Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
91/09.9TTCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: CRÉDITO LABORAL
DISPONIBILIDADE
TRANSACÇÃO
Data do Acordão: 02/18/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DA COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1248º, NºS 1 E 2, E 1249º DO C.CIV.; 395º E 449 DO CÓDIGO DE TRABALHO DE 2003.
Sumário: I – O direito à retribuição e aos restantes créditos laborais só se consideram indisponíveis durante a vigência da relação laboral.

II – Cessada a relação laboral, nada justifica que o trabalhador não disponha livremente dos seus créditos laborais, quer salariais quer outros, emergentes da sua violação ou cessação, terminados os constrangimentos existentes durante a vigência dessa relação –artº 1249º, à contrário, do C.Civ..

III – Por isso, a eles pode o trabalhador renunciar ou estabelecer transacção sobre eles.

IV - Celebrado, entre trabalhador e empregador, um contrato de transacção, depois de ter ocorrido um despedimento ilícito, pelo qual as partes colocam termo ao litígio emergente do despedimento, mediante recíprocas concessões, não é possível ao trabalhador fazer cessar os efeitos de tal acordo através do “direito de arrependimento” previsto no artº 395º do Código do Trabalho de 2003, ainda que por via de tal contrato se extinga definitivamente a relação laboral.

Decisão Texto Integral:    Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. A autora instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum pedindo a condenação da ré a: a) reconhecer que a autora foi ilicitamente despedida pela ré em 19/12/2008, sendo o despedimento nulo; b) pagar-lhe, porque esta opta pela indemnização, a quantia de € 4.763,00, sendo € 3.247,50, devidos por 7 anos e 3 meses de retribuição base, € 866,00 devidos por dois meses de pré-aviso em falta, € 433,00 de férias vencidas em 01/01/2009, € 108,25 de subsídio de férias proporcional relativo a 2009; € 108,25 de subsídio de Natal proporcional relativo a 2009; c) pagar-lhe os salários, desde a data do despedimento ilícito até trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida; d) pagar-lhe de juros à taxa legal desde a data do vencimento das obrigações até integral pagamento.

Alegou, em resumo, que mediante contrato de trabalho, foi admitida ao serviço da ré e que esta pôs fim a esta relação laboral, sem ter observado o procedimento legalmente prescrito. E, assim, que este seu despedimento foi ilícito.


Contestou a ré pedindo a improcedência da acção e a sua absolvição dos pedidos, aduzindo argumentos de facto e de direito que em seu entender devem conduzir à improcedência da acção, designadamente porque após o despedimento celebrou com a autora um acordo mediante o qual a mesma declarou estar paga de tudo aquilo que tivesse direito pela cessação do contrato de trabalho.

Prosseguindo o processo os seus regulares termos veio a final a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, absolvendo o réu do demais pedido, declarando ilícito o despedimento da autora, condenou a ré a pagar àquela: a quantia de € 3.247,50, a título de indemnização por antiguidade; as retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal, nos termos do disposto no art. 437.º, n.º 1 do CT, deduzidas do montante das retribuições respeitantes ao período decorrido desde a data do despedimento até 30 dias antes da data da propositura da acção, além de dever atender-se ao que se dispõe no art. 437.º, n.º 3 do CPT.

É desta decisão que, inconformada, a ré vem apelar.

Alegando, conclui:

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A autora apresentou contra-alegações, propugnando pela manutenção do julgado.  

Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, pronunciou-se o Exmº Procurador-Geral Adjunto no sentido de que não assiste razão à recorrente.


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II- FUNDAMENTAÇÃO

1. De facto              

Do despacho que decidiu a matéria de facto, é a seguinte a factualidade que vem dada como provada:

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2. De direito

É pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos artºs 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil.

Decorre do exposto que as questões que importa dilucidar e resolver se podem equacionar da seguinte forma: saber se celebrado, entre trabalhador e empregador, um designado “acordo de resolução de contencioso emergente da rescisão do contrato de trabalho sem justa causa”, depois de ter ocorrido um despedimento ilícito, é possível ao trabalhador fazer cessar os efeitos de tal acordo por aplicação do “direito de arrependimento” previsto no artigo 395.º do Código do Trabalho de 2003; saber, ainda, quais as consequências desse acordo ou da declaração de cessação do mesmo, sendo esta válida.

