Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
493/11.0TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CORRECÇÃO DE LAPSO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONCLUSÕES DA MOTIVAÇÃO DO RECURSO
APERFEIÇOAMENTO BURLA
Data do Acordão: 01/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA LOCAL DE POMBAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 380.º, N.º 1, 410, N.º 2, AL., C), E 412.º, N.ºS 2 E 3, DO CPP; ARTS. 217.º E 218.º DO CP
Sumário: I - Seria ilícito corrigir a sentença, ao abrigo do art.380.º, n.º 1 do CPP, porque dessa pretendida correção resultaria uma modificação essencial do julgado.

II - O erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto que, como todos os outros vícios do n.º 2 do art.410.º do C.P.P., prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos juntos aos autos.

III - O erro notório na apreciação da prova tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média, e nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta face à prova produzida em audiência de julgamento.

IV - O vício do erro notório na apreciação da prova, que resulta apenas do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, não se confunde com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta face à prova produzida em audiência de julgamento, ou seja, toda a prova documental constantes dos autos, bem como a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, ou mais restritivamente o que consta da motivação do recurso.

V - Se a recorrente entende que havia uma desconformidade entre a decisão de facto proferida naquelas alíneas e) a j) e aquela que entende ser a correta face à prova produzida em audiência de julgamento, então deveria ter interposto recurso do douto acórdão, impugnando a matéria de facto nos termos do art.412.º, n.ºs 3 e 4 do C.P.P., cumprindo os respetivos ónus.

VI - Se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos n.ºs 3 e 4 do art.412.º do C.P.P., não há lugar ao convite à correção das conclusões; efetivamente, o conteúdo da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correção das conclusões da motivação.

VII - O Tribunal da Relação só pode e deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.

VIII - A burla é um delito de execução vinculada, pressupondo a utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar atos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.

IX - A sua consumação passa por duplo nexo de imputação objetivo: entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património, próprio ou alheio e, depois, entre estes e a verificação do prejuízo.

X - Não tendo resultado provado que o arguido, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, enganou de forma astuciosa a recorrente com a entrega á mesma das letras de câmbio em causa; que em resultado de tal conduta astuciosa existiu um prejuízo para a recorrente; e que agiu com conhecimento e vontade de realização daqueles factos e consciência da censurabilidade da sua conduta, não se mostram preenchidos os elementos constitutivos do crime de burla.

Decisão Texto Integral:



Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

                          

      Relatório

Pela Comarca de Leiria – Instância Local de Pombal, Secção Criminal – J2, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido

             A... , casado, gerente, nascido em 26.03.1957, na freguesia de (...) , concelho de Anadia, filho de (...) e de (...) , residente na Rua de (...) , Pombal,

imputando-se-lhe a prática de factos pelos quais teria cometido em autoria material e na forma consumada, de treze crimes de falsificação ou contrafação de documento, previsto e punido pelos artigos 256º, nº 1, al. c), d), e e) e nº 3, todos do Código Penal, e em autoria material e na forma continuada, e de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217º e 218º, nº 2, al. a), por referência ao artigo 202º, al. b) do Código Penal.

A assistente “ B... , Lda” deduziu pedido de indemnização civil contra o demandado civil A... , requerendo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de €25.018,59, a título de danos patrimoniais e danos não patrimoniais.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 21 de dezembro de 2015, decidiu:

- Condenar o arguido A... pela prática de treze crimes de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, al. c), d), e e) e nº 3, todos do Código Penal, cada um, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, o que perfaz o montante total de € 1280,00;

- Condenar o arguido A... na pena única de 700 dias de multa, à taxa diária de €8,00, o que perfaz o montante total de € 5.600 (cinco mil e seiscentos euros);

- Absolver o arguido A... da prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217º e 218, nº 2, al. a), por referência ao artigo 202º, al. b) do Código Penal, de que se encontrava acusado; e

- Julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido por “ B... , Lda” e, em consequência, absolver o demandado civil A... do montante peticionado.

          Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso a assistente “ B... , Lda” concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1°. Por sentença proferida no passado dia 21 de Dezembro de 2015, foi o Arguido A... , condenado pela prática de treze crimes de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.°, n.º 1, al. c), d) e e) e n.º 3, todos do Código Penal, cada um, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €8 (oito euros), o que perfaz o montante total de €1280 (mil duzentos e oitenta euros).

2°. Foi assim, o arguido condenado na pena única de 700 (setecentos) dias de multa, à taxa diária de 8 (oito euros), o que perfaz o montante total de €5.600 (cinco mil e seiscentos euros).

3º. Contudo, o arguido A... foi absolvido de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217.° e 218.°, n.° 2, al a) por referência ao artigo 202.º, al b) do Código Penal, de que se encontrava acusado.

4º. Por outro lado, foi julgado totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido por “ B... , Lda.” e em consequência absolvido o demandado civil A... do montante peticionado.

5º. O Arguido foi ainda condenado nas custas do processo, com taxa de justiça que se fixa em 3UC's, e demais encargos do processo,

6º. Tendo sido o assistente, ora Recorrente “ B... , Lda.”, condenado com taxa de justiça que se fixa em 1 UC, tendo em consideração o montante já pago. Foi ainda o demandante civil ora Recorrente, condenado nas custas cíveis.

7º. Ora, a Sentença ora recorrida deverá, salvo melhor opinião ser objecto de correcção, nos termos do artigo 380.º do Código de Processo Penal.

8º. Com efeito, no ponto 10. dos factos provados, são mencionadas 13 (treze) letras, já no ponto 12. dos factos provados, apenas são descritas 9 (nove) letras, pelo estão em falta 3 letras.

9º. Na verdade, o ponto 12., não refere as seguintes letras, a letra de câmbio com o n° 500.792.887.064.429.881, no valor de €9.750,00, datada de 17/12/2008 com data de vencimento em 20/03/2009; a letra de câmbio com o n° 500.792.887.064.429.989, no valor de €12.380,00, datada de 17/12/2008 com data de vencimento em 5/04/2009 e a letra de câmbio com o n.º 500.792.887.109.904.087, no valor de €9.000,00 foi apresentada a desconto no Banco Banif, tendo o valor correspondente à mesma sido entregue por C... ao arguido, sendo que por não ter sido paga por D... , até à data de vencimento, foi devolvida à “ B... , Lda.”, sacador, tendo esta liquidado o seu valor na íntegra, ou seja €9.000,00 (vide fls. 20 dos autos).

10°. Nestes termos, deverão estas letras ser inseridas no ponto 12. Dos factos provados.

11°. Tais letras, mormente a último n.°500.792.887.109.904.087, reveste uma crucial importância já que é uma das quais a ora Recorrente reclama o pagamento em sede de Pedido de Indemnização Civil.

12°. Perante o exposto e não havendo motivo para que tais letras não integrem o ponto 12.° dos factos provados, tais como todas as outras, requer-se que a Sentença seja corrigida passando a integrar tais letras conforme supra referido.

13°. Por outro lado, o Arguido vinha acusado pela prática de um crime de burla qualificada previsto e punido pelo artigo 217.° e 218.°, n.° 2, al. a) por referência ao artigo 202.°, al. b) do Código Penal.

14°. Contudo, concluiu o Tribunal a quo concluiu que não podia deixar de ser absolvido pela prática de crime de burla qualificada, de que se encontrava acusado.

15°. Ora, a ora Recorrente não se pode conformar com tal decisão.

16°. Pois, se de facto a ora Recorrente aceitou descontar as letras, e entregar o dinheiro ao Arguido, apenas e tão-só o fez para o ajudar, já que C... e o arguido são irmãos e á data dos factos tinham um bom entendimento,

17°. Sendo vontade e até obrigação moral - segundo acreditava C... - auxiliar o seu irmão, e por conseguinte as empresas do mesmo,

18°. Contudo, a ora Recorrente, na pessoa do seu sócio-gerente C... , desconhecia por completo que as letras de câmbio não tinham sido emitidas pelo aceitante,

19°. Mas que continham, na verdade, assinaturas falsificadas, assinaturas essas apostas pelo punho do Arguido, conforme resultou provado.

20°. Ignorando igualmente o aceitante que o seu nome e a sua assinatura eram utilizados pelo Arguido em proveito próprio.

21º. O ora Recorrente sempre acreditou que existiam de facto negócios/transacções comerciais entre o Arguido (e as empresas do mesmo) e o D... , o que justificava a existência das letras.

22°. Pois o Arguido comercializa redes de pesca e era do conhecimento de C... que D... é pescador.

23°. Aliás, consta do ponto 6. dos factos provados que o Arguido “entregou ao seu irmão C... diversas letras de câmbio sacadas por, alegados, clientes seus. ”

24°. Por conseguinte, a ora Recorrente sempre acreditou que se, por ventura, o irmão, ora Arguido, não lhe pagasse os valores titulados pelas letras, poderia reclamar tal valor junto de D... , por ser o devedor originário.

25°. Ou seja, a ora Recorrente apenas assumiria a posição do Arguido no negócio com D... , através de uma cessão de posição contratual, podendo cobrar a dívida, titulada pelas letras, directamente ao devedor, neste caso a D... .

26°. Pois, nesse contexto, tendo de facto o arguido incumprido com o pagamento de três letras, a ora Recorrente, interpelou por carta registada com aviso de recepção D... , para pagamento das quantias em divida, conforme documento n.° 5 junto com a queixa-crime.

27°. Apenas após ter sido confrontado com o facto de D... ignorar a existência de tais letras, e, por conseguinte, vendo-se a ora Recorrente impossibilitada de exigir o pagamento das quantias em divida ao pescador,

28°. Não teve a ora Recorrente outra alternativa, se não dar entrada da queixa-crime que deu origem aos presentes autos contra incertos, por desconhecer á data quem seria o autor da falsificação de assinaturas,

29º. E posteriormente deduzir Pedido de Indemnização Civil contra A... , entretanto constituído Arguido, no qual reclamou o pagamento dos danos patrimoniais bem como dos danos não patrimoniais.

30º. Ora a verdade é que o Arguido levou a ora Recorrente a acreditar que tinha letras de câmbio assinadas por D... .

31°. Pois, caso fosse do conhecimento da Recorrente que tais letras continham assinaturas falsificadas, nunca teria acedido em descontar tais letras de câmbio.

32°. De salientar, que o sócio-gerente da recorrente contrariamente ao Arguido, seu irmão, sempre gozou de bom nome junto da banca e nunca foi condenado por qualquer crime, contrariamente ao Arguido que conta já com três condenações por crimes de abuso de confiança (vide ponto 23 dos factos provados).

33°. Por outro lado, o Arguido alegando a falta de crédito junto da banca (vide factos provados sob os n.º 6, 9 e 19), bem como a existência de dificuldades financeiras, solicitou ao seu irmão C... , sócio-gerente da ora Recorrente que descontasse tais letras, tendo posteriormente os respectivos valores correspondentes às mesmas sido entregue por C... ao arguido.

34°. Entre a Recorrente e as empresas do Arguido existiam transacções comerciais, (vide factos provado sob o n.º 16), conforme resultou das declarações do Arguido e de C... , pelo que estas quantias entravam na conta corrente existente entre as empresas, (ponto dos 20 dos factos provados).

35°. Nestes termos, dos €68.530,00 (sessenta e oito mil quinhentos e trinta euros) titulados pelas letras e entregues ao Arguido, a Assistente ora Recorrente ainda não foi ressarcida das quantias despendidas com as letras descritas em 34.° do presente articulado, encontrando-se ainda em dívida a quantia de €16.500,00 (dezasseis mil e quinhentos euros), a título de capital, quantia da qual deverá ser ressarcida, nos termos do artigo 562.° do Código Civil.

