Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
232/06.8TBMIR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: COMPRA E VENDA COMERCIAL
VENDA POR DESIGNAÇÃO DE PADRÃO
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
DENÚNCIA
CADUCIDADE
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 04/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 2, 463, 469, 470, 471 C COMERCIAL, 905, 908, 910, 913,914, 915 CC
Sumário: 1. Um produto químico - ácido acético - porque reúne caraterísticas muito específicas, p.ex., a de a sua concentração ser de 80%, assume o jaez de um produto normalizado e, como tal, conhecido no mercado, pelo que a sua compra e venda, se de cariz comercial, deve ter-se por reportada a coisa designada por padrão, e, assim, subsumível no disposto no artº 469º do C. Comercial.
2. O prazo de oito dias concedido ao comprador de venda comercial, previsto no artº 471º do C Com, para denúncia de defeito, apenas se conta desde a sua entrega se o defeito for aparente e detetável pelos sentidos; senão, conta-se a partir da data da sua descoberta, razoável e diligentemente considerada; e sendo este o caso , em termos de normalidade, do referido ácido.

3. Assim, se a A., detetando cor não usual no ácido, efetiva procedimento habitual para apurar da existência, ou não, de defeito, se a analise aponta para a sua genuinidade, e se a ré na contestação não aduz, e depois prova, que à autora eram exigíveis outros testes mais fiáveis, tal prazo apenas começa a correr da data em que a autora conclui que os estragos têm origem nos defeitos do produto, seja: 12.04.2006, pelo que, tendo a denuncia sido efetivada em 20.04, ela assume-se tempestiva.

4. Indicando a prova que a ré, negociante de produtos químicos, recebeu acido acético com as caraterísticas próprias, mas que: o acondicionou em contentores não selados, que assim os enviou para centros de distribuição que depois os entregam aos clientes, que estes lhes devolvem muitos contentores, que a ré recebeu alguns em condições fisicamente deficientes e que em dois estavam resíduos alheios pois não foram por ela lavados, como deviam, é possível, em concatenação com outros factos apurados, dar como provado, dentro da margem de álea em direito permitida, que, tendo ele sido usado pela autora na fermentação de azeitonas, foi a causa do estrago destas, por nele existir fenol, químico potencialmente venenoso.

5. Na venda defeituosa o comprador, tem, em princípio, de ser indemnizado no âmbito do respetivo regime, pedindo, sequencialmente, a reparação, substituição da coisa, ou indemnização pelo interesse negativo: artºs 913º a 915º do CC; mas se estas vias não forem suficientes ao seu completo ressarcimento, porque o defeito provocou outros danos, tem ele direito a ser totalmente indemnizado, nos termos gerais do incumprimento defeituoso.

6. O ter-se apurado que a ré, vendedora, verificou a genuinidade do ácido no momento em que o recebeu do fornecedor, não basta para convencer, como é seu ónus, de que desconhecia, sem culpa, o vício do mesmo; antes lhe sendo exigível -máxime se ela o acondiciona em vasilhame não hermético e selado, retornado de anteriores clientes que nele podem deixar restos de outros produtos químicos - que o analise ao menos no momento em que o despachou ao cliente.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

“M (…) S.A. – Conservas Alimentares”, propôs contra “Q (…) – Comércio e Indústria Química, S.A.”, ação declarativa, de condenação, com processo ordinário.

Pediu:

A condenação da Ré no pagamento do montante de € 912.226,09 a título de ressarcimento dos seus prejuízos já apurados à data da propositura da ação, bem como no pagamento da quantia indemnizatória pelos prejuízos ainda não mensuráveis àquela mesma data, relegando-se tal quantia para a competente execução de sentença, a tudo acrescendo os juros de mora contados à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Alegou, para tanto:

Ser uma empresa que se dedica à indústria e comercialização de conservas alimentares, designadamente de azeitonas de vários calibres e em diversos formatos, pickles e molhos alimentares, enquanto a Ré, por seu turno, é uma empresa que se dedica maioritariamente à atividade comercial de produtos químicos para diferentes aplicações, maxime para a indústria alimentar.

No exercício das suas atividades e no âmbito das relações comerciais existentes, a A. adquiriu à Ré, em 9 de Março de 2006, três contentores de 1000 litros cada de ácido acético a 80% para uso alimentar, que foram diretamente entregues nas suas instalações no dia seguinte, 10 de Março, ácido acético esse destinado a ser incorporado no processo inicial de acondicionamento em depósitos (fermentadores) de azeitona, para os fins de comercialização posterior nos mercados interno e externo, através da marca “M (....)”.

Os serviços de controlo de qualidade da demandante, utilizando os procedimentos de controlo habituais, efetuaram uma diluição em água a 10% no laboratório, constatando que a solução diluída se apresentava incolor e com cheiro intenso a ácido acético, tal levando a que, nesse conspecto, na semana de 13 a 17 de Março de 2006 começasse a ser o ácido da Ré utilizado no processo produtivo da demandante.

No dia 9 de Abril de 2006 foram detetados pelos serviços técnicos da A. alguns fermentadores contendo azeitona com sabor e odor a desinfetantes, não correspondente, portanto, ao sabor e odor habituais, e que resultavam diretamente do ácido acético vendido pela Ré à A., de cuja composição se apurou constar fenol, composto tóxico suscetível de provocar danos – mortais, em alguns casos – na saúde da pessoa.

No dia 12 de Abril de 2006, a A. contactou os serviços comerciais da Ré, através da sua técnica comercial, engenheira (…), que no dia seguinte se deslocou às instalações da demandante, onde pôde confirmar que efetivamente o ácido acético em causa era o que havia sido fornecido pela demandada, sendo então vertido a escrito tal entendimento consensual entre os técnicos da A. e da Ré.

Em 20 de Abril de 2006 reiterou formalmente a denúncia de defeitos levada a cabo em 12 e 13 do mesmo mês de Abril, mandando também, e de modo cautelar, efetuar uma análise ao ácido acético em laboratório oficial acreditado, o qual concluiu do mesmo modo, isto é, no sentido de que tal ácido continha fenol.

Não obstante a denúncia de defeitos efetuada pela A., a Ré remeteu-se ao silêncio, não assumindo a sua responsabilidade em face dos prejuízos causados à demandante, e apenas dialogando em Julho e Agosto do referido ano de 2006.

Contestou a Ré.

Por exceção alegou que a  A. não denunciou os supostos defeitos do produto junto da Ré nos prazos e condições previstos na lei comercial aplicável, pelo que o seu eventual direito a esgrimir a questão em juízo há muito caducou.

Por impugnação disse que o ácido acético  por si vendido reunia as características pela mesma anunciadas na sua ficha técnica, não sabendo ela – nem tendo de saber, visto que tal não lhe foi referido pela A., que também não lhe solicitou quaisquer cuidados suplementares – qual o destino efetivo do ácido.

 Ora, podendo ter tal ácido como aplicações comuns as anunciadas na sua ficha técnica, ou seja, o tratamento de águas, a indústria têxtil e química, e não pondo a demandante em causa reunir o ácido concretamente fornecido pela Ré as características constantes da respetiva ficha técnica, cumpriu esta integralmente e de forma perfeita a sua prestação.

Não pode dizer-se ter sido o ácido acético por si vendido à demandante o causador do sabor que esta última considera prejudicial na azeitona, tanto mais que a Ré não produz nem comercializa fenol, sendo os reservatórios onde armazena e transporta o ácido acético exclusivamente dedicados a este produto e a sua limpeza sempre verificada antes do seu enchimento.

O lote de ácido acético fornecido pela contestante à A. havia sido por aquela adquirido, como habitualmente, à empresa “(…) S.L.”, e, com exceção da demandante, nenhum dos outros clientes a quem a A. vendeu tal lote de ácido acético reclamou o que quer que fosse.

A engenheira (…), referida na douta petição inicial, é uma técnica comercial, sem poderes nem preparação técnica para decidir, pelo que a declaração por ela assinada não pode vincular nem vincula a demandada, ainda para mais tendo sido obtida em uma reunião absolutamente dominada pelos técnicos da demandante e no desconhecimento, pela referida engenheira (…), dos processos de fabrico da A. e das características desejadas ou indesejadas do ácido para a azeitona.

