Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5507/11.1TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: MANDATO FORENSE
SUBSTABELECIMENTO
NOTIFICAÇÃO
PROCESSO JUDICIAL
SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
INSOLVÊNCIA
EX-CÔNJUGE
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 05/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - INST. CENTRAL - 2ª SEC. F. MEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 44º, Nº 3 DO NCPC; 90º E 141º DO CIRE.
Sumário: I – Para efeitos processuais, e no que toca à procuração forense, “o substabelecimento sem reserva implica a exclusão do anterior mandatário” (art. 44º nº 3 do CPC). Após a junção aos autos do substabelecimento, a notificação efetuada na pessoa do anterior mandatário equivale à omissão de notificação.

II - A omissão de notificação integra uma nulidade secundária, a ser arguida como tal, perante o Tribunal onde a falta foi cometida, e não em sede de recurso de uma decisão que é posterior à falta.

III - Se as dívidas relacionadas e aprovadas em inventário para partilha de bens comuns são superiores ao valor dos bens comuns, e se no decurso desse inventário vem a ser declarada a insolvência de um dos ex-cônjuges, opera-se a inutilidade superveniente da instância de inventário.

IV - Declarada a insolvência, o exercício de qualquer direito de crédito só pode ser exercido no processo de insolvência, por imposição do art. 90º do CIRE.

V - A venda dum bem comum, em processo de inventário para partilha na sequência de divórcio, integraria uma diligência executiva para efeitos do art. 88º nº 1 do CIRE, pelo que nunca pode ser efetuada em processo de inventário.

VI - A lei preveniu a hipótese de a insolvência ser decretada apenas quanto a um dos cônjuges, acautelando a possibilidade de o outro cônjuge ir ao processo de insolvência reclamar que a sua meação nos bens comuns seja separada da massa insolvente, separação essa que também pode ser requerida pelo administrador da insolvência ou ordenada pelo juiz. [art. 141º nº 1 al. b) e nº 3 do CIRE].

VII - Desde que o ex-casal ainda não tenha procedido à partilha de bens no momento em que é decretada a insolvência de um deles, tudo se passará, em termos patrimoniais e relativamente aos bens comuns, como se o casamento ainda não tivesse sido dissolvido.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

                1.            Na sequência do decretamento do divórcio, veio P... (de futuro, apenas Requerente) instaurar ação especial de inventário, e consequente partilha, contra o ex-cônjuge V... (de futuro, apenas Requerido).

                Perante a existência de passivo no acervo conjugal, foram citados os respetivos credores.

Cinco das verbas desse passivo respeitavam a dívidas contraídas junto do Banco S..., SA (de futuro, apenas Recorrente), uma para aquisição do imóvel inscrito na matriz sob os artigos ... e ..., sendo que quer essa, quer as demais estavam garantidas por hipoteca sobre o imóvel.

O Recorrente, então patrocinado pelo Ex.mº advogado Dr. ..., veio aos autos relacionar um crédito pelo montante global de € 171.800,22, fazendo ainda consignar “para os devidos efeitos expressamente declara que em circunstância alguma prescindirá do regime de solidariedade da dívida nos termos inicialmente contratados”.

                Entretanto, foi declarada a insolvência da Requerente.

                A Sr.ª Administradora da insolvência veio disso dar nota ao processo, comunicando ainda que no processo de insolvência se encontrava “apreendido na proporção de metade, o prédio inscrito na matriz (…) sob o artigo (…), pertencendo a outra metade ao ex-marido da insolvente V...”.

                Perante tal informação, o M.mª juiz, ponderando (no essencial) que no processo de insolvência se deveria apreender a totalidade do imóvel (e não apenas “a meação”), para aí ser vendido na totalidade, o que acarretaria a inutilidade superveniente do processo de inventário (“assim que comprovada a rectificação da apreensão”), determinou a notificação dos credores reclamantes para se pronunciarem, querendo, em 10, dias sobre essa solução.

Nessa sequência, o Recorrente veio informar que “nada tem a opor quanto ao requerido, mais informando que foi deliberado, na Assembleia de Credores da mesma, que o processo aguardaria os resultados de citação do ex-marido para o que tivesse por conveniente, com vista à promoção da venda do imóvel por inteiro.”.

Este requerimento foi subscrito pela Ex.mª advogada Dr.ª ... a qual, nesse ato, juntou substabelecimento sem reserva do Dr. ...

