Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2917/09.8TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 01/25/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 369º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Tendo o arguido sido absolvido, na 1ª instância, da prática de um crime de homicídio por negligência e tendo o Tribunal da Relação, em sede de recurso, concluído ter o arguido praticado, como autor material, tal crime, impondo-se, por isso, a respectiva condenação, com vista a dar cumprimento ao princípio do duplo grau de jurisdição e também às normas de direito processual e substantivo concernentes à escolha e determinação da pena, é imperioso determinar que os autos baixem à 1ª instância onde deverá ser proferida a respectiva decisão, após prévia ponderação acerca da eventual necessidade de reabrir a audiência e de determinar ou levar a cabo quaisquer diligências que tenha por adequadas a tal desiderato.
Decisão Texto Integral:

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I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 2917/09.8TACBR do 1º Juízo do Tribunal Judicial do Pombal, mediante acusação pública foi o arguido A..., melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe, então imputada a prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, n.º 1 do Código Penal.

2. Realizado o julgamento, por sentença de 11.05.2011, veio o arguido a ser absolvido da prática do sobredito crime.

3. Inconformado com o assim decidido recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. Entendeu o Tribunal a quo que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento resultou que não existiu por parte de A... qualquer descuido ou desatenção que provocasse o acidente que deu azo à morte da ofendida, B....
2. No entanto, cremos que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento (designadamente, dos depoimentos do próprio arguido e das testemunhas C... e D...), bem como da prova documental arrolada na acusação pública, resultam elementos que impunham necessariamente uma decisão inversa quanto aos pontos agora elencados.
3. Entendeu o Meritíssimo Juiz que resultou provado que quando a ofendida, B..., chegou ao meio da Rua Principal e porque se apercebeu da aproximação do motociclo conduzido pelo arguido, hesitou momentaneamente (ponto 17 da matéria de facto). Após tal hesitação, acelerou o passo, continuando a travessia da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do arguido, o qual já não teve tempo de reagir nem possibilidade de desviar ainda mais a trajectória do motociclo, tendo embatido com a parte lateral esquerda do motociclo e respectivo guiador na vítima (ponto 19 da matéria de facto).
4. Conforme se retira da, aliás douta, fundamentação da matéria de facto, o Tribunal formou a sua convicção baseando-se, sobretudo, nas declarações do próprio arguido, as quais foram depois corroboradas por F....
5. No entanto, não só aquela testemunha demonstrou, em sede de audiência de discussão e julgamento, uma postura “pouco séria”, que lhe retirou, no nosso entender, toda a credibilidade, como também a sua versão do sucedido foi prontamente contrariada pelos depoimentos de C... e D....
6. De facto, aquelas testemunhas, não obstante o grau de parentesco que as unia á ofendida, descreveram de forma coerente, homogénea entre si e conforme com as regras da experiência e da normalidade, o percurso que aquela efectuou ao atravessar a Rua Principal, esclarecendo que a sua avó não teve, em momento algum, qualquer hesitação.
7. Pelo exposto, atento o teor dos depoimentos agora referenciados, cremos que o Tribunal a quo não poderia ter dado como provado os factos elencados nos pontos 17 e 19 da matéria de facto.
8. No entanto, e ainda que assim não se entenda, a verdade é que resultou das declarações do próprio arguido que este tinha consciência de que, atento o estado do piso da Rua Principal (em tuvenan e brita) e a velocidade a que seguia (a qual não se questiona que fosse inferior aos permitidos 50 Km), aquele não estava em condições de imobilizar totalmente o seu motociclo, num espaço de 15/20 metros (distância à qual pela primeira se apercebeu da presença da ofendida) – registado no Sistema Habilus Media Studio das 00:16:20-00:17:00 e das 00:21:53-00:23:00.
9. Ora, se assim era, então A... deveria e poderia ter adaptado a sua condução às características da via em que circulava, designadamente reduzindo a sua velocidade, de forma a que, na eventualidade de surgir um obstáculo (qualquer que ele fosse), estivesse em condições de evitar o embate.
10. Acresce que aquele conhecia perfeitamente a Rua Principal, sabia que o piso se encontrava em más condições (em tuvenan e brita), que existem casas de habitação de ambos os lados e que, tendo em conta que aquela via não dispunha de passadeiras (tal como se comprova pelas fotografias juntas aos autos – fls. 128 a 130), os peões podem atravessar em qualquer ponto.
11. Por outro lado, A... é um condutor experiente, possuidor de carta de condução desde 2006 (e não desde 2008, como consta da matéria de facto provada – registado no Sistema Habilus Media Studio das 00:18:35-00:18:39) e é campeão nacional de quad-cross.
12. Todos estes factos levam-nos a retira a conclusão de que o arguido actuou com pleno desrespeito pelas precauções que as características da via impunham e que podia e devia ter observado, o que contribuiu para que não se tivesse apercebido da presença da vítima B... na estrada, a tempo de imobilizar o seu motociclo.
13. Pelo exposto, mal andou o Tribunal a quo quando deu como não provados os pontos 2, 3 e 4 da matéria de facto, devendo a douta sentença, ora recorrida, ser substituída por outra, que dê tais factos como provados
concluindo, pois, pela condenação de A... como autor material de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal, assim se fazendo a acostumada
Justiça!

