos dos nºs 2 a 8 e à Apelada os dos nºs 28 e 29 (para efeito de pedido reconvencional)

7 – Todas as testemunhas (à excepção de outra arrendatária – C ...) declararam, em síntese a retirar dos seus depoimentos, que, após o incêndio, não era viável a recuperação do edifício nem técnica nem economicamente.

8 – Aliás, em relação à arrendatária C ... foi já proferida sentença de igual conteúdo da recorrida e com trânsito em julgado.

9 – Apesar do referido ónus da prova dos Apelantes, estes requereram em 05.06.2206 e em 10.01.2007 produção antecipada de prova e não a levaram por diante, tendo num caso desistido da instância e noutro deixado de pagar o preparo para se extinguir a instância.

10 – O incêndio ocorreu em 2003 e os Apelantes propuseram a acção apenas em 2010, sem durante esse período de tempo terem tomado qualquer diligência para obter a manutenção do arrendamento.

11 – O edifício onde estava o local arrendado é um edifício único, não sendo possível a recuperação do local arrendado sem recuperar a totalidade do edifício.

12 – Face ao grau de destruição do local arrendado torna-se impossível a sua utilização para os fins concretos para que foi arrendado. De igual forma por aí já ter sido construído um novo edifício (que ocupou o espaço desse e de um outro que é contíguo).

Por esse motivo o contrato de arrendamento caducou.

13 – Não houve culpa da apelada na produção do incêndio que destruiu o edifício. Por esse motivo não há lugar a indemnização.

14 – As conclusões dos Apelantes devem improceder, mantendo-se a decisão proferida em 1ª instância.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se ocorreu erro na apreciação da prova e se, em função disso, importa ou não alterar, e em que termos, a decisão da matéria de facto;

• Saber, perante a matéria de facto – eventualmente alterada na sequência da apreciação da questão anterior –, se ocorreu ou não a perda da coisa locada e, consequentemente, a caducidade do contrato de arrendamento;

• Saber se o incêndio ocorrido e a eventual perda do locado daí decorrente pode ou não ser imputada a qualquer conduta da Ré/Apelada/senhoria e, mais concretamente, a eventual violação do seu dever de providenciar pela realização de obras de conservação do edifício, com vista a determinar se aos Apelantes assiste ou não o direito a qualquer indemnização pela cessação do arrendamento.


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III.

Na 1ª instância, foi fixada a seguinte matéria de facto (que reorganizamos por ordem lógica e cronológica):

1. Mediante contrato celebrado por escritura pública em 2 de Setembro de 1970, a ré cedeu ao autor o gozo e fruição do rés-do-chão com duas divisões, do lado direito do prédio urbano pertencente à ré sito na Rua Elias Garcia, nº 66, em Ovar, composto de rés-do-chão e andar, inscrito na matriz sob o artigo 4.526, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o nº 23.262 – alínea A) dos Factos Assentes.

2. O destino dessa cedência era o comércio dos artigos de fazenda e camisaria ou quaisquer outros que o autor resolvesse explorar – alínea B) dos Factos Assentes.

3. O contrato foi celebrado mediante o pagamento da renda mensal então de 850$00, por um ano, renovável nos termos legais, tendo sido sucessivamente renovado – alínea C) dos Factos Assentes.

4. Mercê da última actualização operada a renda mensal fixou-se em 68,78€ – alínea D) dos Factos Assentes.

5. Conforme resulta da cláusula 5.ª do contrato, o autor obrigou-se “a conservar em bom estado o rés-do-chão arrendado e bem assim a canalização de água e instalação eléctrica e a efectuar as obras de reparação interiores e exteriores cuja necessidade resultar de acidente que lhe seja imputado e também a custear as obras de reparação tornadas necessárias por virtude do uso que lhe der.” – alínea E) dos Factos Assentes.

6. O edifício corresponde a uma construção com cerca de um século, realizada com paredes grossas de alvenaria de pedra miúda e argamassa pobre, rebocadas e pintadas, com piso do rés-do-chão em betonilha de cimento revestida a tijoleira cerâmica, com piso do 1.º andar / tecto do rés-do-chão em estrutura de madeira, o forro do 1.º andar em madeira, a cobertura em estrutura de madeira e telha de cerâmica – alínea F) dos Factos Assentes.

7. Trata-se de um rés-do-chão comercial: zonas de exposição e atendimento, orientadas à Rua Elias Garcia; zonas de armazenagem, exposição, atendimento e sanitário, orientadas às traseiras; zona de armazenagem – alínea G) dos Factos Assentes.

8. No dia 2/10/2003 ocorreu um incêndio no aludido prédio – alínea H) dos Factos Assentes.

9. O incêndio foi originado por um curto-circuito na instalação eléctrica – resposta ao ponto 1º da Base Instrutória.

10. O incêndio provocou o colapso da abertura, do forro, das divisórias interiores de tabique e das janelas e portas do 1.º andar – resposta ao ponto 5º da Base Instrutória.

11. O 1.º andar ficou a céu aberto – resposta ao ponto 6º da Base Instrutória.

12. O incêndio também causou danos no tecto falso e no forro fixado à estrutura do soalho do 1.º andar – resposta ao ponto 7º da Base Instrutória.