                Após outras démarches, e em ordem a evitar decisões surpresa, a M.mª juíza determinou, em 16.05.2014, a notificação dos Requerente/Requerido e dos credores para, querendo, se pronunciarem “quanto à extinção do inventário por impossibilidade de partilha, motivada pela superioridade (manifesta) do passivo relativamente ao ativo”.

No que toca ao Recorrente, este despacho foi-lhe notificado na pessoa do Dr. ...

                O Recorrente nada disse.

                A M.mª juíza decretou então a extinção da instância, por impossibilidade da lide.

2.            Inconformado, vem o Recorrente apelar de tal decisão, formulando as seguintes conclusões:

...

3.            Inexistiram contra-alegações.

Dispensados os vistos (art. 657º nº 4 do CPC), cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

4.            A DECISÃO RECORRIDA é do seguinte teor:

«Como foi já aflorado no despacho de 16 de maio de 2014, o processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária ou, não carecendo de realizar-se partilha judicial, a relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e a servir de base à eventual liquidação da herança.

Tratando-se de inventário subsequente a processo de divórcio, destina-se à partilha dos bens do dissolvido casal.

O processo de inventário pressupõe sempre a existência de bens a partilhar, daí que o artigo 1361.º do Código de Processo Civil admita a declaração de insolvência da herança (e do património comum, por identidade de razão), a requerimentos dos credores ou dos interessados.

Caso o passivo seja superior ao ativo e não haja requerimento tendente à declaração de insolvência, o processo de inventário extingue-se, em princípio por impossibilidade, porque não há ativo para partilhar.

De acordo com a relação de bens apresentada, o passivo é manifestamente superior ao ativo, afigurando-se que não existirá património para partilhar.

Notificados para, querendo se pronunciarem quanto à extinção do inventário por impossibilidade de partilha (1), motivada pela superioridade (manifesta) do passivo relativamente ao ativo, apenas o credor A... se pronunciou, não tendo evidenciado oposição.

Face ao exposto, declaro extinta a instância por impossibilidade da lide.

(1) Sobre esta matéria pode ver-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7 de julho de 2005, proferido no processo n.º 0523548, assim sumariado: “Em processo de inventário em que o activo a partilhar é inferior ao passivo, dois caminhos se podem tomar:

- ou é requerida a falência por algum credor ou por deliberação de todos os interessados;

- ou, nada sendo requerido, o processo termina por inutilidade superveniente da lide.”

E o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de julho de 2009, proferido no processo n.º 111-C/1992.P1, com o seguinte sumário: “I – Cabem no âmbito da previsão do art. 825º, nº1 do CPC, não só os casos de responsabilidade exclusiva do executado, mas também aqueles em que a responsabilidade é comum, segundo a lei substantiva, mas a execução foi movida contra um só dos responsáveis – quer haja título executivo contra ambos (caso em que o credor podia ter movido a execução contra os dois), quer haja título executivo apenas conta o executado (caso em que o credor, querendo executar ambos os cônjuges, teria de propor previamente acção declarativa contra marido e mulher: art. 28º-A, nº3, do CPC).

II – A avaliação prevista no art. 1406º, nº/s 2 e 3 do CPC visa determinar o justo valor dos bens (não só dos bens escolhidos pelo cônjuge do executado, mas de todos), à data em que o cônjuge do executado pretende exercer o seu direito de escolha, não havendo, pois, qualquer fundamento legal para fixar o valor dos bens, à data da acção de divórcio instaurada na pendência do inventário para separação de meações, a qual não tem também qualquer relevância para a determinação do valor do passivo, que tem de ser actual.

III – Se o valor do passivo aprovado e reconhecido exceder o do activo e nenhum credor requerer a insolvência do património comum do casal, nem os interessados deliberarem nesse sentido, o processo de inventário termina por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art. 287º, al. e), do CPC, já que, se os bens que integram o acervo hereditário vão ser absorvidos pelo pagamento do passivo, não há quaisquer bens a partilhar entre os herdeiros, cessando, por isso, a razão de ser do processo de inventário.”, disponíveis em www.dgsi.pt».

5.            O MÉRITO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).

Assim, face às conclusões, suscita o Recorrente as seguintes questões:

· existiu erro na sua notificação do despacho datado de 16.05.2014? A concluir-se pela afirmativa, quais as consequências?

· verificam-se os pressupostos da inutilidade da lide de inventário para partilha de bens comuns na sequência de divórcio?

