Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1210/15.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: FALÊNCIA
LIQUIDATÁRIO JUDICIAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
VENDA
AUXILIARES
SOLIDARIEDADE
Data do Acordão: 01/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.143, 145, 185 CPEREF, 800, 1161, 1165 CC
Sumário: 1.-Acionada a responsabilidade contratual, no âmbito do regime previsto no art.143º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência, presume-se a culpa do liquidatário judicial quando não entrega o valor da venda dos bens da Massa Falida, respondendo ele pelos atos das pessoas que utilize para o cumprimento daquela venda.

2.-Não existe solidariedade passiva entre o liquidatário e a leiloeira que o auxiliou porque não são ambos devedores da Massa Falida. A leiloeira é apenas devedora do liquidatário.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A Massa Falida de S (…) Lda., A (…) ,  intentou ação contra J (…), A (…), Lda., anteriormente denominada “A (…) Lda.”, e A (…), pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de €74.783,62, acrescida de juros de mora já vencidos no valor de €37.115,20 e de juros de mora vincendos, calculados à taxa legal até integral e efetivo pagamento.

Para tanto, a Autora alegou, em síntese:

Ter sido declarada falida em 23.02.2001.

Na data em que foi declarada falida, foi o réu J (…) nomeado para exercer o cargo de liquidatário judicial, cargo que exerceu até 19.01.2011, data em que foi destituído.

A fim de se proceder à venda dos bens móveis da massa falida foi encarregue a 2ª ré.

Em 23.01.2003, a 2ª ré procedeu à venda, por leilão, tendo a totalidade dos bens sido arrematada pela sociedade “(…), SA”, pelo valor de €89.783,62.

A “(…), SA” procedeu ao pagamento da totalidade do preço, tendo entregue o referido valor ao 3º réu, A (…), representante legal da 2ª ré.

Na conta da massa falida, respeitante a tal transmissão, apenas foi depositada a quantia de €15.000,00.

O 3º réu procedeu ao depósito do preço referido numa sua conta pessoal.

Todos os réus agiram como depositários da autora. A todos incumbia a responsabilidade de procederem à cobrança e consequente entrega à autora do produto dos bens vendidos, o que não fizeram.

Os réus contestaram, em síntese:

O 1º réu alegou nunca ter recebido do 3º réu o produto da venda dos bens, pelo que não tem qualquer obrigação de restituir o respetivo valor à autora.

A 2º ré e o 3º réu defenderam que este seguiu as instruções que lhe haviam sido dadas pelo 1º réu, depositando o cheque, mediante o qual fora pago o preço da venda, na sua conta bancária, tendo, posteriormente (no dia 14.03.2003), entregue àquele 1º réu a importância de €89.783,62, em numerário; são alheios ao facto de, alegadamente, aquela importância não ter sido depositada na conta bancária da massa falida, pelo 1º réu.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente e a condenar os réus a pagar à autora a quantia de €74.783,62 (setenta e quatro mil, setecentos e oitenta e três euros e sessenta e dois cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, desde 12.04.2010 e até ao efetivo pagamento, a calcular à taxa legal supletiva.


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Inconformados, a 2ª e 3º réus recorreram e apresentam as seguintes conclusões:

I – O Tribunal a quo veio a subsumir a factualidade julgada provada ao regime legal do contrato de mandato, daí extraindo, como consequência, a condenação solidária de todos os réus, a título de responsabilidade civil contratual, no pagamento à autora da quantia de 74.783,61 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal supletiva, desde 12/4/2010 até efectivo e integral pagamento;

II – A solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes;

III – In casu não está minimamente demonstrada a existência de qualquer acordo de vontades entre as partes no sentido de estabelecerem um regime de responsabilidade solidária dos réus perante a autora;

IV – O diploma legal aplicável ao caso vertente é o Código dos Processos Especiais de Recupreração da Empresa e da Falência (C.P.E.R.E.F.);