36°. Assim, ainda que tenha havido uma compensação entre as empresas, esta apenas foi parcial, estando o Arguido e a sua empresa ainda em divida para com a ora Recorrente nos montantes melhor descritos no pedido de indemnização civil.

37°. - Perante o supra explanado, estão preenchidos os requisitos da prática do crime de burla já que:

a)- Houve intenção do agente de obter para si enriquecimento ilegítimo, pois o sócio gerente da recorrente entregava-lhe o dinheiro que recebia das entidades bancárias quando procedia aos descontos das letras,

b)- Logrou que o sócio gerente acedesse a descontar tais letras por desconhecer que estas continham assinaturas falsificadas e por ter alegada dificuldade na obtenção do crédito bancário, pelo que se verifica o erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;

c)- Por fim, determinou a ora recorrente, na pessoa do seu sócio gerente à prática de actos que lhe causaram prejuízo patrimonial, já que ainda hoje não foi ressarcido das quantias constantes do pedido de indemnização civil.

38°. Nestes termos e salvo melhor opinião, estão preenchidos os requisitos do crime de burla qualificada,

39°. Pelo que Sentença na parte em que decidiu pela absolvição do Arguido da prática do crime de burla qualificada, deverá ser substituída por decisão condenatória, sendo que os factos constantes dos factos não provados de e) a j) deverão ser eliminados de tal rol e passar a constar dos factos dados como provados.

40°. Da Sentença proferida pelo Tribunal a quo, consta que “ Quanto aos factos provados, como acima já se explanou, não se logrou convencimento em audiência de julgamento que C... não conhecesse o modo de procedimento do arguido A... . ”

41°. “Acresce que não resultou demonstrado que a conduta do arguido tivesse resultado para a “ B... ” todos aqueles danos invocados em sede de pedido de indemnização civil, como já se explicou.”

42°. Ora, o Recorrente, não poderá concordar com tal decisão, tanto mais que, salvo o devido respeito, carece de qualquer fundamento.

43°. Pelo contrário, os factos dados como não provados, sob as alíneas e) a j) deverão ser considerados factos provados, tendo em conta toda a prova documental constantes dos autos, bem como a prova testemunhal produzida em sede de Audiência de Julgamento.

44°. Existindo, salvo o devido respeito, erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410, n.° 2, alínea c) do CPP.

45°. O Tribunal a quo decidiu no sentido de “nenhum artifício enganoso se logrou demonstrar por parte do arguido em relação a C...

46°. Ora tal não corresponde à verdade, já que, o sócio gerente da recorrente C... , acedeu em descontar as letras,

47°. Contudo desconhecia, por completo que nessas mesmas letras estivessem apostas assinaturas falsificadas.

48°. Ora, os danos invocados pela ora Recorrente e reclamados em sede de Pedido de Indemnização Civil decorrem da actuação do Arguido, mormente na falsificação das assinaturas, já que a B... viu-se impossibilitada de proceder à cobrança das quantias junto do aceitante D...

49°. Tendo, em alternativa apresentado a queixa-crime que deu origem aos presentes autos. Pois, conforme resulta provado do ponto 12. que conforme já supra referido deverá ser aditado com as letras em falta, foi a “ B... , Lda.” que liquidou o valor das letras, ora na íntegra, ora parcialmente.

50°. Se é verdade que alguns dos montantes foram pagos pelo Arguido, através do encontro de contas/compensação de créditos, decorrentes das transacções comerciais entre as empresas,

51°. Não menos verdade é, que se encontra ainda por pagar o valor de €16.500,00 (dezasseis mil e quinhentos euros) a título de capital, conforme melhor consta do Pedido de Indemnização Civil apresentado pela ora Recorrente, bem como outras despesas daí decorrentes.

52°. Por outro lado, perante a motivação constante da Sentença, sempre se dirá que caso estivesse a faltar à verdade, então seria mais plausível a ora Recorrente reclamar todos os montantes por ela entregues ao Arguido, num total de €68.530,00 (sessenta e oito mil quinhentos e trinta euros) e não “apenas” €16.500,00 (dezasseis mil e quinhentos euros).

53°. Nestes termos e perante o supra exposto, a Sentença na parte em que decidiu pela improcedência do pedido de indemnização civil deduzido pela Recorrente, deverá ser revogada e substituída por outra que condene o Arguido no pagamento dos valores peticionados em sede de pedido de indemnização civil, já que de facto a Recorrente sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes dos factos ilícitos praticados pelo Arguido.

Nestes termos, e salvo melhor opinião, deverá ser corrigida a Sentença nos termos requeridos bem como deverá ser revogada a douta sentença na parte absolutória e substituída por outra na qual seja condenado o Arguido pela prática do crime de burla qualificado de que vem acusado e ainda na procedência do pedido de indemnização civil deduzido pela Recorrente. Pois só assim será feita Justiça.

          Igualmente inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido A... , concluindo a sua motivação do modo seguinte:

I- O arguido considera incorrectamente julgados os pontos de facto, constantes dos n.ºs 10, 13 e 14 da matéria dada como provada, pois impõem decisão diversa as concretas provas conclamadas em seu respaldo.

II- Ancora a douta sentença o julgamento da matéria de facto, ao dar como provados os factos acima referidos, em vários elementos, acolhendo uns sem reserva, (os referidos adiante em A e B) e desvalorizando, mais, ignorando outros (os referidos em C).

            A) Em primeiro lugar, os resultados dos dois exames periciais realizados, um aos autógrafos do arguido/recorrente, e o outro aos autógrafos da testemunha I...

III- O resultado da perícia à letra do arguido não é concludente, dando o grau mais baixo de “provável” que por si só não pode justificar a imputada autoria.

IV- Por outro lado, a perícia à letra da testemunha I... incidiu sobre autógrafos colhidos em condições substancialmente diversas das por si adoptadas na assinatura das letras, pelo que não tem virtualidade probatória.

V- Efectivamente, este assumiu que falsificava as letras escrevendo em decalque de assinaturas autógrafas do D... através de um vidro de janela. Ora tendo-lhe sido colhidos os autógrafos sem possibilidade de os decalcar, pois foram feitos contra uma parede, não poderiam ter outro resultado que o obtido na perícia - ou seja, não provável.

            B) Em segundo lugar, os depoimentos de D... e H... .

VI- Quanto ao depoimento do ofendido D... , apenas se reporta ele a uma assunção de responsabilidade pelos prejuízos, e parcial preenchimento, e não à autoria das assinaturas nas letras.

VII- Declara, aliás expressamente, não saber se foi o arguido que as assinou (agora se foi ele que assinou ou se não, eu não sei) 

VIII-    Mais, diz que desde os anos oitenta, noventa, que não comprava nada às empresas a que o arguido estava ligado, tendo comprado redes à empresa da testemunha I... e feito também um jogo de letras de favor durante os anos de 2000 a 2005.

IX- Quanto ao depoimento da testemunha H... , que reconhece estar incompatibilizada com o arguido A... , e relata apenas que: “Vê lá que o C... está a pensar fazer queixa de mim pelas assinaturas das letras.. ” e que lhe teria ouvido ainda dizer que “depois no fim vamos a ver quem falsificava mesmo.

X- Relatar isto a H... como sendo o que lhe foi dito pelo arguido recorrente é o oposto de qualquer confissão que ela H... lhe pretende assacar (o que foi aliás posto em relevo no interrogatório tão argutamente conduzido pelo digníssimo procurador).

XI- Ter retirado a conclusão duma eventual confissão do arguido das frases (e apesar delas) atrás referidas, retira qualquer credibilidade à testemunha, já de si confessa inimiga do arguido, com quem está incompatibilizada.

             C) E desvalorizando a douta sentença os depoimentos prestados em sentido contrário, a saber o do próprio arguido A... , e de I... .

XII- No depoimento do arguido A... , que referiu ser I... que lhe fazia chegar as letras, já assinadas, letras essas que o arguido sempre negou ter assinado (depoimento por aquele corroborado, de forma categórica.

XIII- O arguido estava convicto de que as letras que lhe eram trazidas pelo I... haviam sido assinadas pelo D... .

XIV-    O depoimento de I... , que assume a assinatura das letras, assim confessando ser ele o autor da falsificação “ Sim, eu assinava as letras e trazia e entregava ao sr A... ”. e adiante “era eu que assinava, com a assinatura do D... .”

XV- Ora, indo também ao encontro do referido por D... , quem tinha acesso a letras aceites pelo ofendido era a testemunha I... , que assim poderia utilizar os originais para reproduzir a assinatura das letras.

XVI-    Por outro lado, ele confessou ainda que, no decurso de um giro de letras de favor com o ofendido D... , já havia em tempos feito a assinatura deste.

XVII-   E assim o ter recorrido a expediente semelhante agora, sendo o seu interesse em proporcionar letras de favor ao arguido resulta da difícil situação em que se encontrava a K... , Lda, para quem trabalhava. 

XVIII- Aliás, ter a testemunha I... assumido e confessado a prática da falsificação, pela qual pode, e certamente virá a responder, é indício seguro de que fala verdade, tendo resolvido evitar que outrem, inocente, respondesse e condenado fosse pelo acto ou actos por si praticados.

XIX-    Pelo que não deveriam ter sido dados como provados os factos constantes dos pontos 10, 13 e 14.

XX- A douta sentença dá como provados tais factos com base nos depoimentos de H... , que, inimiga do arguido, refere uma confissão - inexistente -, no depoimento do ofendido D... , que diz não saber se foi o arguido que assinou as letras,

XXI-    E nos resultados das perícias, de provável para um, e pouco provável, para outro - sendo que nesta última os autógrafos foram recolhidos de forma diferente.

XXII-   Ainda que se não valorasse o depoimento da testemunha I... , que assume a autoria da assinatura nas letras com a assinatura do nome do D... , já seria pouco para a prova dos factos dos n.ºs 10, 13 e 14.

XXIII- Mas dar como provados tais factos, com tão exígua e frágil prova, que actua até em sentido contrário, no sentido de que deveria ter sido dado como provado que o autor das assinaturas foi o I... constitui (com o devido respeito, que muito é, pelo tribunal a quo) um enorme, clamoroso erro na apreciação da prova.

XXIV- E conduz à injusta condenação de um inocente, sem qualquer base fáctica segura quando, ao invés, as provas apontam em sentido contrário.

Pelo que, e em consequência, deverá a douta sentença ser revogada, dando- se como não provados os factos constantes dos pontos 10, 13 e 14, e decretada a absolvição do arguido.

O Ministério Público na Comarca de Leiria, Instância Local de Pombal, respondeu ao recurso interposto pela assistente “ B... , Lda.” e pelo arguido A... , pugnando pelo não provimento dos recursos e manutenção integral da sentença recorrida.

            O assistente D... respondeu ao recurso interposto pelo arguido concluindo pela sua improcedência, embora pugnando pela correção da douta sentença, nos termos do art.380.º do C.P.P., de modo que no ponto n.º 12 dos factos dados como provados passem a ser referidas mais 3 letras de câmbio.

           

            O arguido A... respondeu por sua vez ao recurso interposto pela assistente “ B... , Lda” pugnando pela manutenção da sua absolvição do crime de burla qualificada e do pedido de indemnização cível que esta assistente contra si deduziu.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que os recursos não merecem provimento.

Notificado deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, os recorrentes nada disseram.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respetiva motivação constantes da sentença recorrida é a seguinte:

            Factos provados

1. A sociedade “ K... , Lda.”, portadora do NIPC (...) , com sede na (...) , Pombal, tinha como objecto social a representação e comércio por grosso e artigos têxteis, máquinas, produtos alimentares e outros.

2. E... , mulher do arguido, exerceu a gerência de direito daquela sociedade, desde 8 de Outubro de 2009 até à presente data.