4. Na 1.ª instância, nenhum dos intervenientes e sujeitos processuais apresentou resposta ao recurso.

5. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este Tribunal – [cf. fls. 595].

6. A Ilustre Procuradora – Geral Adjunta na Relação emitiu o parecer junto a fls. 607 a 610, pronunciando-se no sentido do provimento do recurso.

7. Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP, respondeu o arguido, pugnando pela improcedência do recurso.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No presente caso defende o recorrente a condenação do arguido pela prática do crime de homicídio por negligência, pugnando, para tanto, pela modificação da matéria de facto acolhida na sentença recorrida.

2. A decisão recorrida

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

1. No dia … , cerca das 20 horas e 25 minutos, o arguido A... conduzia o motociclo de matrícula … , de marca Honda, propriedade de seu pai, na Rua Principal, área desta comarca de Pombal, transportando como passageiro F....
2. Uma vez chegado ao n.º … daquele arruamento, o arguido não avistou a tempo de imobilizar o seu motociclo o peão B..., que ali atravessou a referida via de trânsito da esquerda para a direita (tomando como referência o sentido de marcha do motociclo).
3. O peão havia já percorrido a quase totalidade da faixa de rodagem quando foi colhida pelo veículo conduzido pelo arguido, o qual ainda abrandou e desviou-se para a direita a fim de evitar a colisão, o que não conseguiu.
4. Como consequência directa e necessária do aludido embate, B... foi projectada, tendo caído a uma distância de cerca de 10 metros em relação ao local do embate, sofrendo lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas que foram causa adequada e necessária da sua morte.
5. O motociclo conduzido pelo arguido ficou imobilizado na faixa de rodagem a cerca de 19,8 metros do local onde ocorreu a colisão.
6. A aludida via é uma recta com duas faixas de rodagem, com cerca de 500 metros de comprimento (sendo de cerca de 250 metros para cada um dos lados, tendo por referência o local onde ocorreu o embate) e cerca de 6 metros de largura.
7. O pavimento, em “tout venant” e brita compactada, encontrava-se seco, embora em mau estado de conservação devido às obras de beneficiação da via que ali decorriam.
8. No momento do embate, o tempo estava bom e havia boa visibilidade, apesar de já estar lusco-fusco.
9. O pneu traseiro do motociclo, de marca Bridgestone com o n.º PHN 2305, apresentava desenhos na zona de rodagem com uma altura inferior a 1 mm nos relevos principais.
10. O arguido conhecia a via onde circulava, era detentor de carta de condução de motociclos desde 2008 e é campeão nacional de quad-cross.
11. Ainda não estava ligada a iluminação pública.
12. O motociclo conduzido pelo arguido é do tipo “scooter” e tinha um sistema de travões “dual brake”, ou seja, um sistema de travões com bloqueio simultâneo de ambas as rodas.
13. Tinha pneus relativamente macios, com pouca pressão de ar, com pouco relevo no rasto, sem necessidade de aquecimento e com maior aderência ao piso.
14. O arguido circulava a uma velocidade entre 30 a 40 km/hora e com as luzes ligadas em “médios”.
15. A referida Rua Principal não tinha bermas.
16. A vítima iniciou a travessia da via saindo de trás de uma casa, junto a uma eira, e vestia uma saia castanha e uma camisola verde.
17. Ao chegar ao meio da via, a vítima, apercebendo-se da aproximação do motociclo, hesitou na travessia.
18. O arguido reduziu a velocidade do motociclo e desviou a sua trajectória para o lado direito, a fim de evitar o embate.
19. A vítima, após a referida hesitação, acelerou o passo, continuando a travessia da via da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do arguido, o qual já não teve tempo de reagir nem possibilidade de desviar ainda mais a trajectória do motociclo, tendo embatido com a parte lateral esquerda do motociclo e respectivo guiador na vítima.
20. O embate ocorreu na parte direita da faixa de rodagem.
21. O arguido pensou que a falecida ia parar no meio da rua, não prevendo que a mesma ia continuar o seu movimento.
22. Ao desviar a trajectória do motociclo para a direita, o arguido esperava uma reacção da falecida no sentido de parar ou recuar.
23. A falecida tinha sido submetida a intervenção cirúrgica a ambos os olhos, a cataratas, provocadas segundo registo médico em consequência de diabetes, a 28 de Outubro de 2008 (ao olho esquerdo) e a 16 de Abril de 2009 (ao olho direito).
24. O arguido é solteiro e reside sozinho em casa de seus pais, os quais se encontram emigrados em França.
25. Estudante do 12.º ano de escolaridade, não exerce qualquer actividade profissional, sendo os seus pais que suportam as suas despesas.
26. O arguido não tem antecedentes criminais nem estradais.

