Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
71/16.8GBLMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: DEPOIMENTO
OFENDIDO
NULIDADE
UNIÃO DE FACTO
CESSAÇÃO
Data do Acordão: 02/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LAMEGO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 131.º, 132.º E 134.º DO CPP
Sumário: I - A norma, ao conferir a faculdade de recusa de depoimento a determinadas pessoas, em razão dos laços de família ou de natureza semelhante, com o arguido, pretende evitar que quem vive ou viveu com o arguido em condições análogas às dos cônjuges portanto, em união de facto [como sucede nos autos], seja colocado perante a alternativa de, mentir, correndo o risco de ser responsabilizado criminalmente, ou não mentir e concorrer para a condenação do companheiro, assim desmantelando a relação de confiança inerente à relação.

II - O direito ao silêncio deixa de ser protegido pela norma quanto a factos ocorridos fora do período de coabitação valendo, neste caso, a regra geral da obrigação de prestar depoimento.

III - Tendo-se por certo que os factos objecto dos presentes autos [autos principais] ocorreram em período temporal em que não existia coabitação entre testemunha e arguido, àquela não assistia a faculdade de recusar a prestação de depoimento sobre tais factos o que significa, por outro lado, que quanto a eles, não tinha que ser-lhe feita a advertência prevista no art. 134º, nº 2 do C. Processo Penal, não tendo sido, portanto, cometida qualquer nulidade.

Decisão Texto Integral:




Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

            No Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Lamego – Instância Local – Secção Criminal – J1, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, do arguido A... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, b), 2, 4 e 5 do C. Penal.

            No processo nº 54/16.8GBLMG, cuja apensação aos presentes autos foi determinada por despacho de 13 de Setembro de 2016 [fls. 160 a 161], o Ministério Público requereu o julgamento do arguido, em processo comum com intervenção do tribunal singular, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a), 2, 4 e 5 do C. Penal.

            Por despacho proferido no início da audiência de julgamento de 30 de Setembro de 2016 [fls. 188 a 194], foi deferida a promoção do Ministério Público no sentido de ser o arguido julgado por tribunal singular, nos termos do disposto no nº 3 do art. 16º do C. Processo Penal.

             Por sentença de 7 de Outubro de 2016, foi o arguido absolvido da prática do crime imputado no processo apensado, e condenado pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1 e 2 do C. Penal, imputado nos presentes autos, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão e na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida B... , pelo período de seis meses, sem prejuízo de futuros e eventuais contactos necessários para efeitos do exercício das responsabilidades parentais da filha menor de ambos.

            Mais foi o arguido condenado no pagamento da quantia de € 400 à ofendida.


*

            Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

                A) Foi negado à ofendida o direito de se recusar a prestar declarações.

B) Não se valorando assim uma união de facto que dura há mais de 27 anos, da qual têm 4 filhos e que ainda hoje perdura só porque à data dos factos não coabitavam, até porque não podiam uma vez que o arguido estava impedido de contactar a ofendida por ordem judicial

C) Não pode uma união de facto de quase 30 anos com 4 filhos que ainda hoje perdura ser desconsiderada por o casal estar desavindo poucas semanas numa altura que até estavam impedidos de se contactar por imperativo de uma ordem judicial

D) No meio onde vivem poucas são as pessoas que sabem que não são casados, dado a longevidade da união de facto e ao facto de terem 4 filhos em comum

E) De acordo com o nº 2 do Artº 134º do CPP e não tendo sido dada a ofendida a faculdade de se recusar a prestar depoimento que lhe assistia tem de ser considerado nulo.

F) Os factos que condenam o arguido estão todos baseados no depoimento da ofendida.

G) A ofendida por diversas vezes mesmo sem lhe ter sido dada a faculdade a que alude o art° 134º nº 2, manifestou a intenção de não prestar depoimento.