V - Durante a vigência do C.P.E.R.E.F., a intervenção de técnicos ou de outros auxiliares no processo falimentar é da exclusiva responsabilidade do liquidatário judicial, o qual responde sempre e ilimitadamente nos termos em que o comitente responde pelos actos do comissário;

VI – Por força do estatuído nos artigos 145º, nº 3 e 185º do C.P.E.R.E.F., impende sobre o liquidatário – e não também sobre os seus técnicos e auxiliares – a obrigação funcional de proceder de imediato ao depósito de todas as quantias provenientes das operações liquidação dos activos da massa falida;

VII - Resulta da factualidade provada que do produto da venda dos bens móveis que integravam a massa falida da autora, apenas foi depositada na conta bancária desta última a importância de € 15.000,00, desconhecendo-se o paradeiro do valor remanescente;

VIII – O réu J (…) não cumpriu com a sua obrigação legal de, enquanto liquidatário judicial, proceder ao depósito do produto da venda na conta bancária da massa falida;

IX - Não existe qualquer norma legal que torne essa obrigação extensiva aos técnicos e outros auxiliares do liquidatário judicial ou que estabeleça entre eles qualquer regime de responsabilidade solidária perante a massa falida;

X – Apenas o réu J (…) - e não também os demais réus - estava legalmente adstrito a proceder ao depósito do produto resultante da liquidação dos activos da massa falida na conta bancária titulada por esta;

XI – Deve ser o liquidatário judicial, o aqui réu J (…), a responder em exclusivo perante a autora pelas consequências decorrentes do inadimplemento daquela sua obrigação e não também os seus técnicos ou auxiliares, sem prejuízo de aquele poder vir a exercer a posteriori o seu eventual direito de regresso sobre os demais réus, ao abrigo do estatuído no nº 3 do artigo 500º do Código Civil;

XII – A sentença recorrida violou, nomeadamente, as normas dos artigos 145º, nº 3 e 185º do C.P.E.R.E.F. e, bem assim, dos artigos 500º, nº 3 e 513º do Código Civil.


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Também inconformado, o 1º réu recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1. Salva a devida consideração pelo Tribunal a quo, a douta sentença de que se recorre enferma de errónea apreciação crítica dos factos (art. 640º nº1 al. a) e c) CPC) e sua subsunção ao direito aplicável (art. art. 639º nº 2 al. b) e c) CPC), assim como padece da nulidade prevista no art. 615º nº1 al. c) CPC conforme infra se pretende demonstrar.

2. O ora recorrente discorda em absoluto com a apreciação crítica, realizada pelo Tribunal a quo, das provas produzidas em sede de audiência final e que serviram para a formação da convicção do tribunal, designadamente para considerar como provados os factos vertidos no ponto 8. do rol dos factos dados como provados assim como da subsunção da factualidade considerada como provada ao contrato de mandato, daí concluindo pela condenação solidária de todos os Réus no pagamento à autora da quantia de €74.783,61, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal supletiva, desde 12/04/2010 até efetivo e pagamento integral.

3. Entende o ora recorrente que, atendendo à prova produzida em sede de audiência final, não poderia o Tribunal a quo julgar como provado os factos vertidos no ponto 8., na parte «...com conhecimento e acordo dos demais Réus...» , ou seja, que essa quantia foi depositada pelo 3º Réu, com conhecimento e acordo do 1º Réu, numa conta pessoal sua.

4. Desde a fase dos articulados surgiram duas versões antagónicas quanto à (in)existência de um acordo e conhecimento entre os Réus para que a quantia em causa fosse depositada na conta pessoal do 3º Réu, sendo que por um lado afirmou o ora recorrente a inexistência desse conhecimento assim como do tal acordo e, por outro, sustentaram 2º e 3º RR a existência do mesmo.

5. Após produção de prova em sede de audiência final, tais versões contraditórias persistiram, uma vez que reiteradas pelas partes.

6. Em função dessa divergência, considerou o Tribunal a quo, e a nosso ver bem, não se «...vislumbrar qualquer razão objectiva bastante para mais acreditar no declarado por um dos réus, em detrimento do outro.».