No que concerne aos factos não provados ficou consignado:

Por sua vez, não se mostraram provados com relevância para a decisão da causa os seguintes factos:

1. O peão B... havia já percorrido a totalidade da faixa de rodagem quando foi colhida, junto da berma direita, pelo veículo conduzido pelo arguido A....
2. O acidente ocorreu porque o arguido não circulava com a atenção devida e necessária à condução de veículos na via pública, bem como por não ter adaptado a sua velocidade às condições do piso.
3. O arguido conduzia de forma descuidada e desatenta, não respeitando as precauções que as características da via impunham e que podia e devia ter observado, o que contribuiu para que não se tivesse apercebido da presença da vítima B... na estrada, a tempo de imobilizar o motociclo.
4. Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu sem o cuidado que o dever geral de prudência aconselha, omitindo as precauções de segurança exigidas no exercício da condução, que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para evitar um resultado que podia e devia prever, o que não aconteceu, acabando por dar causa a um atropelamento do qual resultou a morte de um peão.
5. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
6. No local, não existia iluminação pública.
7. O motociclo conduzido pelo arguido tinha pneus tipo “slick”.
8. A vítima iniciou a travessia da via em passos rápidos.
9. Ao chegar ao meio da via, a vítima fez uma ligeira paragem.
10. O motociclo encontrava-se a cerca de 7 a 10 metros da vítima quando esta reiniciou a travessia da via em corrida.
11. O embate ocorreu a cerca de 0,50 cm a 0,80 cm do limite do lado direito da faixa de rodagem.
12. A vítima tinha problemas de audição.

Em sede de fundamentação da decisão de facto mostra-se exarado:

O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida, desde logo nas declarações do arguido A..., o qual admitiu como verdadeiras as circunstâncias de tempo e de espaço em que o sinistro ocorreu, constantes do libelo acusatório, tendo ainda precisado o sentido de marcha que levava na ocasião, caracterizando o motociclo que conduzia e identificando o passageiro que transportava, factos que pela naturalidade com que foram dados a conhecer resultaram provados.
No que à dinâmica do acidente diz respeito, o arguido produziu sempre declarações de modo coerente, através de um discurso claro, respondendo de forma lesta às perguntas com que ia sendo confrontando, não tendo o Tribunal reparado em qualquer artificialidade na sua postura e nas respectivas respostas, apresentando uma versão perfeitamente plausível dos acontecimentos.
Assim, foi nesses termos que referiu a velocidade de cerca de 30 a 40 km/hora a que seguiria naquele momento, numa estrada que qualificou prontamente como em mau estado de conservação, com piso em brita e “tout venant”, descrevendo com espontaneidade a forma como a vítima B... surgiu vindo da sua esquerda, onde existia uma casa e uma eira, e como procedeu ao atravessamento da via, da esquerda para a direita, à medida que o próprio avançava, altura em que aquela hesitou a meio da faixa de rodagem, apercebendo-se da sua presença, prosseguindo depois no mesmo sentido em passo mais acelerado.
Por outro lado, não deixou de revelar seriedade e coerência ao descrever a manobra que efectuou, desviando o veículo que conduzia para a direita, mesmo quando a vítima hesitou e prosseguiu a marcha, reconhecendo com clareza e sem quaisquer pruridos ter sido esse o seu reflexo face à forma como a vítima efectuou o atravessamento da rua (acto reflexo normal de quem se depara com um peão avançando provindo do lado esquerdo), asseverando com naturalidade que esperava que a mesma detivesse a travessia ou que recuasse, face à sua aproximação.
De tudo isso deu conta sem hesitação e, como se disse, clara e coerentemente, contribuindo para a formação da convicção do Tribunal quanto a tais concretos pontos de facto.
Aliás, o arguido revelou inclusivamente objectividade quando aceitou o pouco relevo dos pneus do motociclo que conduzia, embora os tenha caracterizado de forma mais cuidada, explicando fundadamente os motivos pelos quais detinham baixa pressão e boa aderência ao piso, a par do sistema de travagem que possuía, tendo os correspondentes factos sido dados como provados pelo modo descomprometido como foram revelados.
Tal versão dos acontecimentos foi corroborada pela testemunha F..., o qual seguia como passageiro no motociclo conduzido pelo arguido. Apesar de ter revelado no início do seu depoimento uma postura pouco séria (não hesita o Tribunal em dizê-lo), face à negação de um facto que em nada colidia com o acidente em discussão mas do qual poderiam ser retiradas ilações quanto à credibilidade do seu depoimento, acabou, após advertência, por desdizer o que havia afirmado quanto ao uso da sua parte do capacete, emendando a sua postura e prosseguindo com a reconstituição dos factos que acabou por se revelar coerente, lógica e credível.
Assim, tal como havia já sublinhado o arguido, asseverou esta testemunha a circunstância de o peão ter surgido na recta por onde seguia no motociclo juntamente com o arguido, avançando da esquerda para a direita, e descreveu sem qualquer hesitação a manobra efectuada pelo arguido, desviando a trajectória para a direita e abrandando, mesmo depois da vítima ter hesitado a meio da faixa de rodagem e de ter avançado mais rapidamente no mesmo sentido que anteriormente tomava, dando a conhecer o modo como se verificou o atropelamento (nomeadamente, a parte do motociclo que embateu na falecida).
O conteúdo de tal depoimento acabou por revelar-se essencialmente homogéneo com o teor das declarações do arguido, no que à dinâmica do acidente diz respeito, corroborando pelo modo pronto e claro com que foi produzido a convicção do Tribunal quanto à factualidade por eles transmitida, o mesmo sucedendo quanto ao local do embate, aqui sem precisão em termos de distância, tendo o Tribunal dado apenas como provado que a vítima havia já percorrido a quase totalidade da faixa de rodagem quando foi colhida, soçobrando a prova de que foi embatida a cerca de 0,50 cm a 0,80 cm do limite direito da dita faixa, medições a que nenhuma das pessoas ouvidas em audiência fez menção.
Por outro lado, nem o arguido nem esta última testemunha acabaram por referir com rigor e firmeza que a vítima iniciou a travessia da via em passo rápido e que parou efectivamente no meio da via, tendo ambos feito apenas referência a uma hesitação ao nível dos movimentos daquela, motivos pelos quais ficaram tais factos por demonstrar.
Ora, a dinâmica do acidente dada a conhecer pelo arguido e pela testemunha F... não se mostrou contraditada, de todo, pelo depoimento das testemunhas C... e D..., netos da arguida que se encontravam a ensacar milho na eira junto à qual a vítima iniciou a travessia da Rua Principal.
Na verdade, se a primeira das mencionadas testemunhas declarou que a sua falecida avó iniciou o atravessamento de modo “contínuo”, “sem paragem”, não a tendo visto correr, admitiu também não se ter apercebido da manobra efectuada pelo arguido, tendo realçado em mais de uma ocasião que o que a chamou à atenção foi o “barulho” que antecedeu o embate. Tal afirmação parece ao Tribunal perfeitamente plausível, não sendo crível que estando a trabalhar na eira tivesse estado perfeitamente atenta à movimentação da falecida. Diferentemente, o que parece absolutamente normal e natural é que o barulho resultante da aproximação do motociclo (ainda para mais em manobra evasiva, num piso em brita e em mau estado de conservação) tivesse chamado a sua atenção e aí sim tivesse olhado para a via e visto de imediato o atropelamento, transmitindo o modo como a sua avó foi projectada e a distância a que ficou prostrada no chão relativamente ao local do embate, por si dado igualmente a conhecer com segurança, tal como, aliás, a roupa que a vítima trazia vestida e a distância da recta (de 250 metros para cada um dos lados, tomando como referência o sítio onde ocorreu o atropelamento).