13. Em consequência do incêndio e das tarefas de combate ao mesmo pelos Bombeiros a estrutura da cobertura e o telhado caíram – resposta ao ponto 24º da Base Instrutória.

14. E ficaram muito danificados o forro da cobertura, as divisórias interiores de tabique e os tectos do rés-do-chão – resposta ao ponto 25º da Base Instrutória.

15. As paredes laterais em alvenaria, com o calor do fogo, perderam estabilidade e ficaram enegrecidas – resposta ao ponto 26º da Base Instrutória.

16. A instalação eléctrica ficou, pelo menos, parcialmente destruída – resposta ao ponto 27º da Base Instrutória.

17. Em função dos danos que sofreu, não era nem técnica nem economicamente aconselhável a recuperação do edifício existente – resposta ao ponto 28º da Base Instrutória.

18. E o que restava dele tinha que ser demolido, porque não apresentava condições para ser recuperado – resposta ao ponto 29º da Base Instrutória.

19. Após o incêndio, a ré demoliu o que restou do edifício e construiu um novo edifício no mesmo local – alínea K) dos Factos Assentes.

20. O novo edifício que a ré construiu no local obedece a projecto sem qualquer relação com o antigo edifício existente, ocupando o espaço deste e de outro edifício que com ele confinava – resposta ao ponto 30º da Base Instrutória.

21. Apenas tendo sido mantida a fachada junto à rua – resposta ao ponto 31º da Base Instrutória.

22. Mesmo essa fachada teve de ser demolida na parte que não foi destruída pelo incêndio e reconstruída de raiz – resposta ao ponto 32º da Base Instrutória.

23. O novo edifício está concluído, sendo destinado a comércio, serviços e habitação – resposta ao ponto 33º da Base Instrutória.

24. Em resultado do incêndio o prédio ficou sem condições para funcionar ali o estabelecimento comercial que o autor lá tinha instalado – alínea I) dos Factos Assentes.

25. O autor instalou o seu estabelecimento noutro local que arrendou para o efeito – resposta ao ponto 34º da Base Instrutória.

26. E onde, ainda hoje, exerce o comércio dos mesmos artigos que comercializava no prédio da ré – resposta ao ponto 35º da Base Instrutória.

27. O autor sempre manifestou à ré que pretendia voltar a ocupar o local – resposta ao ponto 36º da Base Instrutória.

28. A ré não permite que o autor reinstale o seu estabelecimento no novo edifício que construiu no local – resposta ao ponto 38º da Base Instrutória.

29. A ré não permite o regresso do autor ao espaço que correspondia ao objecto do arrendamento – alínea P) dos Factos Assentes.

30. A exploração do estabelecimento permitia ao autor auferir um lucro não inferior a 3.000,00€ por ano – resposta ao ponto 39º da Base Instrutória.

31. A clientela que antes procurava o estabelecimento do autor no arrendado diminuiu – resposta ao ponto 41º da Base Instrutória.

32. Por carta datada de 27/9/04, a ré comunicou ao autor que “por uma questão meramente formal vimos confirmar que o contrato de arrendamento da loja sita na Rua Elias Garcia caducou, uma vez que o incêndio destruiu a referida loja” – alínea J) dos Factos Assentes.

33. Em 05.06.2006 o autor requereu no Tribunal Judicial da Comarca do Ovar produção antecipada de prova pericial e que correu termos pelo 3º Juízo com o nº 1176/06.9TBOVR – alínea L) dos Factos Assentes.

34. Em 22.08.2007 o autor desistiu da instância nesse processo, o que foi homologado por douto despacho de 15.10.2007 – alínea M) dos Factos Assentes.

35. Em 10.01.2007 o autor deduziu no mesmo Tribunal outra produção antecipada de prova pericial que correu termos pelo 3º Juízo com o nº 98/07.0TBOVR – alínea N) dos Factos Assentes.

36. O processo foi arquivado por o autor não ter pago o preparo para a perícia – alínea O) dos Factos Assentes.


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IV.

Apreciemos, pois, as questões suscitadas no recurso.

Impugnação da matéria de facto.

Os Apelantes começam por impugnar a decisão da matéria de facto e, porque os depoimentos foram gravados e porque se mostram devidamente cumpridos os ónus que são legalmente impostos a quem impugna a decisão da matéria de facto, passamos a analisar os concretos pontos que são impugnados.

Pontos 28, 29º e 8 a 23º da Base Instrutória.

Perguntava-se no ponto 8º se o prédio podia ser recuperado, mediante obras de reabilitação e os pontos 9º a 23º reportavam-se às concretas obras que eram necessárias para proceder a essa reabilitação e ao respectivo custo. Toda essa matéria foi considerada não provada.

Por outro lado, e em resposta aos pontos 28º e 29º, considerou-se provado que “Em função dos danos que sofreu, não era nem técnica nem economicamente aconselhável a recuperação do edifício existente” e que “o que restava dele tinha que ser demolido, porque não apresentava condições para ser recuperado”.