5.1.         DO ERRO NA NOTIFICAÇÃO

Como resulta dos factos atrás elencados, o Recorrente começou por ser patrocinado pelo Dr. ..., o qual veio a proceder a um substabelecimento sem reserva à Dr.ª ..., que o juntou aos autos em 18.11.2013.

                Como é sabido, e apesar de muito próximas, mandato e representação são duas figuras distintas, podendo o mandato operar sem necessidade de procuração.

De comum, o mandato e a procuração têm a circunstância de, quer o mandatário, quer o procurador agirem por conta do mandante ou dominus.

O mandato com representação é um negócio misto de mandato e de procuração.

Já a procuração, na medida em que constitui um mero ato de atribuição de poderes representativos, é um negócio jurídico unilateral e recetício; o procurador fica investido num poder (o poder de representação não obriga à prática dos atos, apenas a permite): art. 262º nº 1 do Código Civil (de futuro, apenas CC).

O efeito jurídico da procuração é o de outorga de poderes de representação, enquanto que o efeito (jurídico) do poder de representação é o de o ato praticado pelo representante produzir efeitos na esfera jurídica do dominus.

De acordo com o art. 264º do CC, “1. O procurador só pode fazer-se substituir por outrem se o representado o permitir ou se a faculdade de substituição resultar do conteúdo da procuração ou da relação jurídica que a determina. 2. A substituição não envolve exclusão do procurador primitivo, salvo declaração em contrário”.

                Em consonância, para efeitos processuais, e no que toca à procuração forense, estatui o art. 44º nº 3 do CPC que “o substabelecimento sem reserva implica a exclusão do anterior mandatário”. [[1]]

                Temos, portanto, que a partir de 18.11.2013 [[2]] o mandatário do Recorrente passou a ser a Dr.ª ...

                De acordo com o art. 247º nº 1 do CPC, “as notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais”.

                Impunha-se, portanto, que a partir de 18.11.2013, as notificações passassem a ser efetuadas na pessoa da Dr.ª ...

                A secretaria operou a notificação em crise na pessoa do anterior mandatário.

A notificação efetuada em pessoa que já não é o mandatário da parte equivale à omissão de notificação.

A falta de notificação em apreço (ou a sua irregularidade) integra a omissão de um ato prescrito por lei, o que importaria a sua nulidade desde que “a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”: art. 195º nº 1 do CPC.

Seria o caso presente, uma vez que à parte, no exercício do direito ao contraditório, incumbe o direito ao conhecimento de todos os atos processuais para sobre eles se poder pronunciar (art. 3º nº 3 do CPC).

Porém, estamos no âmbito duma nulidade secundária, sujeita a regras e prazos específicos de invocação.

Saber se uma nulidade secundária, que não foi invocada em 1ª instância, pode ser conhecida pelo tribunal de recurso, não tem recebido resposta uniforme na jurisprudência [[3]]

Pela nossa parte, partilhamos da opinião daqueles que dão resposta negativa à questão.

Em primeiro lugar, é de ter em conta que o regime consagrado entre nós para os recursos ordinários é de «(…) reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a acção e a julga-la, como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último.». [[4]]

Daqui decorre — e em consonância com a máxima tradicional “dos despachos recorre-se, das nulidades reclama-se”, que as nulidades decorrentes da preterição de uma formalidade legal terão de ser sempre suscitadas perante o Tribunal de 1ª instância, competindo a este decidir se a nulidade se verifica (art. 200º nº 3 do CPC).

A não ser assim, o Tribunal de recurso ver-se-ia na contingência de decidir a questão pela primeira vez, ao arrepio do nosso sistema de recursos.

Em sede de recurso, o Tribunal da Relação só pode pronunciar-se sobre a decisão que recaiu sobre a nulidade reclamada e nunca sobre a arguição da nulidade “em si mesma” pois tal integraria uma decisão em 1ª instância.

A jurisprudência que considera poder a nulidade ser conhecida e decretada em sede de recurso, em situações similares à aqui em análise, fá-lo no entendimento de que a nulidade foi cometida “a coberto de uma decisão judicial”.

Consideramos, porém, com Miguel Teixeira de Sousa [[5]] que «[n]os vícios da decisão incluem-se apenas aqueles que a ela respeitam directamente. Quer isto dizer que não é considerado um vício da decisão a realização de um acto não permitido ou a omissão de um acto obrigatório antes do seu proferimento: tais situações são nulidades processuais, submetidas, na falta de qualquer regulamentação específica, ao respectivo regime geral (art. 201º, nº 1; cfr. STJ – 14/1/1993, BMJ 423,406).».