Por sua vez, a testemunha D... denotou maior objectividade, imparcialidade e descomprometimento, não tendo transparecido, contrariamente à testemunha anterior, ressentimento (mesmo ténue) face ao comportamento estradal do arguido.
Confirmando o trabalho que executava com sua irmã, admitiu com total isenção não ter visto o início do atravessamento da via por parte de sua avó e a aproximação do motociclo, aqui devido à existência de uma casa no local, construção que impedia a sua visão para o lado da estrada de onde provinha o arguido, reconhecendo que foi o “barulho” do surgimento do motociclo que o levou a olhar para a estrada, ainda assim ressalvando de novo com imparcialidade não se ter apercebido inteiramente da manobra efectuada pelo condutor do veículo motorizado no preciso momento que antecedeu o embate.
Deu, pois, a conhecer com correcção e seriedade o local onde se deu o atropelamento, não deixando de sublinhar que não existe diferença ao nível do piso entre a estrada e a berma (o que levou o Tribunal a concluir, face às fotografias constantes de fls. 128 a 130, que inexistiam bermas no local, ainda que por facilidade de expressão tenham sido mencionadas por algumas das testemunhas ouvidas em audiência) e que naquele momento havia boa visibilidade, apesar da iluminação pública não estar ligada, na recta que caracterizou sucinta e suficientemente, contribuindo pela imparcialidade e objectividade demonstradas para o apuramento destes últimos factos, tal como para a indumentária da falecida (nos exactos termos anteriormente referidos pela testemunha C...).
Já o depoimento da testemunha G..., mecânico do patrocinador das actividades motorizadas do arguido, por ter sido prestado com inequívoca isenção e descomprometimento, serviu para que o Tribunal pudesse retirar as suas ilações quanto às características do motociclo conduzido pelo arguido, tendo assim sido possível aferir das características das rodas e respectivo relevo (desmentindo a testemunha que se tratasse de pneu slick, mediante a análise do teor de fls. 131, facto que assim foi transposto para a matéria de facto não provada), do sistema de travagem e títulos ganhos pelo arguido em quad- -cross.
Por seu turno, a testemunha H… confirmou, enquanto militar que acorreu ao local e elaborou a participação do acidente de viação de fls. 63 a 64, as medições e dados inseridos em tal participação, tendo ainda procedido de forma isenta e objectiva à descrição do espaço físico em questão e à indicação do local onde ficou imobilizado o motociclo, não deixando de fazer referência espontânea à boa visibilidade existente no local, à extensão da recta, à largura da via, à existência de iluminação pública, às obras existentes no local e ao mau estado do piso, afiançando com rigor não haver bermas no local, o que foi tido em conta no apuramento da matéria de facto.
O mesmo se diga da testemunha J…, cabo da G.N.R. que acompanhou a testemunha anterior, ainda que o mesmo tenha revelado menor precisão, produzindo um depoimento pouco circunstanciado e meticuloso, admitindo não possuir recordações mais precisas dos factos.
O modo como a dinâmica do acidente foi dada a conhecer essencialmente pelo arguido e pela testemunha F..., a par do mau estado do piso, das características da via (uma recta com uma considerável extensão de cerca de 500 metros) e, sobretudo, da conduta da vítima, contribuiu para que o Tribunal tivesse retirado a sua ilação quanto à inexistência de descuido ou desatenção por parte do arguido, não tendo sido dado como provado que o mesmo tivesse actuado sem cuidado, atenção ou prudência, dando com isso causa ao acidente, tanto mais que também resulta de forma impressiva das fotografias de fls. 128 a 130 que o arguido não possuía sequer visibilidade para o local de onde surgiu a vítima.
Relativamente às condições familiares e escolares do arguido relevaram as suas próprias declarações, prestadas também nesta parte com naturalidade.
Devidamente conjugados com as declarações e depoimentos anteriores, tomou o Tribunal em consideração, para além dos já mencionados, os documentos constantes de fls. 3 (certificado de óbito de B...), 36 a 38 (quanto aos ferimentos apresentados pela vítima), 63 a 64 (participação do acidente de viação, da qual foi possível confirmar as circunstâncias de tempo e de espaço em que ocorreu o acidente em apreço, a identificação do motociclo interveniente, seu condutor, caracterização da via, medição da faixa de rodagem e posição final da viatura conduzida pelo arguido), 81 (quanto à aferição do ano em que o arguido obteve habilitação legal para a condução), 82 a 83 (no que respeita à caracterização do motociclo conduzido pelo arguido), 84 a 86 (auto de exame ao local, do qual o mau estado piso no local onde ocorreu o acidente, a largura da faixa de rodagem, a configuração da via e a posição final do motociclo), 125, 133 e 134 (exclusivamente quanto à caracterização física do local, nomeadamente quanto à existência de uma casa e de uma eira do lado de onde surgiu a vítima), 128 a 130 (cópias de fotografias das quais se retira o tipo e o mau estado do piso, a ausência de bermas e a conclusão quanto à configuração da via, existência de postes de iluminação pública e de habitações), 131 (quanto ao estado do pneu do motociclo conduzido pelo arguido), 152 a 154 (escritura de habilitação celebrada em consequência do óbito de B...), 161 a 166 (relatório de autópsia, do qual foi possível apurar as lesões que advieram à vítima em consequência do acidente e que foram causa do seu decesso), 491 a 506 e 508 a 534 (especialmente, fls. 509, 510, 516 e 517, informação clínica da qual foi possível dar como provadas as intervenções cirúrgicas efectuadas aos olhos da falecida, motivos para a intervenção e respectivas datas), não tendo os demais documentos juntos aos autos revestido utilidade acrescida para o apuramento da matéria de facto em discussão.
Finalmente, baseou-se ainda o Tribunal no C.R.C. e no R.I.C. do arguido junto aos autos no que respeita aos seus antecedentes criminais e estradais.