Consideram, porém, os Apelantes que as respostas deveriam ser as inversas, dando-se como provada a matéria constante dos pontos 8º a 23º e como não provada a que consta dos pontos 28º e 29º.

Sustentam, para o efeito, que, para a resposta positiva aos pontos 28º e 29º, o tribunal baseou-se no depoimento da testemunha, D ..., que tem um interesse directo na causa, em detrimento da testemunha, F ..., sem que tenha fundamentado essa opção, baseando-se ainda numa hipotética estimativa do custo da reconstrução alegadamente pedida a um gabinete de engenharia e num parecer técnico dos Institutos da Construção da Universidade do Porto, os quais não se encontram juntos aos autos. Sustentam, por outro lado, que dos demais factos provados, do auto de vistoria de fls. 148, das fotografias de fls. 120 e dos depoimentos das testemunhas, C ..., D ... e E ..., resulta que o incêndio não destruiu todo o edifício, mas apenas o 1º andar e, conjugando o documento de fls. 144 com o depoimento da testemunha, C ..., com o depoimento de parte da Ré e com o depoimento da testemunha D ..., conclui-se que a situação do prédio não impunha a sua demolição.

Embora seja certo que o incêndio não destruiu totalmente o rés-do-chão, nem por isso se poderá afirmar – como parecem pretender os Apelantes – que o rés-do-chão ficou intacto, já que, como decorre da matéria de facto provada (não impugnada) o incêndio também causou danos no tecto falso e no forro fixado à estrutura do soalho do 1.º andar e, em consequência do incêndio e das tarefas de combate ao mesmo pelos Bombeiros a estrutura da cobertura e o telhado caíram; ficaram muito danificados o forro da cobertura, as divisórias interiores de tabique e os tectos do rés-do-chão e as paredes laterais em alvenaria, com o calor do fogo, perderam estabilidade e ficaram enegrecidas. Importa notar, por outro lado, que, apesar de existirem outros depoimentos em sentido diferente, algumas testemunhas declaram ter visto pelo menos parte do tecto do rés-do-chão caído (H... e D...).

Mas, ainda que não fossem visíveis quaisquer danos no rés-do-chão, nem por isso se poderia concluir que a recuperação do edifício era tecnicamente viável e aconselhável e a verdade é que nenhuma prova foi feita nesse sentido, já que a prova produzida pelo Autor não tem qualquer idoneidade para esse efeito. As testemunhas, I ..., J..., L... e M..., nada declararam sobre o assunto; a testemunha, N..., apesar de não ter qualquer qualificação técnica para o efeito, chega mesmo a declarar que, na sua opinião, teriam que ser feitas as obras de raiz que foram feitas, já que, sendo um prédio antigo, outro tipo de obras poderia não garantir a estabilidade e a segurança do prédio; a testemunha C ... (arrendatária de uma outra parte do prédio) afirma que a recuperação era possível, baseando-se, para o efeito, numa avaliação que mandou fazer ao Eng. F ..., mas o certo é que a testemunha, F ... (técnico de desenho e não engenheiro) não confirma a conclusão a que alude a testemunha, C .... De facto, a testemunha, F ..., declara que se limitou a fazer a avaliação respeitante à reabilitação do estabelecimento comercial da D. C ... e, como declarou expressamente no seu depoimento, não avaliou (porque não foi isso que lhe foi pedido) a possibilidade técnica da reabilitação ou reconstrução do edifício; não analisou as paredes, não foi ao 1º andar, não foi ao estabelecimento do autor; em suma, não analisou o prédio no seu conjunto com vista a determinar a situação em que se encontrava e a segurança e estabilidade da estrutura, paredes e fundações. Parece claro, portanto, que este depoimento não tem qualquer utilidade para avaliar a possibilidade de recuperação do edifício (quer em termos técnicos, quer em termos económicos). Por último, a testemunha E ... apenas enuncia as suas opiniões (leigas na matéria), afirmando – sem qualquer sustentação técnica (que não possui) e atendendo apenas ao aspecto exterior do prédio – que, segundo pensa, o fogo não causou nenhum dano à estrutura do edifício e que o prédio tinha condições para ser recuperado.

Como decorre do relato feito, parece claro que nenhuma das testemunhas oferecidas pelos Apelantes permite formar a convicção acerca da efectiva possibilidade de recuperação daquele prédio.

E, ao contrário do que alegam os Apelantes, os documentos juntos também não contribuem em nada para o esclarecimento desse facto, importando dizer que o auto de vistoria da Câmara Municipal e a notificação efectuada à Ré (fls. 144 e segs.) limitam-se a constatar o risco de ruína de parte do edifício e o perigo inerente, sem que tenha sido efectuada qualquer avaliação sobre o tipo de obras a executar e, mais concretamente, sem que tenha sido analisada a questão de saber se a recuperação do edifício era viável ou se, ao invés, se impunha a sua demolição.