7. Por outro lado, considerou, ainda, o Tribunal a quo que «...dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência não decorreu a confirmação ou infirmação de qualquer uma dessas versões, sendo que nada, nessa parte, souberam esclarecer». Tal resulta, inclusivamente, da página 7. da sentença, na parte do exame crítico das provas que serviram para a formação da convicção do tribunal.

8. Desta forma, não tendo tal facto sido confessado pelo 1º Réu, nem a versão dos 2º e 3º RR merecido acolhimento pelo Tribunal a quo, quer por via das declarações de parte como por via da inquirição das testemunhas por estas arroladas, porque desacreditadas como referido, entendemos ser por demais evidente a existência de uma oposição entre a fundamentação e a decisão de julgar como provado os factos vertidos no ponto 8., na parte «...com conhecimento e acordo dos demais Réus...», padecendo a sentença, nesta parte, da nulidade prevista no art. 615º nº1 al. c).

9. Assim sendo, entendemos que o Tribunal a quo apenas poderia ter considerado como provado que «Essa quantia foi depositada, pelo 3º Réu, com conhecimento da 2ª Ré, numa conta pessoal sua.», uma vez que não foi produzida qualquer prova em sede de audiência final quanto ao conhecimento e acordo que vinculassem o 1º Réu, ora recorrente.

10. No que concerne à subsunção dos factos considerados como provados ao direito aplicável, considera o ora recorrente que a errónea apreciação da matéria de facto tal como supra exposta resultou numa igual errónea subsunção jurídica dos mesmos, julgando condenar solidariamente todos os Réus no pedido formulado pela Autora.

11. No que concerne à relação entre o ora recorrente e a massa falida, concordamos que tal relação deverá ser enquadrada à luz dos preceitos do contrato de mandato.

12. Assim, pautando-se tal relação à luz do contrato de mandato, incumbia ao ora recorrente as obrigações constantes do art. 1161 do Código Civil.

13. Posto isto, a eventual responsabilidade do ora recorrente teria que ser apurada por via da verificação do incumprimento de qualquer uma destas obrigações a que este se encontra adstrito.

14. Com efeito, e tal como bem apontado pelo Tribunal a quo, de entre as funções do liquidatário judicial, competia-lhe, decidido que estivesse, no âmbito do processo de falência, a modalidade da venda e nos moldes próprios, diligenciar pela efetiva concretização, ou seja, praticando os actos jurídicos a tal necessário.

15. Ora, uma vez decidida a modalidade da venda no âmbito do processo de falência, e em face da obrigações vertiada na al. a) do art. art. 1161 do Código Civil, ficou o ora recorrente, e seguindo as instruções do mandante – comissão de credores da

Autora, obrigado a praticar esse acto: o de providenciar pela venda dos bens, na modalidade decidida pelo mandande, adjudicando a uma terceira entidade o serviço de venda dos bens por leilão.

16. E assim o fez: tendo sido decidida, pelo mandande, que a modalidade da venda seria a venda por leilão, o ora recorrente limitou-se a cumprir essas instruções, adjudicando o serviço de venda dos bens por leilão à 2ª Ré, sociedade comercial que se dedica a essa actividade comercial, tal como anteriormente decidido pelo mandante.

17. Por outro lado, outra das obrigações do mandatário é a de entregar ao mandante o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste. (art. 1161 do Código Civil al. d))

18. Tal obrigação de entrega ao mandante do que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste, implica necessariamente, que o mandatário efetivamente receba uma coisa a que fique obrigado a entregar.

19. Não tendo sido dado como provado qual o destino dado à quantia de €74.783,62, após o seu depósito na conta bancária do 3º Réu, não se poderá afirmar que o ora recorrente efetivamente recebeu tal quantia por parte do 3º Réu para que pudesse entregar ao mandante, pelo que, assim sendo, não pode o Tribunal a quo responsabilizar, por via da incumprimento contratual, designadamente pelo incumprimento das suas obrigações enquanto mandatário, o ora recorrente.