A A., duplicou ela os danos na sua petição, pretendendo que a Ré lhe pague duas vezes a azeitona que diz ter ficado inutilizada em consequência do ácido.

Mais deduziu a Ré o incidente de intervenção acessória da sua fornecedora de ácido acético – a aludida “Química (…), S.L.” –, de onde proveio o ácido depois pela mesma Ré vendido à demandante, pois que, a eventualmente ser considerada a Ré responsável pelos danos sofridos pela A., então a responsabilidade por aqueles que vierem a provar-se deve-se, nos termos legais aplicáveis, exclusivamente à chamada, já que só nas suas instalações ou durante o transporte em cisterna para as instalações da A. poderia ser o referido ácido acético contaminado.

Pediu:

A improcedência da ação.

Replicou a demandante.

Relativamente à exceção da caducidade disse haver denunciado os defeitos do produto que lhe foi vendido no prazo que a lei prevê, fazendo-o prontamente pelo telefone três dias volvidos após a sua deteção, ou seja, em 12 de Abril de 2006, como o prova a deslocação, no dia seguinte, da engenheira (…) às instalações da A., onde pôde confirmar, reconhecendo, que o produto defeituoso era o vendido pela demandada e que o mesmo se não encontrava conforme ao contratado, procedendo mesmo à recolha de amostras lacradas para uma análise mais detalhada. A tudo acrescendo que a denúncia dos defeitos verificados foi reiterada por carta registada com aviso de receção enviada à Ré em 20 do mesmo mês de Abril de 2006.

Quanto ao mais disse ser do conhecimento da Ré o fim ou destino do ácido acético solicitado pela A.

Reiterou o aduzido na pi e impetrou a como litigante de má fé.

Foi admitido o incidente de intervenção acessória.

Contestou a interveniente “Química (…), S.L.”.

Disse ser do seu inteiro desconhecimento tudo o que se passou a jusante do momento da entrega, pela chamada, do produto em questão – ácido acético – nas instalações da demandada, designadamente se o ácido acético alegadamente vendido pela demandada à A. foi todo ou parte do lote que a chamada forneceu à Ré  e qual o uso que esta mesma demandada fez do aludido produto ou sequer se o vendeu – a quem e em que condições –.

Que forneceu à ré um lote de ácido acético descarregado nas respetivas instalações no dia 9 de Fevereiro de 2006, e que fora sujeito, na origem – instalações da interveniente, em Espanha – a testes de qualidade, os quais obtiveram resultados conformes, originando o inerente certificado de análise.

O ácido acético não é  passível de degradação pelo mero decorrer do tempo, assim o mesmo não haja sido incorretamente armazenado, manipulado ou alterado.

Concluindo pela improcedência do pedido.

2.

A matéria da caducidade, com base nas normas da lei comercial, foi julgada improcedente.

Inconformada recorreu a ré.

Rematando as suas alegações com as seguintes, sintetizadas, conclusões:

1ª – Estamos perante um contrato de compra e venda subjetiva e objetivamente comercial.

2ª – Trata-se de contrato de compra e venda designada por padrão.

3ª – A autora encomendou acido acético com uma concentração de 80%, sendo assim tal acido um produto normalizado, para o qual basta essa referencia que traduz uma qualidade conhecida no mercado, para se saber o que se trata

4ª –O caso subsume-se, pois, nos disposto nos artºs 469º e 471º do C. Comercial.

5ª –A autora deveria ter reclamado o defeito no prazo de oito dias a partir da entrega, sob pena de caducidade do seu direito.

6ª – Este prazo só começaria a contar depois de conhecido o defeito se a autora alegasse e provasse:

- a impossibilidade do exame no momento da entrega e o momento em que teria cessado essa impossibilidade;

- o tardio surgimento do defeito e quando passou a ser detetável;

- que atuou com a diligencia exigível no trafico comercial.

7ª – A autora não logrou fazer al prova.

8ª – Assim, encontrando-se assente que o acido foi rececionado  pela autora no dia 10 de março de 2006, e que esta só reclamou o defeito no dia 20 de abril, caducou o direito de a autora reclamar do defeito.

Contra alegou a autora pugnando pelo indeferimento da presente pretensão.

Aduziu, em síntese:

1ª - O Contrato assume a natureza de comercial.

2ª – O tribunal não se pronunciou sobre se se trata, ou não, de venda designada por padrão, pelo que vedado   à recorrente estava insurgir-se sobre esta matéria, pois que  o recurso se destina a reapreciar   questões decididas e não a criar decisões sobre matéria nova.

3ª – O que está em causa é a existência de defeitos no bem fornecido pela ré, o cumprimento defeituoso desta, pela existência de fenol, substancia esta que não pode considerar-se “caraterística padrão”, ou “qualidade conhecida no comércio” do ácido acético a 80%.

4ª – Destarte, o regime aplicável é do artº 913º e segs. do CC.

5ª- Perante este, e mesmo perante o regime do artº 471º, na medida em que o prazo de oito dias se deve contar a partir da data do conhecimento ou cognoscibilidade do defeito pelo comprador, a denuncia foi tempestiva.

3.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«julga-se a acção parcialmente provada e procedente e, em consequência:

- Decide-se pela improcedência, por não provada, da excepção de caducidade invocada nestes autos pela demandada … quanto ao direito da demandante…;

- Condena-se a Ré … a pagar à A. … a quantia de € 544,50 (quinhentos e quarenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal para os créditos de cariz comercial, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento;

- Condena-se a demandada … a pagar à demandante … o montante que vier a ser liquidado em sede de execução de sentença como indemnização pelos prejuízos pela mesma demandante sofridos em consequência dos factos referidos nos pontos 20, 21, 22, 23, 24 e 25 (sendo este último prejuízo entendido como a diferença entre o preço que a demandante pagou pela azeitona inutilizada devido ao ácido acético e o preço que a mesma A. suportou para a reposição de tal azeitona deteriorada, através da aquisição de um novo stock) dos factos assentes da presente sentença;

- Absolve-se a Ré … do demais contra si peticionado nos autos pela demandante...»

4.

Inconformada recorreu a ré.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

5.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são, lógica e metodologicamente, as seguintes:

1ª – Caducidade  do direito da A. de instaurar a ação ex vi do disposto no artº 471º do Cº Comercial, ou no artº 913º e segs do Cº Civil. 

2ª - Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

3ª –(Im)procedência da ação.

6.

Apreciando.

6.1.

Primeira questão.

6.1.1.

É indubitável que nos encontramos perante uma compra e venda de cariz comercial.

Quer subjetivamente, porque celebrada entre duas sociedades comerciais.

Quer objetivamente, porque a ré  destinava o produto transacionado à aplicação noutro – azeitonas -  que destinava à revenda – artº 2º do CCom.

O regime aplicável é pois, primacialmente, o constante neste diploma, rectius os artº 463º e segs., pois que ele se revela especial por reporte ao regime geral do CC – cfr. artº 3º do CCom.

Nesta conformidade e quanto à questão da caducidade importa atentar no estatuído nos artºs 469º a 471º, a saber:


Art.º 469.º -

Venda sobre amostra ou por designação de padrão


As vendas feitas sobre amostra de fazenda, ou determinando-se só uma qualidade conhecida no comércio, consideram-se sempre como feitas debaixo da condição de a cousa ser conforme à amostra ou à qualidade convencionada.

Art.º 470.º -

Compras de coisas que não estejam à vista nem possam designar-se por um padrão


As compras de cousas que se não tenham à vista, nem possam determinar-se por uma qualidade conhecida em comércio, consideram-se sempre como feitas debaixo da condição de o comprador poder distratar o contrato, caso, examinando-as, não lhe convenham.

Art.º 471.º -

Conversão em perfeitos dos contratos condicionais


As condições referidas nos dois artigos antecedentes haver-se-ão por verificadas e os contratos como perfeitos, se o comprador examinar as cousas compradas no acto da entrega e não reclamar contra a sua qualidade, ou, não as examinando, não reclamar dentro de oito dias.

§ único. O vendedor pode exigir que o comprador proceda ao exame das fazendas no acto da entrega, salvo caso de impossibilidade, sob pena de se haver para todos os efeitos como verificado.

Este último preceito revela-se mais exigente para o comprador, por reporte ao regime civilista, no que concerne ao curto prazo de denúncia dos vícios do bem ou produto.