Como bem se refere na fundamentação da decisão da matéria de facto, “…teria sido necessário realizar uma perícia ao edifício para saber com o rigor exigível se existiam ou não condições técnicas para a sua recuperação e na afirmativa qual o seu custo…”. A verdade é que tal diligência não foi efectuada, importando notar que o Autor até requereu, por duas vezes, a realização dessa perícia (em produção antecipada de prova) e, incompreensivelmente, não a levou adiante (a primeira vez porque desistiu da instância e a segunda vez porque não pagou o preparo devido).

 É certo, pois, em face do exposto, que nada permitiria responder de forma afirmativa aos pontos 8º a 23º da Base Instrutória.

Mas existiriam razões para considerar provado que a recuperação do edifício não era aconselhável (como se considerou nas respostas aos pontos 28º e 29º)?

Para justificar as respostas dadas, escreveu-se na fundamentação da decisão da matéria de facto o seguinte:

A decisão do tribunal formou-se assim partindo da objectividade irrecusável: por um lado, o edifício era uma construção com cerca de um século, realizada com paredes grossas de alvenaria de pedra miúda e argamassa pobre, com piso do 1.º andar / tecto do rés-do-chão em estrutura de madeira, o forro do 1.º andar em madeira, a cobertura em estrutura de madeira e telha de cerâmica; por outro lado, a estrutura do telhado desabou, abatendo-se com todos os materiais que o compõem sobre o piso do 1.º andar / tecto do rés-do-chão, e com eles toda a água usada no combate ao incêndio. Dizendo os bombeiros que o incêndio consumiu totalmente o edifício acima do rés-do-chão, não pode deixar de se concluir que o incêndio produziu uma grande quantidade de calor e que este afectou todos os elementos estruturais do prédio, designadamente a argamassa pobre que faz parte das suas paredes. Estes factos tornam plausível e mesmo provável que as paredes que resistiram de pé hajam sido afectadas na sua estrutura e composição e, consequentemente, na sua consistência e segurança.

Por isso, tornou-se particularmente decisiva a informação da testemunha D ..., Arquitecto, marido de uma das sócias da ré e autor do projecto do novo edifício, segundo o qual, inicialmente, para saber o que ali podia ser feito, foi pedido a um gabinete de engenharia uma estimativa do custo de reconstrução do edifício a qual apontava para um custo na ordem dos 500.000€ e depois para aferir da viabilidade da reconstrução foi pedido um parecer técnico ao Instituto da Construção da Universidade do Porto, o qual concluiu, após fazer uma peritagem às paredes, que a reconstrução não era possível porque os elementos estruturais do edifício não ofereciam segurança, o que obrigou a colocar apenas a hipótese de se construir um novo edifício, sendo que por iniciativa da sociedade dona do edifício foi decidido manter a traça original ao nível da fachada principal, mas mesmo esta teve de ser demolida para limpeza e tratamento dos materiais reaproveitáveis e ser refeita de novo com substituição das partes não aproveitáveis.

É evidente que esta testemunha tem um interesse directo na causa, mas o tribunal não encontra qualquer razão para só por isso desprezar o seu depoimento (designadamente desprezá-lo para aceitar em seu lugar os demais depoimentos que absolutamente nenhum conhecimento de causa tinham) que foi incisivo, pormenorizado, justificado e coerente e, como já referido, é consentâneo com outros elementos probatórios, possuindo a testemunha, além do mais, conhecimentos técnicos próprios (é arquitecto) para fazer determinadas afirmações que nenhuma outra testemunha ouvida possui”.

Não podemos deixar de aderir a esta fundamentação.

Com efeito, falamos de um edifício com cerca de um século, cuja estrutura (ao nível, designadamente, dos pisos e tectos) é, essencialmente, de madeira. Ainda que o incêndio não tivesse chegado ao rés-do-chão e ainda que, imediatamente após o incêndio, não fossem visíveis danos relevantes nos tectos do rés-do-chão (e há testemunhas que dizem o contrário), não poderemos admitir como muito provável que essa estrutura – depois de sujeita à acção do fogo, à acção da água usada no combate ao incêndio e à pressão exercida pela queda do telhado – tenha ficado com as condições de segurança e estabilidade que seriam exigíveis para ponderar a sua recuperação e evitar a sua demolição. E admitimos mesmo como provável que as paredes que ficaram de pé, designadamente as paredes exteriores e respectivas fundações, também tenham sido afectadas, diminuindo a sua resistência e a sua segurança.

Ora, estas conclusões – decorrentes da regras de experiência e senso comum – são confirmadas pela testemunha, D ..., que, apesar de ser casado com a legal representante da Ré, é, apesar de tudo, a única pessoa – de entre as testemunhas que foram inquiridas – que depôs com algum conhecimento de causa, relatando as diligências que foram efectuadas para avaliar a segurança da estrutura tendo em vista a reabilitação ou reconstrução do prédio, reportando-se a um parecer do Instituto da Construção segundo o qual essa reabilitação seria muito difícil em termos técnicos e referindo que, mais tarde, aquando da construção do novo edifício, vieram a constatar que a fachada exterior (que pretendiam aproveitar) não oferecia condições de segurança, razão pela qual foi desmontada, reparada e novamente montada.

E este depoimento – que, apesar de tudo, nos pareceu isento e credível – nem sequer é contrariado por qualquer outro meio de prova minimamente credível.