20. Acontece que o Tribunal a quo, ao julgar como provado o ponto 8. dos factos dados como provados - mal como supra mencionado - ( 8. Essa quantia foi depositada, pelo 3º Réu, com conhecimento e acordo dos demais Réus, numa conta pessoal sua.), considerou que o mandatário, na sequência de acordo entre os três Réus, se socorreu de um auxiliar na tarefa de guardar o produto da venda, pelo que todos tinham a obrigação de fazer ingressar no património do mandante tal quantia, e, ao não ser entregue tal quantia, fosse pelo mandatário ou pelos seus auxiliares, se constituiram todos responsáveis perante o mandante.

21. Como vimos, não poderia o Tribunal a quo ter considerado como provado o ponto 8. dos factos dados como provados na parte «...com conhecimento e acordo dos demais Réus...», pelo que, por maioria de razão, não poderia ter o Tribunal a quo considerado que o ora recorrente se socorreu de auxiliares para zelar pela detenção daquela quantia, efetivamente recebida pelo 3º Réu, como confessado em sede de audiência final, mas antes que se socorreu da 2ª Ré, não como mero auxiliar mas

enquanto prestadora de um serviço e com responsabilidades contratuais autónomamente assumidas, razão pela qual, a responsabilidade dos 2º e 3º RR deverão ser apreciadas de forma independente, nos termos da responsabilidade contratual decorrente desse mesmo segundo contrato de prestação de serviços referido nos presentes autos.

22. Na verdade, se entre a Autora e o 1º Réu existia um contrato de mandato, com as demais obrigações daí correntes, como a de proporcionar a efetiva venda dos bens, entre o mandante, por intermédio do mandatário em execução de mandato, e a 2º Ré celebrou-se um outro contrato de prestação de serviços: contrato de serviços de venda de bens em leilão.

23. Tal resulta inclusivamente da fundamentação (pág. 12) da sentença - «E no que concerne à tarefa de levar a bom termo a venda dos bens da massa falida, estava também a 2ª Ré incumbida, no âmbito do processo de falência, de o fazer, por para tal ter sido contratada no domínio do aludido processo, o que, ao que se perspectiva, consubstancia a existência de um contrato de prestação de serviços, ao qual se aplicam as disposições sobre o mandato, por força do estatuído no artigo 1156º do Código Civil».

24. Ora, consubstanciando tal relação na existência de um contrato de prestação de serviços, contrato esse autónomo e no qual o ora recorrente apenas intervém como mandatário em execução de mandato e o celebra com a 2ª Ré, deveria o Tribunal a quo ter apreciado a responsabilidade civil desta em relação à Autora de forma autónoma.

25. Por força do estatuído no artigo 1156º do Código Civil, aplicam-se ao contrato de prestação de serviços as disposições sobre o mandato, pelo que o prestador de serviços, ao abrigo do disposto no art. 1161 do Código Civil por via do art. 1156º do Código Civil, fica vinculado às obrigações aí mencionadas.

26. Com efeito, resulta dos autos que a 2ª Ré foi contratada para prestar o serviço de venda dos bens da massa falida por leilão.

27. No âmbito desse contrato de prestação de serviços, a 2ª Ré viria a proceder à venda desses bens, por leilão.

28. No decurso desse contrato de prestação de serviços, resulta como provado que a sociedade " G (...) , S.A" procedeu ao pagamento do valor ao 3º Réu, enquanto representante legal da 2ª Ré.

29. O ora recorrente apenas tomou conhecimento de tal facto no decurso da instrução do processo 382/12.1TAPMS que correu os seus termos pelo extinto 1º Juízo do Tribunal Judicial de Porto de Mós, conforme certidão da decisão aí proferida e junto aos presentes autos a fls...

30. Por outro lado, resulta dos autos não provado qual o destino dado à quantia de €74.783,62, após o seu depósito na conta bancária do 3º Réu.