 Ora: «este regime tem na base a ideia de que a rescisão de um contrato pode causar ao comércio entorpecimentos ou danos no sentido de que envolve insegurança para os direitos, perturba a rapidez das actividades e, ao originar a ineficácia de uma operação já realizada, transtorna ou impede o encadeamento económico das operações sucessivas» -  Ferrer Correia in “Lições de Direito Comercial”, Vol. I, 1973, pg. 26.

Considerando estes fitos e valores a defender, a lei presume inilidivelmente – jure et de  jure – que a falta de denuncia tempestiva significa a aceitação, não sendo, pois, de admitir contra isso qualquer espécie de prova.

No entanto, e como dimana da decisão recorrida, ele não se aplica a todos os contratos de jaez comercial, mas apenas aos aludidos e com as caraterísticas e condicionantes dos  mencionados nos dois artigos precedentes.

In casu importa apurar se o contrato encerra alguma das caraterísticas que permitam a sua subsunção em tais normativos.

O Sr. Juiz entendeu que não.

Já a recorrente pugna que no encontramos perante uma compra e venda de coisa designada por padrão, e, assim, ínsita na previsão do artº 469º.

E, na verdade, assim é.

Trata-se, efetivamente, de um produto químico -  ácido acético -  o qual, como é bom de alcançar, reúne caraterísticas cientificas muito específicas.

A particularidade mais evidente é a sua concentração de 80%.

Estamos, pois, com a recorrente, quando afirma que tais caraterísticas e composição bastam para fazer do dito ácido um produto normalizado e conhecido, como tal, no mercado.

Ou, noutra perspetiva - que vai dar ao mesmo -, sem as quais não pode concluir-se que se trata de tal produto, ou que o mesmo é um bom e bem conseguido composto químico – sem defeitos - pois que elas se revelam conditio sine qua non para tais efeitos.

Tal é, tanto quanto alcançamos, o entendimento da jurisprudência relativamente a outros produtos, inclusive mais comezinhos, no sentido de menos elaborados e científicos na sua composição, como sejam a batata, caixas de sardinha o azeite, (desde que de  encerrem determinada qualidade conhecida no comércio, como seja, vg., o grau de acidez no azeite).

 Assim consideram, entre outros, o Ac. da RL de 15.06.1955, JR, 1955, 553 (batata); do STJ de 11.12.1970, BMJ, 202º, 223 (sardinha); de 01.03.1966 BMJ 155º, 443, com anotação concordante da RT, 84º, 470 e o Ac. da RC de 25.09.2007, p. 62/05 in dgsi.pt (azeite).

Ora se assim é para tais produtos, por igualdade ou até maioria de razão, o deve ser para um produto do cariz do presente, muito mais sofisticado e elaborado, apenas comercializado em determinados nichos de mercado e, assim, cabalmente conhecido, na sua composição e caraterísticas, pelos respetivos interessados, os quais, naturalmente, o venderão e comprarão, essencialmente anteparados na essencial consideração das mesmas, e cuja presença ou não presença, influirá, necessáriamente, na sua vontade de negociar, ou não negociar.

Aqui chegados cumpre referir que, em princípio, o dies a quo do prazo de oito dias é a data da entrega do produto.

Porém, desde longe vem sendo sufragado o maioritário entendimento de que tal  dies e respetivo prazo de oito dias, apenas são de considerar quando a simples inspeção pelo comprador o habilitar ao exame da coisa e à reclamação, com efetividade e segurança, de um modo simples, direto e intuitivo; não sendo, assim, de observar nos casos em que, pela natureza ou complexidade do produto, seja necessário proceder-se a experiencias e análises -  cfr. RT, 75º, 187, 78º-209, 79º-10, 80º-29 e 84º-112 e Ac. do STJ de 19.06.1973, BMJ, 228º, 228, apud Abílio Neto in Código Comercial e Código das Sociedades, 1987, ps. 255 e 259.

Nestes casos o prazo de oito dias «deve contar-se da data em que o comprador descobre o vício da coisa comprada ou, ao menos, daquela em que o teria descoberto se agisse com a diligência exigível no tráfico comercial» - . Vaz Serra in RLJ 104º- 25,  Romano Martinez in Cumprimento Defeituoso – Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, 2001, ps. 375 e 376 e nota 2 desta última página; e,  entre outros, o Ac. RL de 24.05.2011, p. 2698/03.9TBMTJ.L1-1 in dgsi.pt.

Na verdade e como se expende neste aresto: «tal solução afigura-se-nos ser a mais lógica e consentânea com a realidade da vida pois, muitas vezes, o defeito não é aparente nem imediatamente detectável e não faz sentido, nesses casos, que se exija ao comprador que reclame no acto da entrega ou recepção da coisa ou nos oito dias seguintes de defeitos que não sabe se se verificarão.».

6.1.2.

No caso vertente  relevam os seguintes factos:

a)A autora recebeu  o ácido em 10 de Março de 2006.

b) O produto apresentou-se com uma cor mais escura do que o habitual;

c) Os serviços de controlo de qualidade da demandante, utilizando os procedimentos de controlo habituais, efectuaram uma diluição em água a 10% no laboratório, constatando que a solução diluída se apresentava incolor e com cheiro intenso a ácido acético, sendo que o PH medido era de 2,5, valor considerado conforme, mediante os padrões internos de comparação, pelo que a A. passou a utilizar o ácido acético,

d) No dia 9 de Abril de 2006, foram detectados pelos serviços técnicos da demandante alguns fermentadores contendo azeitona com sabor e odor a desinfectante, isto é, não correspondente ao sabor e odor habituais, o que se apurou por simples análise sensorial;

e) Em 12 de Abril de 2006 foi concluído pela A. que o sabor e odor referidos foram resultado directo do ácido acético vendido pela Ré à A.;

f) Em 20 de Abril de 2006, a demandante, através de carta registada com aviso de recepção, procedeu à denúncia formal de defeitos.

Primus cumpre dizer que o produto em causa, apesar de ser caraterizado, predominantemente, por certos elementos ou compostos, é um produto químico complexo, cuja qualidade/conformidade ou não qualidade/conformidade, não é detetável por uma simples inspeção, de cariz meramente ocular ou, até, perfunctóriamente científica.

Mas antes, pelo menos, e em termos de normalidade, por indagação de jaez cientifico mais aprofundado.

Destarte, não era exigível à autora que se apercebesse,  logo aquando da receção do ácido e por uma simples inspeção visual, que ele não revestia a composição/qualidade que lhe era inerente.

Certo é que se apurou que a autora detetou que  o ácido tinha uma cor mais escura do que o habitual.

Mas tal não pode inculcar o entendimento de que, só por isso, ela devesse inferir que, necessariamente, o produto estava estragado e improprio para o uso que lhe pretendia dar.

Na verdade, a simples alteração da cor poderia advir de uma qualquer variação de um qualquer elemento usado na sua elaboração e que em nada contendesse com a qualidade final, físico-química, do produto, certa para cumprir adequadamente relativamente à finalidade – transformação das azeitonas –  a que a autora pretendia adstringir o ácido.

Acresce que também se provou que Os serviços de controlo de qualidade da demandante, utilizando os procedimentos de controlo habituais, efectuaram uma diluição em água a 10% no laboratório, constatando que a solução diluída se apresentava incolor e com cheiro intenso a ácido acético, sendo que o PH medido era de 2,5, valor considerado conforme, mediante os padrões internos de comparação, pelo que a A. passou a utilizar o ácido acético.

Ou seja, a autora, quiçá por desconfiar da qualidade do produto em função da sua cor menos usual, efetuou exame mais aprofundado, já de cariz científico/laboratorial ou similar, tendo com ele, ao que parece, preparado a solução que aplicaria nas azeitonas, e não tendo esta demonstrado anormalidade do mesmo, antes pelo contrário.

Consequentemente, a demandante confiante na qualidade do produto, adstringiu-o à sua função, colocando-o nas azeitonas.

Servindo isto para dizer que à autora não pode ser imputado qualquer conduta relapsa, ou até, menos e diligente, no sentido da averiguação da qualidade do ácido no exato momento da sua receção, pelo que o prazo legal de oito dias não podia contar-se a partir da data desta.

A ré vem agora, no recurso, dizer que, afinal, o teste adequado para detetar o defeito do acido, era o teste do permanganato.

