Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2221/10.9PBAVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EDUARDO MARTINS
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
RECEIO DE FUGA
Data do Acordão: 01/19/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL -COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 191.º, 193.º, 195.º, 196.º, 202.º, N.º 1, AL. A) E 204.º, ALS. A), B) E C), DO C.P.P
Sumário: 1. Para se apreciar os elementos do receio de fuga não pode deixar de se fazer um juízo de avaliação da realidade hipotética com base nas suas manifestações que, por recorrentemente repetidas, se instilaram no consciente colectivo como regras.
2. Trata-se de um juízo de valor que se ajuste ao senso comum sem o distorcer, nem na sobrevalorização dos perigos, nem na sua ignorância ou desvalorização.
Quanto ao perigo, ele deve ser real e iminente, não meramente hipotético, virtual ou longínquo, e resultar da ponderação de factores vários, como sejam toda a factualidade conhecida no processo e a sua gravidade, bem como quaisquer outros, como a idade, saúde, situação económica, profissional e civil do arguido, bem como a sua inserção no contexto social e familiar.
Decisão Texto Integral: A - Relatório:
1. Nos autos de Inquérito n.º 2221/10.9PBAVR, que correm termos no Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra, Secção Única, foi, em 16/9/2010 (fls. 99 e 106 a 111), decidido pela Meritíssima Juiz de Instrução, após 1º interrogatório judicial, que o arguido A... ficasse sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, nos termos dos artigos 191.º, 193.º, 195.º, 196.º, 202.º, n.º 1, al. a) e 204.º, als. a), b) e c), do C.P.P., por existir forte indiciação da prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, correspondendo ao mesmo pena de prisão de 2 a 8 anos, por se encontrarem verificados os pressupostos da respectiva aplicação, mormente o perigo de continuação da actividade criminosa, o perigo de fuga e o perigo de perturbação do inquérito, sem prejuízo de, posteriormente, esta poder vir a ser substituída por permanência na habitação sob vigilância electrónica, desde que verificados todos os pressupostos materiais e consentimentos indispensáveis e feita prognose favorável pela D.G.R.S.
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2. Inconformado com tal decisão, dela recorreu o arguido, em 6/10/2010, pedindo a revogação da mesma e consequente substituição por outra que determine o fim da prisão preventiva e a sujeição do recorrente a uma medida de coacção não privativa da liberdade, em concreto, a obrigação de apresentação periódica, nos termos do artigo 198.º, do C.P.P.
O arguido apresentou as seguintes conclusões:
1 – No caso concreto, inexistem os fundamentos que justifiquem, por parte do Meritíssimo Juiz, a aplicação de prisão preventiva e/ou de obrigação de permanência na habitação;
2 – O recorrente não prestou declarações;
3 – Os autos não se encontram dotados de indícios – pelo menos fortes – que permitam cominar o recorrente com a prática do crime de que vem acusado;
4 – Encontra-se por determinar a participação do arguido/recorrente no cometimento do ilícito que se lhe encontra assacado;
5 – O despacho que sujeitou o arguido/recorrente à medida de coacção de prisão preventiva não menciona os factos susceptíveis de permitir a aplicação de medida tão gravosa;
6 – O risco de fuga é nulo, assim como o risco de prossecução de eventual actividade criminosa e, ainda, o risco de poder prejudicar ou condicionar a actividade processual dos autos;
7 – Nos termos do artigo 202.º, n.º 1, al. a), do CPP, a prisão preventiva só é aplicável se existirem FORTES indícios de prática de actividade ilícita;
8 – A medida de coacção imposta ao recorrente e traduzida, nos termos dos artigos 201.º e 202.º, do CPP, na prisão preventiva e/ou obrigação de permanência na habitação, viola o disposto nos artigos 201.º, 202.º e 204.º, todos do CPP, assim como é violadora do princípio da proporcionalidade a que se encontra obrigado o julgador na sua ponderação, devendo optar-se pela imediata revogação da medida de coacção imposta;
9 – Cautelarmente, e sem prescindir do já alegado, dispõe o artigo 212.º, n.º 2, do CPP, que a verificação da atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação da medida de coacção deverá permitir sempre a substituição por medida de coacção de menor gravidade;
10 – O recorrente é pessoa idosa, actualmente, com 57 anos de idade;
11 – Sofre de diabetes;
12 – Encontra-se o arguido/recorrente a ser acompanhado pelos serviços médicos no Hospital da Figueira da Foz;
13 – Acompanhamento e medicação que se revelam constantemente necessários;
14 – Paralelamente com contínuos episódios de urgência a que se submete em função dos seus distúrbios físicos;
15 – E, ainda, o facto de ter actividade de comerciante, sendo sócio-gerente de uma empresa, devendo com o seu ordenado prover pelo sustento do seu agregado familiar;
16 – Que dependem do arguido, nomeadamente os dois netos menores, dos quais prometeu ao filho que trataria deles quando este faleceu;
17 – As circunstâncias narradas contêm-se dentro do disposto no artigo 212.º, n.º 2, do CPP, obrigando à consideração da atenuação da medida imposta ao recorrente e independentemente da revisão trimestral a que obriga o artigo 213.º, n.º 1, do CPP;
18 – Optando-se pela medida cautelar menos gravosa que passará pela obrigação de apresentação periódica, nos termos do artigo 198.º, do CPP;
19 – Pelo que, em douto Acórdão a produzir pelos Ilustres Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra, seja a medida de coacção imposta ao recorrente imediatamente revogada OU, cautelarmente admitindo e atenta a atenuação da exigência cautelar que subjaz à prisão preventiva decretada e em sua substituição, optar-se pela obrigação de apresentação periódica, nos termos do artigo 198.º, do CPP, a qual, por si só e sem a gravidade da prisão preventiva, precaverá os aspectos consignados nos artigos 204.º, als. a) a c), do CPP.
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3 – Pouco tempo depois de interposto o recurso, por despacho exarado a fls. 120 e verso, em 11/10/2010, foi decidido substituir a prisão preventiva pela medida de permanência na habitação sob vigilância electrónica, não obstante o Ministério Público, em 7/10/2010 (fls. 119), ter emitido parecer no sentido do arguido dever continuar sob prisão preventiva.
Tal despacho é o seguinte:
No despacho de fls. 136 e ss, mais precisamente a fls. 141, o Tribunal já tinha afirmado que são duas as medidas que satisfazem as exigências do caso: a prisão preventiva e a permanência na habitação sob vigilância electrónica.
Aliás, o Ministério Público, aquando do 1.º interrogatório do arguido, promoveu a prisão preventiva, sem prejuízo desta medida poder ser substituída pela medida de permanência na habitação, fiscalizada por meios técnicos – cfr. fls. 135.
Pelo teor de fls. 251, constata-se que o arguido tem o seu passaporte caducado desde 20.11.2006, o que diminui o perigo de fuga – sem esquecer o Tribunal a desnecessidade de passaporte para as deslocações a Espanha, onde o arguido terá contactos e onde se desloca com alguma frequência.
Tudo ponderado e ainda tendo em consideração o teor do relatório de fls. 201 e ss, por se encontrarem verificados todos os pressupostos, decide-se substituir a medida de prisão preventiva aplicada ao arguido A... pela medida de permanência na habitação sob vigilância electrónica, a cumprir na sua residência identificada a fls. 129 e 206 – artigo 201.º, n.ºs 1 e 3, do CPP.
Desde já se autoriza o arguido a sair da sua residência para comparecer a diligências para as quais venha a ser convocado, sejam elas policiais, nos serviços do M.P. ou judiciais.
Notifique e comunique, nos termos do n.º 6 do artigo 7.º, da Lei n.º 33/2010, de 2/9 (ao arguido, respectivo mandatário, DGRS, estabelecimento prisional e órgão da polícia criminal respectivo).
Solicite à DGRS para agir em conformidade.
D.N.
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4. O Ministério Público junto do Tribunal de 1ª instância respondeu, em 2/11/2010, ao recurso interposto, manifestando-se pela improcedência total do mesmo, com a manutenção do despacho que aplicou a medida de coacção, nos termos em que foi proferido, apresentando as seguintes conclusões:
1. Na situação concreta, verificam-se os pressupostos legais para a aplicação da medida de coacção a que o arguido se encontra submetido, pois o perigo de fuga e a continuação da actividade criminosa resultam evidentes dos elementos já carreados para os autos;
2. A investigação ainda se encontra a decorrer, mas os autos já dispõem de “fortes” indícios da prática do crime em investigação, tendo-se apurado com perfeita clareza a participação do arguido nos factos consubstanciadores do ilícito criminal em análise, factos esses que se encontram bem explanados na acta de interrogatório judicial de arguido detido no decurso da qual a Mma. JIC optou por aplicar ao arguido aquela medida por haver motivos para considerar que existia risco de fuga e porque existem fortes indícios da prática do citado crime (artigo 202, n.º 1, al. a), do CPP);
3. Estas as razões pelas quais entendemos que o arguido deve aguardar os ulteriores termos do processo submetido à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação sob vigilância electrónica, pois não se verificaram quaisquer circunstâncias que importem uma atenuação das exigências cautelares, parecendo-nos desadequado e desproporcional a substituição dessa medida cautelar por qualquer outra.
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4. O recurso foi, em 5/11/2010, admitido.
Por despacho de 22/11/2010, foi mantido integralmente o despacho recorrido.
Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 29/11/2010, emitiu douto parecer em que defendeu que deve ser negado provimento ao recurso, salientando, em resumo, que “não poderia deixar de se manter a prisão preventiva ao arguido, agora a permanência na habitação, após a decisão de fls. 120 e 120 verso, dada a gravidade e moldura penal do crime de burla qualificada, a existência dos perigos de fuga, de perturbação do processo e de continuação da actividade criminosa (fls. 110 a 111 dos autos).
Foi cumprido o artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Deixa-se aqui consignado que o ora recorrente se encontra detido desde 14/9/2010, tendo estado em prisão preventiva até 11/10/2010, data a partir da qual, como acima já referido, passou a estar sujeito à medida de permanência na habitação sob vigilância electrónica (fls. 35).
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
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B – 1) Decisão recorrida:
A detenção efectuada foi legal, uma vez ter sido efectuada ao abrigo do disposto nos artigos 254.º, n.º 1, al. a) e 257.º, n.º 2, ambos do CPP, face à situação de fora de flagrante delito e aos mandados de detenção de fls. 59 e 60.
Tal como promovido, validam-se as apreensões efectuadas nos autos.
Compulsados os autos, encontram-se indiciados os seguintes factos:
O arguido A... e o J... conheceram-se em Outubro de 2008.
Desde logo, tomou conhecimento que o J... era empreiteiro, adquirindo, construindo e vendendo na actividade imobiliária através de três empresas de que é sócio-gerente, sedeadas em ....
Logo nessa ocasião, apercebendo-se que ele era pessoa de bons relacionamentos no meio social e empresarial, com o objectivo de o ludibriar e de o fazer entregar-lhe dinheiro ou de, através dele, vir a ludibriar terceira pessoa e a conseguir dela ou de uma instituição uma avultada quantia em dinheiro, deu-lhe conhecimento de que conhecia uma pessoa idosa (a quem se referia como o “Velho”), sua amiga, que era abastada, era proprietária de dois imóveis valiosos, bem localizados na cidade de Coimbra, e de outros terrenos, que o mandatou para angariar comprador ou compradores para aqueles bens, cujo valor global se cifrava nos 2,5 milhões de euros, e que estaria na disposição de doar a uma instituição de caridade ou fundação o quantitativo de 50.000.000 €, em numerário, composto por notas de origem francesa que o referido “Velho” tinha trazido para Portugal por ter trabalhado na casa da moeda francesa, bem sabendo o arguido que estes factos não correspondiam à verdade e foram por si inventados para convencer, em primeira linha, o J....
Perante tais factos, o J... demonstrou ao arguido ter ficado interessado em adquirir os imóveis devido à localização privilegiada em termos de projectos arquitectónicos a desenvolver e ficou de lhe poder a vir indicar uma instituição destinada à doação.
Após essa conversa, o arguido e o J... foram mantendo contactos telefónicos e pessoais e desenvolveu-se entre ambos uma relação de confiança e de amizade.
Com o decorrer do tempo, e aproveitando-se dessa relação estabelecida entre ambos, o arguido manteve sempre aquelas promessas e a sua versão dos factos e o J... mostrava-se cada vez mais interessado na aquisição dos imóveis, sendo que, quando aquele manifestava interesse em conhecer os prédios, o arguido arranjava sempre uma desculpa convincente para o impedir.
Em Março deste ano, o J..., no exercício da sua actividade empresarial, vendeu e realizou obras numa moradia a R... que, então, conheceu, provedor da “F…”, instituição de Direito Canónico, com sede em .., e que emana da Província Portuguesa da Congregação ..., com sede em Lisboa.
Nessa ocasião, perante as funções por ele exercidas, o J... deu-lhe conhecimento dos factos que lhe foram atrás transmitidos pelo arguido, concretamente, das promessas de doação de 50.000.000€ a uma instituição de caridade ou fundação, e perguntou-lhe se estaria interessado, ao que o R..., desde logo, demonstrou interesse em que fosse a fundação que representava a beneficiar da doação, tanto mais que era frequente a mesma receber doações anónimas e quis logo ser esclarecido sobre a origem do dinheiro, o que o J... fez.
O J... deu de imediato conhecimento ao arguido deste interessado na recepção das doações.
Assim, nos D... seguintes, na sequência dos contactos que ia mantendo com o arguido, este disse ao J... que um amigo estava a precisar de ajuda imediata para saldar uma dívida no valor de 1.600.000€, facto que o J... de imediato transmitiu ao R... lhe solicitou se a Fundação poderia dar essa ajuda.
Como este manifestou algumas dúvidas e se mostrou disponível a apenas dispor daquela quantia depois de receber a doação dos 50.000.000€, o J... disse-lhe que a dívida do amigo era para com o tal “Velho”, que tinha perfeita confiança no arguido e na legalidade das notas que integrariam tal doação e que estava disposto a dar garantias do seu património, referindo-se a uns armazéns sitos na zona industrial de Albergaria-a-Velha avaliados em cerca de 6,5 milhões de euros com um ónus ao ... de 1,2 milhões.
Após confirmados a propriedade, os valores, os ónus e local dos armazéns pertencentes ao J..., em fim de Julho ou início de Agosto, o R... disse-lhe que o auxílio de 1.600.000€ pelo prazo de dez D..., como estava a ser negociado, acarretava para a fundação responsabilidades apuradas de cerca de 625.000€ que, com o recebimento da doação, estariam resolvidos.
Dada a confiança tida no arguido, o J... assumiu a responsabilidade se algo viesse a correr mal, tendo, para o efeito, sido elaborado no escritório das instalações da sua empresa “JR….”, em …, o contrato de mútuo com hipoteca, com assinaturas reconhecidas notarialmente a 27 de Agosto de 2010, acordando-se que o prazo de dez D... começava no dia da transferência bancária.
Assim, a quantia de 1.600.000€ foi obtida pelo J... que contraiu um mútuo com hipoteca junto da Fundação…, confessando-se devedor à referida Congregação ..., após o que esta transferiu no Balcão do ... de ... a quantia para a conta do J..., tendo este aí levantado a mesma em numerário no dia 31 de Agosto de 2010, pois o arguido, que estava constantemente a par destas negociações, exigia que aquela quantia fosse entregue em notas.
A Fundação …e a Congregação acederam, assim à cedência da quantia de 1.600.000€ e ao mútuo em causa com a promessa efectuada pelo arguido e transmitida pelo J... ao R... de um donativo a seu favor no valor de 50.000.000€.
Aquela quantia de 1.600.000€ em dinheiro, levantada do ..., foi entregue nesse mesmo dia ao arguido, tendo, para o efeito, o J... e o R... .., acompanhados de testemunhas, se deslocado junto do Stand da…, sito em santa Luzia, onde o J... a entregou ao arguido.
Assim sendo, o arguido, através da promessa da entrega de um valor em numerário de 50.000.000€ em notas que não teriam ainda entrado no circuito legal e teriam sido produzidas em França, na Casa da Moeda, bem como com a promessa de transferência de propriedade de duas habitações valiosas localizadas na cidade de Coimbra e de outras propriedades, logrou convencer o J... e, por intermédio deste, o R... a entregar-lhe a quantia de 1.600.000€ em numerário.
O arguido não cumpriu com as promessas que ardilosamente tinha arquitectado, pois elas tinham por si sido inventadas e não tinham correspondência na realidade, tendo integrado no seu património a quantia em causa após esta lhe ter sido entregue.
Actuou com recurso à elaboração de uma história enganosa que durou largos meses, relacionando-se com o J... nesse período temporal, procurando assim ganhar a confiança do mesmo, e, através deste, do responsável pela Fundação, para assim os conseguir enganar e os levar a dispor do seu património a seu favor.
O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, com o propósito alcançado de convencer o J... e, por intermédio deste, o R... a proceder à entrega da referida quantia e de a fazer sua, relatando-lhe, para o efeito, factos que sabia não serem verdadeiros, mas que sabia que, atendendo ao facto de o J... ser pessoa do mundo empresarial, do ramo da construção civil, e bem relacionado e de o R... .. ser provedor de uma Fundação habituada a receber donativos anónimos, eram idóneos a convencê-lo a entregar-lhe o dinheiro, o que efectivamente quis e conseguiu, causando-lhes o equivalente prejuízo patrimonial.
Sabia ainda o arguido que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
O arguido teve já diversos processos-crime pela prática de crimes de contrafacção de moeda, tendo, inclusive, já cumprido pena de prisão.
Face à elevada quantia de que se apoderou e de modo a fugir à acção da justiça, o arguido pretende ausentar-se do País e ir para o Brasil.
Estes factos encontram-se indiciados face às provas, à informação de serviço e cota de fls. 3 e 75, auto de notícia de fls. 15, autos de apreensão e fotografias de fls. 5 a 14, autos de inquirição de fls. 19, 27, 36, 68 e 73, talão bancário de fls. 26, ficha biográfica de fls. 31, fotocópias de documentos de fls. 44 a 49, 63 a 67, auto de busca de fls. 111 e 112, apreensões de fls. 113 a 119.
É de frisar que nem só o J... sabe da entrega de um milhão e seiscentos mil euros ao arguido, como referiu nas suas declarações de fls. 19 e seguintes. Também a testemunha M..., nas suas declarações de fls. 27 e seguintes, refere que acompanhou o J..., aquando da entrega do montante de um milhão e seiscentos mil euros ao A.... Segundo esta testemunha, a entrega do dinheiro foi efectuada junto ao Stand da …, em Coimbra, nos termos em que descreve nas fls. Referidas.