3. O arguido, por sua vez, exerceu a gerência de facto de tal sociedade nos anos de 2008 a 2011.

4. No referido período temporal, a “ K... , Lda.” manteve estreitas relações comerciais de compra e venda de mercadorias com a sociedade “ B... , Lda.”, portadora do NIPC (...) , a qual tinha sede na Rua (...) , Pombal, e como objecto social a comercialização, importação, exportação e produção de fios, cordoarias, redes e outros aprestos marítimos.

5. C... , irmão do arguido, exerceu as funções de gerente de facto e de direito da “ B... , Lda.” desde a sua constituição no ano de 2006 até à presente data.

6. Uma vez que a sociedade “K... Lda.” apresentava dificuldades na obtenção de crédito bancário, o arguido, por forma a proceder ao pagamento das suas dívidas, entregou ao seu irmão C... diversas letras de câmbio sacadas por, alegados, clientes seus.

7. Com efeito, em datas concretamente não apuradas, mas anteriores a 17.12.2008, A... entregou a C... diversas letras, sacadas por D... , a fim de que a sociedade “ B... , Lda.” as apresentasse no banco e as descontasse e, de seguida, lhe entregasse os valores naquelas titulados.

8. Os referidos títulos de crédito eram entregues pelo arguido C... , umas vezes já totalmente preenchidos, outras vezes apenas com a assinatura do aceitante. Neste caso, o arguido dava instruções a C... sobre a forma como as mesmas deveriam ser preenchidas, designadamente no que concerne aos campos destinados ao valor e à data de vencimento.

9. Em tais letras, no espaço destinado a identificar o “sacador” nada constava, sendo posteriormente preenchido por C... com os elementos identificativos da sociedade “ B... , Lda.”, uma vez que se fossem sacadas directamente pela sociedade “ K... , Lda.” e formalmente endossadas, a entidade bancária respectiva não as descontaria.

10. Assim, em datas concretamente não apuradas, mas situadas entre os dias 17.12.2008 e 08.03.2011, o arguido, em local também não apurado, apôs nas letras infra discriminadas, pelo seu próprio punho, a assinatura do ofendido, D... , no local destinado ao aceitante e nas quais figurava como sacador a sociedade “ B... , Lda.”.

 Com efeito:

- datada de 17.12.2008, com data de vencimento em 20.03.2009, no valor de € 9.750,00 a letra com o número de série 500.792.887.064.429.881 (fls. 175);

- datada de 17.12.2008, com data de vencimento em 15.04.2009, no valor de € 12.380,00 a letra com o número de série 500.792.887.064.429.989 (fls. 176);

- datada de 20.06.2009, com data de vencimento em 20.09.2009, no valor de € 4.800,00 a letra com o número de série 500.792.887.087.779.358, a qual reformava uma letra anterior, no valor de € 7.300, com vencimento em 20.06.2009 (fls. 16);

- datada de 22.06.2009, com data de vencimento em 25.09.2009, no valor de € 10.000,00 a letra com o número de série 500.792.887.087.779.323, preenchida por C... , com excepção dos dizeres no campo “outras referências” (conforme relatório de exame pericial de fls. 322 a 330) – original encontra-se no saco de prova série C com o nº 062508 cuja cópia se encontra a fls. 106;

- datada de 25.09.2009, com data de vencimento em 25.12.2009, no valor de € 7.500,00 a letra com o número de série 500.792.887.087.768.062, a qual reformava a letra com o nº de série 500.792.887.087.779.323, no valor de € 10.000,00, com data de vencimento a 25.09.2009, preenchida por C... nos campos “nome” e “morada do sacado” e preenchida pelo arguido nos restantes campos com excepção dos dizeres “saque nº”, “outras referências” e “contribuinte sacado” (conforme relatório de exame pericial de fls. 322 a 330) - original encontra-se no saco de prova série C, com o nº 062508, cuja cópia se encontra a fls. 108;

- datada de 15.10.2009, com data de vencimento em 17.12.2009, no valor de € 3.100,00 a letra com o número de série 500.792.887.087.767.732, a qual reformava uma letra anterior, no valor de € 6.200,00, com vencimento a 15.09.2009, preenchida por C... com excepção dos dizeres no campo “outras referências” (conforme relatório de exame pericial de fls. 322 a 330) – original encontra-se no saco de prova série C, com o nº 062508 e cópia a fls. 107;

- datada de 24.12.2009, com data de vencimento em 25.03.2010, no valor de € 5.000,00 a letra com o número de série 500.792.887.087.767.724, a qual reformava a letra com o nº de série 500.792.887.087.768.062, no valor de € 7.500,00, com data de vencimento em 25.12.2009, preenchida por C... com excepção dos dizeres no campo “outras referências”, conforme relatório de exame pericial de fls. 322 a 330, cujo original se encontra no saco de prova série C, com o nº 062508 e cuja cópia se encontra a fls. 109;

- datada de 19.03.2010, com data de vencimento em 20.06.2010, no valor de € 16.000,00 a letra com o número de série 500.792.887.084.811.480, preenchida por C... com excepção dos dizeres no campo “Outras Referências” (conforme relatório de exame pericial de fls. 322 a 330) – original encontra-se no saco de prova série C, com o nº 062508 e cópia a fls. 110;

- datada de 20.06.2010, com data de vencimento em 20.09.2010, no valor de € 12.000,00 a letra com o número de série 500.792.887.084.811.617, a qual reformava a letra com o nº de série 500.792.887.084.811.480, no valor de € 16.000,00, com data de vencimento a 20.06.2010, preenchida por C... com excepção dos dizeres no campo “Outras Referências” (conforme relatório de exame pericial de fls. 322 a 330) – original encontra-se no saco de prova série C, com o nº 062508 e cópia a fls. 111;

- datada de 20.09.2010, com data de vencimento em 20.12.2010, no valor de € 8.000,00 a letra com o número de série 500.792.887.084.811.714, a qual reformava a letra com o nº de série 500.792.887.084.811.617, no valor de € 12.000,00, com data de vencimento a 20.09.2010, preenchida por C... com excepção dos dizeres no campo “Outras Referências” (conforme relatório de exame pericial de fls. 322 a 330) – original encontra-se no saco de prova série C, com o nº 062508 e cópia a fls. 112;

- datada de 07.12.2010, com data de vencimento em 07.03.2011, no valor de € 3.500,00 a letra com o número de série 500.792.887.064.429.768, a qual reformava uma letra anterior, no valor de € 7.000,00, com data de vencimento a 07.12.2010, preenchida por C... com excepção dos dizeres no campo “Outras Referências” (conforme relatório de exame pericial de fls. 322 a 330) – original encontra-se no saco de prova série C, com o nº 062508 e cópia a fls. 113;

- datada de 20.12.2010, com data de vencimento em 19.03.2011, no valor de € 4.000,00 a letra com o número de série 500.792.887.109.903.536, a qual reformava a letra anterior com o nº de série 500.792.887.084.811.714, no valor de € 8.000,00, com data de vencimento a 20.12.2010, preenchida por C... com excepção dos dizeres no campo “Outras Referências” (conforme relatório de exame pericial de fls. 322 a 330) – original encontra-se no saco de prova série C, com o nº 062508 e cópia a fls. 114;

- datada de 08.03.2011, com data de vencimento em 08.06.2011, no valor de € 9.000,00 a letra com o número de série 500.792.887.109.904.087, preenchida por C... nos campos “local de pagamento/domiciliação” e “nº de contribuinte do sacador”, (conforme relatório de exame pericial de fls. 322 a 330) – cujo original consta a fls. 180.

11. Tais letras de câmbio foram entregues pelo arguido na sede da sociedade “ B... , Lda.”, nomeadamente a C... .

12. Posteriormente, as letras de câmbio infra descritas foram entregues e descontadas por C... , tal como previamente combinado com o arguido, nos seguintes bancos:

- a letra de câmbio com o nº 500.792.887.087.779.358, no valor de € 4.800,00, foi apresentada a desconto na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, balcão de Pombal, tendo o valor correspondente à mesma sido entregue por C... ao arguido, sendo que por não ter sido paga por D... , até à data de vencimento, foi devolvida à “ B... , Lda.”, sacador, tendo esta liquidado o seu valor na integra; - a letra de câmbio com o nº 500.792.887.087.779.323, no valor de € 10.000,00, foi apresentada a desconto na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, balcão de Pombal, tendo o valor correspondente à mesma sido entregue por C... ao arguido, sendo que por não ter sido paga por D... , até à data de vencimento, foi devolvida à “ B... , Lda.”, sacador, tendo esta amortizado a quantia de € 2.500,00;

- a letra de câmbio com o nº 500.792.887.087.767.732, no valor de € 3.100,00, foi apresentada a desconto no Banco Português de Investimento, tendo o valor correspondente à mesma sido entregue por C... ao arguido, sendo que por não ter sido paga por D... , até à data de vencimento, foi devolvida à “ B... , Lda.”, sacador, tendo esta liquidado o seu valor na integra;

- a letra de câmbio com o nº 500.792.887.087.768.062, no valor de € 7.500,00, foi apresentada a desconto na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, balcão de Pombal, tendo o valor correspondente à mesma sido entregue por C... ao arguido, sendo que por não ter sido paga por D... , até à data de vencimento, foi devolvida à “ B... , Lda.”, sacador, tendo esta amortizado a quantia de € 2.500,00;

- a letra de câmbio com o nº 500.792.887.087.767.724, no valor de € 5.000,00, foi apresentada a desconto na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, balcão de Pombal, tendo o valor correspondente à mesma sido entregue por C... ao arguido, sendo que por não ter sido paga por D... , até à data de vencimento, foi devolvida à “ B... , Lda.”, sacador, tendo esta liquidado o seu valor na integra; - a letra de câmbio com o nº 500.792.887.084.811.480, no valor de € 16.000,00, foi apresentada a desconto na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, balcão de Pombal, tendo o valor correspondente à mesma sido entregue por C... ao arguido, sendo que por não ter sido paga por D... , até à data de vencimento, foi devolvida à “ B... , Lda.”, sacador, tendo esta amortizado a quantia de € 4.000,00;

- a letra de câmbio com o nº 500.792.887.084.811.617, no valor de € 12.000,00, foi apresentada a desconto na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, balcão de Pombal, tendo o valor correspondente à mesma sido entregue por C... ao arguido, sendo que por não ter sido paga por D... , até à data de vencimento, foi devolvida à “ B... , Lda.”, sacador, tendo esta amortizado a quantia de € 4.000,00;

- a letra de câmbio com o nº 500.792.887.084.811.714, no valor de € 8.000,00, foi apresentada a desconto na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, balcão de Pombal, tendo o valor correspondente à mesma sido entregue por C... ao arguido, sendo que por não ter sido paga por D... , até à data de vencimento, foi devolvida à “ B... , Lda.”, sacador, tendo esta amortizado o valor de € 4.000,00;

- a letra de câmbio com o nº 500.792.887.064.429.768, no valor de € 3.500,00, foi apresentada a desconto no BPI, tendo o valor correspondente à mesma sido entregue por C... ao arguido, sendo que por não ter sido paga por D... , até à data de vencimento, foi devolvida à “ B... , Lda.”, sacador, tendo esta liquidado o seu valor na integra;

- a letra de câmbio com o nº 500.792.887.109.903.536, no valor de € 4.000,00, foi apresentada a desconto na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, balcão de Pombal, tendo o valor correspondente à mesma sido entregue por C... ao arguido, sendo que por não ter sido paga por D... , até à data de vencimento, foi devolvida à “ B... , Lda.”, sacador, tendo esta liquidado o seu valor na integra.

