Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
129/22.4PBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
FUNCIONÁRIO
HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO
CONTRAORDENAÇÃO
ORDEM DE ENCERRAMENTO
INTERESSE PÚBLICO
INTERESSES DOS AGENTES ECONÓMICOS
DIREITO AO SOSSEGO E À TRANQUILIDADE PÚBLICA
Data do Acordão: 02/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA COVILHÃ
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 18.º, N.º 2, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 348.º E 386.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I – Nos termos do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal a cominação da desobediência pode ter uma de duas fontes: a existência de uma disposição legal que comine, no caso, a punição a título de crime de desobediência, nos termos da alínea a); ou, na falta desta, uma cominação feita pela autoridade ou funcionário competente para ditar a ordem ou mandado, no caso da alínea b).

II – No caso da alínea b) o dever de obediência resulta da circunstância de a ordem provir de autoridade ou funcionário com competência funcional, própria ou delegada, para a proferir, de ter sido regularmente transmitida e de ter sido comunicado, ainda, que a desobediência à ordem emitida seria punida com a pena prevista para o crime de desobediência.

III – Em tais casos deve ainda resultar que o legislador não previu em termos normativos as consequências da conduta inadimplente e que no contexto em que a ordem foi proferida o seu incumprimento atinge a dignidade penal e necessidade de pena, pressupostas no artigo 348.º.

IV – A criminalização ad hoc só é conforme à Constituição no de ausência completa de qualquer expediente compulsivo, previsto numa disposição legal, destinado a evitar as consequências perniciosas do comportamento desobediente, ou quando a consequência prevista na lei se mostre na prática claramente insuficiente.

V – Mesmo que o legislador tenha previsto as consequências da conduta em causa com norma sancionatória não penal ou com disposição processual, o funcionário ou autoridade donde emana a ordem pode fazer a cominação ad hoc do crime de desobediência se considerar, fundadamente, que a consequência prevista na lei pelo legislador se mostra manifestamente ineficaz, face às circunstâncias do caso.

VI – Nestes casos as consequências da conduta terão que ter gravidade compatível com a criminalização através da cominação ad hoc, em homenagem ao princípio da proporcionalidade entre a danosidade social da conduta e a reacção, tal como resulta do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.

VII – A cominação do crime de desobediência relativamente à recusa de encerramento do estabelecimento que labore fora do horário de funcionamento autorizado justifica materialmente a criminalização, por se apresentar proporcional à danosidade social da conduta por ele assumida.

VIII – Neste caso a cominação do crime de desobediência não se sobrepõe nem se confunde com a conduta contraordenacional decorrente da laboração do estabelecimento fora do horário de funcionamento previsto pela referida deliberação camarária.

IX – O crime previsto na al. b) do nº 1 do art. 348º do Código Penal tem caráter subsidiário.

Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. No Processo Abreviado Nº 129/22.... … foi proferida oralmente sentença …

a) Condenar o arguido AA, pela prática, no dia 02 de Abril de 2022, em autoria material, na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, e 348.º, n.º 1, alínea b), todos do Código Penal., na pena de 90 … dias de multa …

*

Inconformado com tal decisão dela interpôs recurso o arguido extraindo da motivação do recurso as seguintes conclusões que se transcrevem:

«… 2. … o Tribunal a quo considera que o ora arguido/recorrente praticou o crime supra referido, porquanto, estando o seu estabelecimento a funcionar para além do horário determinado por deliberação camarária, o arguido não cumpriu a ordem de encerramento do mesmo, emanada pelos Srs. Agentes da PSP.

3. Porém, para a consumação do crime em causa não basta a mera desobediência a uma ordem comunicada e emanada de autoridade;

4. É necessário também que não exista disposição legal que sancione especificamente essa conduta por parte do agente incumpridor.

5. Ora, no caso em apreço, o funcionamento de um estabelecimento comercial fora do horário estabelecido está devidamente sancionado por disposição legal, nomeadamente, pelo o Regulamento n.º 1069/2016, publicado em Diário da República, 2.ª série — N.º 233 — 6 de dezembro de 2016;

6. Cujo artigo 12º n.º 1, alínea b), determina que constitui contraordenação punível com coima de €250,00 a € 3.750,00, para pessoas singulares e de €2.500,00 a € 25.000,00, o funcionamento de estabelecimento comercial para além do horário estabelecido.