Mas não aduziu tal, tempestivamente, no momento e lugar certo: a sua contestação.

Nesta apenas mencionando que, para além do teste feito pela autora, porventura e segundo posição desta, outrossim seria necessário efetuar uma análise de sabor ao ácido – artº 23ºda contestação.

 Ora esta asserção também não pode ser considerada, para efeito da sua prova ou não prova, porque não representa uma afirmativa e perentória posição da ré, mas antes uma mera possibilidade, ademais advinda de uma postura/confissão da demandante quanto à necessidade do teste por sabor, que não se vislumbra.

O que a autora disse foi que, na sequência de ter verificado uma cor diferente da habitual, diligenciou pela efetivação dos procedimentos de controlo habituais, o que se deu como provado, aliás, por acordo.

Mostra-se, assim, inaceitável, o fundamentando nuclearmente aduzido pela ré para alicerçar a sua tese da caducidade , qual seja, o de que a autora não reclamou do defeito quando o detetou, pelo que manifestou de forma inequívoca que aceitou o produto – artº 24º da contestação.

 Não. A autora aceitou o produto porque,  tendo desconfiado do ácido devido à sua cor não habitual, se convenceu da sua genuinidade em função da efetivação de um teste/ procedimento,  que era tido  por normal/habitual, e  que apontava/indiciava neste sentido.

Ou seja, a autora aceitou o produto não obstante se ter apercebido de que ele estava defeituoso, mas antes o aceitou porque estava convencida de que ele se encontrava conforme às suas caraterísticas químicas típicas e padronizadas.

Conclusão esta que se impõe não apenas perante os factos apurados, como, outrossim, em função das regras da lógica e do normal sentido das coisas e da experiencia da vida.

Pois que se ela estivesse convicta do defeito, tem de conceder-se – salvo algum facto ou intenção anómalos oriundos de uma qualquer teoria da conspiração, que importaria inequivocamente provar – que logo o denunciaria à ré, e, ainda com maior acuidade, que o não aplicaria nas azeitonas, pois que se o fizesse, no mínimo, correria o risco de elas se estragarem.

Ora dimanando a desconfiança da autora na genuinidade do ácido, apenas da  sua cor não comum, tendo o teste habitual subsequente provado, ou indiciado suficientemente, que, afinal, com alguma diluição – a qual, em maior ou menor grau seria usada na  sua aplicação prática – ele se apresentava incolor, como devia, e não tendo, como se referiu, a ré invocado  na sua contestação que outros testes mais aprofundados e fiáveis competiam à autora realizar, tem de concluir-se,  em termos substanciais e processuais, que à demandante era inexigível fazer mais do que fez, no âmbito do seu dever/ónus,  de examinar o produto.

Por conseguinte, e secundus, urge atentar que só em 09.04 seguinte, a autora  se apercebeu que, afinal, as azeitonas não tinham o sabor e odor normais, antes cheirando e sabendo a desinfetante, pelo que, desenvolveu diligencias no sentido de apurar a causa de tal anormalidade.

E chegando à conclusão, no dia 12 que o problema estava no ácido fornecido pela ré.

Por conseguinte, é esta a data em que o compradora descobriu o vício da coisa comprada; ou, ao menos, aquela em que lhe era exigível tê-lo descoberto se agisse com a diligência exigível no tráfico comercial. Diligencia esta que, pelo que se referiu,  deve ter-se como presente na sua atuação.

E sendo certo que, tendo ela detetado o problema nas azeitonas no dia 09.04.2006, o prazo de três dias para ter as ter analisado e chegado à conclusão que tal problema estava no ácido,  tem de considerar-se razoável.

Ora tendo ela denunciado formalmente junto da ré os defeitos do produto no dia 20.04., impõe-se a inelutável conclusão que ela cumpriu o prazo legal de oito dias do artº 471º do CCom.

E nem sendo de admitir o argumento formal de que a «denuncia dos defeitos, para ser eficaz (artigo 224.º do CC), deve ser efectuada perante a Administração das pessoas colectivas e não perante os seus funcionários.

Sendo que: «Os contactos havidos entre os técnicos da Recorrida e a Engª (…) em 12 e 13 de Abril de 2006 … não consubstanciam uma denúncia eficaz dado que que a Engª (…) é uma funcionária da Recorrente que não é sua Administradora nem tem poderes para a representar e vincular …e não reportou a "reclamação" aos seus superiores hierárquicos e à Administração da Recorrente».

Para além de ser discutível se a denuncia tem, sempre e inelutavelmente, de ser efetivada à administração - pois que cada caso é um caso, sendo que as suas circunstancias concretas, tendo, vg., em vista, a realização da justiça material, podem implicar entendimento diverso -, certo é que, no vertente, esta questão nem sequer se coloca.

Na verdade, e visto o documento de fls. 9, nele se constata que, em 20.04.2006, a ré denunciou os defeitos – rectius reiterou a denuncia – agora dirigindo-se, adrede e inequivocamente, à administração da ré.

Tendo esta denuncia sido, como se viu, feita atempadamente, ela é válida e eficaz, porque cumpre mesmo este requisito formal mais exigente invocado pela demandada.

E adotando-se o entendimento  que o caso se subsume nos artºs 469 a 471º do Cº Comercial, e que, perante estes preceitos, a denuncia se alcança tempestiva, académica, despicienda e até prejudicada, se alcança a analise da questão à luz do regime do artº 916º e segs. do Cº Civil.

Até porque  este regime se assume como mais favorável ao comprador, e, assim, implicaria, a fortiori, decisão igual quanto à tempestividade da denuncia e da instauração da ação, nos termos aliás expendidos pelo Sr. Juiz a quo, os quais, na sua essencialidade relevante,  aqui se corroboram.

6.2.

Segunda questão.

6.2.1.

Urge ter presente que no nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

 Ademais a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa, é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

6.2.2.

Ademais, e em termos de direito positivo, urge atentar que o impugnante da decisão sobre a matéria de facto tem de cumprir, desde logo liminarmente e  com  o maior rigor possível, as exigências formais do artº 640º do CPC.

Das mesmas sobressai a indicação – nº 1 al. b) – «Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente identificar, sob pena de rejeição: os concretos meios probatórios constantes no processo ou do registo ou gravação nele realizada que impunham decisão… diversa da recorrida»

Sendo que -nº2 al. a) - «quando os meios probatórios…tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de rejeição imediata do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso…».

Na verdade:

« Em caso de impugnação da matéria de facto, a especificação dos concretos meios probatórios constantes da gravação deve ser acompanhada, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, da indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o seu recurso – art.º 640º, n.º 2, a), do Novo C. Processo Civil.» - Ac. da RC de 17.06.2014, p. 405/09.1TMCBR.C1.

E sendo certo que:

 «A exacta indicação das passagens da gravação, que se exigia no 685º-B, nº 2 do CPC e que se exige agora no artº 640º, nº 2, a), do NCPC, não se identifica com a mera indicação do local, no suporte de registo áudio disponibilizado ao Tribunal de recurso, onde começa e termina cada um dos depoimentos em causa. Não se entender assim equivale a ter-se como exigida uma indicação exacta dos depoimentos e não, propriamente, das passagens.

 Daí que ao recorrente, para indicar, com exactidão, o que a lei exige no artº 640º, nº 2, a), do NCPC (a exemplo do que ocorria no âmbito do pretérito artº 685º-B, nº 2 , do CPC), seja mister indicar, por referência ao suporte em que se encontra gravado o depoimento que pretende utilizar, o início e o termo da passagem ou das passagens, desse depoimento, em que se funda o seu recurso.» - Ac. da RC de 17.12.2014, p. 6213/08.0TBLRA.C1 in dgsi.pt.

 Acresce que, como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

E, assim, querendo impor, em termos mais ou menos apriorísticos, a sua subjetiva convicção sobre a prova.

Porque, afinal, quem julga é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve ele efetivar uma concreta e discriminada análise objetiva, crítica, logica e racional da prova, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

 A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório  com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito permitida e que lhe é concedida.

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.

Sendo que, repete-se, a intolerabilidade destas tem de ser demonstrada pelo recorrente através de uma concreta e dilucidada análise hermenêutica de todo o acervo probatório produzido ou, ao menos, no qual se fundamentou a resposta - Neste sentido, cfr. Ac. da RC de  15.01.2013, p. 1796/10.7T2AVR.C1 in dgsi.pt.