13. Ao fazer constar, pelo seu próprio punho, as assinaturas de D... no local destinado à assinatura do aceitante nas treze letras de câmbio supra discriminadas, o arguido actuou sempre com o propósito concretizado de obter um benefício ilegítimo, ao qual bem sabia não ter direito, tendo ainda perfeito conhecimento que fazia constar daqueles títulos de crédito factos juridicamente relevantes e com notória valência normativa cartular, assim abalando a credibilidade e fé pública que tais documentos merecem, bem como a segurança e confiança no tráfico jurídico.

14. O arguido agiu em todas as suas condutas de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que aquelas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

15. A “ B... ” teve de suportar despesas com este processo, nomeadamente, o pagamento da taxa de justiça, no valor de € 102.

16. Entre a sociedade “ B... ” e “ K... ” existiam relações comerciais, pois a primeira abastecia-se de redes de pesca junto da segunda, para depois comercializar. 17. A “ B... ” fornecia à “ K... ” matéria prima para o fabrico das redes de pesca, compensando os créditos recíprocos.

18. As duas empresas tinham sede nas mesmas instalações, onde o arguido e C... se encontravam diariamente.

19. A “ K... ” tinha dificuldades de crédito bancário, pelo que acordou com a “ B... ”, através do seu gerente C... , o desconto de letras de favor, utilizando para tanto o crédito bancário que esta gozava.

20. Após o desconto esse valor entrava na conta bancária da B... , sendo creditada a conta corrente entre ambas as empresas à K... .

21. O giro de letras de favor sucedeu não só com D... e F... , como com outra empresa, a G... .

22. Estas letras nunca eram pagas pelos aceitantes de favor, sendo sempre debitadas nas contas bancárias da B... , junto da CCAM e BPI.

23. O arguido A... já foi anteriormente condenado nos seguintes processos:

I – Comum Singular nº 1336/11.0IDLRA, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, por factos de 2010, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 6,50, por sentença transitada em julgado em 26.11.2012, já extinto;

II – Comum Singular nº 1768/09.4IDLRA, do 2º Juízo, do Tribunal Judicial de Pombal, pela prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal, por factos de 2009, na pena de 480 dias de multa, à taxa diária de € 6,50, por sentença transitada em julgado em 22.01.2013, já extinto; III – Comum Singular nº 655/11.0TAPBL, do 1º Juízo, do Tribunal Judicial de Pombal, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, por factos de 17.01.2006, na pena de 170 dias de multa, à taxa diária de € 7, por sentença transitada em julgado em 30.09.2013, já extinto.

24. O arguido A... tem como habilitações literárias o antigo curso complementar dos liceus; com 20 anos de idade iniciou trajectória profissional, na companhia do pai “vendedor de cordoarias”; aos 26 anos de idade, fixou-se na cidade de Pombal, como empresário na produção e comercialização de redes de pesca, onde se mantém, como administrador e/ou gerente de várias empresas, onde trabalham presentemente cerca de 90 pessoas.

25. O arguido A... é referenciado como pessoa dinâmica e activa, sendo-lhe reconhecidos arreigados hábitos de trabalho.

26. O arguido A... vive com a mulher, em apartamento de tipologia T3, propriedade de uma das filhas.

27. O arguido A... assume que vivencia uma situação estável e sem limitações do ponto de vista económicoprofissional, sendo que o seu rendimento mensal provém da actividade empresarial que mantém, assegurando sem dificuldades os encargos mensais que decorrem das obrigações contratuais e das necessidades subjacentes à manutenção do núcleo familiar.

Factos não provados

Resultaram não provados os seguintes factos, além dos demais alegados, sem interesse para a causa[1]:

a)- Em datas concretamente não apuradas, mas anteriores a 17.12.2008, A... entregou a C... diversas letras, alegando que as mesmas haviam sido sacadas por D... , e que tinham subjacentes efectivas transacções comerciais.

b)- Ao utilizar as letras de câmbio supra-referidas, as quais haviam sido preenchidas da forma supra descrita, o arguido agiu ainda com o propósito de fazer crer ao gerente da sociedade “ B... , Lda.”, C... , seu irmão, que D... tinha aceite a responsabilidade pelo respectivo pagamento, dessa forma logrando continuar a obter financiamento imediato junto de C... , obtendo ainda um benefício ilegítimo.

c)- O arguido sabia também que, com a sua conduta, causava um prejuízo patrimonial àquele ofendido, o qual ele bem sabia ser de valor consideravelmente elevado.

d)- O arguido agiu no quadro da mesma solicitação exterior, reiterando sucessivamente o mesmo propósito, aproveitando a circunstância do seu irmão não ter desconfiado prontamente de que as assinaturas nos aludidos títulos de crédito não haviam sido apostas pelo respectivo aceitante, servindo-se do mesmo método que sucessiva e repetidamente se foi revelando apto para atingir os seus fins.

e)- A B... ainda não foi ressarcida das quantias despendidas nas letras de câmbio com os nºs 500.792.887.064.429.768, 500.792.887.109.903.536 e 500.792. 887.109.  904.087, encontrando-se ainda em dívida € 16.500.

f)- Ademais teve de suportar outros valores a título de imposto de selo, encargos bancários e juros, nomeadamente, € 17,50, € 20 e €45.

g)- A ofendida suportou os seguintes encargos bancários: as quantias de € 109,50 e €44,80, relativamente à letra com o nº 500.792.887.064.429.768; as quantias de € 137,22 e € 10,40, relativamente à letra nº 500.792.887.109.903.536; e as quantias de € 270,47 e € 24,69, relativamente à letra nº 500.792.887.109.904.087.

h)- A “ B... ” teve de suportar honorários ao seu Advogado, em quantia não inferior a € 1000, acrescida de IVA, no montante total de € 1.230.

i)- A “ B... ” sofreu ainda outros danos emergentes do comportamento ilícito do arguido, tais como perda de dias de trabalho do seu sócio gerente com a elaboração e instrução de queixas-crime e a apresentação junto do Ministério Público de Pombal, com a sua inquirição nos serviços do Ministério Público e recolha de autógrafos e reuniões com os Advogados, despendendo ainda dias de trabalho com a audiência de julgamento.

j)- A reputação da demandante foi irremediavelmente abalada junto das instituições bancárias como consequência directa dos actos ilícitos praticados pelo arguido.

l)- O arguido estivesse convicto que os aceites das letras eram da autoria de D... .

m)- A “ B... ” tinha como clientes, na sua maioria, pequenos armadores e pescadores da pesca artesanal.

Motivação da decisão de facto

 A convicção do Tribunal formou-se com base na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento e, nomeadamente:

Diremos, em primeiro lugar, que não se mostrou minimamente credível que C... não conhecesse o esquema elaborado com as letras, ou seja, que não soubesse que se tratavam de letras de favor; por um lado, porque estava na empresa com o aqui arguido A... , seu irmão, em instalações conjuntas, não sendo credível que tivessem procedimentos que fossem desconhecidos um do outro; acresce que o momento em que C... apresentou queixa coincide com o momento em que se desentendeu profundamente com o arguido/irmão A... , provocado por desentendimentos em relação ao destino das empresas que ambos comandavam – aliás, foi notório em toda a audiência de julgamento que C... e A... , embora irmãos, estão em conflito, como foi referido por várias testemunhas e por eles próprios. Acresce que do teor da certidão de sentença, junta em audiência de julgamento, a fls. 628-633, se a “ B... ” tinha conhecimento da convenção de favor acordada entre a empresa “ K... ” e a “ G... ”, “não pretendendo a favorecente G... obrigar-se perante a B... , a quem nada deve”, também não é credível que não conhecesse a existência das letras de favor em causa neste processo, pois tratava-se de um procedimento corrente nas empresas.

Também resultou claro que C... tinha conhecimento da situação económica difícil das empresas do arguido/irmão, que não beneficiavam de crédito bancário, e inclusivamente, em data próxima à dos factos, fez um estudo de viabilização das empresas – sendo que tudo indica que foi este estudo que esteve na origem da desavença entre C... e o arguido, como ambos referiram.

Tal conclusão também se pode extrair do depoimento da testemunha J... , TOC das empresas do grupo; explicou de forma coerente o modo de funcionamento das empresas, que tinham alguns serviços distribuídos entre todas; referiu que a utilização de letras de favor era prática comum na empresa, sendo do conhecimento tanto do arguido, como de C... .

Concluindo, portanto, nenhum artifício enganoso se logrou demonstrar por parte do arguido em relação a C... .

Já não se pode dizer o mesmo em relação às assinaturas das letras de câmbio, referidas nos pontos provados.

Assim, além da prova pericial cuja conclusão foi “Provável” que a escrita suspeita seja da autoria do arguido, temos outros elementos importantes para tal afirmação.

Desde logo porque a testemunha I... não mereceu qualquer credibilidade, sendo uma testemunha apresentada pelo aqui arguido, só aparecendo no final do processo como um verdadeiro “relâmpago”, depois de o arguido se sujeitar a um despacho de acusação, e não em fase de inquérito, como testemunha muito importante para um eventual arquivamento do processo; mas mais relevante ainda é o facto de esta testemunha não apresentar um discurso coerente, expressivo e claro ao longo da sua inquirição – limitou-se a confirmar que tinha sido ele próprio a assinar as letras em causa nos autos, não explicando de forma convincente todo o circunstancialismo à volta desse facto, nomeadamente, a forma como as letras chegaram à sua posse e o motivo pelo qual as tinha – acresce que o assistente D... foi peremptório no seu depoimento quando afirmou que o aqui arguido A... , em conversa que teve consigo, disse-lhe expressamente que tinha sido ele próprio quem preencheu as letras, que era o responsável por tudo aquilo, assumindo essa responsabilidade, além do que a testemunha I... pareceu ao assistente D... , em conversa que teve com ele sobre esta matéria, completamente fora do que se passou.

Resultou igualmente claro que a relação entre o arguido e I... baseia-se numa relação de favores, sendo que cada um faz favores ao outro quando é necessário. Diga-se ainda que foi o aqui arguido que deu trabalho a esta testemunha I... quando ficou desempregado, em 2005.

Assim, apesar de ter sido feito exame pericial à letra da testemunha I... , e a conclusão ter sido “admite-se como provável que a escrita suspeita das assinaturas não seja da autoria de I... ” (fls. 707-710), independentemente do resultado desta perícia (claro está excluindo a probabilidade máxima), de todo a restante prova produzida nunca se iria concluir que tivesse sido este o autor de tais escritos.

Também não resultou demonstrado, como afirma o arguido A... , que o assistente D... seja amigo da testemunha I... – efectivamente o que por eles foi dito era que se conheciam no âmbito da actividade profissional, fazendo algumas transacções comerciais, nada mais.

Acresce ainda o depoimento da testemunha H... , irmã do arguido e de C... , mas que está de mal com o arguido, desde Junho de 2011, por desavenças familiares; no entanto, o seu depoimento conjugado com tudo o que acima se descreveu, revela-se credível, pois trabalhava, à data dos factos, com o arguido, sendo que, em conversa com este, o arguido acabou por admitir ter assinado as letras, para justificar não lhe pagar os salários em atraso, pois não tinha dinheiro, e procurar uma terceira pessoa a quem imputar os factos.

Por outro lado, não é minimamente aceitável o que o arguido A... apresentou como justificação para não ter apresentado a testemunha I... como autor dos factos em momento anterior, ou seja, que não teve coragem porque foi um favor que ele lhe fez.

Relativamente ao elemento subjectivo, a prova do mesmo resulta da restante factualidade provada, pois o arguido não podia desconhecer o que estava a fazer.

A testemunha L... funcionária da K... , como técnica de marketing; pouco ou nada ajudou quanto a esta matéria, referindo apenas que recebe ordens do arguido.

A testemunha M... , gerente comercial da G... , mantendo relações comerciais com a K... ; reconhece a existência de letras de favor pedidas pelo arguido.