Assim, devem os Exºs Srºs Juízes Desembargadores deste Tribunal, perante estes factos, entender nulo o depoimento da ofendida em sede de audiência de discussão e julgamento e em consequência dar como não provados os factos assinalados nos pontos 3, 6, 7, 8 e 9 dos factos dados como provados na mui douta sentença ora recorrida e absolver o arguido.

Ou, caso assim não se entenda, anulando audiência de discussão e julgamento e ser a mesma repetida dando a faculdade de a ofendida se recusar a prestar depoimento caso assim o entenda.

Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando a decisão proferida na Sentença recorrida e em consequência, ser substituída por douto Acórdão que absolva o Recorrente da prática do crime de violência doméstica.

JUSTIÇA.


*

            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, alegando que as declarações da ofendida apenas foram valoradas probatoriamente quanto aos factos ocorridos entre 11 de Maio e 28 de Julho de 2016, período em que não existiu entre ela e o recorrente uma relação análoga à dos cônjuges e isto, não apenas porque o recorrente estivesse impedido, por força da medida de coacção decretada, de contactar a ofendida, mas porque esta quis por termo á coabitação, como claramente resulta, além do mais, da circunstância de ter dado o seu consentimento á aplicação da medida de coacção de proibição de contactos, razão pela qual o depoimento da ofendida não se mostra ferido de nulidade, por inobservância do disposto no art. 134º, nº 1, b) do C. Processo Penal, e concluiu pela integral manutenção da sentença recorrida.

*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo à argumentação contida na resposta do Ministério Público, e concluiu pela improcedência do recurso.

*

            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

*

            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A nulidade do depoimento da ofendida;

- A modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, relativamente aos pontos 3, 6, 7, 8 e 9 dos factos provados e consequente absolvição.


*

Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

“ (…).

1. O arguido e a ofendida B... , viveram juntos, cerca de 27 anos até 11 de Maio do presente ano, como marido e mulher, partilhando a mesma mesa, cama e habitação, na residência sita na Rua (...) , Lamego.

2. Desta relação nasceram quatro filhos, C... , D... , E... , maiores, e F... , actualmente com 17 anos de idade.

3. A vivência da ofendida tem sido marcada por comportamentos agressivos por parte do arguido, sendo consumidor de bebidas alcoólicas, em excesso.

4. O arguido foi já condenado pelo crime de violência doméstica no âmbito do processo 169/15.0GBLMG, sendo ofendida B... , por sentença transitada em julgado, na pena de três anos de prisão suspensa na sua execução, com regime de prova, assente num plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio durante o tempo de duração da suspensão da execução, dos serviços de reinserção social, o afastamento da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio, durante o período da suspensão; e ainda o dever de o arguido se sujeitar a tratamento ao consumo imoderado de bebidas alcoólicas.

5. Mais foi o arguido condenado na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida B... (por qualquer meio e em qualquer local, incluindo a residência daquela), pelo período de 12 meses, sem prejuízo de futuros e eventuais contactos que se vierem a revelar necessários para efeitos do exercício das responsabilidades parentais da filha menor de ambos, a qual deverá ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, ou seja, de vigilância electrónica.

6. No dia 03 de Julho de 2016, pelas 11h00, o arguido telefonou várias vezes para a ofendida com o número 966083504, dizendo que queria falar com ela e marcar um encontro na junta de freguesia de F (...) , tendo esta recusado, ao que o arguido se dirigiu à mesma várias vezes e disse "se não vieres vou eu si: eu vou para o outro mundo, mas tu também vais".

7. Cerca de duas horas após, o arguido rondou a residência da ofendida, sita na Rua d (...) , Lamego.

8. O arguido agiu com a intenção conseguida de atingir a ofendida B... , na sua integridade psíquica e na sua honra, lesando a sua integridade moral e dignidade pessoal, criando-lhe com as referidas expressões e condutas um estado permanente de medo, intranquilidade e insegurança, sabendo que as ameaças proferidas eram de molde a provocar medo e inquietação àquela, fazendo-a recear pela sua integridade física e vida, o que conseguiu.

9. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei, não se coibindo, porém, de assim actuar.