31. Embora não tenha sido dado como provado o destino dado à referida quantia, o mesmo não se pode dizer quando ao depósito inicial dessa quantia na conta bancária do 3º Réu, facto que resulta como provado - tal resulta inclusivamente da confissão deste aquando da tomada das suas declarações de parte (página 7 da sentença).

32. Dando o Tribunal a quo como provado que o dinheiro foi depositado na conta bancária pessoal do 3º Réu, tal significa que a 2ª Ré recorreu ao 3º Réu como representante legal ou como auxiliar no cumprimento da sua obrigação contratual de zelar pela guarda do que recebeu até efetiva entrega desse montante ao cliente, a aqui Autora.

33. Não resultando como provado qual o destino dado a essa quantia, o mesmo não se poderá afirmar quanto à não entrega efetiva dessa quantia, por parte dos 2ª e 3º Réus, à contraparte do contrato de prestação de serviços - a Autora - o que se traduz num efectivo incumprimento contratual.

34. Estando o caso subjudice no âmbito da responsabilidade contratual, a responsabilidade da 2ª Ré deverá ser apurada segundo as regras do incumprimento contratual (art. 798º Código Civil ).

35. De acordo com o disposto no nº 1 do art. 799º do Código Civil, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, estabelecendo a lei uma presunção de culpa ao devedor.

36. Por outro lado, dispõe o nº 1 art. 800º do Código Civil que o devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.

37. Não tendo a 2ª Ré ilidido esta presunção de culpa pelo não cumprimento da obrigação (a entrega efetiva do que recebeu na execução do contrato de prestação de serviços à Autora), ainda que tal incumprimento tenha resultado dos actos do seu representante legal ou auxiliar, constituiu-se aquela responsável perante a Autora.

38. Posto isto, e salvo melhor entendimento, afigura-se-nos mais que evidente que deverá ser a aqui 2ª Ré, a sociedade comercial "A (…) Lda.", a responder em

exclusivo perante a Autora pelas consequências decorrentes do incumprimento contratual nos termos supra expostos, podendo, eventualmente, vir a a exercer, a posteriori, o seu direito de regresso sobre o seu representante legal e auxiliar, o 3º Réu, A (...) .

39. Em face do exposto, e salvo melhor opinião, impõe-se a revogação da decisão em mérito, na parte em que determinou a condenação solidária do ora recorrente à Autora do pedido por esta formulado.

40. A decisão em mérito violou, designadamente, as normas vertidas nos art. 640º nº1 al. a) e c) CPC, art. 639º nº 2 al. b) e c) CPC, art. 615º nº1 al. c). CPC, bem como nos arts. 500º nº 3 e 513º do Código Civil.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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            Questões a decidir:

            A nulidade da sentença.

A reapreciação do facto assente sob o nº8.

A natureza da responsabilidade imputada aos Réus.

A qualificação jurídica da relação estabelecida entre as partes.

Consequências, com a discussão específica da solidariedade obrigacional dos devedores.


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            Factos considerados provados pelo tribunal recorrido:

1. Em 23.02.2001, a autora foi declarada falida no âmbito do processo de falência com o nº383/1999, que correu os seus termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Porto de Mós, encontrando-se o mesmo pendente sob o número 712/14.1TBPMS, correndo os seus termos pela 2ª Secção do Comércio – J2, da Instância Central de Alcobaça, desta Comarca.

2. No âmbito desses autos e na data em que a autora foi declarada falida, foi o 1º réu, J (…), nomeado para exercer o cargo de liquidatário judicial, cargo que exerceu até 19.01.2011, data em que foi destituído, tendo sido nomeado em sua substituição o Sr. Dr. (…).

3. No domínio desse processo, a 2ª ré, na época denominada “A (…)Lda.”, foi encarregue de proceder à venda dos bens móveis da massa falida da autora.

4. Em 23.01.2003, pelas 14.00 horas, a encarregada da venda, ora 2ª ré, procedeu à venda dos referidos bens, por leilão, tendo a totalidade dos bens móveis da massa falida da autora sido arrematada pela sociedade “(…), SA”, com sede em Leiria, pelo valor de €89.783,62, acrescido de IVA, à taxa então em vigor de 19%.