Quanto aos factos não provados, como acima já se explanou, não se logrou convencimento em audiência de julgamento que C... não conhecesse o modo de procedimento do arguido A... .

Acresce que não resultou demonstrado que a conduta do arguido tivesse resultado para a “ B... ” todos aqueles danos invocados em sede de pedido de indemnização civil, como já se explicou.

Ajudou ainda a formar a convicção do Tribunal o Certificado de Registo Criminal junto aos autos, relatório social, e certidões permanentes de fls. 5-6 e 9, fls. 11, 12-20, 105, 106-114, 123-129, 175-177, 180, 181, 182, 199; letras de câmbio constantes do Saco de Provas série C, com o nº 062508 da Polícia Judiciária e Saco de Provas série C, com o nº 076547 da Polícia Judiciária.

*
                                                                        *
            O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 [2] e de 24-3-1999 [3] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [4], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

Como bem esclarecem os Cons. Simas Santos e Leal-Henriques, «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo

Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).  

            No caso dos autos, face às conclusões da motivação da recorrente B... , Lda.” as questões a decidir são as seguintes:

1.ª - se sentença recorrida deverá ser objeto de correção nos termos do artigo 380.º do C.P.P., de modo a serem inseridas no ponto n.º 12 dos factos provados as 3 letras mencionadas no ponto n.º 10 dos factos provados que ali estão em falta;

2.ª - se a sentença padece de erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do C.P.P.;

3.ª - se a conduta do arguido A... preenche os elementos do crime de burla de que vinha acusado e foi absolvido; e

4.ª - se, consequentemente, deve o arguido/demandado A... ser condenado no pedido de indemnização cível formulado pela recorrente;

            Tendo em consideração as conclusões da motivação do arguido A... a questão a decidir é a seguinte:

- se foram incorretamente julgados os pontos n.ºs 10, 13 e 14 da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, pois deviam ter sido dados como não provados e o arguido absolvido.


*

            Recurso da assistente/demandante “ B... , Lda”

            1.ª Questão: da correção da sentença.

A recorrente entende que a sentença recorrida deverá ser objeto de correção nos termos do artigo 380.º do C.P.P., de modo a serem inseridas no ponto n.º 12 dos factos provados as 3 letras mencionadas no ponto n.º 10 dos factos provados que ali estão em falta.

No ponto n.º 10 dos factos provados, são mencionadas treze letras e no ponto n.º 12 dos factos provados, apenas são descritas dez letras, ou seja, faltam aqui referidas as três seguintes letras: a letra de câmbio com o n.º 500.792.887.064.429.881, no valor de €9.750,00, datada de 17/12/2008 com data de vencimento em 20/03/2009; a letra de câmbio com o n° 500.792.887.064.429.989, no valor de €12.380,00, datada de 17/12/2008 com data de vencimento em 5/04/2009, e a letra de câmbio com o n.º 500.792.887.109.904.087, no valor de €9.000,00, apresentada a desconto no Banco Banif, tendo o valor correspondente à mesma sido entregue por C... ao arguido, sendo que por não ter sido paga por D... , até à data de vencimento, foi devolvida à “ B... , Lda.”, sacador, tendo esta liquidado o seu valor na íntegra, ou seja €9.000,00 (vide fls. 20 dos autos).

Tais letras, mormente a último n.º 500.792.887.109.904.087, reveste uma crucial importância já que é uma das quais a ora Recorrente reclama o pagamento em sede de Pedido de Indemnização Civil.

Vejamos.

O art.380.º do C.P.P., sob a epígrafe «Correção da sentença», estabelece, com interesse para a presente questão, o seguinte:

« 1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando:

       a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;

       b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.

  2 - Se já tiver subido recurso da sentença, a correção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.

  3 – (…)».

Com a prolação da sentença fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto ao objeto do processo.

Porém, quando não importe modificação essencial, que quanto à decisão, quer quanto à fundamentação, ela pode ser corrigida. 

Assim, a alínea a), do n.º1 do preceito, prevê a correção da sentença sempre que a mesma enferme de qualquer deficiência, por inobservância do disposto no art.374.º do C.P.P., que não consubstancie nulidade. Será, por exemplo, o caso da omissão da data da sentença ou da assinatura do juiz.

Já a alínea b) prevê a correção da sentença quando a mesma enferme de erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial. Nos erros da sentença que podem ser corrigidos incluem-se os chamados erros de escrita ou de cálculo, devidos a lapsos calami; como podem ser corrigidos os lapsos, manifestos, em que é evidente que a vontade declarada é desconforme à vontade real, como seja escolher e fixar uma determinada pena na fundamentação e indicar outra pena no dispositivo da sentença. Considera-se a decisão obscura quando não se entende o pensamento do julgador; considera-se a decisão ambígua quando comporta mais que um sentido.

Como diz o Prof. Alberto dos Reis, num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos.[5]

No caso de ter já subido recurso da sentença, a correção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.

No caso em apreciação, a recorrente “ B... , Lda” requer a correção da sentença por no ponto n.º 12 dos factos provados estarem em falta 3 letras que se mostram mencionadas no ponto n.º 10 dos factos provados, mas não indica nem nas conclusões da motivação, nem na motivação, em qual das alíneas do n.º1 integra a alegada irregularidade que quer corrigir.

Cremos que a recorrente não indica nenhuma das concretas situações enunciadas no art.380.º, n.º1 do Código de Processo Penal, que permitem a correção da sentença, apenas e tão só porque tem perfeita noção de que não integra nenhuma delas.

Se não vejamos.

No ponto n.º 10 indicam-se as 13 letras de câmbio em que o arguido apôs, pelo seu próprio punho, a assinatura do ofendido D... , no local destinado ao aceitante e nas quais figurava como sacador a sociedade “ B... , Lda”, remetendo-se relativamente a cada uma delas para o local do processo onde elas se encontram.

No ponto n.º 12 menciona-se o posterior desconto, por C... , tal como previamente combinado com o arguido A... , de 10 letras de câmbio, das 13 mencionadas no ponto n.º10, realçando-se, com um traço por baixo, a sublinhar, o valor liquidado ou amortizado de cada uma delas.

A matéria dos pontos n.ºs 10 e 12 dos factos dados como provados na sentença corresponde, exatamente, à matéria de facto que consta da acusação do Ministério Público, incluindo o traço por baixo, a sublinhar o valor liquidado ou amortizado de cada uma das dez letras de câmbio referidas no ponto n.º 12.

As letras de câmbio referidas no ponto n.º 10, não mencionadas a seguir no ponto n.º 12 , são uma « datada de 17.12.2008, com data de vencimento em 20.03.2009, no valor de € 9.750,00 a letra com o número de série 500.792.887.064.429.881 (fls. 175)», outra « datada de 17.12.2008, com data de vencimento em 15.04.2009, no valor de € 12.380,00 a letra com o número de série 500.792.887.064.429.989 (fls. 176)» e ainda, uma terceira, « datada de 08.03.2011, com data de vencimento em 08.06.2011, no valor de € 9.000,00 a letra com o número de série 500.792.887.109.904.087, preenchida por C... nos campos “local de pagamento/domiciliação” e “nº de contribuinte do sacador”, (conforme relatório de exame pericial de fls. 322 a 330) – cujo original consta a fls. 180.».

O Ministério Público, que é o autor da acusação, deixa claro que no ponto n.º 12 não se faz referência a todas as letras de câmbio mencionadas no ponto n.º 10 porque não foi possível fazer a ligação a valores em relação a todas as 13 letras de câmbio.

Nesta perspetiva reproduzir no ponto n.º 12 estas três letras de câmbio, as três letras de câmbio que constam do ponto n.º 10, sem fazer referência ao valor liquidado ou amortizado em relação a cada uma delas, seria inócuo.

E a recorrente tem perfeita noção dessa irrelevância, uma vez que relativamente a uma delas - a que apresenta o n.º de série 500.792.887.109.904.087 -, sob o pretexto de correção da sentença, quer introduzir na factualidade do ponto n.º 12 um facto novo, isto é, que liquidou na integra o seu valor, de € 9.000,00.

A introdução desse novo facto, que no dizer da recorrente se reveste de crucial importância, já que é uma das letras de câmbio em que fundamenta o Pedido de Indemnização Civil, determinaria uma modificação essencial do julgado.

Como bem se assinala no acórdão do STJ de 5 de julho de 2007, proferido no proc. n.º 1398/07, está vedado ao juiz, a pretexto da correção do ato decisório, qualquer intromissão no conteúdo do julgado, estando pois subtraídos ao ato de correção os erros e as omissões de julgamento.

Do exposto resulta, por um lado, que a realidade que se quis descrever no ponto n.º 12 não corresponde exatamente à do ponto n.º 10 e, por outro, seria ilícito corrigir a sentença ao abrigo do art.380.º, n.º1 do Código de Processo Penal porque dessa pretendida correção resultaria uma modificação essencial do julgado.

Assim, improcede esta questão.

2.ª Questão: do erro notório na apreciação da prova a que alude o art.410.º, n.º2, al. c), do C.P.P..

A recorrente “ B... , Lda” defende, nas conclusões da motivação, que os factos dados como não provados sob as alíneas e) a j) deverão ser considerados provados, tendo em conta toda a prova documental constantes dos autos, bem como a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, existindo assim, erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.410.º, n.º2, al. c), do C.P.P..

No capítulo III da motivação do seu recurso, epigrafado “Da improcedência do pedido de indemnização civil”, volta a defender que a sentença recorrida padece daquele vício relativamente às alíneas e) - “ A B... ainda não foi ressarcida das quantias despendidas nas letras de câmbio com os nºs 500.792.887.064.429.768, 500.792.887.109.903.536 e 500.792.887.109.904.087, encontrando-se ainda em dívida € 16.500”, f) - “Ademais teve de suportar outros valores a título de imposto de selo, encargos bancários e juros, nomeadamente, €17,50, €20 e €45 “, g) - “A ofendida suportou os seguintes encargos bancários: as quantias de € 109,50 e €44,80, relativamente à letra com o nº 500.792.887.064.429.768; as quantias de € 137,22 e € 10,40, relativamente à letra nº 500.792.887.109.903.536; e as quantias de € 270,47 e € 24,69, relativamente à letra nº 500.792.887.109.904.087.”, h) - “A “ B... ” teve de suportar honorários ao seu Advogado, em quantia não inferior a € 1000, acrescida de IVA, no montante total de € 1.230”, i) - “A “ B... ” sofreu ainda outros danos emergentes do comportamento ilícito do arguido, tais como perda de dias de trabalho do seu sócio gerente com a elaboração e instrução de queixas-crime e a apresentação junto do Ministério Público de Pombal, com a sua inquirição nos serviços do Ministério Público e recolha de autógrafos e reuniões com os Advogados, despendendo ainda dias de trabalho com a audiência de julgamento”, e j) - “A reputação da demandante foi irremediavelmente abalada junto das instituições bancárias como consequência directa dos actos ilícitos praticados pelo arguido.”-, da factualidade dada como provada, porquanto, deve ser dada como provada tendo em conta toda a prova documental constantes dos autos, bem como a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento.

Na motivação do recurso volta a indicar como fundamento do erro notório na apreciação da prova toda a prova documental constantes dos autos, bem como a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, acrescentando decorre das declarações prestadas por C... , que o arguido ainda deve a quantia de €16.500,00 a título de capital bem como os impostos de selo pagos, referindo que o imposto de selo “está na conta corrente em aberto” e que “não foi pago”. Ademais, das declarações prestadas pela testemunha J... , TOC das empresas do arguido, ao minuto 1:06:00, resulta igualmente que a K... , empresa do arguido, era devedora de quantias à ora Recorrente, mais precisamente que em 2011 a dívida da K... , Lda. à B... , Lda. rondava os €120.000,00, embora posteriormente refira que a mesma pudesse ser menor, mas nunca inferior a €50.000,00. Valores que resultam igualmente da prova documental junta aos autos.