6.2.3.

(…)

6.2.4.

Por conseguinte os factos a considerar são os seguintes:

1 – a presente acção tem carimbo de entrada no Tribunal Judicial de Mira com data de 13 de Setembro de 2006;

2 – a A. “M (…) S.A. – Conservas Alimentares” dedica-se à indústria e comercialização de conservas alimentares, designadamente de azeitonas de vários calibres e em diversos formatos, pickles e molhos alimentares;

3 – a Ré “Q (…).Com – Comércio e Indústria Química, S.A.” é uma empresa que se dedica maioritariamente à actividade comercial de produtos químicos para diversas aplicações, nomeadamente para a indústria alimentar;

4 – no exercício da sua actividade, em 9 de Março de 2006 a demandante adquiriu à Ré, e esta, por sua banda, vendeu-lhe, três contentores de 1.000 litros de ácido acético a 80%, que foram directamente entregues nas suas instalações no dia seguinte, 10 de Março;

5 – tal ácido destinava-se a ser incorporado no processo inicial de acondicionamento em depósitos (fermentadores) de azeitona, dos tipos “hojiblanca” e “cacereña”, com vista a ser posteriormente processada industrialmente, através de processo de oxidação, para comercialização no mercado interno e externo, através da marca “M (....)”;

6 – o produto apresentou-se com uma cor mais escura do que o habitual;

7 – os serviços de controlo de qualidade da demandante, utilizando os procedimentos de controlo habituais, efectuaram uma diluição em água a 10% no laboratório, constatando que a solução diluída se apresentava incolor e com cheiro intenso a ácido acético, sendo que o PH medido era de 2,5, valor considerado conforme, mediante os padrões internos de comparação, pelo que a A. passou a utilizar o ácido acético para o efeito referido no ponto 5 (dos presentes factos provados);

8 – foi na semana de 13 a 17 de Março de 2006 que a demandante começou a utilizar o ácido acético da Ré no seu processo produtivo supra descrito nos pontos 5 e 7 (ambos da presente factualidade assente);

9 – “Por razões de facilidade de enchimento do líquido de acondicionamento dos respectivos depósitos, a sua preparação (da salmoura) foi efectuada em tanques de 20.000 litros, seguida de transferência por bomba, para os aludidos depósitos de acondicionamento, seguindo a autora os parâmetros químicos deste líquido- (Salmoura) (pH, acidez livre e percentagem de sal).”

10 – no dia 9 de Abril de 2006, foram detectados pelos serviços técnicos da demandante alguns fermentadores contendo azeitona com sabor e odor a desinfectante, isto é, não correspondente ao sabor e odor habituais, o que se apurou por simples análise sensorial;

11 – em 12 de Abril de 2006 foi concluído pela A. que o sabor e odor referidos no ponto 10 (desta factualidade provada) foram resultado directo do ácido acético vendido pela Ré à A. e às instalações desta A. transportado por aquela Ré;

12 – ácido acético aquele que continha fenol;

13 – verificado o fenol contido no ácido como origem do problema, em 12 de Abril de 2006 procedeu a demandante à identificação dos depósitos afectados com o produto, o que ascendia a quantidade não concretamente apurada, embora superior a 336.000 quilogramas;

14 – no mesmo 12 de Abril de 2006, a A. contactou os serviços comerciais da demandada, através da sua técnica comercial, engenheira (…), que no dia seguinte, 13 de Abril, se deslocou às instalações da demandante e verificou que o ácido acético em questão era o que tinha sido fornecido pela Ré;

15 – da troca de informação efectuada resultou um entendimento consensual, entre os técnicos da A. e da Ré, vertido a escrito, a que atribuíram o título de “Resumo: Azeitona afectada com ácido acético defeituoso”, em que explicitavam, entre outros considerandos fácticos, que o odor e o sabor estranhos estavam ligados à utilização do ácido acético defeituoso fornecido pela demandada (documento de fls. 8 dos presentes autos, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido);

16 – o ácido acético fornecido sob contaminação de fenol impediu que a azeitona com ele tratada ficasse apta para o fim a que se destinava, isto é, o processamento industrial em conserva para posterior comercialização como azeitona de mesa;

17 – podendo até, se consumida em quantidades anormais, e caso a azeitona fosse introduzida no circuito comercial, provocar irreparáveis danos na saúde dos consumidores, uma vez que o fenol é um composto tóxico, que pode provocar danos no fígado, rins e sistema nervoso central, se ingerido 1 grama, inalado ou absorvido pela pele, podendo mesmo revelar-se fatal para o homem;

18 – pelo que a demandante não pôde pôr em circulação a azeitona tratada com o aludido ácido acético, sob pena de não assegurar a qualidade do produto que habitualmente garante;

19 – em 20 de Abril de 2006, a demandante, através de carta registada com aviso de recepção, procedeu à denúncia formal de defeitos, ao mesmo tempo que comunicava à demandada que havia isolado os fermentadores, iria proceder à análise do produto em laboratório independente devidamente credenciado, e juntava o resumo referido no ponto 15 (destes factos provados) (documentos de fls. 8 e 9 a 11 dos presentes autos, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido);

20 – a demandante liquidou às suas fornecedoras espanholas de matéria-prima e transporte de azeitona do tipo “hojiblanca” e “cacereña” tratada com o aludido ácido acético montante não concretamente apurado;

21 – a A. suportou custos com mão-de-obra, fornecimento de serviços externos e amortização para conservação da azeitona tratada com o mencionado ácido acético, em montante não concretamente apurado;

22 – com as restantes matérias subsidiárias destinadas à conservação da azeitona tratada com o referido ácido acético gastou a A. montante não concretamente apurado;

23 – suportou igualmente a A. custos financeiros, em montante não concretamente apurado, decorrentes do recurso à banca para efectuar pagamentos da campanha da azeitona;

24 – a perda da azeitona em causa, tratada com o aludido ácido acético fornecido pela demandada, originou à A. um prejuízo de montante não concretamente apurado;

25 – a reposição do stock de azeitona tratada com o ácido acético fornecido pela Ré, tendo em conta os aumentos no custo deste produto, impôs à A. um prejuízo de montante não concretamente apurado;

26 – com a análise efectuada no Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação, I.P., para aferir da origem da contaminação da azeitona, despendeu a demandante a quantia de € 544,50;

27 – a Ré adquiriu, em 8 de Fevereiro de 2006, à chamada “Q (…) , S.L.” o ácido acético a que se refere o certificado de qualidade cuja cópia consta de fls. 67 dos presentes autos (e que ora se dá por reproduzido no respectivo teor);

28 – a chamada forneceu à Ré um lote de ácido acético com o número de controlo interno 148006, que foi descarregado nas instalações da demandada no dia 9 de Fevereiro de 2006;

29 – o ácido acético foi transportado das instalações da chamada, a cargo desta, para as instalações da Ré, por camião cisterna que não havia anteriormente transportado fenóis;

30 – quando o produto foi recebido pela Ré foi também sujeito a aprovação, tendo-se detectado que se apresentava límpido e incolor e conforme com as características constantes do certificado emitido pela chamada;

31 – assim, aquando da recepção do produto pela Ré, certificou esta também  a sua boa qualidade conforme às respectivas especificações, procedendo à sua aprovação, conforme o documento de fls. 76 e 77 dos presentes autos (cujo teor se dá por inteiramente reproduzido);

32 – o ácido acético não tem na sua composição química normal fenol;

33 – no processo químico de obtenção normal do ácido acético não há fenóis;

34 – a produção normal do ácido acético não está ligada à produção de fenóis.

35- A ré não comercializa fenol.

6.3.

Terceira questão.

6.3.1.

O Sr. Juiz decidiu a causa com o seguinte, essencial, discurso argumentativo:

Desde logo, caberá perguntar se alguma das partes incumpriu (e, na afirmativa, por que modo) a obrigação a que estava vinculada contratualmente, pois que «o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor» (art. 798º C.C.), sendo no entanto de notar que «incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua» (art. 799º/n.º 1 C.C.).

…teremos de concluir – até porque já o vimos supra – estarmos perante uma situação de incumprimento contratual, na feição de cumprimento defeituoso, por parte da demandada, pois que não realizou ela a sua prestação nos termos que seriam expectáveis, ou seja (e perdoe-se a linearidade da expressão), não procedeu ao fornecimento de ácido acético… sem fenol.