De facto, e ao contrário do que referem os Apelantes, não corresponde à verdade que o tribunal tenha atendido ao depoimento da testemunha, D ..., em detrimento da testemunha, F ..., na medida em que, ao contrário do que sucedeu com o primeiro, o segundo ( F ...) nada sabia de relevante sobre esta matéria. De facto, como decorre do seu depoimento, a testemunha, F ...limitou-se a fazer a avaliação respeitante à reabilitação do estabelecimento comercial da D. C ... e, como declarou expressamente no seu depoimento, não avaliou (porque não foi isso que lhe foi pedido) a possibilidade técnica da reabilitação ou reconstrução do edifício; não analisou as paredes, não foi ao 1º andar, não foi ao estabelecimento do autor; em suma, não analisou o prédio no seu conjunto com vista a determinar a situação em que se encontrava e a segurança e estabilidade da estrutura, paredes e fundações. Parece claro, portanto, que este depoimento não tem qualquer utilidade para avaliar a possibilidade de recuperação do edifício (quer em termos técnicos, quer em termos económicos).  Ou seja, esta testemunha não afirma – e não sabe – se a recuperação do edifício tinha ou não alguma viabilidade em termos técnicos.

Por outro lado, e ao contrário do que também referem os Apelantes, a decisão não se fundamentou em qualquer avaliação alegadamente pedida a um gabinete de engenharia e em qualquer parecer técnico dos Institutos da Construção da Universidade do Porto (que não constam dos autos). A decisão baseou-se no depoimento da testemunha, D ..., que faz alusão a essas diligências.

Não encontramos, pois, razões para alterar a resposta dada aos citados pontos da Base Instrutória.

Pontos 2º, 3º e 4º da Base Instrutória.

Estes pontos – que mereceram a resposta de “não provado” – tinham a seguinte redacção:

2º A ré abandonou o edifício, não fazendo ao longo dos anos quaisquer obras de conservação?

3º Permitindo que o mesmo se fosse degradando e que a instalação eléctrica do edifício tivesse entrado em colapso?

4º Se esse comportamento da ré não tivesse ocorrido o incêndio não teria deflagrado?

No que toca a estas respostas, os Apelantes começam por invocar a sua falta de fundamentação, invocando, com base nessa circunstância, a nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no art. 668º, nº 1, b) do C.P.C.

É claro que não está aqui em causa qualquer nulidade da sentença, na medida em que o que está aqui em causa não é a sentença, mas sim a decisão da matéria de facto e, embora seja verdade que a resposta negativa aos citados pontos da base instrutória não foi fundamentada em termos concretos e objectivos, o certo é que tal omissão – que poderia determinar a remessa dos autos à 1ª instância para fundamentação, se a parte o tivesse requerido (o que não foi o caso) – foi posteriormente sanada por despacho de 28/06/2012 e não impediria a apreciação daquela que é a questão aqui relevante: a correcção ou não das respostas dadas.

Ora bem.

Consideram os Apelantes que essa matéria deveria ser considerada provada e, para tanto, invocam apenas o depoimento de parte da legal representante da Ré quando declara que as únicas obras que a Ré ali levou a cabo foram obras de limpeza das fachadas e logradouro.

Mas, salvo o devido respeito, não conseguimos entender como seria possível retirar daí os factos a que aludem os citados pontos da base instrutória e, mais concretamente, os pontos 3º e 4º.

De facto, ainda que não tenham sido feitas quaisquer obras de conservação, isso não permitiria concluir que a instalação eléctrica tivesse entrado em colapso (e não há a menor prova de que isso tenha acontecido; não o diz a representante da Ré e não o diz nenhuma das testemunhas) e muito menos seria possível concluir que, se não fosse esse comportamento da Ré (ou seja, se a Ré tivesse efectuado obras), o incêndio não teria deflagrado, já que apenas se sabe que o incêndio teve origem num curto circuito sem que exista o mínimo indício de que esse curto circuito tenha alguma relação com o possível e eventual mau estado em que se encontrava a instalação eléctrica (sendo certo que nada, na prova produzida, permite essa conclusão).

Importa notar, além do mais, que a representante da Ré declara, no seu depoimento, que a Ré apenas adquiriu o edifício em 1996/1997; que, desde essa data, nenhum dos arrendatários pediu obras; que nenhum deles se queixou da instalação eléctrica e que eles próprios (arrendatários) fizeram obras.

Portanto, parece que nada autoriza a conclusão de que a Ré tenha “abandonado o edifício” sem fazer, ao longo dos anos, quaisquer obras de conservação (fez as limpezas do logradouro e coberturas; não fez mais porque não lhas pediram e porque os arrendatários as foram fazendo) e muito menos é sustentável a conclusão de que a instalação eléctrica entrou em colapso por causa da falta de obras (em primeiro lugar, porque os arrendatários fizeram obras e, sem segundo lugar, porque não há a menor prova de que a instalação eléctrica tivesse entrado em colapso) e de que o incêndio ocorreu por causa disso.

Mantêm-se, pois, as respostas dadas.

Ponto 34º da Base Instrutória.