Vejamos.

O art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, «…o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

     a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

     b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou  

     c) O erro notório na apreciação da prova.

O erro notório na apreciação da prova consiste, por sua vez, num vício de apuramento da matéria de facto que, como todos os outros vícios do n.º2 do art.410.º do C.P.P., prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos juntos aos autos.

Verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

No dizer dos Juízes Conselheiros Leal-Henriques e Simas Santos existe, designadamente, “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. [6]

Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal). 

O erro notório na apreciação da prova tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média, e nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correta face à prova produzida em audiência de julgamento.

No caso em apreciação, a recorrente confunde o vício de erro notório na apreciação da prova, que resulta apenas do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que entende ser a correta face à prova produzida em audiência de julgamento, ou seja, toda a prova documental constantes dos autos, bem como a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, ou se tivermos em consideração o que mais restritivamente consta da motivação do recurso, o que aí terá sido dito pelo seu gerente C... e pela testemunha J... , TOC das empresas do arguido A... .

Analisando o texto da decisão recorrida, designadamente a fundamentação da matéria de facto, verificamos que a prova documental constante do processo, ali mencionada, consiste  na certidão sentença junta a folhas 628-633 , o CRC e relatório social do arguido, as  certidões permanentes de fls. 5-6 e 9, fls. 11, 12-20, 105, 106-114, 123-129, 175-177, 180, 181, 182, 199, e as letras de câmbio constantes do Saco de Provas série C, com o nº 062508 da Polícia Judiciária e Saco de Provas série C, com o nº 076547 da Polícia Judiciária.

Desta prova documental não resulta, aos olhos do homem médio e pela simples leitura da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, que o Tribunal a quo errou ostensivamente ao dar como não provados nas alíneas e) a j), que a “ B... , Lda” ainda não foi ressarcida das quantias referentes às letras de câmbio com os nºs 500.792.887.064.429.768, 500.792.887.109.903.536 e 500.792.887.109.904.087, encontrando -se ainda em dívida € 16.500,00, bem como de outras quantias a elas referentes, ou que tenha sofrido os outros concretos danos ali dados como não provados.

Também das declarações do legal representante da ora recorrente, C... , referidas  na fundamentação da matéria de facto, não consta que este tenha declarado em audiência de julgamento que o arguido A... ainda deve a quantia de €16.500,00 a título de capital, bem como os impostos de selo pagos, referindo que o imposto de selo “está na conta corrente em aberto” e que “não foi pago”; como igualmente não consta do texto da decisão recorrida que a testemunha J... tenha declarado, na mesma audiência, que a “ K... ”, em 2011 tinha uma dívida à B... , Lda, que rondava os €120.000,00 e que posteriormente refira que a mesma pudesse ser menor, mas nunca inferior a €50.000,00.
Assim, analisando o texto da decisão recorrida, nomeadamente o exame crítico da prova constante da fundamentação da matéria de facto, conjugado com as regras da experiência comum, não vemos que o Tribunal recorrido, ao dar como não provada a matéria de facto impugnada pela recorrente, tenha seguido um raciocínio ilógico, arbitrário ou contraditório,  de onde se possa concluir pela existência de um erro notório na apreciação da prova.
Não se tem, assim, por verificado o vício a que alude a al. c), n.º2 do art.410.º, do Código de Processo Penal.
Se a recorrente entende que havia uma desconformidade entre a decisão de facto proferida naquelas alíneas e) a j) e aquela que entende ser a correta face à prova produzida em audiência de julgamento, então deveria ter interposto recurso do douto acórdão, impugnando a matéria de facto nos termos do art.412.º, n.ºs 3 e 4 do C.P.P., cumprindo os respetivos ónus.

Importa, pois, verificar se os cumpriu.

A situação mais comum de impugnação ampla da matéria de facto é a que respeita à alínea b) do art.431.º do Código de Processo Penal.

Esta alínea b) do art.431.º do C.P.P., conjugada com o art.412.º, n.º3 do mesmo Código, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar:

  « a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados ;

     b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

     c) As provas que devam ser renovadas

O n.º 4 deste art.412.º, acrescenta que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação

O recorrente deverá indicar a sessão de julgamento em que as declarações ou depoimentos constam e localizar a passagem em causa na gravação, de modo a deixar claro qual a parte da declaração ou depoimento que se quer que o Tribunal de recurso ouça e aprecie.

Mais ainda, deve explicitar a razão pela qual essa concreta prova impõe decisão diversa da recorrida.

Sobre o dever das menções dos n.ºs 3 e 4 do art.412.º do C.P.P. constarem das conclusões da motivação, o STJ, nomeadamente no acórdão de 5 de Julho de 2007 ( proc. n.º 07P1766, www.dgsi.pt/jstj) já se pronunciou no sentido de que a redação do n.º 3 do art.412.º do C.P.P., por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem de dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorretamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que “ versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda (…)”, já o n.º 3 se limita a prescrever que “ quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (…)”, sem impor que tal aconteça nas conclusões. Perante esta margem de indefinição legal, quando o recorrente tenha procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respetivas conclusões, ou o Tribunal da Relação conhece da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convida o recorrente a corrigir aquelas conclusões.

No seguimento deste entendimento o art.417.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, na atual redação que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, permite o convite ao recorrente para completar ou esclarecer as conclusões formuladas.

Porém, se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos n.ºs 3 e 4 do art.412.º do C.P.P., não há lugar ao convite à correção das conclusões; efetivamente, o conteúdo da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correção das conclusões da motivação.

Esta posição defendida pela generalidade da jurisprudência, designadamente pelo STJ ( acórdão de 9 de Março de 2006, in www.dgsi.pt), não foi julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
Assim o decidiu o Tribunal Constitucional, nomeadamente, no acórdão n.º 140/2004 (D.R., 2ª série, de 17 de Abril de 2004), ao «não julgar inconstitucional a norma do art.412.º n.º 3 , alínea b), e n.º4 , do Código de Processo Penal interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.».[7]

É pacífico na jurisprudência que a reapreciação da matéria de facto pela Relação não corresponde a um segundo julgamento, como se não tivesse existido um julgamento em 1.ª instância, antes visa a correção de específicos erros de julgamento. Por isso se impõe aos recorrentes que especifiquem os pontos de facto incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e as concretas passagens que constam da gravação, por referência ao consignado na ata, em que fundam a impugnação.
Como bem se esclarece no acórdão n.º 374/2000 do Tribunal Constitucional (in D.R., 2ª série, de 12 de Dezembro de 2000) «..., a indicação exigida pela alínea b) do n.º 3 e pelo n.º4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal - repete-se, das provas que impõem decisão diversa da recorrida que impõem decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes técnicos - é imprescindível logo para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto, e não um ónus meramente formal. O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto.».

No caso em apreciação, a recorrente “ B... , Lda” indica, nas conclusões da motivação, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, referindo as alíneas e) a j) dos factos não provados, mas não indica as concretas provas produzidas que imporão decisão diversa - remetendo para toda a prova documental constantes dos autos, bem como a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento -, nem específica as passagens relevantes para a descoberta da verdade por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, do mesmo Código, que o Tribunal de recurso deva reapreciar.

Já na motivação do recurso indica a recorrente, como prova produzida em julgamento que imporia uma diversa decisão, as declarações do seu legal representante C... e da testemunha J... .

Quanto às declarações do C... é manifesto que a recorrente não especifica na motivação do recurso as passagens relevantes para a descoberta da verdade por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, do mesmo Código.

Assim, face ao não cumprimento do disposto no art.412.º, n.º 3, al. b) e 4 do Código de Processo Penal, relativamente às declarações do C... , nem nas conclusões da motivação, nem na motivação, não há que convidar a recorrente, nos termos do art.417.º, n.º 3 do mesmo Código, para completar as conclusões formuladas.

Já quanto ao depoimento da testemunha J... procede a recorrente à especificação das passagens que impõem decisão diversa com indicação do local onde constam na gravação. Nesta parte, o Tribunal da Relação considera que a recorrente deu cumprimento mínimo ao estabelecido no art.412.º, n.ºs 3, al. b) e 4 do C.P.P. e, por uma questão de economia processual, mesmo sem convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação, julga-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, se concluir que do segmento daquele depoimento resulta a existência de erro de julgamento quanto à matéria impugnada.

O Tribunal da Relação procedeu à audição das passagens indicadas pela recorrente e dela resulta que, efetivamente a testemunha J... , TOC das empresas do arguido, declarou, nomeadamente, que não sabe se estão na contabilidade todos os movimentos até 2011, mas da conta cliente resultava que no final de 2011 a sociedade “ K... , Lda” era devedora à ora Recorrente “ B... , Lda.” de uma quantia de cerca €120.000,00. Posteriormente que essa dívida seria inferior e que seria de uns €50.000,00.

Salvo o devido respeito, o Tribunal da Relação não vislumbra das passagens do depoimento desta testemunha, ora reapreciadas, que se impunha dar como provado que a ora recorrente “ B... , Lda” não foi ressarcida das quantias referentes às letras de câmbio com os n.ºs 500.792.887.064.429.768, 500.792.887.109.903.536 e 500.792.887. 109. 904.087, encontrando -se ainda em dívida € 16.500,00, os encargos bancários, juros e imposto de selo. Também não se vislumbra dos segmentos deste depoimento apontados pela recorrente que se impunha ao Tribunal a quo dar como provado que a recorrente suportou as despesas e teve os restantes danos mencionados nos factos dados como não provados e impugnados pela recorrente.

O Tribunal da Relação só pode e deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.

Reapreciada a prova indicada pela recorrente o Tribunal da Relação conclui que esta não  impõe uma decisão diversa da recorrida relativamente às alíneas e) a j) da factualidade dada como não provada na sentença recorrida, pelo que mais não resta que confirmar a decisão recorrida relativamente à matéria de facto impugnada pela recorrente, que se mantem como não provada.

3.ª Questão: da prática do crime de burla

A recorrente “ B... , Lda” defende que que o arguido A... preencheu com a sua conduta todos elementos constitutivos da prática do crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217º e 218º, nº 2, al. a), por referência ao artigo 202º, al. b) do Código Penal, de foi absolvido, alegando para o efeito, no essencial, que o arguido a levou a acreditar que tinha letras de câmbio assinadas por D... , pois caso fosse do conhecimento da recorrente que tais letras continham assinaturas falsificadas nunca teria acedido em descontar tais letras de câmbio. O arguido A... logrou que o sócio gerente da ora recorrente acedesse a descontar tais letras por desconhecer que estas continham assinaturas falsificadas e por ter alegada dificuldade na obtenção do crédito bancário, pelo que se verifica o erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou. Houve intenção do agente de obter para si enriquecimento ilegítimo, pois o sócio gerente da recorrente entregava-lhe o dinheiro que recebia das entidades bancárias quando procedia ao desconto das letras de câmbio. E, por fim, determinou a ora recorrente, na pessoa do seu sócio gerente, à prática de atos que lhe causaram prejuízo patrimonial, já que ainda não foi ressarcido das quantias constantes do pedido de indemnização civil.    

Vejamos se assim é.

Os elementos constitutivos do crime de burla, como crime fundamental, encontram-se enunciados no art.217.º, n.º1 do Código Penal, que estatui o seguinte:

« Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem , ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.».

A burla é um delito de execução vinculada, pressupondo a utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar atos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.

A sua consumação passa por duplo nexo de imputação objetivo: entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património, próprio ou alheio e, depois, entre estes e a verificação do prejuízo.