10. À data dos factos dos presentes autos, e após aplicação, da medida de coação de afastamento e proibição de contactos com a vítima (11 maio de 2016,) o arguido passou a residir sozinho, nas instalações da Junta de freguesia de F (...) , num dos quartos adaptados, que apresentava boas condições de habitabilidade, denotando cuidados de higiene.

11. Na sequência de uma suspensão provisória do processo (Processo: 100/15.2GBLMG), do DIAP de Lamego, o arguido foi encaminhado para tratamento ao alcoolismo no CRI de Vila Real Equipa de Tratamento de Lamego. Só compareceu à primeira consulta, em 7 de abril, tendo faltado à segunda em 10 de maio, por não ter realizado os meios complementares de diagnóstico solicitados pelo Médico, não tendo, entretanto, solicitado remarcação.

12. No Estabelecimento Prisional Regional de Viseu, onde se encontra preso desde 28/09/2016, o arguido apresenta um comportamento ajustado, no entanto, durante as entrevistas, encontrava-se bastante ansioso e com sintomas depressivos e algo emocionado.

13. O arguido já foi anteriormente condenado tal como consta do certificado do registo criminal de fls. 83 a 85 que se dá por integralmente reproduzido.

(…)”.

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

[Do processo apensado]

- Todo o dinheiro que ganha é gasto no consumo de vinho, bagaço e tabaco, chegando mesmo a ter um pacote de vinho debaixo da cama para beber durante a noite;

- Assim. a 07 de Maio de 2016, pelas 20h 20m, o arguido chegou a casa alcoolizado, perguntando de imediato pelo jantar;

- A ofendida respondeu-lhe que o jantar estava na mesa, tendo-se dirigido para a sala para terminar a sua refeição sossegada;

- Foi então que o arguido, sem motivo e sem que nada o fizesse prever, dirigiu-se à ofendida e desferiu-lhe duas bofetadas no lado esquerdo da face;

- Na sequência do que, a ofendida sofreu dores na zona atingida pelo arguido;

- Ao actuar da forma, supra descrita, o arguido agiu com o propósito, conseguido, de molestar física e psicologicamente a ofendida afectando a dignidade pessoal da mesma, sabendo que tal actuação lhe estava legalmente vedada.

(…)”.

C) E dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (artigo 127º, Código Processo Penal).

O Tribunal norteou a sua convicção, quer quanto à matéria de facto provada quer quanto à matéria de facto não provada, pelo princípio da livre apreciação da prova, entendido como o esforço sério e empenhado para alcançar a verdade material, analisando dialeticamente os meios de prova que teve ao seu alcance e procurando harmonizá-los e confrontá-los criticamente entre si de acordo com os princípios da experiência comum, pois, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, inexistindo, portanto, quaisquer critérios pré-definidores do valor a atribuir aos diferentes elementos probatórios, salvo quando a lei dispuser diferentemente (juízos técnicos).

Na verdade, o princípio da livre convicção constitui regra de apreciação da prova em Direito Penal, e efetivamente, para conduzir à condenação, tal prova deve ser plena, pelo que, na decisão de factos incertos, a dúvida determina necessariamente a absolvição, de harmonia com o Princípio da Inocência que enforma também o direito processual penal e tem consagração constitucional.

Note-se que, como é sabido, a verdade material absoluta é, em regra, inalcançável pela via judicial na sua tarefa de reconstrução dos factos da vida real, logrando-se apenas uma verdade processualmente válida, fundamentada e plausível, sendo que, por outro lado, o relato de um facto pelo ser humano é um processo que comporta diversas etapas, a saber: a perceção dos factos, a memorização – que, muitas vezes, é acompanhada de uma racionalização dos eventos percecionados conducente à sua distorção – e a sua reprodução, sem olvidar que o julgador não é um recetáculo acrítico dos relatos que são produzidos em audiência.