Dos factos indiciados, sustentados com as provas indiciárias supra referidas, pode concluir-se, com suficiente segurança, haver indícios da prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, al. a), do C. Penal, crime este punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
O crime em causa é grave, atendendo ao valor muito elevado em causa e mesmo à forma como o arguido o preparou, com a abordagem prévia e prolongada no tempo de J....
Atendendo à personalidade do arguido revelada na sua actuação, ao facto de já ter sido indiciado por crimes de idêntica natureza e ainda algumas dificuldades económicas que possa sentir face aos muitos encargos financeiros que tem, entende-se que existe perigo de continuação da actividade criminosa. Em concreto, perigo que o arguido volte a praticar actos da mesma natureza, mesmo que de montantes diversos e menos elevados para conseguir arranjar dinheiro.
Atendendo à moldura abstracta do crime, entende-se que existe, igualmente, perigo de fuga. O arguido poderá eximir-se do alcance da justiça, a fim de evitar alguns anos de prisão.
Quanto a este perigo, é de frisar o teor da informação de serviço de fls. 3, em que a entidade policial informa que o suspeito tinha viagem marcada para o Brasil para o dia seguinte e ainda a cota de fls. 75 onde se dá conta que, no dia 15 de Setembro, ao longo da manhã, o telemóvel apreendido ao arguido tocou várias vezes, sendo algumas das chamadas provenientes de um número do Brasil .
No que respeita a este perigo de fuga, é ainda de mencionar as declarações de J..., mais precisamente a fls. 22, onde ele refere que o A...lhe disse que o dinheiro tinha sido entregue e que estava tudo bem (referindo-se ao milhão e seiscentos mil euros). No entanto, quando o “preto” se preparava para lhe dar o caixote com os dez milhões, tinha sido detido pelas brigadas anti-crime da PSP e ele dali tivera que se por em fuga para Madrid, onde, supostamente, àquela hora se encontraria. O A...disse-lhe, ainda, que tudo iria ser resolvido como combinado, com a entrega dos cinquenta milhões.
Segundo estas declarações do J..., o A..., verdade ou mentira, disse que tinha que se por em fuga para Madrid.
Pelo que fica dito supra, entende-se que, de facto, existe perigo de fuga.
Apesar dos muitos indícios que os autos já contêm, não restam dúvidas que a presente investigação está no início, sendo certo que o arguido poderá diligenciar e contribuir para a perturbação do decurso do inquérito.
Os perigos supra referidos e acabados de descrever são intensos e também é de muito elevado grau de ilicitude o conjunto dos factos indiciados.
Pelo que fica dito, apenas uma medida detentiva da liberdade satisfaz as exigências cautelares do caso. No entanto, sempre se entende que são duas as medidas que satisfazem tais exigências: A prisão preventiva e a permanência na habitação sob vigilância electrónica.
De facto, se o arguido não puder sair da sua residência, os referidos perigos ficarão acautelados. Porém, previamente, será necessário apurar se estão ou não preenchidos todos os pressupostos e se serão dados os consentimentos indispensáveis à aplicação de tal medida.
Assim, neste momento, apenas uma medida se revela capaz de assegurar as exigências cautelares, sendo ela a prisão preventiva que se revela necessária, proporcional e adequada.
Nestes termos, e ao abrigo do disposto nos artigos 191.º, 193.º, 195.º, 196.º, 202.º, n.º 1, al. a) e 204.º, als. a), b) e c), do CPP, decide-se que o arguido deverá continuar a aguardar os ulteriores termos processuais sujeito a prisão preventiva, sem prejuízo de, posteriormente, poder vir a ser substituída por permanência na habitação sob vigilância electrónica, desde que verificados todos os pressupostos materiais e consentimentos indispensáveis e feita uma prognose favorável pela DGRS.
Passe os mandados de condução ao EP.
Cumpra o disposto no artigo 194.º, n.º 8, do CPP.
Notifique.
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Cumpre apreciar e decidir:
De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
A questão a conhecer é a seguinte:
1) Saber se a medida de coacção aplicada ao recorrente, em 16/9/2010, por ser excessiva, deve ser revogada e substituída pela obrigação de apresentação periódica, nos termos do artigo 198.º, do CPP.
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Como é reconhecido por todos, o artigo 27.º, da CRP, consagra o princípio geral do direito à liberdade e segurança, contemplando as apertadas excepções que existem em relação ao mesmo.
Por seu turno, o artigo 28,º, n.º 2, da CRP, dispõe o seguinte:
A prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.
Além disso, pode ler-se no artigo 32.º, n.º 2, da CRP:
Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
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Se é verdade que o direito à liberdade, como direito fundamental, é de aplicação directa e vincula todas as entidades públicas e privadas e que a sua limitação, suspensão ou privação apenas opera nos casos e com as garantias da Constituição e da Lei – artigos 27.º, n.º 2 e 28.º - não deixa a mesma Constituição de prever casos de violação dos deveres a que os cidadãos estão adstritos ou as situações particulares decorrentes da prática de crimes. Nestas ocorrências, pode justificar-se não só a limitação, como a suspensão ou mesmo a privação de alguns dos direitos fundamentais, incluindo o direito à liberdade, desde que salvaguardada a verdade, a legalidade e a proporcionalidade. E aos tribunais compete não apenas a aplicação de reacções criminais, como a aplicação de quaisquer outras medidas que atinjam os direitos, liberdades e garantias.
Foi isso que aconteceu no despacho recorrido, no respeito absoluto pelas normas legais acima invocadas.
Como afirma Frederico Isasca, in “A prisão preventiva e restantes medidas de coacção”, Jornadas de Processo Penal e Direitos Fundamentais, Coordenação da Prof. Fernanda Palma, Almedina, a pag.103, “se é certo que a reposição do direito se não pode fazer à custa da negação ou da limitação dos direitos de defesa, não é menos verdade que “do outro lado” existe uma vítima que é o suporte individual de um bem jurídico fundamental que foi violado e que espera uma resposta célere e em conformidade com as expectativas – tanto substantivas, quanto adjectivas - criadas pela Ordem Jurídica. Não podemos pois correr o risco de imolar a realização da justiça na ara dos direitos do arguido, sob pena de total descredibilização do Sistema. Uma tal atitude criaria na vítima e na colectividade um sentimento de absoluta frustração e compreensível revolta, podendo em última instância conduzir a motivações para uma auto-tutela dos interesses ou para formas marginais de “justiça”, pondo em causa o próprio Estado de Direito. Neste contexto, as medidas de coacção – expressão máxima da restrição de direitos, liberdades e garantias, em Processo Penal – emergem como condição indispensável, embora num quadro de excepcionalidade, a realização da justiça. E traduzem, nessa exacta medida, uma das vertentes do conteúdo útil do princípio do equilíbrio.
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Saliente-se, de seguida, que, no que diz respeito ao uso dos meios de coacção em processo penal, haverá sempre que respeitar os princípios da legalidade (artigos 29.º, n.º 1, da CRP, e 191.º do CPP), excepcionalidade e necessidade (artigos 27.º, n.º 3 e 28.º, n.º 2, da CRP, e 193.º, do CPP), adequação e proporcionalidade (art.º 193.º do CPP), como emanação do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, contido no artigo 32.°, n.° 2, da Constituição. Esta natureza significa que a aplicabilidade da prisão preventiva se restringe aos casos em que, verificados qualquer dos requisitos gerais do artigo 204.° e o requisito especial do artigo 202.°, ambos do CPP, as restantes medidas de coacção se mostram inadequadas ou insuficientes.
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Saliente-se que, no caso em apreço, a medida de coacção imposta na decisão ora em crise é, em termos concretos, e só, a prisão preventiva.
Relembre-se o que foi decidido, em 16/9/2010, pelo Tribunal:
“(…)
Nestes termos, e ao abrigo do disposto nos artigos 191.º, 193.º, 195.º, 196.º, 202.º, n.º 1, al. a) e 204.º, als. a), b) e c), do CPP, decide-se que o arguido deverá continuar a aguardar os ulteriores termos processuais sujeito a prisão preventiva, sem prejuízo de, posteriormente, poder vir a ser substituída por permanência na habitação sob vigilância electrónica, desde que verificados todos os pressupostos materiais e consentimentos indispensáveis e feita uma prognose favorável pela DGRS.
Passe os mandados de condução ao EP.
Cumpra o disposto no artigo 194.º, n.º 8, do CPP.
Notifique.”
Não restam dúvidas que o Tribunal optou, portanto, pela medida de coacção mais gravosa, sem embargo de admitir a possibilidade de, mais tarde, como veio a acontecer, a substituir por permanência na habitação sob vigilância electrónica.
O que acaba de ser dito poderia, até, levar à conclusão de que o presente recurso se teria tornado inútil, em virtude da alteração da medida de coacção, entretanto, ocorrida, isto é, a medida de coacção que deu origem ao recurso já não está em vigor.