5. Apesar de não lhe ter sido entregue a totalidade dos bens da massa falida da autora, por aquela arrematados, a adquirente “(…), SA” procedeu ao pagamento da totalidade do preço, tendo entregue o referido valor de €89.783,62, acrescido do respetivo IVA, ao 3º réu, A (…), em virtude de este ser, à data, o representante legal da 2ª ré.

6. O valor devido a título de IVA foi entregue junto do Serviço de Finanças de Porto de Mós pelo 3º réu.

7. A quantia de € 89.783,62, paga pela “(…), SA” e por esta entregue ao 3º réu, destinava-se a ser depositada na conta bancária aberta em nome da massa falida da autora, a fim de ser, posteriormente, rateada e, consequentemente, entregue aos credores da mesma.

8. Essa quantia foi depositada, pelo 3º réu, com o conhecimento e acordo dos demais réus, numa conta bancária pessoal sua.

9. Na conta da massa falida, respeitante a tal transmissão, apenas veio a ser depositada a quantia de € 15.000,00.


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A nulidade da pretensa contradição entre os fundamentos da decisão e esta decisão.

            Para o Recorrente, a contradição estará no facto da decisão dar como provado o facto nº8 quando reconheceu que tal facto não foi confessado pelo 1º Réu, nem a versão dos 2º e 3º Réus mereceu acolhimento pelo Tribunal, quer por via das declarações de parte como por via da inquirição das testemunhas por estas arroladas, porque desacreditadas.

            Conforme dispõe o art.615º, nº1, c), do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

            Este vício respeita à estrutura da sentença, decorrendo de erro de construção ou de formação desta e não se confunde com o da sentença injusta que é fruto de um erro de julgamento dos factos ou das normas jurídicas aplicáveis.

            “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença.” (L. Freitas, M. Machado, R. Pinto, C.P.C. Anotado, volume 2, 2ª edição, Coimbra Editora, página 704.)

            Considerando a sentença, não vislumbramos este vício.

O raciocínio é lógico e revela uma linha de fundamentação com o mesmo sentido.

            O vício alegado estará antes no julgamento do facto.

            Assim, a decisão não é nula e veremos de seguida se padece de erro de julgamento dos factos ou das normas jurídicas aplicáveis.


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A reapreciação do facto assente sob o nº8.

O Recorrente J (…) coloca em causa que o depósito referido em 8. dos factos provados tenha sido feito com o seu conhecimento e acordo.

Invoca aquele a própria motivação da julgadora e a falta de confissão.

Como é de lei, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil).

Conferindo o assinalado pelo Recorrente e ouvido o depoimento do mesmo, entendemos que ocorre erro da julgadora na fixação daquele facto.

Vejamos:

Numa primeira nota, constatar que no processo penal, na fase da instrução, não foram pronunciados os arguidos, dele não resultando facto provado com relevo para esta questão.

Na motivação dos factos, a julgadora afirma que “a demonstração do facto 8. decorreu, desde logo, da respetiva confissão pelo 3º réu, sendo admitido, ainda, pelo 1º réu.”

No confronto dos articulados, as versões são antagónicas quanto à existência de um acordo e conhecimento entre os Réus para que a quantia em causa fosse depositada na conta pessoal do 3º Réu. O Recorrente J (…) alegou que só teve conhecimento da situação aquando das diligências do processo crime.

A Autora não alegou sequer tal acordo ou conhecimento.

Após a produção da prova, como retiramos da motivação da julgadora, aquelas versões contraditórias persistiram; considerou o Tribunal recorrido “não se vislumbrar qualquer razão objectiva bastante para mais acreditar no declarado por um dos réus, em detrimento do outro” e “dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência não decorreu a confirmação ou infirmação de qualquer uma dessas versões, sendo que nada, nessa parte, souberam esclarecer”.

Como se lê na ata de fls.156, o Recorrente J (…) não confessou qualquer facto.