3. Apreciando

a.

Insurge-se o recorrente contra a circunstância de o tribunal a quo ter considerado provados os factos descritos nos pontos 17. e 19. [factos provados] e não provados os factos constantes dos pontos 2., 3. e 4. [factos não provados], defendendo, ao invés, deverem aqueles ser dados como não provados e estes como provados.
Tendo sido documentadas, através de gravação, as declarações prestadas oralmente em audiência de julgamento, pode este tribunal conhecer de facto e de direito, desde que na impugnação da matéria de facto o recorrente tenha observado o disposto no artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do CPP – [cf. artigos 363º e 428º do CPP].
Concretizando, impende sobre o recorrente, além do mais, o ónus de especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida,
sendo que tais especificações se fazem por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364, devendo ser indicadas as concretas passagens em que se funda a impugnação.

Vejamos, pois, o caso em apreço.

No que respeita à “impugnação” dos factos constantes nos pontos 17. e 19. [da matéria de facto provada] tanto quanto nos é dado perceber da “petição” recursiva a inconformidade da recorrente dirige-se contra a circunstância de o tribunal a quo ter dado por assente que a vítima, nas condições ali descritas, “hesitou na travessia” e que “após a referida hesitação, acelerou o passo”, aspectos que pretende ver, antes, considerados não provados.
A fundamentar a sua pretensão indica segmentos dos depoimentos – transcritos em sede de fundamentação - das testemunhas C... e D..., ambos familiares da vítima, os quais, refere, “descreveram de forma coerente, homogénea entre si e conforme as regras da normalidade, o percurso que aquela efectuou ao atravessar a Rua Principal, esclarecendo que a sua avó não teve, em momento algum, qualquer hesitação” – [cf. ponto 6 das conclusões].
Fá-lo, não sem que, de caminho, aduza “conforme se retira da … fundamentação da matéria de facto, o Tribunal formou a sua convicção baseando-se, sobretudo, nas declarações do próprio arguido, as quais foram depois corroboradas por F....
No entanto, não só aquela testemunha demonstrou, em sede de audiência de discussão e julgamento, uma postura “pouco séria”, que lhe retirou, no nosso entender, toda a credibilidade, como também a sua versão do sucedido foi prontamente contrariada pelos depoimentos de C... e D....”
Donde, se conclua que por detrás da dita inconformidade se encontra a questão da divergência na valoração da prova, a qual tem subjacente a credibilidade atribuída às declarações do arguido e depoimento da testemunha F...em detrimento dos testemunhos dos familiares da vitima, a saber C… e D... .
Sucede, porém, que o julgador em sede de motivação da matéria de facto evidenciou as assinaladas divergências, formulando sobre as mesmas o seu juízo crítico, deixando expresso porque valorizou uns em “desfavor” de outros, sem que do mesmo resulte uma apreciação ilógica, incoerente, destituída de razoabilidade, que, de todo em todo, seja incompatível com a prova produzida e imponha, antes, a conclusão preconizada pela recorrente.
Neste quadro, os ditos pontos da matéria de facto – na parte em questão – não são passíveis de ser modificados por este tribunal de recurso, porquanto a base de sustentação apresentada com vista à respectiva alteração não impõe decisão diferente, embora, convínhamos, a permita.
Na verdade, “não basta que as provas sejam compatíveis com os factos provados, e com os não provados que o recorrente gostaria de ter visto provados. É preciso que as ditas provas só possam levar a que se dêem por provados os factos que o recorrente queria ver provados” – [cf. acórdão do STJ de 23.04.2009, proc. n.º 09P114].
Assim como não ignorará, como aliás logo deixa transparecer nas considerações alinhavadas na motivação, a recorrente que, conforme jurisprudência corrente, a convicção do julgador só é passível de ser modificada pelo tribunal de recurso, privado que está da oralidade e da imediação, quando violar os seus momentos estritamente vinculados ou então quando afronte, de forma manifesta e inequívoca, as regras da experiência, o que, quanto a estes concretos pontos não se detecta.

b.

Defende, ainda, a recorrente, para o caso de não ser entendido por este tribunal a verificação do sobredito “erro de julgamento”, mal ter andado o tribunal a quo ao considerar não provados os factos assentes nos pontos 2., 3. e 4. [consignados na matéria de facto não provada].
É certo que o faz com referência às declarações do próprio arguido e, bem assim, a documentos juntos aos autos, sem que, contudo, haja cumprido os ónus impostos no nº 3 do artigo 412º do CPP, ou seja indicando em relação a cada concreto ponto de facto que considera incorrectamente julgado – e não já aos itens considerados na sua globalidade – as concretas provas que impunham decisão diversa da recorrida.
Não obstante, a impugnação se revelar “defeituosa”, tal não conduz, contudo, a que tenha, necessariamente, de persistir imodificada a matéria de facto.
Com efeito, fica-nos, ainda, na vertente da sindicância da matéria de facto os vícios de conhecimento oficioso, os quais, nos termos da própria lei, tem de dimanar da complexidade global da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à mesma sejam externos – [cf. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 2009, pág. 334], tratando-se de “vícios ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confecção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão” – [cf. acórdão do STJ de 07.12.2005, CJ, ASTJ, T. III, pág. 224].
Ora, no caso sub judice afigura-se-nos ocorrer o vício de erro notório na apreciação da prova, que se verifica “quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – [cf. Simas Santos e Leal – Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 6.ª edição, 2007, Editora Rei dos Livros, pág. 74].
De facto, fere as mais elementares regras da experiência e do senso comum conceber, que perante as concretas circunstâncias descritas em determinados pontos da matéria de facto provada, se conclua como o fez o tribunal a quo dando como não provada a factualidade descrita em 2., 3. 4. e, como decorrência lógica destes, atenta a qualidade de condutor encartado do arguido, em 5.
Na verdade, considerando:
a. As características da via por onde circulava o arguido – “… uma recta com duas faixas de rodagem, com cerca de 500 metros de comprimento (sendo de cerca de 250 metros para cada um dos lados, tendo por referência o local onde ocorreu o embate) e cerca de 6 metros de largura” – [cf. ponto 6. dos factos provados];
b. O sentido da travessia do peão, conjugado com o sentido de marcha do motociclo – “Uma vez chegado ao nº 165 daquele arruamento, o arguido não avistou a tempo de imobilizar o seu motociclo o peão B..., que ali atravessou a referida via de trânsito da esquerda para a direita (tomando como referência o sentido de marcha do motociclo)” – [cf. ponto 2. dos factos provados];
c. O local da via em que se deu o embate, bem como a parte da travessia já efectuada pelo peão – “ O embate ocorreu na parte direita da faixa de rodagem”; “O peão havia já percorrido a quase totalidade da faixa de rodagem quando foi colhida pelo veículo conduzido pelo arguido, o qual ainda abrandou e desviou-se para a direita a fim de evitar a colisão, o que não conseguiu” – [cf. pontos 20. e 3. dos factos provados];
d. A visibilidade do local – “No momento do embate, o tempo estava bom e havia boa visibilidade, apesar de já estar lusco – fusco” – [cf. ponto 8. dos factos provados];
e. O conhecimento por parte do arguido das características da via – “O arguido conhecia a via onde circulava …”; “O pavimento, em “tout venant” e brita compactada, encontrava-se seco, embora em mau estado de conservação devido às obras de beneficiação que ali decorriam” – [cf. pontos 10. e 7. dos factos provados],
impõe-se concluir no sentido de que:
1. “O acidente ocorreu porque o arguido não circulava com a atenção devida e necessária à condução de veículos na via pública, bem como por não ter adaptado a sua velocidade às condições do piso”;
2. “O arguido conduzia de forma descuidada e desatenta, não respeitando as precauções que as características da via impunham e que podia e devia ter observado, o que contribuiu para que não se tivesse apercebido da presença da vítima B... na estrada, a tempo de imobilizar o motociclo”;
3. “Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu sem o cuidado que o dever geral de prudência aconselha, omitindo as precauções de segurança exigidas no exercício da condução, que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para evitar um resultado que podia e devia prever, o que não aconteceu, acabando por dar causa a um atropelamento do qual resultou a morte de um peão”; e, pelos motivos atrás expostos, que:
4. “O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei”, correspondentes aos pontos 2., 3., 4. e 5. dos factos tidos como não provados.