Vejamos:
Ambas as partes reconhecem que ocorreu um despedimento ilícito da autora, na medida em que foi concretizado sem recurso a qualquer procedimento válido. Na verdade, o CT/2003 prescreve a obrigatoriedade de um conjunto de procedimentos formais para a cessação do contrato por iniciativa do empregador, com a indicação do motivo da cessação contrato (artºs 396º a 428º) e a inobservância do procedimento respectivo, consoante as justificações tipificadas na lei, geram a ilicitude do despedimento (429º al. a)).

Sucede que, depois de proferido o despedimento ilícito, ambas as partes subscreveram um acordo (facto7.) designado de “acordo de resolução de contencioso emergente de rescisão de contrato de trabalho sem justa causa”, no qual a ré declarou reconhece que pôs termo ao contrato de trabalho por razões que identifica, declarando ambas as partes pôr termo ao contencioso emergente dessa cessação mediante um acordo que contempla uma promessa de contrato de trabalho com uma cláusula de indemnização por incumprimento, a título de compensação global pela cessação do contrato de trabalho, e declarando, finalmente a autora que com a assinatura do referido contrato se dá por paga de tudo aquilo que porventura tivesse direito pela cessação do contrato de trabalho, pelo que nada mais exigirá da ré, seja a que titulo for.

Observado o acordo, não podemos deixar de o qualificar como um típico contrato de transacção, tal como é definido no artigo 1248.º n.º 1 do Código Civil (“1. Transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões. 2. As concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido.”)

Ou seja, as partes reconhecendo a potencialidade do litígio, acordaram terminá-lo mediante recíprocas concessões, as quais envolveram no mesmo contrato efeitos próprios de outros negócios regulados na lei, como o contrato promessa e o contrato de remissão.