No caso, impunha-se que o exercício do contraditório fosse efetuado antes da prolação da sentença, pelo que o vício é extrínseco à decisão.

Por isso, que também não colha, a nosso ver, o argumento de que, após a sentença, se opera a extinção do poder jurisdicional do juiz.

Tal princípio reporta-se apenas à sentença/decisão proferida, e não a outros segmentos sobre os quais não existiu ainda pronúncia, como é o caso da invocação duma nulidade, cuja possibilidade de conhecimento pelo juiz da causa se mostra expressamente prevista logo no nº 2 do art. 613º do CPC. [[6]]

Mais, o conhecimento de nulidades atinentes à estrutura e limites da própria sentença, são hoje da competência do juiz que a proferiu, nos termos do art. 617º nº 1, 5 e 6 do CPC.

E, se bem o interpretamos, quando Alberto dos Reis aborda a hipótese de a nulidade não ter ocorrido “ao abrigo de qualquer despacho judicial”, está a ponderar situações em que o juiz, apesar de não ter conhecido expressamente da questão que provoca a nulidade, emite despacho a ordenar a prática do ato nulo. [[7]]

Terá sido também essa a interpretação efetuada por Manuel de Andrade [[8]] quando, referindo o entendimento de Alberto dos Reis escreve: «Mas se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho), que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo.».

Concluímos, portanto, não poder este Tribunal da Relação conhecer da nulidade em apreço.

Perspetivando poder-se ordenar a remessa dos autos à 1ª instância para conhecer da nulidade, rejeita-se tal possibilidade por a mesma vir a configurar um ato inútil e, como tal, proibido nos termos do art. 130º do CPC.

Na verdade, tratando-se duma nulidade secundária, desde logo se impõe que a mesma seja arguida “enquanto o ato não terminar” ou, no caso de a parte não estar presente, no prazo de 10 dias, contados “do dia em que, (…) a parte (…) foi notificada para algum termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência”: art. 199º nº 1 e 149º nº 1 do CPC.

No caso, o Recorrente teve conhecimento do erro da notificação, pelo menos com a posterior notificação da decisão que ordenou a extinção da instância, a qual foi efetuada em 15.07.2014.

Não ocorrendo aqui a situação prevista no art. 199º nº 3 do CPC, e como o Recorrente só invocou o erro da notificação em sede de alegações de recurso, deduzido em 23.09.2014, mostra-se precludido o prazo de 10 dias, pelo que a nulidade em que se incorreu ficou sanada.

5.2.         DA IMPOSSIBILIDADE DA LIDE

Invoca o Recorrente que a extinção da instância de inventário lhe causou “um sério problema”, na medida em que “impossibilitou que viesse a ser efectuada a venda da totalidade dos bens” no processo de insolvência.

Sem razão, como passaremos a expor.

Desde logo, e olhando apenas ao processo de inventário, fazendo nossa a argumentação expendida no acórdão referido na decisão recorrida: «Essas dívidas são, evidentemente, as dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, pois que só por estas respondem os bens comuns nos termos do direito substantivo (artº 1695º, nº 1 do CC).

Portanto, se forem aprovadas dívidas que estejam documentalmente provadas nos termos daquele preceito e o valor global destas exceder o valor global dos bens que integram o património comum do casal, há insolvência do património comum.

Pode então qualquer credor requerer a insolvência do património comum, tal como podem os interessados deliberar naquele sentido.

Se nada for requerido nem deliberado, os autos de inventário têm de ser declarados extintos por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artº 287º, al. e), do CPC.

Pois que se os bens que integram o património comum do casal são insuficientes para ressarcir as dívidas do mesmo património, já não há que salvaguardar a meação do cônjuge do executado, tornando-se inútil a separação de meações: em consequência, o inventário perde a sua razão de ser». [[9]]

Conjugando o processo de inventário com o de insolvência.

Numa situação de insolvência, dita de execução universal [art. 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (de futuro, apenas CIRE)], é atingido todo o património do devedor insolvente e, por isso, que se pretenda que nele participem todos os credores, para que todos possam obter satisfação de forma paritária —— princípio da igualdade de credores ou da par conditio creditorum ——, plasmado no art. 194º do CIRE.

Decretada a insolvência, segue-se a imediata apreensão de todos os bens do devedor insolvente: art. 36º al. g) e 149º do CIRE.

Declarada a insolvência, o exercício de qualquer direito de crédito só pode ser exercido no processo de insolvência, por imposição do art. 90º do CIRE.