Na realidade, e com o devido respeito, no contexto da decisão recorrida - sem necessidade de recorrer a qualquer elemento que à mesma seja alheio - detecta-se uma apreciação manifestamente ilógica, insustentável em si mesma, evidente para o comum do homem médio, donde resulta ter-se por verificado o vício de erro notório na apreciação da prova.
Acresce que a circunstância dada por assente, traduzida na “hesitação” da vítima quando já se encontrava a meio da via, em nada abona a conduta do arguido, o qual, caso circulasse atento, a uma velocidade que lhe permitisse imobilizar o motociclo no espaço livre e visível à sua frente e tivesse adoptado a postura de um condutor prudente, tinha, de imediato, parado.
Afinal, o que é que significa “hesitar”? Ou melhor o que é que um condutor prudente tem de admitir como possível quando é confrontado com a “hesitação” de um peão no meio da travessia de uma via? Parece que não pode deixar de configurar a hipótese de o mesmo “avançar” impondo-se-lhe, assim, deter a marcha e não já excluir, como resulta ter sucedido, tal possibilidade – a qual acontece a par e passo, verificando-se com muita frequência no quotidiano da vida de um condutor - pensando, antes, que “a falecida ia parar no meio da rua, não prevendo que a mesma ia continuar o seu movimento” – [cf. o ponto 21. dos factos provados], cumprindo, então, questionar onde ficou a necessária previsibilidade, sem margem de dúvida, exigível face às circunstâncias?
Tanto mais que, como bem realça a Ilustre Procuradora – Geral Adjunta, o peão não surgiu de forma inopinada, ou em correria, ou sequer do lado direito da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do arguido …!
Mas, se assim é, vindo “impugnada” a dita matéria de facto não provada, encerrando a decisão todos os elementos que impõem concluir no sentido de a mesma dever ter sido, antes, considerada provada, pode e deve este tribunal de recurso sanar o aludido vício – [cf. artigos 410º, nº 2, al. c), 428º, 426º, nº 1, “a contrario” e 431º, todos do CPP].

c.

Isto dito, é imperioso proceder à modificação da matéria de facto, passando a constar do elenco dos factos provados, os pontos 2., 3., 4. e 5. dos factos tidos como não provados na sentença recorrida, os quais em consequência são suprimidos desta sede [factos não provados], mantendo-se, inalterados, os demais.

d.