E a presunção de culpa do cumprimento defeituoso não foi ilidido pela Ré, pois que não logrou ela demonstrar, por exemplo, serem os reservatórios onde armazena e transporta o ácido acético – e, designadamente, aqueles onde transportou o ácido acético por si vendido à A. – exclusivamente dedicados a tal produto e a sua limpeza sempre verificada antes do respectivo enchimento [cfr. quesito 32º) da base instrutória do despacho saneador, que mereceu a resposta de “não provado”].

Ou seja, se quanto à chamada (aliás, não directamente visada pela pretensão da A. no presente pleito) não se demonstrou uma actuação desconforme às leges artis na matéria (antes pelo contrário), o incumprimento da Ré deverá ter-se, à face da lei civil, por culposo.

Logo, incumbirá à demandada responder pelos danos por si causados à A..».

Já a recorrente entende que a ação deve improceder, mesmo que os factos como provados sejam os que o tribunal considerou.

Expendendo, liminarmente, que: «Da matéria considerada provada apenas resultam constatações efectuadas pelas partes (concretamente, pelos funcionários das partes) ou convicções ou entendimentos das partes.

Do facto das partes ou de funcionários seus terem constatado algum acontecimento não se extrai que este, objectivamente tenha ocorrido.

Por exemplo, não é pelo facto de os técnicos da Recorrida afirmarem que a azeitona tem um sabor e odor anormal que se pode considerar que a azeitona tem, efectivamente, um sabor e odor anormal.

E do facto de os técnicos da Recorrida terem concluído que tal odor e sabor anormal foi resultado do ácido acético fornecido pela Recorrente não resulta que, objectivamente, essa relação de causalidade se verifique.

As constatações que as partes fizeram ou não significam mais do que essas exactas e simples constatações.

Designadamente não podem significar que essas constatações correspondem à realidade.

Isto é, é certo que as constatações efectuadas pelas partes quanto ao sabor e odor das azeitonas e à pretensa relação de causa-efeito entre aqueles e o ácido acético – a terem existido – são uma prova relevante a ser ponderada na análise desses factos.

Mas dessas meras constatações não se extrai a exactidão dos factos.»

6.3.2.

Trata-se, como é evidente, de interpretação rebuscada e artificiosa.

As constatações referem-se a factos, e são, para além de outros meios probatórios, um meio de prova que convenceu sobre a veracidade/realidade de tais factos.

Não sendo assim se aceitar, nem, aliás, se atingindo o sentido e alcance, da asserção da recorrente de que «… as constatações efectuadas pelas partes quanto ao sabor e odor das azeitonas e à pretensa relação de causa-efeito entre aqueles e o ácido acético – a terem existido – são uma prova relevante a ser ponderada na análise desses factos.»

Não são prova para «análise de factos», são meios de prova que podem provar, ou não provar, os factos a que se reportam.

In casu, repete-se, e perante os depoimentos das testemunhas, vg,. funcionários da autora e da ré, o tribunal convenceu-se dos factos a que as suas perceções , atuações e diligencias se referiram.

Aliás, e assim sendo, a alusão/inclusão de tais «constatações» na pergunta ínsita no quesito, até podia – summo rigore, deveria - ter sido evitada.

Mas constando elas na pergunta, o que releva são os factos a que se reportam, que, assim devem ser dados como provados, para todos os efeitos, pois que o valor das «constatações» atém-se apenas à sua força probatória, a qual esgota a sua eficácia e relevância com as respostas dadas, e valendo os fatos a que as constatações se referem, autonomamente e de per se.

Assim sendo, atentemos.

6.3.3.

Estamos, como defende a recorrente, de caso de venda defeituosa.

Mostrando-se acertado o entendimento da recorrente quendo, sufragada em jurisprudência pertinente, afirma que: há cumprimento defeituoso da obrigação quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, por falta de qualidade ou de requisitos, ao objecto da obrigação a que estava adstrito; e que a venda de coisa defeituosa verifica-se quando, a prestação corresponde ao à que era pretendida mas a coisa entregue padece de vício.

Sendo que o defeito da coisa deve ser aferido em função do fim a que se destina.

Na verdade: «Podem verificar-se situações de cumprimento defeituoso da obrigação sem haver venda de coisa defeituosa, assim como se podem verificar situações em que há venda de coisa defeituosa não acompanhada de cumprimento defeituoso e outras ainda em que, mais do que um cumprimento defeituoso da obrigação, há falta de cumprimento da obrigação, importando tais situações reconduzíveis a cumprimento defeituoso da obrigação a responsabilização nos termos gerais (arts. 798.º e 799.º do CC)» - Ac. do STJ de . 13.02.2014, p. 1115/05.4TCGMR.G1.S1.

 Não obstante, certo é que o cumprimento defeituoso a se assume como uma espécie do incumprimento, lato sensu.

Do que decorre que a, prima facie, devem ser perspetivadas as normas previstas no artº 913º e segs. do CC , mas também, as normas gerais sobre o incumprimento – Ac. do STJ de 12.11.1998, CJ/STJ, 1998, 3º, 106.

Assim sendo.

Estatui o artº Artº 913º do CC:

1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.

Prescreve o artº 914º:

O comprador tem o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível,  a substituição dela;  mas esta obrigação não existe, se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece.

E consagra o artº 915º:

A indemnização prevista no artº 909º, também não é devida, se o vendedor se encontrava nas condições a que se refere a parte final do artigo anterior.

Da conjugação do disposto nestes preceitos com os artºs 905º, 908º a 910º, 914º e 915º, resulta que o comprador de coisa defeituosa goza do direito de exigir do vendedor:

- a anulação do contrato por erro ou dolo nos termos gerais do artº 251º (905º);

- a reparação da coisa, ou, se a coisa for fungível, a  sua substituição  (914º);

-  a redução do preço (911º);

- o direito a uma indemnização causada pelos vícios da coisa (915º).

Discute-se na  doutrina e jurisprudência se tais direitos  têm de ser exercidos sequencialmente, por uma determinada ordem ou precedência, ou se são diferenciados e autónomos podendo o comprador optar por qualquer um deles, singular ou até cumulativamente.

A posição do STJ encontra-se algo dividida.

Para uma corrente  no regime da  venda de coisa defeituosa há uma sequência lógica e subsidiária de momentos ou fases na tutela do comprador por força dos defeitos na coisa vendida – eliminação dos defeitos ou substituição da prestação, redução do preço ou resolução do contrato, apenas podendo o comprador reclamar a indemnização,  quer por violação quer do interesse contratual negativo, quer do interesse contratual positivo,  se não houver uma daquelas possibilidades alternativas aptas a satisfazer, numa perspectiva objectiva, os interesses do mesmoAcs do STJ de 25.10.2012, p. 3362/05.TBVCT.G1.S1 e de24.05.2012, p. 1288/08.4TBAGD.C1.S1.

Para outra, mais atual, «O acervo obrigacional do vendedor em situações de compra e venda de coisa defeituosa não está circunscrito ao que emana dos arts. 913º e segs. do CC. Tais preceitos não esgotam os meios de tutela que são reconhecidos ao comprador. Tratando-se de um contrato, é ainda possível extrair outros meios de tutela das regras gerais ligadas ao incumprimento ou ao cumprimento defeituoso das obrigações em geral.

… “podendo os defeitos ser eliminados … nada obsta a que subsistam outros prejuízos, como, por exemplo, os resultantes de a loja estar encerrada pelo período em que se procedeu à reparação dos defeitos … Em tais situações o comprador … tem o direito a exigir duas pretensões cumulativas”

…o comprador, juntamente com a reparação da coisa, pode pedir o ressarcimento do prejuízo que lhe tenha sido causado pela entrega da coisa viciada imputável ao vendedor, como dano moratório, visando a sua indemnização a reintegração do interesse positivo do comprador da tempestividade do adimplemento exacto do contrato» -  AC. do S. 03.04.2014, p. 106/07.5TBODM.LL.S1, com citações de  Romano Martinez Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, pág. 390 e Calvão da Silva Compra e Venda de Coisas Defeituosas, pág. 71.