7. Salvo melhor e douta opinião, não poderia, como não pode, a Autoridade Policial efetuar a advertência dada como provada nos presentes autos e não deveria, como não deve, consequentemente, o ora arguido ser punido pela prática de um crime de desobediência, atendendo ao carácter meramente subsidiário da incriminação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 348º do Código Penal.

8. Pelo que, o Tribunal a quo fez uma errada aplicação do artigo 348º n.º 1, alínea b) do Código Penal …»

*

Ao recurso interposto respondeu o Digno Magistrado do MºPº junto da primeira Instância … E conclui que o recurso do arguido não merece provimento.

Neste Tribunal da Relação, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta, emitiu parecer no sentido de que o presente recurso não merece provimento…

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II - Fundamentação

A) Delimitação do objecto do recurso

… a única questão a decidir é a seguinte:

- O incorrecto enquadramento jurídico-penal dos factos …

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B) Da decisão recorrida

Na sentença foram considerados como provados, os seguintes factos:

1. O arguido AA explora o estabelecimento comercial “F...”, sito na Rua ..., ....

2. Na sequência de várias reclamações apresentadas relativas ao incumprimento reiterado do encerramento dentro do horário estipulado e do constante ruído provocado pelo funcionamento do estabelecimento, a Câmara Municipal ... deliberou, em reunião de 04.02.2022, restringir o horário de encerramento do estabelecimento “F...” até às 00h00, o que foi noticiado ao arguido AA.

3. Não obstante, no dia 02.04.2022, pelas 03h00, o estabelecimento em causa, explorado pelo arguido AA, encontrava-se aberto ao público, em pleno funcionamento, com cerca de quinze pessoas no seu interior.

4. Em virtude do exposto, o arguido foi abordado pela patrulha da Polícia de Segurança Pública que se deslocou ao local dos factos, composta pelos agentes BB, CC e DD, os quais se identificaram como tal.

5. Nesse contexto, os referidos agentes da Polícia de Segurança Pública advertiram expressamente o arguido da necessidade de encerrar o estabelecimento “F...”, em virtude da deliberação camarária, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.

6. Não obstante, o arguido manteve o estabelecimento “F...” em pleno funcionamento até, pelo menos, às 05h50.

7. O arguido sabia que devia obediência à ordem que lhe tinha sido regularmente comunicada, a qual sabia legítima e proveniente de autoridade competente.

8. O arguido agiu com o propósito concretizado de não obedecer à ordem legítima, regularmente comunicada e emanada de autoridade competente, que lhe foi transmitida, apesar de ter sido advertido de que tal falta o faria incorrer no crime de desobediência, pondo em causa a autoridade subjacente à mesma.

9. O arguido agiu livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

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C) Apreciação do recurso

… insurge-se o arguido e ora recorrente apenas quanto à sua condenação pelo crime de desobediência, previsto pelo art. 348º, nº1 b) do C. Penal, por entender que, em termos normativos, o legislador previu as consequências sancionatórias da sua conduta nela descrita, nos termos do disposto no disposto no art. 12º, nº1, b) do Regulamento Nº 1069/2016, publicado no Diário da República, 2ª Série – Nº 233, de 6 de Dezembro de 2016, nele estipulando que constitui contraordenação o funcionamento fora do horário estabelecido … e que, sendo a sua conduta … susceptível de integrar a referida contraordenação, não se legitima materialmente a criminalização do incumprimento da ordem emanada pela Autoridade Policial, porque a lei prevê as consequências sancionatórias para a mesma, pelo que a ordem emitida por esta não foi legítima …

A questão que se coloca para conhecimento deste Tribunal da Relação, impõe que nos detenhamos na abordagem do crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 348º

do C. Penal, a qual faremos, seguindo, no essencial, a formulação de Lopes da Mota, in Crimes Contra a Autoridade Pública, in Jornadas de Direito criminal, CEJ, II, Lisbia 1998, pag. 428-429.

*

O crime de desobediência previsto e punível pelo art. 348º do C. Penal tem como elementos objetivos do tipo (a) existência de ordem ou mandado de autoridade ou funcionário, na acepção do art. 386º do C. Penal, impondo uma determinada conduta, um dever de acção ou omissão, (b) a sua legalidade material e formal, (c) a competência de quem a emite, (d) comunicação regular da ordem ao destinatário e (e) incumprimento da ordem ou mandado.