Ouvido o seu depoimento, verificamos que o mesmo não admite que o depósito tenha sido feito com o seu conhecimento e acordo.

Assim, a única prova daquele acordo e conhecimento está nas declarações do Réu A (…),  tendo a julgadora esclarecido que não se vislumbra razão objetiva para mais acreditar no declarado por um dos réus, em detrimento do outro.

Pelo exposto, julgando procedente a impugnação do Recorrente J (…), decide-se alterar o exarado em 8. dos factos, passando a constar:

Essa quantia foi depositada, pelo 3º Réu, com conhecimento da 2ª Ré, numa sua conta pessoal.

Veremos infra que esta alteração factual não é relevante para afastar a responsabilidade do liquidatário. O depósito em conta do 3º Réu não afasta a obrigação do liquidatário, de entregar o valor da venda à Massa Falida.


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            No estudo do processo, conferimos que o facto nº3 não esclarece quem encarregou a 2ª Ré de realizar o leilão, talvez fruto da petição não o fazer (ver arts.3º e 25º deste articulado).

            A contestação da 2ª Ré (art.5º) diz que o liquidatário solicitou os serviços daquela para a venda.

            A certidão junta pela Autora revela (fls.98) que o liquidatário escolheu a leiloeira que o iria auxiliar e que a Comissão de Credores nada opôs.

            Conferimos que todos os pedidos de esclarecimentos sobre a situação da venda são feitos ao liquidatário.

            Ter sido o liquidatário a contratar os serviços da leiloeira é um facto que não é questinado por qualquer das partes.

Pelo exposto, decide-se esclarecer o facto nº3, passando este a ter a seguinte redação:

No domínio desse processo, a 2ª ré, na época denominada “A (…)Lda.”, foi encarregue de proceder à venda dos bens móveis da massa falida da autora pelo Sr. Liquidatário.


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A natureza da responsabilidade imputada aos Réus. A qualificação jurídica da relação estabelecida entre as partes. Consequências, com a discussão específica da solidariedade obrigacional dos devedores.

Comecemos por dizer que a ação foi intentada no âmbito da responsabilidade contratual e assim julgada.

Sem prejuízo do estatuto especial do liquidatário judicial, as partes não questionam que as regras do mandato são aplicáveis na relação da Massa Falida com aquele, como resulta do art.143º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência. (Considerando o processo de falência pendente em 2001, aquela lei é aplicável ao caso face ao disposto no artº 12º, nº1, do DL 53/2004, diploma que aprovou o novo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

No conjunto das funções do liquidatário judicial, compete a este diligenciar pela venda dos bens da massa falida.

De acordo com o art.1161º do Código Civil, o liquidatário, como mandatário, está obrigado “a entregar ao mandante o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste…” (alínea e).

Se a venda dos bens foi concretizada e o preço pago, o liquidatário está obrigado a entregar o valor à Massa Falida.

É certo que não se provou o destino dado à quantia de €74.783,62 e que se provou que o dinheiro foi depositado numa conta do 3º Réu.

Porém, como obrigado perante a Massa, presume-se a culpa do devedor liquidatário (art.799º do Código Civil) e aquele depósito não é suficiente para afastar esta presunção de culpa. O liquidatário é o mandante da 2ª Ré (representada pelo 3º Réu), devendo exigir dela os procedimentos para a entrega do preço.

Também é certo que “o mandatário pode, na execução do mandato, fazer-se substituir por outrem ou servir-se de auxiliares, nos mesmos termos em que o procurador o pode fazer” (art.1165º do Código Civil).

Dispõe o nº 1 do art. 800º do Código Civil que “o devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.”

Neste enquadramento jurídico, porque o Recorrente J (…) não contrariou a presunção de culpa referida e porque responde pelos atos dos seus auxiliares, o mesmo está obrigado a entregar o valor em falta à Autora.

Defende o Recorrente que não é um mero auxiliar do liquidatário e que existe uma relação autónoma entre eles, qualificada como prestação de serviços.