Perguntava-se aqui o seguinte: O autor instalou o seu estabelecimento noutro local que arrendou para o efeito?

E foi considerado provado.

Mas, consideram os Apelantes, que esse ponto deveria ter merecido uma resposta restritiva de modo a dizer que tal ocorreu provisoriamente, baseando-se, para o efeito, no depoimento de parte do Autor.

Mas, salvo o devido respeito, essa afirmação do Autor não corresponde, evidentemente, a qualquer confissão, já que está em causa um facto que lhe é favorável e as declarações do Autor não têm, só por si, a idoneidade e a credibilidade bastante para formar uma convicção minimamente segura acerca da veracidade ou não dos factos que relata e que lhe são favoráveis.

De qualquer forma, resulta já da resposta ao ponto 36º que o Autor sempre manifestou à Ré que pretendia voltar a ocupar o local, o que, de algum modo, permitirá concluir aquilo que os Apelantes pretendem ver inserido na resposta ao ponto 34º.

Assim sendo, não se justifica qualquer alteração.

Mantém-se, pois, integralmente a decisão da matéria de facto.

Aplicação do Direito.

Ao nível da aplicação do Direito, sustentam os Apelantes (conclusões XIX a XXIII) que:

• Não é certo que a perda do locado determine, ope legis, a caducidade do contrato de arrendamento;

• Só a perda total do locado é apta a produzir tal efeito; perda total que, no caso, não aconteceu;

• Por outro, a perda total do locado apenas determina a caducidade do contrato de arrendamento se a destruição do locado não decorrer de causa imputável, dolosa ou negligentemente, ao senhorio, o que também não é o caso dos autos, atento o facto de o incêndio ter tido origem na violação culposa, por parte da Ré, dos deveres de conservação do edifício que sobre si impendiam.

 

Analisemos, pois, essas questões.

É evidente a falta de razão dos Apelantes, no que respeita à última questão enunciada, já que nada permite afirmar que o incêndio tenha ocorrido por causa imputável à Ré (senhoria).

Com efeito, sabendo-se apenas que o incêndio teve origem num curto-circuito e desconhecendo-se a efectiva e real causa desse curto-circuito, não é possível estabelecer qualquer relação de causalidade entre esse facto e quaisquer deficiências ou anomalias que, eventualmente, afectassem a instalação eléctrica como decorrência da falta de realização de obras de conservação por parte da Ré/senhoria.

Sendo certo que, perante os elementos de que dispomos, não será possível concluir que o incêndio tenha sido, de alguma forma, imputável à Ré, resta agora saber se o mesmo determinou a perda da coisa locada e, consequentemente, a caducidade do contrato de arrendamento.

Discutindo-se nos autos a eventual caducidade do contrato de arrendamento por perda da coisa locada em consequência de um incêndio ocorrido em Outubro de 2003, parece claro que – como se considerou na decisão recorrida – a solução dessa questão há-de ser encontrada à luz do regime que, nessa data, se encontrava em vigor,

Dispunha então o art. 66º, nº 1, do RAU – aprovado pelo Dec. Lei nº 321-B/90 de 15/10 – que o arrendamento urbano caduca nos casos fixados pelo artigo 1051º do Código Civil. Esta disposição legal preceituava, por seu turno que o contrato caduca pela perda da coisa locada. Importa dizer, aliás, que, nessa matéria, não ocorreu qualquer alteração legislativa de relevo, já que, no regime legal actualmente vigente, a perda da coisa locada continua a determinar a caducidade do contrato de arrendamento.

E compreende-se que assim seja, já que, deixando de existir a coisa que era objecto do contrato a prestação essencial do senhorio de assegurar ao arrendatário o gozo da coisa locada fica sem objecto e, portanto, torna-se material e objectivamente impossível. De facto, e como refere Pinto Furtado[1], a caducidade do contrato por efeito da perda da coisa locada corresponde a uma simples aplicação do regime legal que, em termos gerais (cfr. art. 790º do C.C.), determina a extinção da obrigação quando ocorre a impossibilidade objectiva da prestação.

A caducidade do contrato de arrendamento, nos casos em que ocorre a perda total da coisa locada, por esta ter deixado de existir no plano naturalístico, não oferece dúvidas, pois que, nesse caso, não existe “coisa” sobre a qual possa incidir a prestação do senhorio. O senhorio nada pode prestar, porque já não existe o prédio cujo gozo se havia obrigado a proporcionar ao arrendatário.

Situação diferente será aquela em que “a coisa” continua a existir no plano naturalístico, embora reduzida na sua dimensão e na sua aptidão para desempenhar as funcionalidades que lhe são próprias e as finalidades previstas no contrato.

A obrigação – a cargo do locador – de assegurar ao locatário o gozo da coisa para os fins a que se destina (art. 1031º, b) do C.C.) não se reconduz apenas ao dever de lhe entregar a coisa locada e ao dever de não praticar actos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa locada pelo locatário; o cumprimento daquela obrigação exige também uma actividade positiva do senhorio – durante todo o período do arrendamento – no sentido de praticar todos os actos que sejam necessários para assegurar aquele gozo, o que implica, naturalmente, a obrigação de efectuar as reparações e as obras que sejam necessárias para o efectivo gozo da coisa que foi previsto no contrato (cfr. art. 11º e segs. do RAU).