Para além disso, exige o tipo legal que o dever de obediência incumprido radique numa disposição legal que comine, no caso, a sua punição (al. a) do nº1) ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou funcionário a que se refere a al. b) daquele nº1, sendo certo que esta consideração da cominação pela autoridade ou funcionário como elementos do tipo (e não meras condições de punibilidade), será hoje generalizadamente aceite, tendo sido reafirmada na doutrina do AFJ do STJ 2/2013.

Significa isto que a cominação de que a desobediência à ordem emitida é punida com

a pena prevista para o crime de desobediência é necessária para o preenchimento do tipo objetivo do crime e, concomitantemente, deve ser abarcada pelo dolo do agente, mas não que toda a ordem emitida com esta cominação por autoridade ou funcionário, implique, ipso facto, o preenchimento do tipo.

A ordem deve ser abrangida pela competência da autoridade ou funcionário que a emite e deve ser legítima, o que implica que a ordem ou mandado devem ser formal e materialmente legais, mas também, em princípio, que o legislador não tenha previsto em termos normativos as consequências da conduta inadimplente e que no contexto em que é proferida a ordem, o seu incumprimento atinja a dignidade penal e necessidade de pena pressupostas no art. 348º do C. Penal. Sem estas, pode a ordem mostrar-se funcionalmente adequada, nada obstando, portanto, à sua emissão e ao seu acatamento pelo destinatário do ponto de vista da prossecução do interesse público subjacente, mas o seu incumprimento não fará incorrer o inadimplente na prática do crime de desobediência p. e p. pela al. b) do nº1 do art. 348º do C. Penal.

Aqui entronca a questão concretamente discutida nos autos, ou seja, a de saber se a advertência feita expressamente ao arguido, ora recorrente, nas circunstâncias descritas na factualidade provada, respeitante à necessidade de encerrar o estabelecimento “F...”, em virtude da deliberação camarária que lhe impunha que o mesmo não laborasse fora do horário de funcionamento para ele previsto (até as 00.00 horas), sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, é legítima, nomeadamente em função do princípio da legalidade penal, tal como a doutrina do AFJ 2/2013 o articula com a nota de subsidiariedade que tradicionalmente se atribui ao crime previsto na al. b) do nº1 do art. 348º do C. Penal.

Pretende o arguido, ora recorrente que, configurando a sua actuação descrita na factualidade provada a contraordenação prevista no art. 12º, nº1, b) do Regulamento Nº

1069/2016, publicado no Diário da República, 2ª Série – Nº 233, de 6 de Dezembro de 2016, referente ao Regulamento de Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de venda ao público e de Prestação de Serviços do Município ..., não podiam os agentes da PSP cominar como crime de desobediência a manutenção do seu estabelecimento aberto fora do horário de funcionamento que para o mesmo tinha sido deliberado pela CM da ....

O crime de desobediência encontra-se tipificado no art. 348º do Código Penal nos seguintes termos:

1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou

b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

2 - A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.

… a cominação da desobediência poderá ter uma de duas fontes: a existência de uma disposição legal que comine, no caso, a punição a título de crime de desobediência – alínea a), do n.º 1 – ou, na falta desta, uma cominação feita pela autoridade ou funcionário competente para ditar a ordem ou mandado – alínea b).

A jurisprudência, como a doutrina, vêm apontando os seguintes requisitos do tipo legal de crime:

- O dever de obediência;

- A legitimidade da ordem ou mandado;

- A sua comunicação ao destinatário em termos regulares;

- A competência da entidade que produz a ordem ou o mandado; e

- O deliberado incumprimento da ordem.

O dever de obediência resultará, no caso da alínea b), da circunstância de a ordem provir de uma autoridade ou funcionário, suposto tratar-se de ordem legitima, regularmente transmitida e proveniente de entidade com competência funcional – própria ou delegada – para a proferir – neste sentido, vide Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, (anotação ao art. 348º),Tomo III, pág. 356, ed. de 2001.

A legitimidade da ordem ou mandado afere-se pela razão que a determina. Não pode ser arbitrária, ou seja, não pode resultar de um capricho de quem a profere ou de uma atitude de puro autoritarismo ou exibicionismo. Mas já será legitima se estiver em curso uma actuação ilícita, criminal ou contraordenacional, a que haja que pôr termo.