Ou, noutra, nuance: «A venda de coisa defeituosa que se traduza igualmente em cumprimento defeituoso da obrigação, contratualmente assumida, a que estava adstrito o fornecedor de determinado produto – obrigação de venda de tecido com determinadas qualidades sem as quais não podia satisfazer o interesse do comprador – possibilita ao comprador pedir indemnização nos termos gerais dos arts. 798.º e 799.º do CC ou a indemnização que é devida no caso de anulação do contrato….» -  Ac. do STJ de 13.02.2014, p. 1115/05.4TCGMR.G1.S1.

Temos assim que, independentemente de se considerar se o comprador tem, ou não, de cumprir, obrigatoriamente, a sequência lógica dos direito conferidos e supra aludidos, uma ideia central e comum perpassa por todas as teses: se o comprador, por força dos defeitos da coisa, tiver prejuízos que não se compadeçam, vão para além, e não possam ser ressarcidos pela sua simples reparação, substituição ou indemnização pelo interesse negativo, tem direito a ser ressarcido dos mesmos.

Quanto a nós entendemos que tal sequência deve, em princípio, ser cumprida pelo comprador.

Mas se ele entender que  tem outros danos - vg. decorrentes dos defeitos da coisa  e que vão para além dela- que a reparação, substituição ou a indemnização pelo interesse negativo não são as bastantes para o tornar indemne, então poderá deitar mão de qualquer outro meio que entender adequado, ínsito dos princípios gerais do cumprimento defeituoso e não incumprimento –, vg. artºs 798º, 799º, 801º do CC - para consecutir tal ressarcimento.

Nesta hipótese não apenas tem direito à satisfação do interesse contratual negativo, ou seja, o prejuízo que o comprador não teria se a compra não tivesse sido celebrada, como também ao interesse contratual positivo, isto é, o lucro que o comprador teria obtido, não fossem os defeitos da coisa e o contrato fosse validamente cumprido desde o início – cfr. M. Batista Lopes, Do Contrato de Compra e Venda, 1971, p.165 e  Ac. da RL de 10-11-2005, p.8966/2005-6. in dgsi.pt,

Entendimento este que, aliás, aproxima o regime da venda de coisa da coisa cujo defeito surgiu  depois de vendida e antes da entrega e da coisa especificada, com o da venda de coisa cujo defeito surgiu antes de vendida (mas que depois o vai ser) e defeituosa genéricacfr. Artº 918º.

 E cuja discrepância ou diferenciação, decorrente da simples letra da lei, não se justifica atentos os valores em causa, bem como numa perspetiva de justiça comparativa – cfr. Ac. da RP de  09.12.2008, p.0825686.

Os prejuízos que vão para além dos ocorridos na coisa por virtude do defeito, colocam o problema da causalidade adequada entre o defeito e tais danos.

Ora como é consabido, e no que tange à problemática da causalidade adequada, importa ter presente  constituir jurisprudência pacífica do nosso mais Alto Tribunal que:

«Na concepção mais criteriosa da doutrina da causalidade adequada, para os casos em que a obrigação de indemnização procede de facto ilícito culposo, quer se trate de responsabilidade extracontratual, quer contratual - a «formulação negativa de  Enneccerus-Lehman», acolhida no artigo 563.º do Código Civil segundo a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça - o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto»

Ademais:

 «Esta doutrina … não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o resultado».

« …nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, pelo que admite:

-- não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não;

-- como ainda a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano» -Cfr. entre outros, os Acs. do STJ de 06.11.2002, 29.06.04, 20.10.2005, 07.04.2005 e 13-03-2008, 26.11.2009,   27.05.2010, ps. 02B1750, 03B4474, 05B2286, 05B294 e 08A369,  3178/03.8JVNF.P1.S1, 872/05.2TVLSB.L1.S1 in dgsi.pt, e A. Varela, das Obrigações em Geral, 2ª ed. ps. 746/756. 

Por outro lado urge ter em consideração que o comprador apenas se desonera das obrigações que tenha para com o comprador decorrentes do defeito da coisa /ou dos efeitos nocivos que ela possa provocar, se desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece.

Sendo tal ausência de culpa um elemento que obsta ao cumprimento da obrigação do vendedor, que, pela verificação do defeito, e não fora tal ausência, em princípio existia; ou seja, sendo um elemento de cariz excecional, a prova da sua verificação naturalmente que impende sobre ele – artº 342º nº 2 do CC; ou, caso seja necessário ir para as regras gerais do incumprimento, lato sensu, e considerando a presunção do artº 799º, nos termos do artº 350º nº2 – cfr. os Acs do STJ de 13.05.14, p. 2576/10.5TBTVD.S1 e de 13.05.2014, p. 16842/04.5TJPRT.P1.S1 in dgsi.pt e A. Varela, in CC Anotado, 2ª ed. p. 190.

 E: «Não basta como requisito de ausência de culpa do vendedor um desconhecimento genérico e superficial sobre a qualidade da coisa que se dispôs vender. Torna-se necessário que demonstre que a coisa que foi alienada cumpria, e viria a cumpriro fim a que se destinava.» - Ac. 13.05.2014, p. 16842/04.5TJPRT.P1.S1  cit.

6.3.4.

O caso vertente.

Clama a recorrente que a pretensão indemnizatória da recorrida deve ser indeferida porque não cumpriu o iter imposto pelos artºs 913º e segs, já que, primeiro, deveria impetrar a reparação ou substituição da coisa.

Não lhe assiste razão, como já dimana do supra expendido.

Na verdade a autora teve prejuízos decorrentes do uso do ácido inquinado, para além dos que, por força deste facto, emergiram do próprio ácido.

Pois que se provou:

 11 – em 12 de Abril de 2006 foi concluído pela A. que o sabor e odor referidos no ponto 10 (desta factualidade provada) foram resultado directo do ácido acético vendido pela Ré à A. e às instalações desta A. transportado por aquela Ré;

12 – ácido acético aquele que continha fenol.

Tais prejuízos são atendíveis, porque provocados pelo ácido, e considerando a teoria da causalidade adequada supra mencionada consagrada na nossa lei.

Por conseguinte, a simples reparação –  a qual, aliás, nem se alcança como  poderia ser efetivada -, ou substituição do ácido, não se vislumbram suficientes para ressarcir, cabal e totalmente, a autora.

Logo, a esta assiste jus a acionar o seu direito à indemnização por tais danos, quer ao abrigo do artº 915º, quer, se o regime deste não se revelar o bastante, no âmbito do regime geral do incumprimento defeituoso.

Assim, a aplicação deste regime pelo Sr. Juiz a quo, não merece qualquer censura.

E perante os factos provados não tem qualquer cabimento a argumentação da ré que a responsabilidade é da autora porque aplicou o ácido nas azeitonas  sem se ter certificado da sua qualidade.

A autora aplicou o ácido porque estava convencida que ele reunia os requisitos químicos adequados, como era suposto reunir.

E verificando uma cor diferente da habitual, encetou diligências no sentido de verificar se ele estava bom para o fim a que se destinava: a salmoura das azeitonas.

Assim provando-se que  os serviços da demandante: «utilizando os procedimentos de controlo habituais, efectuaram uma diluição em água a 10% no laboratório, constatando que a solução diluída se apresentava incolor e com cheiro intenso a ácido acético, sendo que o PH medido era de 2,5, valor considerado conforme, mediante os padrões internos de comparação…».

Constatando, perante tal procedimento, que o ácido se indiciava adequado para a finalidade que o pretendia adstringir, nada mais era exigível à autora, nomeadamente que conjeturasse que ele continha elementos químicos anormais e efetivasse exames adicionais, certamente de cariz científico, complexos, morosos e onerosos.

Tal  dever de cuidado incumbia à ré, a monatnte.

Até porque o ácido podia ser utilizado para diversas finalidades, nomeadamente a que a autora lhe atribuiu.

E a qual, certamente, ou com muita probabilidade, a ré sabia, ou era-lhe exigível que soubesse, ou, pelo menos, colocasse essa possibilidade. Afinal ela estava cônscia que a autora comercializa produtos comestíveis, vg. azeitonas, para o que as prepara e para cuja preparação o ácido podia ser usado, como o foi. E sendo que já nem era a primeira vez que a ré vendia tal acido à autora.

E cumpriu-o?

Estamos, agora, em sede de prova, ou não prova, da exceção supra referida por banda da ré.