Tal contrato de transacção assumiu a forma escrita tal como o impõe o art. 1250.º do Código Civil.
E, porque efectuado depois do despedimento, não pode considerar-se limitado pelo disposto no art. 1249.º do mesmo CC, o qual impede a transacção sobre direitos indisponíveis. É que o direito à retribuição e aos restantes créditos laborais só se consideram indisponíveis durante a vigência da relação laboral (v. por todos, Ac. STJ de 24-11-2004, in www.dgsi.pt, processo 04S2846, o qual constitui expressão de jurisprudência uniforme, não se tendo encontrado outros divergentes desta tese). Cessada a relação laboral, nada justifica já que o trabalhador não disponha livremente dos seus créditos laborais, quer salariais, quer outros emergentes da sua violação ou cessação, terminados os constrangimentos existentes durante a vigência dessa relação. Por isso a eles pode renunciar já ou estabelecer transacção sobre eles. E, tendo em conta a justificação para a irrenunciabilidade (apoiada na existência daqueles constrangimentos), deve-se equiparar à cessação de jure do contrato a cessação de facto, na sequência de ruptura nos seus vínculos funcionais efectivos, pois também aqui os referidos constrangimentos dos trabalhadores deixam de ocorrer. Nessas situações de ruptura de facto, o trabalhador não tem de esconder o conflito, tem de assumi-lo, pois nada tem a perder com ele, não se evidenciando qualquer condicionamento na sua vontade em função do temor pelas consequências negativas no desenvolvimento de uma relação que, na prática, cessou. Situação de cessação de facto ou de ruptura que ocorre quando se verifica um despedimento ilícito. Daí a prática - generalizada - nos tribunais de trabalho de se julgarem válidas transacções judiciais no âmbito das quais, em processos de impugnação de despedimento, os trabalhadores transigem/desistem/renunciam em relação a créditos laborais, pondo termo aos respectivos processos (no sentido da não verificação da irrenunciabilidade depois da cessação de facto v., p. ex., os Ac. Rel. Lisboa de 6.6.1990, in CJ, t. III, pag, 190, Ac. do STJ de 3.07.96 em www.dgsi proc. 96S248, Ac. do STJ de 12.5.99, in CJ t. II, pág. 281, Ac. da Rel. do Porto de 22.05.2000, CJ, 2000, T. III, pag. 246, Ac. STJ de 24-11-2004, in www.dgsi.pt, processo 04S2846, Ac. STJ de 25-5-2005, in www.dgsi.pt, processo 05S480, Ac. da Rel. de Lisboa de 28-9-2005, in www.dgsi.pt, processo 1693/2004-04, Ac. da Rel. de Coimbra de 2-3-2006, in www.dgsi.pt, processo 3900/05, Ac. da Rel. do Porto de 8-5-2006, in www.dgsi.pt, processo 0542317, Ac. do STJ de 8-6-2006, in CJ/STJ, t. II e CJ-on line ref. 7953/2006, Ac. da Rel. de Coimbra de 11-1-2007, in www.dgsi.pt, proc. 355/05.0TTLRA.C1).
Dito isto, chegamos à conclusão que o referido contrato de transacção se deve considerar válido.
A 1ª instância considerou, no entanto, que deveria aplicar-se “sem necessidade de qualquer analogia forçada” o instituto da revogação do contrato de trabalho, na medida em que o mesmo teve como efeito colocar termo à vigência do contrato, vigência essa latente ou pendente da declaração judicial da ilicitude do despedimento.
E daí considerar que a autora tinha direito a cessar esse acordo como o fez, ao abrigo do “direito de arrependimento” previsto no art. 395.º do CT/2003, enviando à ré, dentro dos sete dias posteriores à data daquele acordo, uma notificação em que comunicou a sua decisão de “revogação dos acordos de revogação do contrato de trabalho e contrato promessa associado” (facto 12.).
Estará correcto este juízo?
Pode dizer-se que o mesmo partiu da concepção, pacífica na doutrina e na jurisprudência, de que a declaração judicial da ilicitude do despedimento implica o reconhecimento da nulidade dessa causa de cessação do contrato, ou seja que o efeito extintivo do contrato, típico do despedimento, não se produz, tudo se passando como se o contrato sempre se tivesse mantido em vigor.
Todavia, a nulidade do despedimento não apaga a sua declaração enquanto efeito extintivo enquanto não houver declaração judicial da sua ilicitude (o artigo 435.º do CT/2003 estabelece que a ilicitude do despedimento só pode ser declarada pelo tribunal em acção intentada pelo trabalhador).
Ou seja, enquanto não houver essa declaração judicial não pode considerar-se que o contrato está em vigor.
E não estando em vigor, não é possível operar a sua extinção por vontade de alguma ou de ambas as partes, antes da sua “ressuscitação” pela referida declaração judicial.
Neste sentido, fazemos valer-nos da fundamentação do Ac. do STJ de 9-10-2002 (in www.dgsi.pt, proc. 01S3448), acolhida pelo Acórdão uniformizador de jurisprudência nº 1/2004, de 20-11-2003, in DR, Série I-A, de 9-1-2004. Ali se escreveu, designadamente, a propósito da vigência do contrato após um despedimento ilícito (com sublinhados nossos):
Essa vigência do contrato mantém-se para o futuro, sem soluções de continuidade, se a sentença condenar na reintegração.