A regular comunicação da ordem pressupõe a sua transmissão ao destinatário em termos tais que este possa apreender o seu conteúdo. Assim, na ordem verbal, a comunicação terá que ser audível e credível.

Por fim, a verificação do crime pressupõe o deliberado incumprimento do conteúdo da ordem transmitida.

Mostra-se assente que:

1. O arguido AA explora o estabelecimento comercial “F...”, sito na Rua ..., ....

2. … a Câmara Municipal ... deliberou, em reunião de 04.02.2022, restringir o horário de encerramento do estabelecimento “F...” até às 00h00, o que foi noticiado ao arguido AA.

3. Não obstante, no dia 02.04.2022, pelas 03h00, o estabelecimento em causa … encontrava-se aberto ao público, em pleno funcionamento, com cerca de quinze pessoas no seu interior.

4. … o arguido foi abordado pela patrulha da Polícia de Segurança Pública … os quais se identificaram como tal.

5. Nesse contexto, os referidos agentes da Polícia de Segurança Pública advertiram expressamente o arguido da necessidade de encerrar o estabelecimento “F...”, em virtude da deliberação camarária, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.

6. Não obstante, o arguido manteve o estabelecimento “F...” em pleno funcionamento até, pelo menos, às 05h50.

7. O arguido sabia que devia obediência à ordem que lhe tinha sido regularmente comunicada, a qual sabia legítima e proveniente de autoridade competente.

8. O arguido agiu com o propósito concretizado de não obedecer à ordem legítima, regularmente comunicada e emanada de autoridade competente, que lhe foi transmitida, apesar de ter sido advertido de que tal falta o faria incorrer no crime de desobediência, pondo em causa a autoridade subjacente à mesma.

9. O arguido agiu livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

De acordo com o disposto no art. 12º do Regulamento Nº 1069/2016 - publicado no Diário da República, 2ª Série – Nº 233, de 6 de Dezembro de 2016 - Regulamento de Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de venda ao Público e de Prestação de Serviços do Município ...:

«1- Nos termos da lei geral e do presente Regulamento constitui contraordenação punível com coima:

a) (…)

b) De € 250,00 a € 3.750,00, para pessoas singulares, e de € 2.500,00 a € 25.000,00, para pessoas colectivas, o funcionamento fora do horário estabelecido.

2- A aplicação das coimas e das sanções acessórias previstas neste regulamento competem ao Presidente da Câmara Municipal, revertendo as receitas provenientes da sua aplicação para o Município ...».

Por seu turno, prevê-se no art. 11º do mesmo Regulamento de Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de venda ao público e de Prestação de Serviços do Município ..., que:

«1- A fiscalização do cumprimento do disposto no presente regulamento compete à Câmara Municipal, e, ainda, à Polícia de Segurança Pública, à Guarda Nacional republicana e à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica.

2- A instrução dos processos de contraordenação, bem como a aplicação das coimas e de sanções acessórias competem ao presidente da Câmara Municipal ....

3- As autoridades de fiscalização mencionadas no nº1 podem determinar o encerramento imediato do estabelecimento que se encontre a laborar fora do horário de

funcionamento estabelecido».

O recorrente não põe em causa que o horário de funcionamento do estabelecimento por si explorado era, à data dos factos, até às 00.00 horas …

Como igualmente não põe em causa … que, aquando dos factos … o estabelecimento por si explorado se encontrava aberto ao público, em pleno funcionamento … em violação … da deliberação camarária …

A actuação dos agentes da PSP descrita na factualidade provada, tratou-se de uma actuação legítima, posto que, verificado pelos mesmos o funcionamento do referido estabelecimento fora do horário estabelecido, em infracção ao imposto pela referida deliberação da Câmara Municipal ..., aqueles advertiram expressamente o arguido da necessidade de encerrar o estabelecimento em virtude da deliberação camarária, como, aliás, resulta da competência que lhes estava atribuída pelo disposto no art. 11º, nº 3 do citado Regulamento Nº 1069/2016 - publicado no Diário da República, 2ª Série – Nº 233, de 6 de Dezembro de 2016.

