Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
114/11.1TBMIR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
Data do Acordão: 01/31/2012
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: MIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.74 Nº2, 106 CPC
Sumário: 1.- Em acção de indemnização para efectivar a responsabilidade civil por facto ilícito, traduzindo-se este num facto omissivo duradouro, é competente o tribunal correspondente ao lugar onde ocorre essa conduta omissiva ilícita.

2.- Consistindo ela na não entrega de livros de actas, alegadamente em poder indevido do Réu, à míngua de outros elementos deve a competência territorial fixar-se no tribunal correspondente à morada do Réu, por ser de supor que é nela que este os retém, incumprindo a obrigação de os restituir.

Decisão Texto Integral: Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso e face à simplicidade da questão suscitada, segue decisão sumária singular (artigos 700.º, n.º 1, alínea c) e 705.º do CPC, na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24.08).

I.RELATÓRIO

            1. “Associação Portuguesa (…)”, com sede no ..., nº ..., Braga propôs acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra M (…), residente na Rua ..., ..., Praia da Mira, pedindo que seja este condenado a pagar-lhe uma indemnização no montante de € 30.000,01, como reparação pelos danos patrimoniais que afirma ter sofrido.

            Alega, para o efeito, que tendo o Réu exercido o cargo de Presidente da Assembleia-Geral da Autora entre o ano de 2006 e 15 de Agosto de 2010, após esta última data aquele não entregou na sede da Autora os livros de actas das Assembleias Gerais que se encontravam na sua posse, o que causou a esta vários prejuízos.

            Citado, o Réu contestou, defendendo-se por excepção, invocando ilegitimidade activa da Autora para propor a acção que instaurou, e por impugnação, sustentando ser ainda o Presidente da Mesa da Assembleia Geral, cargo de que tomou posse em Janeiro de 2009, constando do Livro de Actas ao tempo em uso na Autora e que se encontra em poder desta, referindo ainda que apenas tinha em seu poder, e sob a sua custódia, o último Livro de Actas e a documentação respeitante às que foram aprovadas posteriormente à sua abertura, a 5 de Janeiro de 2009, como era prática e por acordo com a actual Direcção, pois é o Presidente da Mesa da Assembleia Geral quem passa as certidões das respectivas actas.

            Adianta que ainda que não tivesse que entregar tal documentação, procedeu à entrega do único Livro de Actas que tinha em seu poder na sequência da sentença proferida no Processo Cautelar.

            Na réplica apresentada, a Autora pronunciou-se pela improcedência da excepção dilatória da ilegitimidade invocada pelo Réu e pede a condenação deste como litigante de má fé em multa e em indemnização a seu favor.

            Após os articulados, foi proferido o despacho certificado a fls. 51, no qual a Srª Juiz da primeira instância defendendo entendimento de que a acção proposta pela Autora se destina a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito, recaindo, assim, sob a alçada do artigo 74º, nº2 do Código de Processo Civil, conclui que o facto ilícito ocorreu em Braga, local onde está sedeada a Autora e onde deviam ter sido entregues pelo Réu os Livros de Actas, o que fundamenta a incompetência territorial do Tribunal Judicial de Mira, declarando verificada tal excepção de incompetência relativa, condenando a Autora em custas do incidente e ordenando a remessa dos autos às Varas de Competência Mista de Braga, após trânsito.

            2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs o Réu recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

            “1ª - A A. demandou o Recorrente para a indemnizar por prejuízos causados pela não entrega dos livros de Actas das suas Assembleias Gerais e indicou a sua residência;

            2ª - Como mencionou o douto acórdão, tais livros encontram-se alegadamente na posse do Recorrente, ou seja, na sua residência que se situa na área da jurisdição deste Tribunal;

            3ª- A falta de outra localidade alegada, foi aqui que o Recorrente assumiu uma conduta omissiva que teve como consequência a manutenção dos livros em sua casa.

Nestes termos e nos melhores de direito, haverá que ser interpretado e aplicado o nº2 do art. 74º do C.P. Civil, de harmonia com o que fica alegado, o douto despacho ser revogado e o processo continuar nesta Comarca por ser a competente para o seu julgamento, como é de toda a Justiça”.

Não foram apresentadas contra – alegações.

II.OBJECTO DO RECURSO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

2.  Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apenas apreciar a questão da competência territorial para instruir e julgar a presente acção.

 

III. FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos a atender na apreciação do objecto do recurso são os descritos no Relatório introdutório desta decisão.

 

            IV. FUNDAMENTOS DE DIREITO

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pela causa de pedir e pedido respectivos.