Dado que o imóvel, pelo menos na proporção de metade, é um bem da massa insolvente, o Recorrente só pode exercer o seu direito no processo de insolvência.

Segue-se que, como efeito automático da insolvência, todas as diligências de caráter executivo relativas a bens da massa insolvente terão de ser declaradas suspensas: art. 88º nº 1 do CIRE.

A venda dum bem constituiria uma diligência executiva, pelo que a venda do imóvel nunca se poderia operar no processo de inventário, antes havendo que declarar a suspensão do respetivo procedimento. [[10]]

Tanto bastaria para alicerçar a nossa discordância da M.mª juíza do processo de insolvência quando entende que, atenta a fase do processo de inventário, pode “avançar-se para a conferência de interessados com a venda da totalidade dos bens, requerendo os credores o pagamento imediato dos seus créditos”.

Se o bem está apreendido no processo de insolvência, há que respeitar essa apreensão, não podendo ele ser vendido no âmbito doutro processo.

Acresce que os credores no processo de inventário podem ou não coincidir com os credores na insolvência de um só dos cônjuges, o que violaria o referido princípio par conditio creditorum.

A lei preveniu a hipótese de a insolvência ser decretada apenas quanto a um dos cônjuges, acautelando a possibilidade de o outro cônjuge ir ao processo de insolvência reclamar que a sua meação nos bens comuns seja separada da massa insolvente: art. 141º nº 1 al. b) do CIRE.

Poder-se-ia dizer que a Requerente e o Requerido já não são cônjuges, mas tal resulta indiferente para o caso, dado que a finalidade da insolvência não é dirigida ao estatuto da pessoa insolvente, mas apenas à liquidação do seu património (art. 1º do CIRE).

Assim, desde que o ex-casal ainda não tenha procedido à partilha de bens no momento em que é decretada a insolvência de um deles, tudo se passará, em termos patrimoniais e relativamente aos bens comuns, como se o casamento ainda não tivesse sido dissolvido.

Por outro lado, no que toca a bens em contitularidade ou indivisão, o art. 159º do CIRE é claro: “verificado o direito de restituição ou separação de bens indivisos ou apurada a existência de bens de que o insolvente seja contitular, só se liquida no processo de insolvência o direito que o insolvente tenha sobre esses bens”.

Ou seja, previne este artigo duas hipóteses: (i) a primeira, a de que o contitular tenha exercido o seu direito à separação dos bens comuns, através da ação própria a que alude o art. 141º nº 1 al. b) do CIRE; (ii) na segunda hipótese, mesmo perante a inação do contitular, essa separação pode e deve ser requerida pelo administrador da insolvência, ou ordenada pelo juiz (cf. art. 141º nº 3 do CIRE), desde que dos autos resultem elementos suficientes de existência de uma situação de contitularidade. [[11]]

Portanto, está prevista a possibilidade de se exercer a “separação de meações” do acervo conjugal no âmbito do processo de insolvência, sendo que, mesmo que o ex-cônjuge Requerido o não faça, incumbe ao administrador de insolvência requerer o respetivo procedimento, e ao juiz ordená-lo.

A Sr.ª Administradora da insolvência tem conhecimento da situação desde o início, tanto assim que apreendeu o bem apenas “na proporção de metade”.

Que em tais circunstâncias —— insolvência de uma pessoa que, após decretado o divórcio, ainda não se procedeu à partilha dos bens comuns ——, o imóvel, bem comum, deve ser apreendido “na sua totalidade”, já ficou bem expresso do despacho datado de 31.10.2013 (fls. 188/191), cuja fundamentação merece a nossa inteira concordância.

E a do Recorrente também, que expressamente referiu nada ter a opor (fls. 194).

Nada impede que agora se proceda à apreensão do imóvel por inteiro, como resulta do art. 144º do CIRE (“bens apreendidos tardiamente”), eliminando-se, naturalmente, a apreensão “na proporção de metade” e ficando acautelada a separação da meação do ex-marido.

Estão, pois, verificadas todas as condições e circunstâncias para que se possa operar a separação de meações no processo de insolvência (por iniciativa do Requerido ex-marido, por requerimento da Sr.ª Administradora ou por oficiosidade judicial).

Nessa medida, os direitos do ora Recorrente não só não ficaram coartados com a extinção do processo de inventário, como só podem ser exercidos no processo de insolvência.