E, havendo que obstar à continuação do funcionamento do referido estabelecimento, a cominação do crime de desobediência para prevenir tal situação mostrou-se legítima, enquadrando-se no âmbito dos poderes atribuídos às autoridades com competência para fiscalização previstas no referido art. 11º do citado Regulamento.

A legitimidade da referida ordem de encerramento dada ao arguido pelos agentes da PSP mostra-se assegurada pela circunstância de estar em curso uma actividade contraordenacional a que haveria que pôr cobro de imediato, nos termos previstos na deliberação da Câmara Municipal ..., que obrigava a que naquele momento (03.00 horas) o mencionado estabelecimento estivesse encerrado, visto que só poderia estar em funcionamento até às 00.00 horas.

Na verdade, uma vez que nos casos daquela al. b) a cominação ad hoc resulta de um acto de vontade individual e não normativo, só a análise de todo o circunstancialismo que rodeou a emanação da ordem poderá́ assegurar a necessidade de criminalização da conduta, em conformidade com a Constituição.

Necessidade de criminalização da conduta através da cominação ad hoc, que deve ser

perspetivada num duplo sentido, como decorre da doutrina daquele AFJ.

Por um lado - continuando a seguir a fundamentação do AFJ 2/2013 -, sempre que o legislador tenha previsto em termos normativos as consequências daquela mesma conduta, designadamente ao nível sancionatório (contraordenacional, disciplinar ou processual), deverá presumir-se, numa primeira abordagem, que rejeitou a criminalização do comportamento, e não deverá ser, pois, a autoridade ou o funcionário a substituir-se ao legislador. Conclui-se aí que só́ a ausência completa de qualquer expediente compulsivo previsto numa disposição legal, destinado a evitar as consequências perniciosas do comportamento desobediente, ou a previsão na lei de uma consequência, que se mostre na prática claramente insuficiente, autorizará a cominação ad hoc.

Entende-se, porém, que não está vedada a cominação ad hoc do crime de desobediência, se a autoridade donde emana a ordem considerar que a consequência prevista na lei pelo legislador se mostra manifestamente ineficaz, face às circunstâncias do caso. Isto é, mesmo que o legislador tenha previsto em termos normativos as consequências da conduta em causa, seja através de norma sancionatória não penal, seja através de disposição processual, o funcionário ou autoridade donde emana a ordem pode fazer a cominação ad hoc do crime de desobediência, se a autoridade ou funcionário considerar fundadamente que a consequência prevista na lei pelo legislador se mostra manifestamente ineficaz, face às circunstâncias do caso.

Não havendo, no caso em apreciação, norma que preveja expressamente a situação para quem infrinja a determinação de encerramento imediato do estabelecimento que se encontre a laborar fora do horário de funcionamento estabelecido dada pelas autoridades de fiscalização com competência para o efeito, o crime pressupõe que a autoridade competente faça a correspondente cominação, o que no caso sucedeu - como resulta da factualidade provada e o recorrente nem sequer põe em causa – visto que o arguido foi expressamente advertido pelos agentes da PSP, pelas 03.00 horas, para a necessidade de encerrar o referido estabelecimento, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.

E, ao não acatar tal ordem de encerramento do estabelecimento - cuja regular comunicação também não suscita dúvidas nem é questionada pelo recorrente -, ao manter em pleno funcionamento o mesmo até, pelo menos, às 00.05 horas do mesmo dia, o arguido e ora recorrente desobedeceu à mesma

Com efeito, como bem salienta Lopes da Mota, in loc. cit., no sentido tradicional, afirma-se que o crime previsto na al. b) do nº 1 do art. 348º do C. Penal tem caráter subsidiário, respeita às condutas não punidas por força de disposição legal que mande aplicar a pena do crime de desobediência (al. a) do nº1 do art. 348º C. Penal) ou que preveja outro ilícito de natureza penal ou não penal (v.g. civil, administrativo, disciplinar ou processual).

No caso em vertente, o que está em causa é a conduta do arguido desrespeitadora da ordem de encerramento de um estabelecimento que funcionava fora do horário de funcionamento, emanada da autoridade com competência para o efeito, nos termos previstos no citado Regulamento Nº 1069/2016 - publicado no Diário da República, 2ª Série – Nº 233, de 6 de Dezembro de 2016 –, e não, como pretende o arguido, a mera conduta por si assumida de manter em funcionamento esse estabelecimento fora do horário de funcionamento estabelecido para o mesmo pela deliberação da CM da ..., ao abrigo do citado Regulamento.