 Ora, se é certo que, na primeira situação a que fizemos referência – em que o prédio deixa de existir por ter sido totalmente destruído – não existe já qualquer prédio sobre o qual possa incidir a prestação do senhorio, o mesmo não sucede na segunda situação, já que, continuando a existir a coisa – ainda que sem as necessárias aptidões para as finalidades previstas no contrato – não poderá dizer-se, sem mais, que a prestação do senhorio deixou de ter objecto, tornando-se impossível, na medida em que, apesar de ficar, em termos imediatos, impossibilitado de cumprir a sua prestação essencial, poderá ainda cumprir a obrigação de fazer as obras necessárias com vista a repor as condições que existiam e com vista a assegurar ao locatário o efectivo gozo da coisa locada.

E é nestes casos que a solução a adoptar poderá ser particularmente difícil, já que, utilizando as palavras de Pinto Furtado[2], “sendo significativo tal perecimento, poderá já dizer-se que se verifica a perda da coisa, que determina a caducidade do contrato, ou que, pelo contrário, nos encontramos apenas ainda em presença de uma deterioração a inscrever na obrigação do senhorio de reparar os danos ocorrido?”.

Parece-nos claro que a solução dessa questão não poderá ser encontrada na mera circunstância de o locado manter ou não condições para ser utilizado e aplicado à finalidade prevista no arrendamento, já que situações existem em que, apesar de o locado ficar desprovido de toda e qualquer aptidão para esse fim, essa situação pode ser facilmente ultrapassada com a realização de obras que reponham essa aptidão.

E, portanto, a questão reconduzir-se-á à possibilidade ou não de proceder a obras de reparação, que sejam susceptíveis de repor as condições necessárias ao gozo do locado para a finalidade prevista no arrendamento e que sejam exigíveis e possam ser impostas ao senhorio, por se inserirem ainda na obrigação, que sobre ele impende, de proceder às reparações necessárias ao gozo do locado.

Importa, pois, concluir que a perda do locado, para efeitos de caducidade do arrendamento, não pode ser reconduzida apenas às situações em que a coisa locada deixa de existir no plano naturalístico, pois que situações existem em que, apesar de a coisa continuar a existir – por ter ocorrido uma destruição meramente parcial –, se impõe considerar que ocorreu perda total em virtude de a coisa locada ficar desprovida das condições necessárias para ser aplicada à finalidade para que foi arrendada, não sendo possível – ou não sendo exigível ao senhorio – a reparação e a reposição da situação anterior. Para esse efeito, não será relevante o facto de, em termos imediatos, o locado manter ou não as condições e as aptidões necessárias para que possa ser aplicado ao fim a que se destina, pois que o que releva é a possibilidade ou não de essas condições ou aptidões poderem ser repostas mediante a realização de obras que sejam exigíveis ao senhorio.

Reportemo-nos ao caso sub júdice.

Como resulta da matéria de facto provada, o edifício onde estava integrado o local arrendado ao Autor foi demolido pela Ré, na sequência do incêndio que ali ocorreu, tendo sido construído no seu lugar um outro edifício.

É certo, por isso, que o locado – objecto do arrendamento aqui em causa – desapareceu, tendo sido demolido. O edifício agora existente é totalmente novo (ocupando, aliás, o espaço que era ocupado pelo prédio onde estava inserido o locado, bem como o espaço de outro prédio que lhe era contíguo) e, portanto, é “coisa” diversa da que existia anteriormente[3].

Mas, se é certo que o prédio foi demolido – com o consequente desaparecimento do locado – o que importa agora saber é se o contrato já havia caducado com a verificação do incêndio.

Os Apelantes consideram que não, já que, na sua perspectiva, apenas a perda total do locado poderá determinar essa caducidade, sendo que o locado não poderá ser considerado totalmente perdido quando – como acontecia no caso sub júdice – a sua recuperação ainda é possível.

A matéria de facto provada é omissa, no que toca às concretas circunstâncias em que ficou o locado (situado no rés-do-chão do edifício) após o incêndio, sabendo-se apenas que não oferecia condições para aí funcionar o estabelecimento comercial que o Autor lá tinha instalado.

Como decorre do que dissemos supra, a mera circunstância de o locado não oferecer – imediatamente após o incêndio – as condições necessárias à sua utilização para as finalidades previstas no contrato não será bastante para concluir pela perda da coisa locada e consequente caducidade do contrato de arrendamento. Para que assim se possa concluir será ainda necessário que essa situação seja definitiva, por não ser possível a reposição dessas condições mediante a realização de obras que sejam exigíveis ao senhorio. Com efeito, se o gozo do prédio para as finalidades previstas no contrato ainda pode vir a ser assegurado ao arrendatário, mediante a realização de obras que, em face da lei, devam ser impostas ao senhorio, estaremos apenas perante uma impossibilidade temporária do cumprimento da prestação essencial do senhorio, que, como decorre da conjugação dos arts. 790º e 792º do C.C., não determina a extinção da obrigação e a caducidade do contrato, determinando antes a obrigação de proceder às necessárias reparações com vista a assegurar o efectivo gozo do arrendado.