                6.            SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)

a) Para efeitos processuais, e no que toca à procuração forense, “o substabelecimento sem reserva implica a exclusão do anterior mandatário” (art. 44º nº 3 do CPC). Após a junção aos autos do substabelecimento, a notificação efetuada na pessoa do anterior mandatário equivale à omissão de notificação.

b) A omissão de notificação integra uma nulidade secundária, a ser arguida como tal, perante o Tribunal onde a falta foi cometida, e não em sede de recurso de uma decisão que é posterior à falta.

c) Se as dívidas relacionadas e aprovadas em inventário para partilha de bens comuns são superiores ao valor dos bens comuns, e se no decurso desse inventário vem a ser declarada a insolvência de um dos ex-cônjuges, opera-se a inutilidade superveniente da instância de inventário.

d) Declarada a insolvência, o exercício de qualquer direito de crédito só pode ser exercido no processo de insolvência, por imposição do art. 90º do CIRE.

e) A venda dum bem comum, em processo de inventário para partilha na sequência de divórcio, integraria uma diligência executiva para efeitos do art. 88º nº 1 do CIRE, pelo que nunca pode ser efetuada em processo de inventário.

f) A lei preveniu a hipótese de a insolvência ser decretada apenas quanto a um dos cônjuges, acautelando a possibilidade de o outro cônjuge ir ao processo de insolvência reclamar que a sua meação nos bens comuns seja separada da massa insolvente, separação essa que também pode ser requerida pelo administrador da insolvência ou ordenada pelo juiz. [art. 141º nº 1 al. b) e nº 3 do CIRE].

g) Desde que o ex-casal ainda não tenha procedido à partilha de bens no momento em que é decretada a insolvência de um deles, tudo se passará, em termos patrimoniais e relativamente aos bens comuns, como se o casamento ainda não tivesse sido dissolvido.

III.           DECISÃO

7.            Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas a cargo do Recorrente.

                                                                                                              Coimbra, 27/0572015


(Relatora, Isabel Silva)

(1ª Adjunto, Alexandre Reis)

(2º Adjunto, Jaime Ferreira)


[[1]] Assim o tem entendido, de forma maioritária, a nossa jurisprudência: acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 30.05.1995 (processo 086830), de 12.01.1994 (processo 084904), de 08.03.1974 (processo 065007) e de 04.12.2007 (processo 07B3967), disponíveis em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.

[[2]] Para efeitos processuais, é esta a data que importa, e não a data do substabelecimento, por ser aquela em que o seu conhecimento é trazido a juízo.

[[3]] Assim, no sentido de não poder ser conhecida, acórdãos do STJ, de 13.01.2005 (processo 04B4031), de 10.09.2009 (processo 374/09.8YFLSB), de 13.10.2010 (processo 673/03.2TTBRR.L1.S1), de 01.02.2011 (processo 6845/07.3TBMTS.P1.S1), bem como, desta Relação Coimbra (TRC), acórdãos de 19.12.2012 (processo 132/12.2TBCVL-A.C1) e de 05.11.2013 (processo 2582/10.0TBFIG.C1).

Já considerando ser possível esse conhecimento, os acórdãos da Relação do Porto (TRP), de 23.09.2013 (processo 430/11.2TTMTS.P1) e, da Relação de Lisboa (TRL), de 04.06.2009 (processo 67/00.1DSTB-B.L1-2) e de 19.04.2012 (processo 296/1997.L1-2).

[[4]] José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 3º, Tomo I, 2ª edição, 2008, Coimbra Editora, pág. 7/8.

No mesmo sentido, António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2ª edição, 2014, Almedina, pág. 27.

[[5]] In “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 2ª edição, 1997, pág. 216.

[[6]] Neste sentido, Artur Anselmo de Castro, in “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, 1982, Almedina, pág. 134/135. Para o Autor, em tais situações, a nulidade deve ser invocada perante o juiz do processo, sendo que a obrigatoriedade de recurso teria como consequência «(…) tornar-se o processo escusadamente oneroso para as partes, por as sujeitar a recursos dispensáveis, recursos em que aliás (…) a decisão pode ser pelo próprio juiz alterada ou reformada.».

[[7]] Cf. José Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 2º, 1945, Coimbra Editora, pág. 507 a 513.

[[8]] Manuel A. Domingues de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, Coimbra Editora, pág. 183.

[[9]] Acórdão do TRP, de 09.07.2009 (processo 111-C/1992.P1).

[[10]] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Quid Juris, 2008, pág. 528, anot. 3 ao art. 88º, pág. 362.

[[11]] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Quid Juris, 2008, pág. 528, anot. 4 ao art. 159º.