Porém, face ao que vem sendo entendido pelo Tribunal Constitucional, nesta matéria, há que conhecer do recurso, a fim de salvaguardar eventual conduta futura do arguido. Com efeito, desde o acórdão n.º 90/84 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol., págs. 267 e seguintes) está firmado o entendimento jurisprudencial de que, em casos de detenção ou prisão preventiva, mantém interesse o recurso de constitucionalidade interposto da decisão ordenatória de privação da liberdade, ainda que no subsequente desenrolar do processo de extradição ou criminal se venha a confirmar ou modificar essa medida de privação de liberdade. Como se escreveu nesse acórdão, existindo o direito fundamental a pedir uma indemnização contra o Estado em caso de prisão ilegal (art. 27º, n.º 5, da Constituição), se o Tribunal Constitucional viesse a abster-se de conhecer do recurso, por considerar este inútil, “estaria afinal a precludir o exercício pelo recorrente [...] do direito que lhe é reconhecido por aquele preceito constitucional.”
Avancemos, então, na apreciação do recurso.
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A aplicação das medidas de coacção está enquadrada na confluência de valores antagónicos: de um lado, a procura da verdade e da segurança; de outro, a dignidade da pessoa humana.
Para a convergência dos valores neste difícil equilíbrio, em que se deve ter sempre presente o princípio da presunção de inocência do arguido, o legislador sujeitou a aplicação das medidas de coacção a vários princípios (a ponderação abstracta), que se devem entender como regras regulamentadoras da decisão do caso em apreciação pela autoridade judiciária (a ponderação concreta), do objectivo dali resultante, a compatibilização prática dos indicados valores.
Neste quadro, é preciso ter bem presente o carácter excepcional das medidas de coacção, perante a restrição que representam nos direitos fundamentais dos cidadãos, direitos esses que resultam do artigo 18, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Por isso, compreende-se que se imponham vários princípios processuais para a aplicação de tais medidas de coacção, desde logo, os de necessidade, legalidade, tipicidade, proporcionalidade e adequação, especialidade e subsidiariedade (quanto à prisão preventiva).
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Consideremos que o artigo 204.º, do CPP, dispõe o seguinte:
Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.” ****
O recorrente coloca a questão da prisão preventiva ser desadequada quanto a todos os seus possíveis fundamentos.
Considera que os autos não se encontram dotados de indícios, pelo menos, fortes da prática do crime em causa, acrescentando que o risco de fuga é nulo, assim como o risco de prossecução de eventual actividade criminosa, e, ainda, o risco de poder prejudicar ou condicionar a actividade processual dos autos.
Vejamos.
Nos termos do artigo 202.º, n.º 1, al. a), do CPP, a lei exige que haja “fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos”.
Que deve ser entendido como “fortes indícios”?
A este propósito, para compreendermos, primeiro, qual a noção de indício, nada melhor do que citar o Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 10/12/2008, Processo n.º 645/08.5PBFIG-A.C, relatado pelo Exmo. Desembargador Gabriel Catarino, onde consta o seguinte: “A nossa lei, à semelhança da lei italiana – cfr. artigo 273º do Codice di Procedura Penale –, estabelece dois momentos de qualificação indiciária no percurso processual da averiguação da responsabilização ou inculpação penal do arguido: um primeiro na alínea a) do nº 1 do artigo 202º do Código de Processo Penal quando exige que para decretamento da medida de coacção de prisão preventiva se torna necessária a existência de “fortes indícios”; e um segundo no nº1 do artigo 283º do mesmo diploma quando exige que, para dedução da acusação, se torna necessário que durante o inquérito se haja reunido ou recolhido “indícios suficientes”. Ainda que não atinando com o tema que versa o thema decidendum, convirá conferir o que na doutrina se sugere dever entender-se por indícios, graves indícios e indícios suficientes. “O indício em sentido técnico, é uma circunstância certa, um dato objectivo, um traço sensível que, apesar de não representado directamente no thema probandi, consente que se chegue a ele por via inferencial. Diversamente da prova representativa (dita também ‘histórica’ ou ‘directa’), que tem por objecto próprio o facto-crime descrito na acusação, a prova indiciária (dita também ‘critica’ ou ‘lógica’ ou “indirecta”, versa sobre um facto diverso, do qual mediante um procedimento lógico, se pode alcançar ao ilícito penal imputado ao arguido. “Quando (ao juiz) é requerida uma confirmação do libelo acusatório, para pronunciar, não deve dispor, certamente, de uma prova certa de culpabilidade do sujeito, mas deve estar em posição de formular um juízo cautamente e seriamente probabilístico em ordem à culpabilidade. Os elementos de que dispõe devem ser de tal modo a consentir, pela sua consistência, prever que, através da futura aquisição de ulteriores elementos, serão idóneos a demonstrar a responsabilidade e a fundar, no entretanto, uma qualificada probabilidade de culpabilidade. Os indícios distinguem-se, quanto à espécie: a) – pela força probatória, em indícios manifestos, próximos ou remotos; b) - pela sua extensão, em indícios comuns ou gerais e indícios próprios ou especiais; c) – do ponto de vista cronológico, em antecedentes, concomitantes e subsequentes; d) – situando-se unicamente no ponto de vista das circunstâncias probatórias. O autor italiano Pietro Ellero, intentou um estudo metódico dos principais indícios, tendo fornecido, deles, uma classificação lógica de acordo como seu papel incriminador, em três grupos: 1º - as condições morais e físicas que tornaram possível o delito da parte do acusado e que comprovam, por assim dizer, o delito virtual: são elas a capacidade de cometer o delito investigado, a oportunidade em cometê-lo e o móbil delitivo; 2º os rastos materiais deixados pela execução do delito; 3º as manifestações do culpado e de terceiros, seja antes seja depois do acto. “(Prova) indiciária é uma prova mediante uma pluralidade mais ou menos grande de indícios: está dirigida – diz Rittler – para (ou em direcção) a uma pluralidade de coisas indiciárias”. “Ellero estabelece como princípio que, se vários indícios se relacionam com uma só causa, o seu concurso vale como indício necessário; porque indica assim, necessariamente, o facto em questão. Por isso, a prova indiciária é perfeita quando os indícios assinalam necessariamente o facto como causa de quanto se haja manifestado. Os indícios isolados são’contingentes’, quer dizer, não aportam senão indicações ou suspeitas; no entanto, os indícios diferentes e concordes valem como necessários, quer dizer, proporcionam uma verdadeira prova”, – François Gorphe, Apreciación Judicial de las Pruebas, pag. 281- que, mais adiante, – op.loc. cit. 286 – refere, que o valor da prova indiciária, mais que qualquer outra, depende do juiz “por ser sua incumbência, no momento em que constitui a operação mental de interpretação dos factos e de reconstrução do acordo com os dados fragmentários. Este trabalho requer por sua vez uma sólida lógica, psicologia penetrante, bastante experiência da vida e extensos conhecimentos sobre os diferentes problemas que possam plantear-se no processo”. – op. loc. cit. Pag. 286. A jurisprudência com variações semânticas pouco dissonantes tem vindo a definir indícios suficientes como aquele conjunto de elementos lógico-materiais, que socavados de verificações e percepções sensoriais objectivas, se congraçam, de acordo com as regras da experiência comum, numa convicção alicerçada quanto à existência e ocorrência de um determinado facto histórico. No domínio da legislação pretérita a doutrina e a jurisprudência tinham sedimentado a ideia do que devia entender-se por indícios suficientes. No crisol conceptual que se havia condensado para significar as expressões utilizadas na lei adjectiva usava considerar-se que existiam indícios suficientes ou prova bastante quando dos elementos de facto recolhidos no processo depois de, devidamente analisados e conjugados entre si e com as presunções judiciais ou naturais ligadas ao princípio da normalidade e às regras da experiência comum, criavam a convicção de que, a manterem-se em julgamento, o arguido seria condenado, ou de que, pelo menos, a condenação seria mais provável que a absolvição. Na aferição que se possa fazer a propósito da definição de indiciação suficiente não se poderá descartar o feixe de normas fundamentais e de direito convencional que regem e estruturam os princípios vectores que hão-de nortear um processo justo e equitativo arrimado aos valores de um Estado que proclama e pretende prosseguir na senda da observância dos direitos fundamentais da pessoa humana, com especial ênfase para dever de respeito pela dignidade da pessoa humana, com a inerente preservação do bom nome e reputação e a defesa contra intromissões abusivas e arbitrárias na esfera de direitos individuais. Assim é que inexoravelmente associada à ideia de indícios suficientes ou necessários para levar alguém a julgamento deverá caminhar o princípio “in dubio pro reo”, enquanto emanação da garantia constitucional da presunção de inocência – cfr. artigos 32.º, n.º 2, Constituição da República Portuguesa; 11.º, n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 Dezembro de 1948; 6.º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Indícios suficientes são os elementos que, maturados, mesclados e conjugados se congraçam num juízo, convictamente, persuasor da existência de uma conduta culpável de um determinado agente, e gerador da convicção de que esse agente poderá a vir a ser condenado. Constituem-se em vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer da existência de um facto jurídico-penalmente relevante e de que deve ser imputável a alguém determinado, devendo ou podendo ser previsível que, num juízo de prognose, solidamente estruturado a escorado, a manterem-se em julgamento, ocorrerão fundadas e sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelos factos típicos que lhe são imputados. Na indiciação em fase de inquérito, ou seja numa fase em que os elementos colectados ainda não foram objecto de contraditório, o grau de convencimento do juiz e de ponderação de imputação causal de determinado agir ao um concreto sujeito está dependente das regras de experiência e do sentido lógico representativo com que uma dada realidade percepcionada se prefigura ao discernimento e compreensibilidade do julgador. O juiz pode, nesta fase, socorrer-se das inferências permitidas por um conjunto de elementos que soem ocorrer em situações ou casos similares, observando sempre que as máximas de experiência atinam com factores de aleatoriedade que podem conduzir a juízos erróneos ou de defeituosa avaliação.”