É que esta "verdade" é o resultado de um labor judicial que se baseia nas declarações de quem vivenciou os factos, mas não despreza outros contributos quiçá mais relevantes (documentos, exames periciais e a própria experiência do julgador).

A convicção do tribunal é formada, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das lacunas. contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.

Com efeito, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras mas também pelo tom de voz e postura corporal dos interlocutores e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram, no que radica o princípio da imediação da prova.

Trata-se de um acervo de informação não-verbal e dificilmente documentável, e nem sequer traduzível por palavras, face aos meios disponíveis mas rica, imprescindível e incindível para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras de experiência comum e lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

O juiz não é uma mera caixa recetora de tudo o que a testemunha diz ou de tudo o que resulta de um documento e a sua apreciação funda-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos enformada por uma convicção pessoal.

Assim, a convicção do tribunal formou-se com base:

- nas declarações do arguido A... , que em suma, pese embora tenha negado os factos, foi afirmando que ligou à ofendida uma vez, que passava perto da casa da ofendida para ir comprar tabaco.

- Conjugado com o depoimento da ofendida B... , que quanto aos factos relativos ao período em que ainda coabitava com o arguido não prestou declarações.

Tendo prestado declarações quanto aos factos ocorridos após o dia 11 de Maio, tendo apresentado em audiência de discussão uma versão dos acontecimentos que se coaduna com a narrativa da acusação destes autos. Em suma confirmou os factos que se deram como provados.

Quanto às declarações prestadas pela ofendida quanto aos factos ocorridos após 11.05.2016, ou seja, após a separação do arguido, diga-se que entendemos que a mesma não tinha a faculdade de se puder recusar a prestar declarações quanto a estes factos.

Vejamos.

Arguido e ofendida viveram juntos como casal, na mesma casa, até 11.05.2016, data em que deixaram de coabitar.

Pode recusar-se a depor como testemunha "quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante (…) a coabitação" (artigo 134.º, n.º1 e alínea b)).

Na sugestiva formulação de Antunes Varela e Pires de Lima, a expressão condições análogas às dos cônjuges significa que os "companheiros não só mantêm notoriamente relações de sexo, mas vivem também de casa e pucarinho um com o outro, com comunhão de mesa, leito e habitação, como se fossem de facto cônjugesum do outro" – in Código Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, 1995, pág. 624.

Para efeitos do artigo 134.ºdo Código de Processo Penal exige-se, porém, a comunhão de habitação, actual ou pretérita.

Efectivamente – refere França Pitão – sem coabitação não há união de facto" 186. "Daqui resulta que, assentando o reconhecimento da união de facto numa coabitação durante um certo período, cessando esta cessa necessariamente a união de facto ou, pelo menos a tutela do direito relativamente a ela. Por isso, pode dizer-se que, sendo causa ou condição da relevância ou reconhecimento da união de facto, a coabitação é também o principal efeito daquela, na medida em que não pode entender-se uma sem outra" – 186 Uniões de Facto e Economia Comum, cit., pág.114.

Neste sentido veja-se, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19.12.2013, in www.dgsi.pt

Quanto aos factos que se deram como não provados, atenta a ausência de prova, têm tais factos se ser dados como não provados.

Teve-se ainda em consideração os documentos juntos aos autos, o certificado do registo criminal e o relatório social.

Esta foi a prova produzida em sede de audiência, vejamos agora a sua conjugação.

O Código de Processo Penal ao disciplinar o regime de prova estabelece como seus princípios ordenadores, o da legalidade da prova, segundo o qual serão admissíveis todos os meios de prova que não forem proibidos por lei (125.º C.P.P.), excluindo-se expressamente os métodos proibidos de prova (32.º, n.º 8 Constituição; 126.º C.P.P.), e o da livre apreciação da prova (127.º), não tanto no sentido da intima convicção, mas mais como uma convicção racional e motivada (205.º; Constituição; 97.º, n.º 5 C.P.P.), sujeito, no entanto, aos já referidos princípios estruturantes do processo penal e aos condicionantes legais.