Alega ela que os factos Atentos os factos provados 30 a 34 a Recorrente cumpriu todos os procedimentos de segurança e de controlo de qualidade que, razoavelmente, lhe podiam ser impostos,pelo que desconhecia, sem culpa, o pretenso defeito no ácido.

Os quais são:

30 – quando o produto foi recebido pela Ré foi também sujeito a aprovação, tendo-se detectado que se apresentava límpido e incolor e conforme com as características constantes do certificado emitido pela chamada;

31 – assim, aquando da recepção do produto pela Ré, certificou esta também  a sua boa qualidade conforme às respectivas especificações, procedendo à sua aprovação,;

32 – o ácido acético não tem na sua composição química normal fenol;

33 – no processo químico de obtenção normal do ácido acético não há fenóis;

34 – a produção normal do ácido acético não está ligada à produção de fenóis.

35- A ré não comercializa fenol.

Mas tais factos não bastam.

Importava era apurar,  em que momento, e com quem, o fenol apareceu, e, se apareceu com a ré, se ela fez o que lhe competia para evitar que fosse vendido assim inquinado.

Que apareceu com a ré é conclusão admissível.

Na verdade tudo indica que a ré recebeu o ácido em bom estado da B (....), e tudo indica que  ele não se deteriorou com a autora, pois que nenhum facto se apurou nesse sentido.

A autora limitou-se a gastar o ácido nos contentores fornecidos pela ré, nem sequer o tendo mudado para outro vasilhame.

 E, se se apurou que a ré não comercializa fenol, também não se provou - porque nem sequer foi alegado -, que a autora o comercialize, o que é lógico e plausível, atento o seu objeto social

Ademais, não obstante o ácido ter sido recebido pela ré com a sua tonalidade normal – límpido e incolor – quando foi rececionado pela autora já apresentava uma cor mais escura do que o habitual.

Ora esta anormal transformação não ocorreu enquanto o ácido esteve com a autora, porque esta logo a detetou quando recebeu o produto, mas antes quando esteve na disponibilidade da ré.

Sendo de notar que esta o recebeu em 09.02.2006 e só o vendeu à autora quase um mês depois.

Destarte, e por um simples raciocínio de exclusão de partes, a conclusão só pode ser a de que o problema surgiu no ácido quando este ainda estava na posse da ré.

Ora os factos 30 e 31 provam, no máximo, que o ácido, quando a ré o recebeu da B (....), estava em bom estado, pois que  deles se infere, aliás como é normal, porque, em princípio, suficiente e  menos trabalhoso, que a amostra tirada para exame proveio do ácido do camião.

Mas a ré devia ter o cuidado de examinar o ácido caso a caso, em cada contentor, no momento e quando os vende a cada cliente.

Pois que só assim se pode dizer que cumpre o seu dever de cuidado e o seu dever de garantir ao cliente a qualidade do produto.

Quando a ré analisa o ácido do camião está a defender-se a ela própria, mas não está, necessáriamente, a acautelar a defesa dos interesses dos seus clientes.

No lapso de tempo que medeia entre o recebimento e a venda, e que pode ser relevante, de várias/largas semanas, muita coisa pode acontecer, numa empresa aparentemente de média dimensão, com alguma complexidade burocrática e administrativa, e com muitas pessoas com acesso ao ácido.

Com a agravante de que recebe de volta vasilhame de clientes anteriores; o que, não obstante algumas declarações de princípio destes no sentido de não ser adstringido a outros produtos, nada garante que assim seja, como, aliás, a perícia dos autos supra aludida demonstrou; e existindo, pois, um sério risco de os contentores virem conspurcados com produtos que inquinem os outros que a ré neles coloca.

Ademais, a prova indicou que o ácido é acondicionado pela ré em contentores não selados.

Tudo isto clama que a conclusão pelo cumprimento  do dever de cuidado por banda da ré e a sua consequente isenção de culpa, apenas poderiam  emergir se ela provasse que efetivamente garante, no momento da entrega ao cliente, a genuinidade do ácido.

 O que, em princípio, e tanto quanto cremos, apenas pode ser consecutido por uma análise, de cariz o mais cientifico possível, ao produto, no momento do seu despacho para o cliente, ou, até, de preferência a para total e inequívoca inexistência de dúvida quanto à sua (ir)responsabilidade, no momento do seu  recebimento por parte deste, e, até, com a sua presença ou de alguém que o represente.

Já todos os restantes factos são, só por si, pouco mais do que irrelevantes ou inócuos para o efeito que nos ocupa.

Efetivamente, o que interessa não é saber se, em tese, a composição do ácido acético não tem fenol, mas se neste caso tinha.

E pouco interessa se a ré comercializa, ou não comercializa, fenol. Pode não comercializar formalmente, mas, na prática tê-lo, quanto mais não seja, pontualmente, por um qualquer motivo.

Aliás, e como se viu, se a ré não comercializa fenol, muito menos é suposto a autora comercializá-lo.

Finalmente, a contaminação por fenol – ou por qualquer outro agente numa outra qualquer situação - pode não advir por ação direta da ré.

E até estamos convencidos que assim tenha sido, tendo, muito provavelmente, o problema surgiu por virtude da existência de fenol em contentores recebidos pela ré de cliente(s), que ela não lavou.

Mas mesmo assim tendo sido, a responsabilidade da ré apresenta-se, como se viu e nos termos sobreditos, ainda convocável.

Improcede o recurso.

7.

Sumariando.

I - Um produto químico -  ácido acético -  porque reúne caraterísticas muito específicas, p.ex.,  a de a sua concentração ser de 80%, assume o jaez de um produto normalizado e, como tal, conhecido no mercado, pelo que a sua compra e venda, se de cariz comercial, deve ter-se por reportada a coisa designada por padrão, e, assim, subsumível no disposto no artº 469º do C. Comercial.

II - O prazo de oito dias concedido ao comprador de venda comercial, previsto no artº 471º do C Com, para denúncia de defeito, apenas se conta desde a sua entrega se o defeito for aparente e detetável pelos sentidos; senão, conta-se a partir da data da sua descoberta, razoável e diligentemente considerada; e sendo este o caso , em termos de normalidade, do referido ácido.

III - Assim, se a A., detetando cor não usual no ácido, efetiva procedimento habitual para apurar da existência, ou não, de defeito, se a analise aponta para a sua genuinidade, e se a ré na contestação não aduz, e depois prova, que à autora eram exigíveis  outros testes mais fiáveis, tal prazo apenas começa a correr da data em que a autora conclui que os estragos têm origem nos defeitos do produto, seja: 12.04.2006, pelo que, tendo a denuncia sido efetivada em 20.04, ela assume-se tempestiva.

IV - Indicando a prova que a ré, negociante de produtos químicos, recebeu acido acético com as caraterísticas próprias, mas que: o acondicionou em contentores não selados, que assim os enviou para centros de distribuição que depois os entregam aos clientes, que estes lhes devolvem muitos contentores, que a ré recebeu alguns em condições fisicamente deficientes e que em dois estavam resíduos alheios pois não foram por ela lavados, como deviam, é possível, em concatenação com outros factos apurados, dar como provado, dentro da margem de álea em direito permitida, que, tendo ele sido usado pela autora na fermentação de azeitonas, foi a causa do estrago destas, por nele existir fenol, químico potencialmente venenoso.

V - Na venda defeituosa o comprador, tem, em princípio,  de ser indemnizado no âmbito do respetivo regime, pedindo, sequencialmente, a reparação, substituição da coisa, ou indemnização pelo interesse negativo: artºs 913º a 915º do CC; mas se estas vias  não forem suficientes ao seu completo ressarcimento, porque o defeito provocou outros danos, tem ele direito a ser totalmente indemnizado,  nos termos gerais do incumprimento defeituoso.

VI - O ter-se apurado que a ré, vendedora, verificou a genuinidade do ácido no momento em que o recebeu do fornecedor, não basta para convencer, como é seu ónus, de que desconhecia, sem culpa, o vício do mesmo; antes lhe sendo exigível -máxime se ela o acondiciona em  vasilhame não hermético e selado, retornado de anteriores clientes que nele podem deixar restos de outros produtos químicos - que o analise ao menos no momento  em que o despachou ao cliente.

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela ré.

Coimbra, 2014.04.21

Carlos Moreira ( Relator )

Anabela Luna de Carvalho

João Moreira do Carmo