Definido que está qual o conceito de “indícios”, deve o julgador retirar diferentes ilações da lei se referir, em duas fases processuais, a “índicios suficientes” e a “fortes indícios” e, por via disso, ser mais exigente quanto aos pressupostos a considerar no momento em que se debruça sobre a medida de coacção a aplicar?
Com todo o respeito, só uma análise perfunctória da questão pode levar a considerar que o legislador seja mais exigente com os indícios para aplicação da prisão preventiva do que para a acusação. Na esteira de Castanheira Neves, está visto que a boa hermenêutica das normas jurídicas não se alcança só com o recurso a um razoável dicionário! … Apesar da singular consideração semântica significar o contrário, o legislador - e não discutimos a técnica – só pode ter usado fortes indícios com a perfeita consciência de com essa expressão poder exigir menos que com a expressão indícios suficientes. Com efeito, não se esqueça que, em muitos casos, a prisão preventiva, pela força das circunstâncias, precede a dedução de acusação, pelo que a distinção expressa na lei - Art.º 202º n.º 1 al. a) Código Processo Penal ... fortes indícios...; Art.º 283º n.º 1 do Código Processo Penal ... indícios suficientes – tem que ser interpretada para além do respectivo sentido literal. Como esclarecidamente refere Maria João Antunes [Liber discipuloram, O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção, pág. 1252], «o que seria insuficiente para a acusação ou para a pronúncia pode ser bastante para dar como verificado o pressuposto fortes indícios da prática de crime, tanto mais quanto, tratando-se da fase de inquérito, a medida de coacção pode ser decidida num momento processual ainda de aquisição da prova»; «Quando se decide a aplicação de uma medida de coacção podem ainda não ser mobilizáveis os mesmos elementos probatórios ou de esclarecimento, e portanto de convicção, que já estarão disponíveis quando se decide pela acusação ou pronúncia. Por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a acusação ou pronúncia pode ser bastante para dar como verificado o pressuposto “fortes indícios da prática do crime”». Fortes indícios e indícios suficientes reportam-se a realidades diversas, por isso são juízos distintos em momentos processuais diversos.
Sobre o que se entende por “ fortes indícios”, escrevem Simas Santos e Manuel Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, I Volume, pág. 995. “ Quando a lei fala em fortes indícios há que ter em conta a compreensão ou abrangência exacta dessa realidade, pois que o legislador se não limitou a falar em indícios, mas em fortes indícios, o que inculca a ideia da necessidade de que a suspeita sobre a autoria ou participação no crime tenha uma base de sustentação segura. Isto é: não basta que essa suspeita assente num qualquer estrato factual, mas antes em factos de relevo que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade, sob pena de se arriscar uma medida tão gravosa como esta em relação a alguém que pode estar inocente ou sobre o qual não haja indícios seguros de que com toda a probabilidade venha a ser condenado pelo crime imputado”.
Concluindo, o traço impressivo que o legislador quis deixar ao aplicador foi o de que os indícios têm que ser sólidos, inequívocos para qualquer das fases em questão. Ora, ultrapassada a questão semântica, é indubitável que, no momento em que foi ordenada a prisão preventiva do recorrente (e só esse interessa agora analisar), existiam nos autos indícios sólidos e inequívocos (fortes indícios), daquele ser autor de um crime de burla qualificada.
O arguido, no momento do primeiro interrogatório judicial, usando de direito que a lei lhe confere, não prestou declarações quanto aos factos a ele imputados, após ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 141.º, n.º 4, als. a), b), c) e d), do CPP, conforme resulta de fls. 99 a 103.
Por conseguinte, perante o silêncio do arguido, resta avaliar os restantes elementos constantes dos autos.
Nesse âmbito, encontramos, com relevo, a fls. 48/50, o auto de denúncia, de 14/9/2010, no qual J... descreveu, em resumo, factos, ocorridos em 31/8/2010, relativos a uma entrega de dinheiro ao ora recorrente de 32 molhos de notas de 500 euros, com cem notas cada, quantia essa que se destinava a ser entregue por A... a um indivíduo residente em Coimbra, no sentido deste último liquidar uma dívida que tinha e para que pudesse posteriormente doar uma quantia de cinquenta milhões de euros a uma Instituição/Fundação, acrescentando que, até esse dia 14 de Setembro de 2010, a dita quantia não tinha sido devolvida nem sido fechado o negócio, temendo o denunciante estar a ser burlado, assim como a fuga do denunciado para o Brasil.
No referido auto de denúncia, foram indicados, como testemunhas, R... , B..., S... e M....
Depois disso, encontramos, a fls. 51/55, o auto de inquirição a J..., levado a cabo pela P.J., em 14/9/2010, no qual o denunciante descreveu pormenorizadamente os factos que deram origem ao acima mencionado auto de denúncia (para evitarmos repetições, consigna-se aqui que, no essencial, os factos constantes da decisão recorrida descrevem o que foi dito nesta ocasião).
Prosseguindo, a fls. 56, encontra-se cópia de um talão relativo a uma operação bancária de levantamento de caixa no valor 1.600.000€ (assinatura do denunciante).
Mais adiante, a fls. 57//59, existe o auto de inquirição a M..., levado a cabo pela P.J., em 14/9/2010, no qual consta o seguinte:
“(…)
No passado dia 31 de Agosto, cerca das 9h30/10h00, deslocou-se aos escritórios do J... que se situam junto à Câmara de ..., a pedido deste.
Era intenção do J... que o depoente servisse de testemunha no levantamento de uma quantia em dinheiro, concretamente de 1.600.000€, a efectuar no ..., em ....
Esta quantia seria para posterior entrega ao A...(…)
A entrega do dinheiro foi efectuada junto ao Stand de automóveis da marca .., sito em Coimbra, nas circunstâncias que passa a esclarecer e tinha como contrapartida a seguinte razão:
Segundo o J... contou, (…)
Após a entrega, o A... pediu-lhes para esperarem naquele local que iria buscar uma caixa com os 10 milhões de euros para doar à fundação que disse ter como nome .., sendo que nunca mais o voltaram a ver até ao dia de ontem, quando ele foi detido junto ao restaurante …, na Mealhada.
(…).”
Avançando um pouco mais, há, a fls. 63/70, o auto de inquirição de R..., levado a cabo pela P.J., em 15/9/2010, no qual pode ser lido o seguinte:
“(…)
O Sr. J... disse-lhe que tinha perfeita confiança no alegado amigo ainda que continuasse a não dizer o nome dele e que até “punha a cabeça no cepo por ele”, para tal se prontificando a oferecer garantias do seu património, (…)
Foi então elaborado, (….), o contrato de mútuo com hipoteca que apresenta e que fica reproduzido em cópia nos autos, reconhecido notarialmente em 27 de Agosto, conforme junta também.
(…)
Houve uma primeira deslocação ao ... antes da data da transferência, para preparação da operação bancária, tendo estado presentes o Sr. J..., o inquirido e o Sr. Padre D….
No dia 31, deslocaram-se ao ... para tal efeito, além do J..., o inquirido, o Padre D, o B...e o C…. (…)
No gabinete do gerente, Sr. A..., foi formalizada a transferência para a conta do Sr. J..., assinando o inquirido e o Padre D... que logo após dali se ausentou para Gaia.
(…)
Perto do meio dia e meia, aproximou-se do Audi um Mercedes de cor escura com matrícula espanhola, dele tendo saído um indivíduo que, na segunda-feira à noite, veio a identificar, quando em presença, como sendo o denunciado A..., o qual cumprimentou o Sr. J..., conversaram alguns minutos e de seguida mudaram o referido saco preto para o Mercedes, após o que dali se ausentou, ficando o Sr. J... a aguardar no local.
O inquirido, os dois colaboradores e o M... deslocaram-se para o restaurante X… onde almoçaram e ficaram a aguardar, como combinado, que o Sr. J... os fosse encontrar.
Decorreram mais de duas horas sem que ele desse qualquer notícia, acabando por aparecer ali, aflitíssimo, e a descrever o que, supostamente, lhe teria acontecido. Começou por dizer quq aparecera no local um casal transportando-se num Golf, tendo sido abordado pelo indivíduo de sexo masculino que se lhe identificara como agente da GNR, perguntando se estaria à espera de alguém. Que respondera inicialmente que não ao que o outro lhe disse se não estaria a aguardar o regresso ali de alguém que lhe traria uma remessa de dinheiro, pois o indivíduo havia sido detido. Mais acrescentou ao Sr. J... que o tal agente o identificou e que o informou que iria dirigir-se ao X… para identificar os presentes. No restaurante e após ouvirem a versão do Sr. J... ainda aguardaram algum tempo que ali chegasse alguém, tal não se tendo verificado.
Ainda no local, o Sr. J... fez diversas tentativas de ligação por telemóvel para o A.... No início tocava mas não atendia e depois estava mesmo desligado.
O Sr. J... disse-lhes ainda que naquele período teria recebido um telefonema de número não identificado, de um indivíduo do sexo masculino que disse ser advogado do A..., que o negócio tinha corrido mas para ter calma que a situação iria resolver-se rapidamente.