No entanto não estabelece nenhum critério legal quanto à valoração da prova e sabido que esta, atenta a sua função de demonstrar a realidade de um facto juridicamente relevante (124.º) e atenta a sua tipologia, tanto podem ser directas (i), comprovando directamente o facto que se pretende provar, ou indirectas, partindo-se de indícios factuais certos para se demonstrar, mediante presunções judiciais, certo facto (ii).

Para o efeito de destrinçar uma da outra tem se partido de uma distinção ontológica, que é aquela efectuada tendo por base a percepção do juiz a partir dos factos a provar, ou então funcional, mediante a conexão existente entre o facto a provar e o objecto da prova.

Quanto aos factos dados como provados o arguido admitiu ligado à ofendida e negou as expressões, porém a ofendida confirmou os factos e temos os elementos documentais.

Quanto aos factos dados como não provados, o arguido negou-os e a ofendida não prestou declarações sobre eles.

(…)”.


*

            Da nulidade do depoimento da ofendida

            1. Em boa verdade, toda a alegação do recorrente vertida nas conclusões formuladas tem por objecto o que designou por nulidade do depoimento da ofendida por, como diz, a esta ter sido negado o direito de recusar prestar depoimento, fundado na coabitação entre ambos existente há mais de trinta anos, e não obstante as diversas vezes em que, no decurso da audiência de julgamento, a ofendida manifestou o propósito de não prestar declarações.

            Oposta é a posição do Ministério Público para quem, não existindo já coabitação entre recorrente e ofendida entre 11 de Maio e 28 de Julho de 2016, não assistia à mesma o direito de recusar depoimento quanto aos factos ocorridos neste período.

            A este propósito, na motivação de facto da sentença recorrida, a Mma. Juíza fez constar o seguinte:

«Quanto às declarações prestadas pela ofendida quanto aos factos ocorridos após 11.05.2016, ou seja, após a separação do arguido, diga-se que entendemos que a mesma não tinha a faculdade de se puder recusar a prestar declarações quanto a estes factos. Vejamos.

Arguido e ofendida viveram juntos como casal, na mesma casa, até 11.05.2016, data em que deixaram de coabitar.

Pode recusar-se a depor como testemunha "quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante (…) a coabitação" (artigo 134.º, n.º1 e alínea b)).

Na sugestiva formulação de Antunes Varela e Pires de Lima, a expressão condições análogas às dos cônjuges significa que os "companheiros não só mantêm notoriamente relações de sexo, mas vivem também de casa e pucarinho um com o outro, com comunhão de mesa, leito e habitação, como se fossem de facto cônjugesum do outro" – in Código Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, 1995, pág. 624.

Para efeitos do artigo 134.ºdo Código de Processo Penal exige-se, porém, a comunhão de habitação, actual ou pretérita.

Efectivamente – refere França Pitão – sem coabitação não há união de facto" 186. "Daqui resulta que, assentando o reconhecimento da união de facto numa coabitação durante um certo período, cessando esta cessa necessariamente a união de facto ou, pelo menos a tutela do direito relativamente a ela. Por isso, pode dizer-se que, sendo causa ou condição da relevância ou reconhecimento da união de facto, a coabitação é também o principal efeito daquela, na medida em que não pode entender-se uma sem outra" – 186 Uniões de Facto e Economia Comum, cit., pág.114.».

Nos termos do disposto no art. 134º, nº 1, b) do C. Processo Penal, pode recusar-se a depor como testemunha, além do mais, quem conviver ou tiver convivido com o arguido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante a coabitação.