É certo que, tal como se sublinha no citado AFJ 2/2013, mesmo nos casos de ausência de norma sancionatória que preveja a conduta em causa ou de procedimento compulsório destinado a evitar as consequências perniciosas do comportamento desobediente, estas consequências, em homenagem ao princípio da proporcionalidade, terão que ter uma gravidade compatível com a criminalização através da cominação ad hoc de autoridade ou funcionário, a que se reporta a al. b) do nº1 do art. 348º do C. Penal. Não é, pois, a mera ausência de previsão incriminadora ou sancionadora a título diverso que legitima a criminalização da conduta através da cominação de autoridade ou funcionário competente, exigindo-se ainda que a conduta a justifique materialmente, por imposição do mesmo princípio de intervenção mínima do direito penal, ou da necessidade da pena, que se extrai do nº2 do art. 18º da CRP e, portanto, da proporcionalidade entre a danosidade social da conduta e a reação.

… no caso em apreço, a cominação do crime de desobediência visou a recusa do encerramento do estabelecimento que laborava fora do horário de funcionamento previsto pela deliberação da CM da ... e não se sobrepõe – nem se confunde – com a conduta contraordenacional decorrente da laboração desse estabelecimento fora do horário de funcionamento previsto pela referida deliberação camarária.

E, para além disso, não pode deixar de entender-se que a conduta do arguido descrita na factualidade provada justificou materialmente a respectiva criminalização através da

cominação de que incorria no crime de desobediência feita pelos agentes ada PSP caso não acatasse a ordem de encerramento do estabelecimento que pelos mesmos lhe foi dada, por se apresentar proporcional à danosidade social da conduta por ele assumida.

É que, como deflui da Nota Justificativa que, preambularmente, consta do referido Regulamento Nº 1069/2016 - publicado no Diário da República, 2ª Série – Nº 233, de 6 de Dezembro de 2016, «o presente regulamento visa regular a fixação dos horários de funcionamento dos estabelecimentos, nos termos da legislação em vigor e de forma a assegurar um equilíbrio e harmonização dos princípios do interesse público e dos interesses dos agentes económicos, salvaguardando a segurança e qualidade de vida dos munícipes, designadamente no que respeita à protecção do direito ao sossego e à tranquilidade pública» …

Na não se entender que no caso em apreciação se mostra legitimada a criminalização da conduta através da cominação de autoridade ou funcionário competente, como o recorrente defende, tal equivaleria permitir que o arguido mantivesse em funcionamento o seu estabelecimento fora do horário previsto, conformando-se com o pagamento da coima que lhe viesse a ser aplicada em virtude dessa actuação – o que até bem poderia, em termos económicos, ser compensador -, como, ainda, esvaziaria de qualquer efeito o conteúdo da disposição contida no citado art. 11º, nº3 do referido Regulamento que permite às entidades de fiscalização nele previstas «determinar o encerramento imediato do estabelecimento que se encontre a laborar fora do horário de funcionamento estabelecido», disposição essa que, como deflui da referida Nota Justificativa, permite salvaguardar os interesses em causa de «assegurar um equilíbrio e harmonização dos princípios do interesse público e dos interesses dos agentes económicos, salvaguardando a segurança e qualidade de vida dos munícipes, designadamente no que respeita à protecção do direito ao sossego e à tranquilidade pública».

Donde se conclui, tal como se decidiu na sentença recorrida, que por se mostrarem, como mostram, preenchidos todos os elementos constitutivos – objectivos e subjectivos – do crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, nº1 alínea b) do CP, a conduta do arguido descrita na factualidade provada deve ser subsumida à luz da incriminação legal nele prevista.

III- Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação

de Coimbra, em:

1. Julgar totalmente improcedente o recurso interposto …

2. Condenar o recorrente nas custas do recurso, fixando a taxa de justiça em 3 Ucs (artigos 513.º e 514.º do CPP e 8.º do RCP, com referência à Tabela III).

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Coimbra, 22 de fevereiro de 2023

Maria José Guerra – relatora

Helena Bolieiro – 1ª adjunta

Rosa Pinto – 2ª adjunta