A competência divide-se em duas grandes categorias: a competência absoluta, que, por sua vez, se subdivide em competência em razão da matéria, da hierarquia e competência internacional; e a competência relativa, que, por seu turno, se distingue em competência em razão do valor, forma de processo e em razão do território.

As regras definidoras da competência absoluta têm natureza imperativa, determinando o artigo 106º do Código de Processo Civil que a “decisão sobre a incompetência absoluta do tribunal, embora transite em julgado, não tem valor algum fora do processo em que foi proferida, salvo o disposto no artigo seguinte”.

Tal imperatividade não opera no âmbito da competência relativa: o tribunal para onde é remetido o processo não pode conhecer da sua própria competência e fica vinculado à decisão do tribunal remetente[3]. Ao juiz do tribunal para onde o processo é remetido, transitada que seja a decisão que ordenou a remessa, caberá apenas acatar a mesma, porquanto resolveu definitivamente a questão da competência[4], e desencadear os ulteriores trâmites processuais. Daí poder afirmar-se que no âmbito da competência relativa não se configuram conflitos negativos, em sentido próprio[5].

            A Srª Juiz da primeira instância, ancorando-se no disposto no nº 2 do artigo 74º do Código de Processo Civil, que determina que “se a acção se destinar a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu” concluiu pela incompetência territorial do Tribunal de Mira com o argumento de que o facto ilícito ocorreu em Braga porque, sendo o local onde a Autora tem a sua sede, aí deveriam ter sido entregues pelo Réu os livros de actas.

            Sendo correcta a invocação do preceito legal que contém a solução para a definição da competência territorial para a acção em causa, menos acertada é a conclusão a partir dele extraída para sustentar a tese da defendida incompetência relativa.

            A Autora pretende com a acção instaurada contra o Réu que este seja condenado a indemnizá-la por alegados danos resultantes da não entrega dos livros de actas que permanecem na posse deste[6].

            Defende-se no despacho recorrido ter a prática do acto ilícito ocorrido em Braga, onde se situa a sede da Autora, por deverem os livros de actas aí ser entregues pelo Réu.

            Mas não é a entrega que traduz a prática ilícita do facto. É justamente o contrário: com a entrega, que nem sequer teria que ser pessoalmente efectuada na sede da Autora[7], teria o Réu cumprido o dever que alegadamente sobre ele recai, cessando a conduta ilícita.

            A facto ilícito consubstancia, com efeito, uma conduta omissiva, um “non facere”, que consiste na omissão da entrega dos livros de actas e não, como pretende o despacho recorrido, uma actuação positiva, a entrega dos referidos livros que, a ocorrer, poria precisamente termo àquela conduta ilícita omissiva e duradoura.

            O facto ilícito prolonga-se enquanto perdurar a referida omissão da não entrega dos livros, isto é, enquanto o Réu mantiver na sua posse os mesmos.

            Ora, dizendo-se que os livros estão na posse do Réu, como o afirma a própria Autora, e não fornecendo os autos outros elementos de onde se possa extrair que não seja na sua residência que aquele os mantém, é este o elemento relevante para fixar a competência territorial de acordo com a regra plasmada no artigo 74º, nº2 do Código de Processo Civil.

E situando-se a residência do Réu na área de jurisdição territorial do Tribunal Judicial da Mira, é este o competente, em razão do território, para processar e decidir a presente acção.


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Síntese conclusiva:

Em acção de indemnização para efectivar a responsabilidade civil por facto ilícito, traduzindo-se este num facto omissivo duradouro, é competente o tribunal correspondente ao lugar onde ocorre essa conduta omissiva ilícita.

Consistindo ela na não entrega de livros de actas, alegadamente em poder indevido do Réu, à míngua de outros elementos deve a competência territorial fixar-se no tribunal correspondente à morada do Réu, por ser de supor que é nela que este os retém, incumprindo a obrigação de os restituir.


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Nestes termos, julga-se procedente a apelação, e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, declarando-se o Tribunal Judicial de Mira o territorialmente competente para apreciar e decidir a acção proposta pela Autora/Apelada contra o Réu/Apelante.

Custas da apelação, pela parte vencida a final.


Judite Pires ( Relatora )



[1] Artigos 684º, nº 3 e 685-A, nº 1 do C.P.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
[2] Artigo 664º do mesmo diploma legal.
[3] Cf. artigo 111º do Código de Processo Civil
[4] Artigo 111º, nº2 do Código de Processo Civil
[5] Cf. Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. II, 1981, pág. 91
[6] Artigo 6º da petição inicial.
[7] Bastando que os documentos aí fossem recepcionados, nada obstando que o Réu procedesse à sua remessa por via postal…