E se é certo que, para estarmos perante um crime de burla, não bastará uma qualquer mentira do agente, já será suficiente que essa mentira, essa astúcia, seja suficiente para iludir o cuidado que, no sector da atividade em causa, normalmente se espera de cada um. A experiência do dia a dia revela, com efeito, que a conduta do agente, longe de envolver, de forma inevitável, a adoção de processos rebuscados ou engenhosos, se limita, muitas vezes, numa “economia de esforços”, ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima[8].

O tipo subjetivo de ilicitude exige ainda o dolo, em qualquer das suas modalidades, descritas no art.14.º do Código Penal.

O art.218º, nº 2, al. a), do Código Penal, pune com pena de prisão de 2 a 8 anos quem praticar o facto previsto no n.º1 do art.217.º, do mesmo Código, sendo o valor do prejuízo patrimonial de valor consideravelmente elevado.

Posto isto e retomando o caso concreto, começamos por anotar que a recorrente parece esquecer que existe um conjunto de factos dados como não provados – que não impugnou nem nas conclusões da motivação, nem na motivação do seu recurso – , que integra os elementos constitutivos do crime de burla.

Assim, o Tribunal a quo deu como não provado, que: “a)- Em datas concretamente não apuradas, mas anteriores a 17.12.2008, A... entregou a C... diversas letras, alegando que as mesmas haviam sido sacadas por D... , e que tinham subjacentes efectivas transacções comerciais. b)- Ao utilizar as letras de câmbio supra-referidas, as quais haviam sido preenchidas da forma supra descrita, o arguido agiu ainda com o propósito de fazer crer ao gerente da sociedade “ B... , Lda.”, C... , seu irmão, que D... tinha aceite a responsabilidade pelo respectivo pagamento, dessa forma logrando continuar a obter financiamento imediato junto de C... , obtendo ainda um benefício ilegítimo. c)- O arguido sabia também que, com a sua conduta, causava um prejuízo patrimonial àquele ofendido, o qual ele bem sabia ser de valor consideravelmente elevado. d)- O arguido agiu no quadro da mesma solicitação exterior, reiterando sucessivamente o mesmo propósito, aproveitando a circunstância do seu irmão não ter desconfiado prontamente de que as assinaturas nos aludidos títulos de crédito não haviam sido apostas pelo respectivo aceitante, servindo-se do mesmo método que sucessiva e repetidamente se foi revelando apto para atingir os seus fins; e l)- O arguido estivesse convicto que os aceites das letras eram da autoria de D... .”

Basta ler a fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida para se concluir que o arguido A... nunca terá feito crer ao sócio gerente da ora recorrente, seu irmão, utilizando para o efeito um qualquer artifício fraudulento, que as letras de câmbio eram para ser pagas pelo aceitante D... . 

O Tribunal a quo refere mesmo que não se mostrou minimamente credível a afirmação do sócio gerente C... de que não conhecia o esquema elaborado com as letras, ou seja, que as letras de câmbio em causa eram letras de favor, procedimento corrente utilizado entre este legal representante da recorrente e o arguido A... , por serem irmãos, como forma da sociedade “ K... , Lda” obter crédito bancário para proceder ao pagamento das suas dívidas.

Não tendo resultado provado que o arguido A... , com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, enganou de forma astuciosa a recorrente com a entrega á mesma das letras de câmbio em causa; que em resultado de tal conduta astuciosa existiu um prejuízo para a recorrente; e que agiu com conhecimento e vontade de realização daqueles factos e consciência da censurabilidade da sua conduta, não se mostram preenchidos os elementos constitutivos do crime de burla.

Assim, não merece censura a absolvição do arguido da prática deste crime, pelo que improcede também esta questão.

            4.ª Questão: da procedência do pedido de indemnização civil

Por fim, defende a recorrente que o arguido/demandado A... deve ser condenado no pedido de indemnização cível formulado pela recorrente, alegando para o efeito, no essencial, que sempre acreditou que se, por ventura, o arguido A... não lhe pagasse o valor titulado pelas letras de câmbio, poderia reclamar tal valor junto do aceitante D... , por ser o devedor originário e desconhecer que as assinaturas apostas nessas letras não eram deste, mas falsificadas. Encontra-se ainda por pagar à recorrente o valor de € 16.500,00 a título de capital, bem como outras despesas daí decorrentes, bem como outros danos patrimoniais respeitantes a despesas com o processo e damos não patrimoniais.

Vejamos.

A indemnização por perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil ( art.129.º do Código Penal).

O art.483.º do Código Civil enuncia os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, que obrigam a indemnizar o lesado.

São eles os seguintes: a violação de um direito ou interesse alheio; a ilicitude; o vínculo de imputação do facto ao agente a título de dolo ou mera culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Nos direitos de outrem, cuja violação determina responsabilidade civil, incluem-se, principalmente os direitos absolutos e os chamados direitos de personalidade
A ilicitude traduz a reprovação da conduta do agente, como sinónimo de violação de um comando geral. Será afastada quando se verificarem causas de justificação do facto.
A responsabilidade por facto ilícito exige um vínculo de imputação do facto ao agente a título de dolo ou mera culpa. Para a conduta do arguido ser censurável a título de culpa, deve o agente agir com conhecimento e vontade de realização das circunstâncias de facto que integram a violação do direito ou de uma norma tuteladora de interesses alheios e com consciência da ilicitude do facto (dolo), ou então, sem representar a possibilidade de realização do facto ou representado o mesmo como possível e sem se conformar com essa realização, proceder sem o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz ( negligência ou mera culpa).
Os danos são os prejuízos sofridos pelo lesado, que podem ser de natureza patrimonial, quando atingem em si o património, fazendo-o diminuir ou frustrar o seu acréscimo, ou de natureza não patrimonial, quando atingem bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico, insuscetíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro.

Por fim, para o preenchimento integral dos requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos, deve estabelecer-se um nexo de causalidade entre o facto e o dano.

A obrigação de reparação só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art.563.º do Código Civil).

No caso em apreciação, não resultou provado que a recorrente sofreu perdas e danos emergentes dos crimes de burla qualificada e de falsificação de documentos.

As letras de câmbio eram letras de favor, pelo que não se destinavam a apresentadas aos aceitantes de favor, sendo sempre debitadas nas contas bancárias da ora recorrente.

Não resultou provado que o demandado/arguido ao utilizar as letras de câmbio suprarreferidas fez crer ao gerente da sociedade “ B... , Lda.”, C... , que o D... tinha aceite a responsabilidade pelo respetivo pagamento, dessa forma logrando continuar a obter financiamento imediato junto de C... , e assim um benefício ilegítimo, nem que com essa sua conduta, causava um prejuízo patrimonial àquele ofendido e a ora recorrente.

E também não é pelo facto das assinaturas do aceitante terem sido falsificadas que foi causado um dano à recorrente, uma vez que sabia serem os aceites de favor.

Os danos descritos pela recorrente, constantes da factualidade dada como não provada nas alíneas e) a j), da sentença, não passaram a constar da factualidade dada como provada, como era pretensão da recorrente.

Perante o exposto, não se se mostrando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil emergentes de crime, mantém-se a absolvição do demandado do pedido de indemnização cível.

Improcede, deste modo, o recurso interposto pela assistente/demandante “ B... , Lda”.


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Recurso do arguido A...

            O recorrente A... defende que foram incorretamente julgados os pontos n.ºs 10, 13 e 14 da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, pois deviam ter sido dados como não provados e ser absolvido do crime de falsificação de documentos.

Avança para o efeito, no essencial, os seguintes argumentos:

- O arguido/recorrente sempre negou que preencheu ou lavrou os aceites nas letras sacadas por D... , estando convencido de que as letras trazidas pelo I... haviam sido assinadas pelo D... , como consta das passagens das suas declarações, que indica e transcreve na motivação do recurso;

- O assistente D... era amigo da testemunha I... ou, pelo menos conheciam-se e mantinham contacto até por relações profissionais e já em tempos aquele aceitava letras de favor à Boa Proa, empresa cujo dono era a testemunha I... e ao próprio I... , como resulta das passagens das suas declarações que indica e transcreve na motivação do recurso;    

- O depoimento da testemunha H... não pode merecer qualquer credibilidade, pois está de mal com o arguido, seu irmão, desde 2011, estando “do lado” do irmão C... e conforme resulta das passagens do seu depoimento, que indica e transcreve na motivação do recurso, limita-se a dizer que o arguido confessou que assinou as letras sem conseguir dizer ao Tribunal as palavras utilizadas por este em tal alegada confissão, sendo uma mera conclusão sua a alegada confissão do arguido;

- A testemunha I... assumiu a assinatura das letras de câmbio, assim confessando ser o autor da falsificação, resultando o seu interesse em proporcionar letras de favor ao arguido a difícil situação em que se encontrava a “ K... , Lda”, para quem trabalhava, como resulta as passagens do seu depoimento, que indica e transcreve na motivação do recurso. Mais confessou ter já em tempos feito a assinatura do D... no decurso de um giro de letras de favor com o D... , durante os anos de 2000 a 2005;

- Não é possível extrair qualquer conclusão do exame pericial, porquanto nos autógrafos foram obtidos de modo diferente.

Vejamos.

O arguido A... especifica nas conclusões da motivação os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados e as concretas provas produzidas oralmente que impõem decisão diversa da recorrida, mas não indica as concretas passagens, com sessão de julgamento e localização na gravação, onde constam os depoimentos em que funda a impugnação.

Porém, uma vez que na motivação do recurso localiza na gravação as declarações por si prestadas e pelo assistente D... , e os depoimentos das testemunhas em que funda a impugnação, transcrevendo os respetivos segmentos produzidos oralmente que tem como relevantes para impugnar a matéria de facto da acusação, o Tribunal da Relação considera que o mesmo deu cumprimento mínimo ao estabelecido no art.412.º, n.ºs 3, al. b) e 4 do C.P.P. e, por uma questão de economia processual, mesmo sem convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação, julga-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, se concluir pela existência de erro de julgamento.

Recordamos aqui que, nos termos do art.127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser de modo diferente.

As regras da experiência, a que se deve atender na livre apreciação da prova, são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.»[9].

Quanto à livre convicção do juiz, nessa apreciação da prova, não pode deixar de ser «... uma convicção pessoal -  até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais  -  , mas em todo o caso , também ela ( deve ser) uma convicção objetivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros[10].

Na livre apreciação da prova o juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis, observando, a este respeito, o Prof. Germano Marques da Silva, que « Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente ( v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova).

Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem essencialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correção do raciocínio, que há-de fundar-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.».[11]     

O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art.355.º do Código de Processo Penal. É ai, na audiência de julgamento, que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na receção direta de prova e se assegura o princípio do contraditório, garantido constitucionalmente no art.32.º, n.º5.

Na verdade, a convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialética de dados objetivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.

Assim, se o recorrente impugna somente a credibilidade das declarações ou do depoimento deve indicar elementos objetivos que imponham um diverso juízo sobre a credibilidade das declarações ou depoimentos, pois aquela, quando estribada em elementos subjetivos é um sector especialmente dependente da imediação do tribunal recorrido. 

Uma vez que o princípio da livre apreciação da prova tanto vincula o tribunal de 1.ª instância como o tribunal de recurso, e que a reforma do Código de Processo Penal de 1998 deixou inequívoco que se quis assegurar um recurso efetivo da matéria de facto, o Tribunal da Relação, na reapreciação da matéria de facto a que se procede nos termos do art.412.º, n.ºs 3 e 4 do C.P.P., deve proceder a uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, avaliando se as provas indicadas por este impõem decisão diversa da recorrida.

De todo o modo, como já atrás se consignou, o Tribunal da Relação só deverá determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.