A existência deste contrato entre o liquidatário e a leiloeira não afasta a aplicação do referido art.800º do Código Civil (cfr. P.Lima, A.Varela, CC Anotado, vol.II, 3ª edição, página 57.). Só estaria afastada a responsabilidade do liquidatário se estivesse provada uma atuação do auxiliar fora da tarefa atribuída ao mesmo. O depósito já referido não é, só por si, a demonstração de conduta estranha ao contrato, podendo ser compatível com a subsequente entrega do dinheiro pela leiloeira ao liquidatário.

Alheia ao contrato firmado, subscrito pelo liquidatário para concretizar a sua obrigação de venda, a Massa Falida exige do seu devedor mandatário o cumprimento da obrigação da entrega do preço pago.

O incumprimento contratual culposo da 2ª Ré, cuja culpa presumida não foi ilidida, não afasta o incumprimento contratual culposo do 1ª Réu.

O incumprimento da leiloeira cumula-se com o incumprimento do liquidatário.

O tribunal recorrido entendeu existir solidariedade obrigacional dos devedores perante a Massa Falida, conclusão contra a qual recorre a 2ª e 3º Réus.

Entendeu o tribunal recorrido:

“E, no que respeita à tarefa de levar a bom termo a venda dos bens da massa falida, estava também a 2ª ré incumbida, no âmbito do processo de falência, de o fazer, por para tal ter sido contratada no domínio do aludido processo, o que, ao que se perspetiva, consubstancia a existência de um contrato de prestação de serviços, ao qual se aplicam as disposições sobre o mandato, por força do estatuído no artigo 1156º do Código Civil.”

Pensamos existir um equívoco quanto à relação contratual com a 2ª Ré.

Esta relação, embora constituída no âmbito da falência ou por causa dela, é estabelecida pelo Sr. liquidatário e não pela Massa Falida.

Como assinala o acórdão do STJ, de 15.11.2012 (proc.246/10, em www.dgsi.pt), “a obrigação solidária – de que é requisito básico a existência de uma pluralidade de devedores – tem como notas típicas (i) o dever de prestação integral, que recai sobre qualquer dos devedores, (ii) o efeito extintivo recíproco da satisfação dada por qualquer deles ao direito do credor, a (iii) identidade da prestação, (iv) a identidade da causa e (v) a comunhão de fim.”

“A solidariedade passiva só existe quando a mesma obrigação for encabeçada por uma pluralidade de devedores.”

Sendo assim, devemos atentar que existem no caso duas relações jurídicas distintas, a estabelecida entre a Massa e o liquidatário e a estabelecida entre este e a leiloeira. A Massa é alheia à 2ª relação. A obrigação do liquidatário é distinta da obrigação da leiloeira, embora tenham, numa parte do contrato, conteúdo idêntico, o de entregar o preço, a leiloeira ao liquidatário e este à Massa.

Na obrigação constituída pela relação originária apenas temos um devedor, o liquidatário. A leiloeira não é a devedora da Massa, mas sim do liquidatário.

Nela estando apenas um devedor, não pode ocorrer a solidariedade contratual.

Embora ocorram dois incumprimentos, da leiloeira e do liquidatário, eles estão baseados em contratos distintos.

(A solidariedade entre os Réus poderia ocorrer no âmbito delitual (arts.500º do Código Civil e, hoje, o 59º, nº3, do CIRE; ver Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, vol.II, Quid Iuris Editora, 2005, pág. 270.), o que não foi invocado no processo.)


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Decisão.

            Julga-se o recurso do Réu J (…) improcedente e procedente o recurso da A (…) Lda., e de A (…), revoga-se parcialmente a decisão recorrida e, mantendo a condenação do identificado J (…), decide-se absolver a A (…), Lda., e A (…) do pedido.

            Custas pelo J (…), em ambas as instâncias.

Na 1ª instância, as custas da absolvição da A (…) Lda., e de A (…)ficam a cargo da Autora.

Coimbra, 2017-01-24

 Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator )

 António Carvalho Martins

 Carlos Moreira