Produzida a alteração da matéria de facto da forma supra descrita, dúvida não pode subsistir no sentido de que incorreu o arguido, em autoria material, na prática do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1 do Código Penal, já que se encontram reunidos os respectivos elementos típicos, objectivo e subjectivo, sem que se verifique causa que exclua a ilicitude ou dirima a culpa.
Com efeito, incorre no sobredito crime o agente que “por ter omitido a cautela, a atenção ou a diligência ordinária ou especial, a que estava obrigado, em face das circunstâncias, sendo-lhe exigível na situação concreta em que se encontrava um comportamento atento e cauteloso” causa a morte de alguém – [cf. Manuel Leal – Henriques e Manuel Simas Santos, “Código Penal Anotado”, 3.ª Edição, 2º Volume, Editora Rei dos Livros, pág. 180].
A essência de tal tipo de ilícito, como acontece nos tipos negligentes em geral, assenta na violação de um dever de cuidado ou na criação de um risco não permitido.
Para a imputação objectiva do evento – no caso a morte da vítima – à conduta do agente assume particular relevância o desrespeito pelas normas de cuidado resultantes da lei e não só.
No caso em apreço, resulta inequívoco que o arguido não só não circulava com a atenção devida e necessária à condução na via pública, fazendo-o de forma desatenta o que contribuiu para que não se tivesse apercebido, de imediato, do peão a proceder à travessia da via, cujas características conhecia [com 6 metros de largura], sendo certo que se tratava de uma recta com cerca de 500 metros [com sensivelmente 250 metros para cada um dos lados, tendo por referência o local onde ocorreu o embate], como não adaptou a velocidade às condições apresentadas pela mesma, omitindo, assim, o dever geral de cuidado a que estava obrigado e de que era capaz.
Por outro lado, ao não parar tendo-se apercebido da presença da vítima quando procedia à travessia – da esquerda para a direita (atento o seu sentido de marcha) da via - já no meio desta, sendo de realçar que o “atropelamento” vem a ocorrer na faixa da direita, quando o peão já havia percorrido a quase totalidade da dita Rua Principal - confiando, perante a “hesitação” daquela, de que ia parar no meio da rua, não prevendo que continuasse a marcha, agiu com falta de previsibilidade, que lhe é censurável, porquanto não sendo, embora, a mesma ilimitada, para um condutor avisado, prudente era previsível, quer à luz de critérios objectivos quer subjectivos, de acordo com as regras da experiência, que tal hesitação se pudesse traduzir, como veio a suceder, no prosseguimento da travessia por parte do peão.
Nas palavras de Nelson Hungria “Existe previsibilidade quando o agente, nas circunstâncias em que se encontrou podia, segundo a experiência geral, ter-se representado como possíveis as consequências lesivas do seu acto. Previsível é o facto cuja possível superveniência não escapa à perspicácia comum. Por outras palavras é previsível o facto, sob o prisma penal, quando a previsão do seu advento, no caso concreto, podia ser exigida do homem normal ou comum” – [cf. “Comentário ao Código Penal Brasileiro”, 185 e 186 e nota 134].
Donde, como já em momento anterior tivemos oportunidade de expressar, face à “hesitação” do peão, um condutor prudente, como o arguido não o foi, tinha de colocar a séria hipótese da vítima poder prosseguir na travessia, o que, aliás, infortunadamente, resulta do quotidiano de quem circula nas estradas, deparando-se, amiúde, com situações de tal natureza.
Ao agir da forma descrita, omitindo os deveres de cuidado que nas circunstâncias lhe eram exigíveis e de que era capaz, actuou de forma temerária, imprudente, com falta de previsibilidade, no caso censurável, causando, assim, a morte da vítima.
Sem maiores considerandos, por desnecessários, é de concluir por ter o arguido praticado, como autor material, um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 137º, nº 1 e 15º do Código Penal.

e.

Seria, pois, chegada a ocasião de nos debruçarmos sobre as questões relativas à reacção penal, não fosse entendermos, que neste caso a pena terá, em obediência ao disposto no artigo 32º, nº 1 da CRP, de ser aplicada na 1.ª instância.
Constituindo, embora, matéria que não tem merecido unanimidade, designadamente por parte dos tribunais superiores, perfilhamos a posição de que “o direito ao recurso em matéria penal (duplo grau de jurisdição), inscrito constitucionalmente como uma das garantias de defesa no art.º 32º, n.º 1, da CRP, significa e impõe que o sistema processual penal deve prever a organização de um modelo de impugnação das decisões penais que possibilite, de modo efectivo, a reapreciação por uma instância superior das decisões sobre a culpabilidade e a medida da pena …” – [cf. acórdão STJ de 26.09.2007, proc. nº 07P2052].
Nas palavras de Damião da Cunha “os direitos de defesa do arguido, no âmbito da determinação da sanção, (…) [assumem] também uma função positiva, dentro das eventuais possibilidades de sancionamento que estejam dependentes da sua livre “vontade” – [cf. “O Caso Julgado Parcial – Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção Num Processo de Estrutura Acusatória, Porto 2002, Publicações Universidade Católica, pág. 410].
“Por outro lado, a relativa autonomização do momento da determinação da sanção (quase cesure), leva a que só depois de decidida positivamente a questão da culpabilidade, o tribunal pondere e decida sobre a necessidade de prova suplementar com vista à determinação da sanção … e eventual reabertura da audiência …, na qual pode ser necessário, para além do mais, ouvir o próprio arguido” – [cf. acórdão do TRE de 19.12.2006, proc. nº 1752/06 – 1].
Em idêntico sentido, a título exemplificativo, vide os acórdãos do TRP de 08.09.2010 [proc. nº 358/09.GBOAZ.P1], 05.03.2008 [proc. nº 0746465], 05.03.2008 [proc. nº 0746287].
Sendo este o nosso entendimento, com vista a dar cumprimento ao princípio do duplo grau de jurisdição e também às normas de direito processual e substantivo concernentes à escolha e determinação da pena, é imperioso determinar que os autos baixem à 1ª instância onde deverá ser proferida a respectiva decisão, após prévia ponderação acerca da eventual necessidade de reabrir a audiência e de determinar ou levar a cabo quaisquer diligências que tenha por adequadas a tal desiderato.

III. Decisão

Nos termos expostos, acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, na procedência do recurso, em:

a) Modificar a matéria de facto pela forma supra descrita em II. 3. c.;
b) Julgar o arguido A... autor material de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1 do Código Penal;
c) Determinar que os autos sejam remetidos à 1ª instância com vista à determinação da sanção – espécie e medida da pena a aplicar -, se necessário com a produção de prova suplementar e reabertura da audiência, nos termos dos artigos 369, 370º e 371º, do CPP, com a ulterior prolação e leitura da sentença.

Sem tributação

Coimbra, , de , de
[Processado informaticamente e revisto pela relatora]


(Maria José Nogueira)


(Isabel Valongo)