Se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que a reapreciação  das provas indicadas não impõem decisão diversa da recorrida, nos termos do art.127.º do C.P.P., deve manter a decisão recorrida.

A matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo, que o recorrente A... impugna, resume-se ao seguinte:

« 10. Assim, em datas concretamente não apuradas, mas situadas entre os dias 17.12.2008 e 08.03.2011, o arguido, em local também não apurado, apôs nas letras infra discriminadas, pelo seu próprio punho, a assinatura do ofendido, D... , no local destinado ao aceitante e nas quais figurava como sacador a sociedade “ B... , Lda.”.

 Com efeito: (…);

13. Ao fazer constar, pelo seu próprio punho, as assinaturas de D... no local destinado à assinatura do aceitante nas treze letras de câmbio supra discriminadas, o arguido actuou sempre com o propósito concretizado de obter um benefício ilegítimo, ao qual bem sabia não ter direito, tendo ainda perfeito conhecimento que fazia constar daqueles títulos de crédito factos juridicamente relevantes e com notória valência normativa cartular, assim abalando a credibilidade e fé pública que tais documentos merecem, bem como a segurança e confiança no tráfico jurídico.

14. O arguido agiu em todas as suas condutas de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que aquelas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. »

O Tribunal da Relação ouviu as gravações das declarações prestadas pelo arguido/recorrente A... e pelo assistente D... e os depoimentos prestados pelas testemunhas H... e I... , e dessa audição resulta que os segmentos as transcritos na motivação do recurso correspondem, no geral, ao que por eles foi dito em audiência de julgamento.

O arguido/ recorrente A... , nos segmentos das declarações por si indicados, nega ter efetuado pelo seu próprio punho, a assinatura do assistente D... no local destinado ao aceitante nas letras de câmbio descritas no ponto n.º 10 dos factos provados. Declara que tais letras, de favor, eram-lhe entregues pelo seu vendedor I... , “ para me ajudar, em termos de tesouraria”, servindo para financiar a “ B... , Lda” e a “ K... , Lda” , na medida em que esse dinheiro era utilizado pela “ B... , Lda” para fazer compras de matérias primas, que depois vendia à “ K... , Lda”. 

Por sua vez, a testemunha I... , nos segmentos indicados pelo recorrente, declara, no essencial, que falsificou as assinaturas do D... apostas no local destinado ao aceitante nas letras de câmbio descritas no ponto n.º 10 dos factos provados, e que o fez “ sem ele saber”.  Depois entregava as letras ao arguido A... .

Havia uma relação de confiança entre a testemunha e o assistente D... porque tinha um barco e vendia-lhe material e como estava a começar este fazia-lhe umas letras , tanto para pagar material como de favor para mim, o que continuou até a fábrica da testemunha fechar.

Dos segmentos do depoimento da testemunha D... , indicados pelo recorrente, resulta no essencial, que conhecia a testemunha I... de quando este era dono da empresa Boa Proa e que aceitou letras de favor a esta testemunha, mas foram “assinadas por mim”. Não tem conhecimento, nem nunca desconfiou que a  testemunha I... tenha aceite alguma letra por si. O arguido A... disse-lhe que assumia a responsabilidade e que tinha sido ele que tinha preenchido as letras e que se foi ele que assinou ou não as mesmas isso não sabe.

Mas esta testemunha, a quem falsificaram a assinatura nas 13 letras de câmbio diz mais: que o arguido A... foi seu fornecedor de redes nos anos 80 e 90, nunca tendo tido qualquer relação com a “ B... , Lda”. Quando recebeu uma carta dum Banco ou da “ B... , Lda” para pagar uma letra de câmbio sacada por esta empresa, confrontou a “ B... , Lda” que o remeteu para o arguido A... , dizendo-lhe que tinha sido este quem lhe entregou a letra de câmbio e muitas mais. Quando o arguido A... se deslocou a Peniche a falar consigo, disse-lhe que se responsabilizava, “ foi ele que fez tudo”, que tinha preenchido as letras de câmbio em causa, porque tinha dificuldades financeiras. A testemunha respondeu-lhe que o que ele fez era “uma fraude” e que iria apresentar queixa contra ele, como veio a apresentar.

Teve relações comerciais com a testemunha I... , quando tinha a Boa Proa, tendo as mesmas acabado em 2000/2001. Nessa altura aceitou algumas letras de favor à testemunha I... . O I... fornece-lhe atualmente redes em nome de uma firma do Porto.

Chegou a comentar a história em causa com esta testemunha, mas a impressão com que ficou é que “está fora de tudo isto”. Só falava de coisas banais e nunca lhe disse que foi ele quem falsificou a assinatura do aceitante nas letras de câmbio.

Por fim, do depoimento da testemunha H... resulta, no essencial, que quando lhe foi perguntado se assumiu o lado de algum dos irmãos respondeu que assumiu “o lado” do seu irmão C... . Numa conversa que teve o arguido e irmão A... este disse-lhe que o C... estava a pensar fazer queixa dele por causa da falsificação de umas letras e deu a entender que ia arranjar alguém para ser responsabilizado, que “ia imputar a falsificação a um terceiro”. Entendeu dessa conversa que o arguido confessou ter sido ele quem falsificou as assinaturas em causa nas letras de câmbio. 

Será que destas declarações e depoimentos se impõe dever dar-se como não provada a factualidade que o arguido impugna?

Avançamos, desde já, que a resposta é negativa.

O arguido A... foi fornecedor de redes, do assistente D... , nos anos 80 e 90, pelo que é razoável que tenha tido acesso às assinaturas que este apõe nos documentos.

Acontece que, como bem se anota na fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida, a testemunha I... - a única prova que apoia a versão do arguido A... - apenas surge no final do processo “como um verdadeiro relâmpago”. Efetivamente, nem sequer na contestação da acusação apresentada pelo arguido, junta aos autos a folhas 485 e seguintes, este faz qualquer menção à responsabilidade desta testemunha na falsificação em causa.

A justificação do arguido para não ter apresentado a testemunha I... como autor dos factos em momento anterior, porque não teve coragem dado que foi um favor que ele lhe fez, nada traz de novo à sua versão.

Resulta da mesma fundamentação da matéria de facto, que a testemunha I... não apresentou “um discurso coerente, expressivo e claro ao longo da sua inquirição – limitou-se a confirmar que tinha sido ele próprio a assinar as letras em causa nos autos, não explicando de forma convincente todo o circunstancialismo à volta desse facto, nomeadamente, a forma como as letras chegaram à sua posse e o motivo pelo qual as tinha”, não merecendo ao Tribunal a quo, no âmbito da imediação e da oralidade, qualquer credibilidade.

Tendo a testemunha I... declarado em audiência de julgamento de 29 de outubro de 2017 ser ele o autor das falsificações dos aceites nas letras de câmbio, bem andou o Tribunal a quo ao mandar recolher autógrafos à testemunha “ na posição vertical, isto é, em pé encostado a uma parede” , conforme ata junta a folhas 659 dos autos.

Alega o recorrente que os autógrafos foram obtidos de modo diferente daqueles em que pretensamente a testemunha I... terá aposto a assinatura do D... nos aceites, mas tal não resulta nem dos segmentos do depoimento da testemunha indicados ao Tribunal da Relação, nem da ata de julgamento resulta que esse modo de tomada dos autógrafos à testemunha não seria o melhor.

Feita a perícia à letra da testemunha I... , e a conclusão foi admitir-se como “provável” que a escrita suspeita das assinaturas não seja da autoria de I... ”.

Por outro lado, tendo sido realizado exame pericial à letra do arguido A... , o LPC concluiu ser de admitir como “provável” que a escrita suspeita das assinaturas seja da autoria do A... .

O assistente D... declarou em julgamento que o arguido A... quando se deslocou a Peniche a falar consigo, disse-lhe que “ foi ele que fez tudo”, que tinha preenchido as letras de câmbio em causa, porque tinha dificuldades financeiras e que a testemunha I... pareceu ao assistente D... , em conversa que teve com ele sobre esta matéria, completamente fora do que se passou.

Também a testemunha H... , irmã do arguido e de C... , pese embora esteja de mal com o arguido, desde Junho de 2011, por desavenças familiares , e não tenha sabido precisar os termos concretos referidos pelo arguido, declarou que ficou convicta que foi arguido A... quem falsificou as assinaturas nos aceites das letras, uma vez que numa conversa que teve com ele disse-lhe que o C... estava a pensar fazer queixa dele por causa da falsificação de umas letras e deu-lhe a entender que ia arranjar alguém para ser responsabilizado, que “ia imputar a falsificação a um terceiro

Constando ainda da fundamentação da matéria de facto da sentença que resultou do julgamento que “a relação entre o arguido e I... baseia-se numa relação de favores, sendo que cada um faz favores ao outro quando é necessário”, tendo o arguido “dado trabalho à testemunha I... quando ficou desempregado, em 2005”, é perfeitamente razoável concluir que o depoimento desta testemunha visou apenas favorecer o arguido, não merecendo qualquer credibilidade.

As relações entre o assistente D... e a testemunha I... são de índole profissional e, pelo menos dos segmentos indicados pelo recorrente, não consta – como refere o recorrente - que a testemunha I... tenha confessado ter já em tempos feito a assinatura do D... no decurso de um giro de letras de favor com o D... , durante os anos de 2000 a 2005. E mesmo que tivesse falsificado alguma letra de favor do D... - o que está longe de demonstrar -, certo é que não se mostra provado que falsificou as assinaturas do assistente D... nas letras de câmbio em causa. 
Em suma, o Tribunal da Relação tem como perfeitamente admissível a versão dada como provada pelo Tribunal recorrido na douta sentença recorrida, adquirida na base da imediação e da oralidade e na livre apreciação da prova, embora dela resulta afastada a versão dos factos trazidos ao julgamento pelo arguido A... e pela testemunha I... , que negaram ter sido o arguido quem apôs nas letras discriminadas no ponto n.º 10 dos factos dados como provados, pelo seu próprio punho, a assinatura do assistente D... , no local destinado ao aceitante.

Assim, não se impondo uma decisão diversa da recorrida, mais não resta que confirmar a decisão recorrida relativamente à matéria de facto constante dos pontos n.ºs 10, 13 e 14 da factualidade dada como provada, que assim se mantém.
Julgando definitivamente fixada a matéria de facto tal como consta da douta sentença recorrida, improcede esta questão e o recurso interposto pelo arguido A... .

Consequentemente mantém-se a sentença condenatória do ora recorrente.

            Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento aos recursos interpostos pela assistente “ B... , Lda.” e pelo arguido A... e manter a douta sentença recorrida.

            Custas pelos recorrentes, fixando em 4 Ucs a taxa de justiça a cargo da assistente e em 5 Ucs a cargo do arguido (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. P.P. e art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).

                                                                         *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                                             

   *

Coimbra, 09.01-2017

(Orlando Gonçalves – relator)

                                                                                             

(Inácio Monteiro - adjunto)


[1] As alíneas são introduzidas pelo Tribunal da Relação para facilitar o conhecimento dos recursos.
[2]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[3]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[4]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.

[5] Cfr. Código de Processo Civil anotado , vol. V, pág. 151.


[6] - Cfr. obra citada, 2.º Vol.,  pág. 740 e, no mesmo sentido, entre outros , os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ) e Ac. da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).

[7] No mesmo sentido, cf. o acórdão n.º 529/2003, do mesmo Tribunal ( in D.R., 2.ª Série, de 17 de Dezembro de 2003).. 


[8] - cfr. Prof. Almeida Costa , Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 293 e segs.
[9] cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300. 
[10] cfr. Prof. Figueiredo Dias , “Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.
[11] Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, Verbo, 5.ª edição, pág.186