Se, porém, a sentença, de acordo com opção feita pelo trabalhador, condenar em indemnização de antiguidade, considera-se que o contrato cessa na data dessa decisão judicial: é que a opção do trabalhador pela indemnização de antiguidade representa uma manifestação de vontade do trabalhador no sentido de pôr termo ao contrato, a qual, porém, fica dependente da superveniência de uma decisão judicial que declare a ilicitude do despedimento. Neste ponto, esta "rescisão do contrato por iniciativa do trabalhador" se diferencia das comuns formas de manifestação desta causa de cessação do contrato: nos casos comuns, a rescisão é feita relativamente a um contrato que está em vigor e determina sempre a cessação do contrato, só influindo o reconhecimento, ou não, da existência de justa causa pelo tribunal para efeitos de determinação da compensação a que o trabalhador terá, ou não, direito (podendo mesmo, no caso de inexistência de justa causa e desrespeito do prazo de aviso prévio, originar dever de indemnizar a entidade patronal); no caso de opção por indemnização de antiguidade em acção de impugnação de despedimento, a "rescisão" é feita em momento em que o contrato não está em vigor e só terá eficácia rescisória da relação laboral se o despedimento vier a ser declarado ilícito. Como refere Monteiro Fernandes (obra citada, pág. 547), ao permitir a referida opção, "a lei oferece assim ao trabalhador ilegalmente despedido a faculdade de escolher o destino do vínculo a partir da sentença, visto que o período anterior a esta fica necessariamente coberto pela repristinação que a alínea a) do n.º 1 determina" (sublinhado acrescentado). Por isso é que, no caso de opção pela indemnização de antiguidade, o contrato só se considera cessado na data da sentença, e não na data da notificação dessa opção à entidade patronal, sendo àquela data que o n.º 3 do artigo 13.º da LCCT manda expressamente atender para efeitos de determinação da antiguidade do trabalhador. Em suma: a relação laboral interrompida pelo despedimento só pode ser "morta" pela rescisão por iniciativa do trabalhador depois de "ressuscitada" pela declaração judicial da ilicitude daquele despedimento.
Ou seja, entendemos que, após um despedimento ilícito, estando os respectivos efeitos dependentes de declaração judicial, não é possível operar outro efeito extintivo do contrato que dependa da vontade das partes pelas formas comuns elencadas do Código do Trabalho. Daí que não seja possível, nesse tempo, proceder a um acordo de revogação ou a resolução ou denúncia por parte do trabalhador (ou a um novo despedimento pelo empregador).
Pode, contudo, operar-se uma extinção definitiva da relação contratual latente (pendente de “ressuscitação” por via de eventual declaração judicial da ilicitude do despedimento) pela via de um contrato de transacção, no qual as partes resolvam um litígio mediante concessões recíprocas.
Ora, entendemos que no caso ocorreu um típico contrato de transacção, como dissemos, não reconduzível a um mero acordo de revogação do contrato de trabalho, ainda que venha a ter por efeito a definitiva extinção da relação laboral.
O que está em causa nesse contrato é prevenir e resolver um litígio (no caso bem à vista) e não meramente colocar fim a uma relação contratual incontrovertida.
No contrato de transacção não está previsto o “direito de arrependimento” do trabalhador consagrado nos artigos  395.º e 449.º do CT/2003, um direito excepcional no âmbito da regulação geral dos contratos insusceptível de aplicação analógica (art. 11.º do Código Civil), nem se justificando a mesma por interpretação extensiva, na medida em que justificando-se tal direito na protecção da parte mais fraca (v. Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 4ª ed., pags. 964 e segs.), não se entenderia que essa justificação se mantenha num momento em que consideramos, como já dissemos, que os direitos do trabalhador já não são indisponíveis.
Por tudo isto, consideramos que o contrato de transacção manteve os seus efeitos, não obstante a posterior comunicação da autora de “revogação dos acordos de revogação do contrato de trabalho e contrato promessa associado”, a qual não tem eficácia.
Mantendo-os, importa concluir que o litígio ficou resolvido, com a declaração, para além do mais, de que com a assinatura do referido contrato “se dá por paga de tudo aquilo que porventura tivesse direito pela cessação do contrato de trabalho, pelo que nada mais exigirá da ré, seja a que titulo for”, declaração inserida num contrato de transacção que tem os mesmos efeitos que teria se inserida num contrato de remissão, enquanto renúncia a reclamar direitos e causa de extinção das obrigações.
Temos assim que, com o contrato de transacção, a autora abdicou de exigir mais fosse o que fosse à ré relativamente a créditos emergentes do contrato de trabalho que com ela manteve.
E assim sendo a acção tem necessariamente que improceder, na procedência da apelação.

Sumário (a que alude o artigo 713º nº 7 do C.P.C.):

Celebrado, entre trabalhador e empregador, um contrato de transacção, depois de ter ocorrido um despedimento ilícito, pelo qual as partes colocam termo ao litígio emergente do despedimento mediante recíprocas concessões, não é possível ao trabalhador fazer cessar os efeitos de tal acordo através do “direito de arrependimento” previsto no artigo 395.º do Código do Trabalho de 2003, ainda que por via de tal contrato de extinga definitivamente a relação laboral.


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III- DECISÃO
Termos em que se delibera julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogar a sentença recorrida e absolver a ré de todo o peticionado.
Custas pela recorrida.