Mas, como parece claro, a possibilidade (ou não) de proceder a tais reparações e a sua exigibilidade (ou não) ao respectivo senhorio terão que ser vistas e analisadas relativamente à totalidade do prédio onde está inserido o locado, já que não faria sentido que o senhorio pudesse ser obrigado a reparar apenas o locado, quando não é possível ou aconselhável a reparação de todo o prédio.

Ora bem.

Independentemente das concretas e exactas condições em que ficou o locado após o incêndio (que desconhecemos), a verdade é que, em consequência do incêndio e das operações que os Bombeiros levaram a cabo para proceder ao seu combate, a estrutura da cobertura e o telhado caíram, sendo que o 1º andar ficou a céu aberto; ficaram danificados o forro da cobertura, as divisórias interiores de tabique, os tectos do rés-do-chão, as janelas e portas do 1º andar; as paredes laterais em alvenaria, com o calor do fogo, perderam estabilidade e ficaram enegrecidas e a instalação eléctrica ficou, pelo menos, parcialmente destruída.

Em suma, o 1º andar ficou destruído e o rés-do-chão (onde se situava o locado) também terá sofrido danos relevantes, ao nível, designadamente, dos tectos, o que, aliado ao tipo de construção (antiga e com grande parte da sua estrutura em madeira), já permite concluir que as obras de reparação/recuperação seriam obras avultadas, que, na prática, se reconduziam à quase total reconstrução do edifício e que, na nossa perspectiva, sempre exigiriam uma série de diligências e estudos para determinar, com o necessário rigor, se ficaria devidamente garantida a segurança e estabilidade do edifício.

Ora, não nos parece que tais obras de reconstrução – que, em rigor, não cabem sequer no conceito de obras de conservação (ordinária ou extraordinária) nem no conceito de obras de beneficiação (art. 11º do RAU) – pudessem ser impostas ao senhorio, devendo antes considerar-se que, nas situações em que – como aqui aconteceu – a destruição afecta uma parte considerável do prédio, afectando uma boa parte da sua estrutura e obrigando à efectiva reconstrução de toda a parte superior do edifício, existe perda total do locado a determinar a extinção do arrendamento por caducidade.

Importa dizer, aliás, que, no caso em análise, está mesmo provado que a recuperação do edifício não era tecnicamente aconselhável e que, como tal, o que restava dele teria que ser demolido.

Assim, porque os danos causados pelo incêndio e pela subsequente acção dos Bombeiros inviabilizaram totalmente a utilização do locado para os fins previstos no contrato; porque a reposição dessa aptidão apenas seria possível com a realização de obras de reconstrução de uma boa parte do edifício (ao nível do 1º andar e telhado); porque, em termos técnicos, nem sequer seria aconselhável a sua recuperação, o que impunha a demolição do edifício e a sua total reconstrução e porque a realização dessas obras de reconstrução não pode ser imposta ao senhorio, impõe-se concluir que o incêndio ocasionou a perda do locado e determinou a caducidade do arrendamento.

E, não sendo possível concluir – como já se referiu – pela culpa da Ré na eclosão do incêndio e subsequente perda do locado, é claro que não poderia proceder o pedido de indemnização formulado pelo Autor.

Improcede, pois, o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – A caducidade do contrato de arrendamento como decorrência da perda da coisa locada – por impossibilidade objectiva da prestação – não ocorre apenas quando a coisa locada deixa de existir, no plano naturalístico (como acontece nos casos em que é totalmente destruída), mas também quando a coisa locada perde totalmente, por efeito da sua parcial destruição, a aptidão necessária à sua utilização para os fins previstos no contrato e desde que essa aptidão não possa ser reposta com a realização de obras que possam e devam ser exigidas ao senhorio.

II – Tendo ocorrido um incêndio que retirou ao locado (situado no rés-do-chão) as condições necessárias à sua utilização, que determinou a queda da cobertura e telhado do edifício e a total destruição do 1º andar – e não sendo sequer tecnicamente aconselhável a recuperação do edifício – não pode o senhorio ser obrigado a fazer as obras de reconstrução do edifício que seriam necessárias para repor a situação anterior e a aptidão e funcionalidade do locado, devendo considerar-se que tal situação configura uma perda da coisa locada, determinando a extinção do arrendamento por caducidade.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes.
Notifique.

                              

Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Adjuntos: Dr.ª Maria Domingas Simões

                   Dr. Nunes Ribeiro


[1] Manual do Arrendamento Urbano, Vol. II, 4ª ed. actualizada, pág. 875.
[2] Ob. cit., pág. 875.
[3] Veja-se, a propósito, o Ac. da Relação do Porto de 25/10/1984, com o nº convencional JTRP00018560, disponível em http://www.dgsi.pt., onde se refere que “tendo desaparecido a casa locada com a demolição, não se pode dizer que ela reapareceu com a nova construção, pois esta é constituída por um prédio totalmente novo, diferente do primitivo”.