Quando indagaram o Sr. J... sobre se, pelo menos, o A...lhe tinha dado algum recibo e ele respondeu que não e que confiava, gerou-se algum desagrado, isto ainda nas proximidades do restaurante junto da residencial.
(…)
Ainda naquela noite, o Sr. J... deu notícia aos presentes que tinha conseguido contactar telefonicamente o A...e que este lhe tinha dito que tinha entregue o dinheiro ao PRETO que o tinham depositado no cofre de uma das casa de Coimbra e que quando o PRETO trazia uma das caixas, alegadamente com 10 milhões de euros, teria sido detido poir vários polícias e que o A...tinha conseguido fugir para Madrid. Mais informou que o A...tinha dito que já falara com o VELHO, para estarem calmos e que tudo se resolvia, mas que o A...ajudasse o PRETO, que assim que ele fosse posto em liberdade resolveria a situação.
Em frente à casa do A..., o Sr. J... conseguiu nova chamada e, à frente dos presentes, insistiu com aquele para que todos se encontrassem e que até iam a Madrid ao que o outro nunca acedeu.
Entretanto, aperceberam-se de movimentos e disseram-lhe mesmo por telemóvel que estavam ali e que não acreditavam que estivesse em Espanha mas dentro de casa, até porque o vizinho da frente os informara que o tinha visto durante a tarde, assim como um empregado dele, começando alguns dos presentes a fazer barulho tocando insistentemente à campainha e batendo ao portão de chapa enquanto o chamavam.
O A..., por telefone, sempre foi negando, dizendo até que se lá estivesse já tinha corrido tudo a tiro, fossem seis ou sessenta. Foi-lhe transmitido por aquele meio que iriam chamar a polícia e foi então que o A...disse ao Sr. J..., e por ele transmitido, que se o fizessem, diria à polícia que lhe deram o milhão e seiscentos mil euros para comprar notas falsas.
O inquirido ficou completamente enervado e disse-lhes para irem logo à polícia mas o J... ainda evitou e quis transmitir confiança.
(…)
De lá para cá, e pelo que vem sendo transmitido pelo Sr. J..., apesar das diversas tentativas de resolução, não o conseguiu, ainda que tenha estado com o A...por duas vezes.
Houve ainda um episódio em que o Sr. J... chegou a perguntar ao inquirido se tinham desviado do saco durante a viagem cerca de 250.000 euros pois, supostamente, assim referira o A...que faltaria à quantia entregue.
Na quinta-feira passada, conseguiram que o J... atraísse o A...aos armazéns de Albergaria, enquanto se escondiam no interior do armazém, contudo, ele telefonou ao J... e disse-lhe que não ia porque tinha visto um carro escondido, que sabia que estavam lá e que não aparecia por receio da sua integridade física. O inquirido pediu o telemóvel ao J... e nessa única vez em que falou com o A...apelou ao bom senso e tentou tranquilizá-lo transmitindo-lhe que são pessoas pacíficas, no entanto, não conseguiu até hoje que falassem pessoalmente.
Na iminência do fim do prazo de dez D... que terminou na sexta-feira última, colocou o Sr. J... perante a forte possibilidade de a fundação accionar os meios legais decorrentes do contrato pressionando de novo para que apresentasse queixa contra o A...e exigindo-lhe que apresentasse uma solução relativamente a todas as responsabilidades contratuais e extra-contratuais que o Sr. J... assumiu com a Fundação.
Na sexta-feira, encontrou-se com o Sr. J... que lhe transmitiu que, tendo contactado o A..., este estaria na disposição de adiantar 200.000 euros mas que, para o restante, teria que deslocar-se ao Brasil e ali realizar dinheiro através da venda de uma fazenda.
Foi só nessa altura que o Sr. J... se capacitou que o A...preparava a fuga para o Brasil e que era urgente agir.
(…)
Foi, então, que, com conhecimento e colaboração do Sr. J..., o inquirido decidiu accionar a intervenção da PSP de Aveiro, porque conhecia o Agente B....
O A...viria a indicar o Restaurante Z…, na zona de Anadia, para o encontro com o J.... O M... foi lá ter de seguida. O inquirido, o B...o S...e os dois agentes da polícia chegaram ali passado algum tempo e numa mesa ficaram a jantar e a observar. Os agentes viriam a abordar o A...quando este já se preparava para se ausentar, tendo confrontado com os factos aqui em apreço. O A...negou tudo à frente dos presentes e foi quando os agentes procederam à revista ao A...e ao carro em que se fazia transportar, lhe apreenderam o revólver carregado, bastões e uma shot-gun de oito tiros que lhe foi apreendida já em casa dele.
Compareceram todos na Esquadra da PSP de Aveiro, onde o Sr. J... formalizou a queixa e os presentes foram arrolados como testemunhas.
Já ontem recebeu um telefonema do Sr. J... para que se deslocasse no princípio da tarde ao tribunal de Anadia ao encontro dele.
(…)
Em conversa informal com o Agente B..., ficou a saber que o Sr. J... lhe teria dito que os alegados 50 milhões de euros da doação eram notas de origem francesa produzidas pela casa da moeda daquele país e que, poque teriam defeito de corte e devendo ser destruídas assim não acontecera, vindo a ser desviadas para Portugal.
Abordado, então, o Sr. J..., ele viria, para inteira surpresa do inquirido, a confirmar-lhe esta versão e mais surpreendente ainda foi o facto de ele considerar, ainda assim, que as notas são verdadeiras e que poderiam circular.
Logo o questionou relativamente à data em que tinha ficado a saber a origem das notas e ele disse que já há alguns D..., não transmitindo por considerar que eram notas válidas. Discutiu com o Sr. J... à frente do agente e dos seus dois colaboradores e ele bloqueou, ficando boquiaberto.
(…).
Por sua vez, a fls. 71/82, estão nos autos cópias dos documentos relacionados com o mútuo com hipoteca já atrás mencionado.
Logo a seguir, a fls. 82/86, há o auto de inquirição de B…, elaborado pela P.J., em 15/9/2010, onde é de salientar o seguinte:
“(…)
Segundo o R..., o J..., para conseguir aquela doação, teria que entregar ao tal indivíduo, conhecido à data apenas dele, a quantia de 1.600.000€, para que esse tal conhecido do J... pudesse saldar dívidas que possuía.
Em contrapartida, o tal indivíduo iria conseguir que o “idoso” doasse os 50 milhões de euros à fundação ...
(…)
A Congregação procedeu à transferência de 1.600.000€ para a conta do J..., exigindo que este também por aquela via fizesse o negócio com o cidadão que possuía as dívidas e que conhecia o idoso, pretensamente doador dos 50 milhões de euros.
Contudo, e não obstante esta exigência por parte da Congregação, o J..., afirmando confiar plenamente no tal cidadão que tinha o contacto com o idoso e que ele pretendia o dinheiro em numerário, decidiu proceder ao levantamento do montante (1.600.000€) ao balcão do ... de ....
Assim, e não havendo outra alternativa, a Fundação .., como intermediária na transferência da Congregação para a conta do J..., acabou por aceitar os termos em que o J... pretendia realizar a entrega do dinheiro, ou seja, em numerário e em mão ao tal indivíduo que ainda não conheciam.
Combinaram, então, para o dia 31 de Agosto do corrente ano, o levantamento do milhão e seiscentos mil euros, altura em que acompanhou o levantamento do mesmo ao balcão do ... de ... por parte do J....
O depoente estava, então, acompanhado do S..., ambos posicionados num café em frente ao banco a observar os passos que eram dados pelo J....
Após sair do banco, o J..., acompanhado do M..., entrou para o carro do R... e deslocaram-se em direcção a sul, concretamente à zona de Coimbra, seguindo o depoente e o S... na sua peugada, a fim de serem testemunhas da entrega do dinheiro ao tal cidadão. Antes da chegada ao sítio combinado para a entrega do dinheiro, o M... deixou o veículo do J... e instalou-se naquele em que o depoente e o S... se faziam transportar.
Assim, foi o J... sozinho ao encontro do tal indivíduo, encontro esse que se realizou em local que não sabe descrever em concreto, mas era sem dúvida alguma na zona de Coimbra junto ao stand de automóveis da ...
(…)
Após a entrega do dinheiro, o indivíduo que descreveu abandonou o local, tendo o J... ficado à espera que ele regressasse com o montante destinado à doação para a Fundação .. que seriam os tais 50 milhões de euros.
(…)
Esperaram durante todo o dia na zona, no sentido de obter alguma resposta ao sucedido, pretendendo, inclusive, reportar os factos à Polícia, não o fazendo naquele imediato por vontade do J... que dizia confiar no A...e que este haveria de ter alguma explicação para o sucedido.
(…)
Entretanto, e durante este tempo, foram tendo notícias da situação através do J... que nunca foram esclarecedoras do que se passara bem como do destino dado ao dinheiro entregue ao A....
Respondeu que apenas serviu de testemunha dos factos por solicitação do Prof. R... .., à semelhança do colega que o acompanhou no decorrer da situação agora exposta de nome S... (…).”
Acresce que podemos ver, a fls. 87/88, o auto de inquirição de S…, elaborado pela P.J., em 15/9/2010, no qual é de sublinhar o seguinte:
“(…)
Relativamente aos factos em investigação nos presentes autos, respondeu que sempre acompanhou o B… no decorrer dos mesmos, nomeadamente aquando do levantamento do dinheiro no ... em ... por parte do J... e entrega daquela quantia (1.600.000€) a um indivíduo na zona de Coimbra.
Desta forma, o depoimento que poderá prestar para o eventual esclarecimento das circunstâncias em que os mesmos ocorreram será em tudo semelhante ao que o seu amigo B... já prestou nesta Polícia, nada mais tendo a acrescentar.”
Por fim, a fls. 89, há uma cota assinada por um senhor inspector da P.J., datada de 15/9/2010, nos autos na qual consta o seguinte: “Nesta data faço constar que o telemóvel apreendido nos mesmos da marca NOKIA, de cor cinzenta, com IMEI – ..., com bateria carregada, foi, ao longo da manhã de hoje tocando, observando-se no visor externo do aparelho que algumas das chamadas são provenientes de um número identificado no visor do telemóvel como FILIPE Brasil, n.º ....
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Perante tudo o que acaba de ser exposto, não é de aceitar por boa a afirmação do recorrente de que “apenas subsiste nos autos a versão do denunciante” (Motivação do recurso).
Para além das declarações do arguido, existem os depoimentos de quatro testemunhas indicadas por J....
É certo que muito do que as testemunhas disseram tem por fonte aquilo que lhes foi transmitido pelo denunciante, sendo possível, nessa medida, perceber a posição do recorrente.
Todavia, as quatro testemunhas descreveram o que presenciaram, a partir do momento em que o dinheiro foi levantado, no dia 31/8/2010, do .... Tal é um dado objectivo e distinto.
Mais, existem documentos nos autos relativos a um levantamento de 1.600.000€ e a um contrato de mútuo com hipoteca que bem demonstram uma dada realidade bem diferente de um mero delírio onírico.
Tudo conjugado, só uma conclusão era possível retirar, no momento do primeiro interrogatório judicial de arguido, a de que existiam fortes indícios de que, ao longo do tempo, o recorrente construíra uma mistificação, a fim de lhe ser entregue a quantia levantada do ..., tendo incorrido na prática de um crime de burla qualificada.
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Uma vez que chegámos à conclusão da existência de fortes indícios, há que verificar agora se, em 16/9/2010, se justificou a aplicação da prisão preventiva, face ao disposto no artigo 204.º, do CPP.
Comecemos pelo primeiro requisito em causa, o perigo de fuga.
A existência do perigo de fuga não pode ser aferida meramente em termos hipotéticos, nem inferida só da mera gravidade do crime. Então, que elementos objectivos do receio de fuga serão esses que a doutrina exige? Não pode deixar de ser um juízo de avaliação da realidade hipotética com base nas suas manifestações que, por recorrentemente repetidas, se instilaram no consciente colectivo como regras. Não há outro modo de avaliar. Trata-se de um juízo de valor que se ajuste ao senso comum sem o distorcer, nem na sobrevalorização dos perigos, nem na sua ignorância ou desvalorização. Neste domínio, ensinava já o Prof. Cavaleiro Ferreira que não é de exagerar, ampliando-o, o perigo de fuga. É um perigo real, mas sempre “relativo”, que aqui importa. Quanto ao perigo, ele deve ser real e iminente, não meramente hipotético, virtual ou longínquo, e resultar da ponderação de factores vários, como sejam toda a factualidade conhecida no processo e a sua gravidade, bem como quaisquer outros, como a idade, saúde, situação económica, profissional e civil do arguido, bem como a sua inserção no contexto social e familiar. Em nossa opinião, primordial é averiguar-se, em face do circunstancialismo concreto do caso, se a pessoa em causa tem ou não, ao seu dispor, meios ou condições, designadamente a nível económico e social, para se subtrair à acção da justiça e às suas responsabilidades criminais ou se existe um sério perigo que tal venha a suceder, independentemente da gravidade dos crimes indiciariamente cometidos. Dos elementos constantes dos autos é nossa convicção que o Juiz da primeira instância avaliou bem e que o perigo de fuga existe de forma bem palpável, ainda que não seja de colocar o respectivo acento tónico na fuga para o Brasil, mas antes para Espanha. O arguido está fortemente indiciado como autor de uma burla qualificada, cujo montante em causa é bem elevado (1.600.000€), tendo em conta o nível de vida da sociedade portuguesa na qual, recentemente, se discutiu, ainda, se o ordenado mínimo podia atingir, no imediato, os 500 euros . Embora se admita a existência de factores que possam contrariar esse perigo de fuga, como seja o facto do arguido ter residência fixa, família, ocupação profissional, e terem mediado cerca de 15 D... entre a data da entrega do dinheiro e a data da detenção, período no qual o denunciante e o arguido mantiveram contactos, sem que o arguido tenha fugido, o certo é que, após o primeiro interrogatório judicial, uma nova realidade passou a ter que ser equacionada. Com efeito, o arguido tomou, necessariamente, consciência de que a situação em que estava envolvido tinha sido dada a conhecer às entidades policiais e ao Tribunal, o que, até então, não sucedia.
Por isso, não faz sentido afirmar que, a haver intenção de fuga, a mesma já se teria consumado. As circunstâncias alteraram-se, já que o que era do conhecimento apenas de certas pessoas, passou a ser objecto de investigação. Assim sendo, verifica-se, em concreto, perigo de fuga (alínea a) do artigo 204° do Código de Processo Penal), tanto mais que os autos indiciam fortemente que o arguido se movimenta amiúde, pelo menos, para Espanha (documentos apreendidos relativos à viatura Mercedes).
E não se diga que o perigo em causa é meramente virtual. Ele é bem real, pois, conforme resulta do documento de fls. 93, o veículo Mercedes foi alvo de inspecção, por diversas vezes, em Badajoz, entre Abril de 2003 e Julho de 2010.
Retomando o que foi referido há pouco, estamos perante um arguido que tem, ao seu dispor, meios ou condições, designadamente a nível económico e social, para se subtrair à acção da justiça e às suas responsabilidades criminais (comerciante que se movimenta com facilidade para Espanha), não sendo de estranhar que se considere existir o perigo de fuga, tendo por referência o consciente colectivo e o senso comum.
Pretender algo mais, nesta matéria, seria quase considerar indispensável uma declaração escrita de um arguido com a afirmação de que quer fugir, porque nem sequer a existência de um bilhete de avião para um determinado País, por si só, demonstra o que quer que seja, já que sempre seria de ponderar a hipótese de regresso da pessoa em causa, sem esquecer que, nos nossos D..., qualquer pessoa pode adquirir, poucas horas antes de um voo, por via informática, o respectivo título de transporte….
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Passemos a analisar o segundo requisito previsto no artigo 204.º, do CPP, o perigo de continuação da actividade criminosa.
Nesta matéria, a decisão recorrida considerou o seguinte: “Atendendo à personalidade do arguido revelada na sua actuação, ao facto de já ter sido indiciado por crimes de idêntica natureza e ainda algumas dificuldades económicas que possa sentir face aos muitos encargos financeiros que tem, entende-se que existe perigo de continuação da actividade criminosa. Em concreto, há perigo que o arguido volte a praticar actos da mesma natureza, mesmo que de montantes diversos e menos elevados para conseguir arranjar dinheiro.” No que diz respeito ao perigo de continuação da actividade criminosa, este não se confunde, necessariamente, com a consumação de novos actos criminosos. Devendo antes ser aferido em função de um juízo de prognose a partir dos factos indicados e personalidade do arguido por neles revelada - “em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido”, nos termos da alínea c) do art. 204º, do CPP. Como observa o Acórdão da RC, de 02.06.99, sumário disponível em htt://www.trc.pt. – doc. 244/2 – “terá de ser aferido a partir de elementos factuais que o revelem ou o indiciem e não de mera presunção (abstracta ou genérica) ... o perigo terá de ser apreciado caso a caso, em função da contextualidade de cada caso ou situação, pelo que não cabem aqui juízos de mera possibilidade, no sentido de que só o risco real (efectivo) de continuação da actividade delituosa pode justificar a aplicação das medidas de coacção, maxime a prisão preventiva”. Existe, então, o perigo real de continuação da actividade criminosa? Tendo em conta o prolongamento no tempo da conduta delituosa indiciada (vários meses) e a sua personalidade revelada nos factos indiciados, não se pode, fundadamente, deixar de temer que venha a prosseguir a sua actividade delituosa, não obstante ter sido instaurado o presente processo.
E isso não decorre dos factos pelos quais esteve indiciado há anos (acabou, até, por ser absolvido, segundo consta dos autos), nem pela sua actual situação económica, argumentos usados na 1ª instância.
Simplesmente, o arguido revela ser pessoa meticulosa, convincente, capaz de gerar confiança no seu interlocutor, a tal ponto de levar alguém a entregar-lhe, em numerário, 1.600.000€, através de mera persuasão verbal, o que significa que bem pode tentar, se em liberdade, continuar a ludibriar terceiros que não estejam a par dos factos destes autos. Não se trata, portanto, de uma mera e insuficiente possibilidade de reiteração. Trata-se de um verdadeiro perigo concreto.
Logo, é de concluir, atendendo à personalidade do arguido, também haver perigo de continuação criminosa.
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Vejamos, agora, o terceiro requisito previsto no artigo 204.º, do CPP, colocado em causa no recurso, o perigo de perturbação de inquérito: A alusão feita à existência do perigo de perturbação do decurso do inquérito, na decisão recorrida, é feita nos seguintes termos: “ Apesar dos muitos indícios que os autos já contêm, não restam dúvidas que a presente investigação está no início, sendo certo que o arguido poderá diligenciar e contribuir para a perturbação do decurso do inquérito.” O perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo terá de surpreender-se em factos que indiciem a actuação do arguido com o propósito de prejudicar a investigação. Como adverte o Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., pág. 245,, importa ter “muito cuidado na aplicação de medidas de coacção com fundamento no perigo para o inquérito ou a instrução do processo, pela invocação de perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, pois é necessário evitar o risco de que com tal pretexto se confunda e prejudique a legítima actividade defensiva do arguido, traduzida nomeadamente na investigação e recolha de meios de prova para a sua defesa, actividade que o arguido deve poder exercer com a maior liberdade e amplitude [...] Deve ainda considerar-se que, em geral, o perigo de perturbação da instrução do processo é maior nas fases preliminares do processo e nestas sobretudo na fase do inquérito e ainda quando são poucos os meios de prova que indiciem a responsabilidade do arguido. Será, em regra, mais difícil ao arguido perturbar a instrução do processo quando dos autos constem já os meios de prova que indiciem fortemente a sua responsabilidade, o que não significa que, em razão da natureza do crime e dos meios de prova recolhidos, essa perturbação não possa verificar-se em fases posteriores; o perigo tem, pois, de ser apreciado perante as circunstâncias concretas de cada processo”. São conhecidas as naturais dificuldades de êxito na investigação de um crime de burla qualificada. Efectivamente, os meios normais de prova relativamente a este crime são escassos pois que, pela sua natureza, a sua prática é geralmente rodeada de excepcionais precauções, além de que são poucas, ou, até mesmo, nenhuma para além do respectivo agente do crime, as pessoas a conhecer os dados do ardil montado, sem esquecer que aquele que aparece como burlado tem, quase sempre, algum rebuço em tudo explicar, até para não ser visto como uma pessoa ingénua ou, de alguma maneira, poder ser mal interpretado, ao ponto de ser visto como alguém que faz parte do próprio plano montado. A imputação do ilícito penal ao arguido assentou fundamentalmente, nas declarações prestadas pelo denunciante e por quatro testemunhas No caso em apreço, não se exclui, em tese, de todo em todo, a possibilidade de o arguido, se em liberdade, vir a exercer pressões sobre as testemunhas e a vítima do crime. Não bastam, porém, as naturais dificuldades de investigação do crime nem a mera possibilidade de o arguido agir no sentido de prejudicar a investigação para que, sem mais, possa afirmar-se a existência do perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução. Efectivamente, ainda na lição do Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., pág. 245, “sendo possível, na generalidade dos casos, que o arguido desenvolva uma actividade no sentido de prejudicar a investigação, não basta, porém, a mera probabilidade de que tal aconteça. É necessário sempre, como também relativamente aos demais pressupostos das medidas de coacção, que em concreto se demonstre esse perigo pela ocorrência de factos que indiciem a actuação do arguido com esse objectivo e que não seja possível com outros meios obstar a essa perturbação. Os abundantes meios de que dispõem hoje as autoridades judiciárias e os órgãos de polícia criminal para investigar os crimes e sobretudo a sua utilização diligente e inteligente são em geral bastantes para obstar a que o arguido possa por si perturbar o decurso do processo”. Acontece que o despacho recorrido não aponta qualquer facto concreto que indicie ter o arguido em preparação ou em marcha ou simplesmente em projecto qualquer das condutas acima referidas (pressões sobre as testemunhas e a vítima do crime). Note-se, aliás, que o denunciante e as testemunhas, não obstante o que foi referido pelo arguido, no dia 31 de Agosto de 2010 (veja-se o teor acima transcrito do depoimento da testemunha R... .. – versão por este trazida aos autos), não se afastaram do mesmo, a tal ponto de ter sido marcado o encontro que esteve na origem da sua detenção.
É de concluir, pois, pela inexistência, em concreto, do invocado perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente para a aquisição e conservação da prova, merecendo o despacho recorrido, nesta parte, censura.
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Todavia, este censura não implica que tivesse ficado, na altura, afastada a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, pois, como já vimos, estamos na presença do perigo de fuga e da continuação da actividade criminosa, sendo certo que os requisitos do artigo 204.º, do CPP, funcionam em alternativa e não cumulativamente.
Em resumo, com a ressalva ora feita, há que considerar verificados os pressupostos que justificaram a prisão preventiva aplicada em 16/9/2010.
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Aqui chegados, é de entender que a medida de coacção imposta, em 16/9/2010, respeita todos os princípios acima expostos, nomeadamente da adequação, proporcionalidade e subsidiariedade.
A medida de coacção deve ser idónea para satisfazer as medidas cautelares do caso, sendo escolhida em função da finalidade a que se destina, ou seja, como resulta do n.º 1 do artigo 193.º do CPP, “deve ser adequada às exigências cautelares que o caso requerer”, (princípio da adequação).
Como ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, II, pág. 270, uma medida de coacção é adequada “se com a sua aplicação se realiza ou facilita a realização do fim pretendido e não o é se o dificulta ou não tem absolutamente nenhuma eficácia para a realização das exigências cautelares”.
Por seu turno, enfatize-se que o princípio da proporcionalidade das medidas de coacção significa que a medida a aplicar deve ser proporcionada à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser praticada ao arguido em razão da prática do crime, devendo para tanto atender-se a todas as circunstâncias que em geral devem ser consideradas para a determinação da medida da pena.
Acontece que, perante os elementos conhecidos no processo, não se vislumbram motivos para crer na existência de causas de isenção de responsabilidade ou de extinção do respectivo procedimento criminal.
Deste modo, só a prisão preventiva, e não qualquer das outras medidas de coacção previstas na lei, respondia, em 16/9/2010, de forma adequada e suficiente às exigências cautelares que o caso reclamava, era proporcional à gravidade do crime indiciado e à sanção que era, e é, previsível vir a impor-se ao recorrente, sem embargo de, logo então, ter ficado salvaguardada a sua substituição pela obrigação de permanência na habitação, o que veio a acontecer, como já sabemos.
Dito isto, e no âmbito da apreciação que foi feita até aqui, há que retirar a devida consequência, isto é, em 16/9/2010, não estavam reunidas as condições para que o arguido ficasse obrigado a uma simples obrigação de apresentação periódica, nos termos do artigo 198.º, do CPP., medida esta desadequada, por insuficiente, à gravidade dos factos indiciados nos autos e aos perigos acima mencionados.
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Abordemos, agora, o outro patamar em que o recorrente coloca a sua pretensão. O arguido considera que se verifica uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação da medida de coacção ora em crise, evocando, para tanto, o artigo 212.º, n.º 3, do CPP, pelo que, também por isso, se justifica uma alteração da medida de coacção.
O artigo 212.º, do CPP, consagra o seguinte:
1 – As medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar:
a) Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou
b) Terem deixado se subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação.
2 – As medidas revogadas podem de novo ser aplicadas, sem prejuízo da unidade dos prazos que a lei estabelecer, se sobrevierem motivos que legalmente justifiquem a sua aplicação.
3 – Quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução.
4 – A revogação e a substituição previstas neste artigo têm lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, devendo estes ser ouvidos, salvo nos casos de impossibilidade fundamentada. Se, porém, o juiz julgar o requerimento do arguido manifestamente infundado, condena-o no pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC.
Este artigo, no seu n.º 3, visa, claramente, casos em que são trazidos aos autos factos que podem levar à aplicação de uma medida de coacção menos grave (pretensão do ora recorrente), ou seja, pressupõe, logicamente, que a 1ª instância, após ter imposto ao arguido determinada medida, e na presença de elementos novos com valor atenuativo, se pronuncie sobre tal questão, o que não se verifica nestes autos.
Não se destina a que um tribunal superior decida, em primeira linha, sobre a respectiva atenuação das exigências cautelares, sob pena de ser negado um grau de recurso.
Relembre-se esta evidência: um tribunal de recurso, salvo casos especiais bem restritos, só pode pronunciar-se sobre algo que tenha já sido decidido anteriormente.
Acontece que o recurso interposto em 6/10/2010, se destina à apreciação exclusiva da medida de coacção imposta em 16/9/2010, sendo certo que, após esta data, e até 11/10/2010, altura em que foi determinada a substituição da medida de prisão preventiva pela medida de permanência na habitação, sob vigilância electrónica, não foi a 1ª instância confrontada com qualquer requerimento que visasse apreciar a existência da dados que conduzissem a uma atenuação das exigências cautelares, nem, oficiosamente, decidiu o que quer que fosse quanto a isso.
Em resumo, a 1ª instância não chegou a conhecer da matéria ora em causa, porque nunca teve sequer oportunidade para o fazer (elucidativo disso é que, só no recurso, o arguido protesta juntar documentos relativos à sua doença e acompanhamento médico, da mesma forma que junta documentos relacionados com a morte de seu filho e o nascimento dos seus netos).
Logo, está vedado a este Tribunal da Relação conhecer do recurso, nesta matéria, por falta de objecto.
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C. Decisão:
Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5 ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, confirmando o douto despacho recorrido.
Custas a cargo do arguido, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
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José Eduardo Martins (Relator)
Isabel Valongo