A norma, ao conferir a faculdade de recusa de depoimento a determinadas pessoas, em razão dos laços de família ou de natureza semelhante, com o arguido, visa prevenir formas larvadas e indirectas de auto incriminação e preservar a integridade e a confiança nas relações de maior proximidade familiar (cfr. Costa Andrade, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137, pág. 280) ou seja, pretende evitar que quem vive ou viveu com o arguido em condições análogas às dos cônjuges portanto, em união de facto [como sucede nos autos], seja colocado perante a alternativa de, mentir, correndo o risco de ser responsabilizado criminalmente, ou não mentir e concorrer para a condenação do companheiro, assim desmantelando a relação de confiança inerente à relação. Porém, o direito ao silêncio deixa de ser protegido pela norma quanto a factos ocorridos fora do período de coabitação valendo, neste caso, a regra geral da obrigação de prestar depoimento (cfr. arts. 131º, nº 1 e 132º, nº 1, d), do C. Processo Penal).

Para que esta modalidade do direito ao silêncio possa efectivamente ser exercida, a lei impõe que a entidade competente para receber o depoimento, sob pena de nulidade, previamente advirta o titular de que lhe assiste o direito de recusar o depoimento (nº 2 do art. 134º do C. Processo Penal). Embora Paulo Pinto de Albuquerque entenda que esta nulidade consubstancia uma verdadeira proibição de prova resultante da intromissão na vida privada que, nos termos do disposto no art. 126º, nº 3 do C. Processo Penal, acarreta a nulidade das provas obtidas, salvo consentimento do titular (Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 362), a maioria da doutrina entende – e não encontramos razões válidas para dela divergir – tratar-se de uma nulidade sanável e portanto, a arguir até ao termo da prestação do depoimento (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, Volume I, 3ª Edição, 2008, Rei dos Livros, pág. 957, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª Edição, 1999, Almedina, pág. 333, e Santos Cabral, obra colectiva, Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 533).

Pois bem.

2. Da acta da audiência de julgamento de 30 de Setembro de 2016 [fls. 188 a 194] consta que a testemunha B... , solteira, doméstica, residente em (...) , F (...) , questionada nos termos do art, 348º, nº 3 do C. Processo Penal, disse ser companheira do arguido, advertida nos termos e para os efeitos do art. 134º do mesmo código, quanto aos factos constantes no processo 54/16.8GBLMG, a estes apenso sob o nº 71/16.8GBLMG, pela mesma foi dito não querer prestar declarações, contudo, tendo informado que ela e o companheiro estiveram separados de 11 de Maio a 30 de Julho, a mesma prestou declarações quanto aos factos deste processo.

Parece existir um lapso na acta, quando refere que o processo 54/16.8GBLMG, a estes apenso sob o nº 71/16.8GBLMG, uma vez que o processo nº 54/16.8GBLMG foi efectivamente apensado aos presentes autos – processo nº 71/16.8GBLMG, mas com a identificação, 71/16.8GBLMG-A.

A Relação ouviu o registo gravado da audiência de julgamento, na parte relativa à identificação da testemunha B... do qual resulta, inequivocamente, o propósito inicial da testemunha em recusar prestar depoimento, servindo como exemplo do que dizemos, entre outras, a circunstância de, mal tendo acabado de se identificar, à pergunta da Mma. Juíza a quo sobre o seu relacionamento com o arguido, sem mais e a despropósito, disse não querer falar. Mas é também verdade que, ainda nesta fase preliminar, no seguimento de perguntas da Mma. Juíza a quo e, a dada altura, também da Digna Magistrada do Ministério Público, a testemunha afirmou ainda ser companheira do arguido, estar separada dele porque ele está preso, que não moram juntos na mesma casa desde o dia 11 de Maio não sendo esta a data em que ele foi preso, que quando ele saiu de casa em 11 de Maio, já estava separada dele, que já não viviam juntos, fez queixas contra o arguido depois de 11 de Maio quando ainda não tinha reatado com ele, fez as pazes com o arguido depois de ele ter ido preso para Viseu, e, por fim, admitiu que entre 11 de Maio e 28 de Julho de 2016 esteve separada do companheiro.

Nesta decorrência, a Mma. Juíza a quo informou a testemunha de que relativamente aos factos do processo 54/16.8GBLMG, apenso, aí fixados [pela respectiva acusação] em 7 de Maio de 2016, não era obrigada a prestar depoimento e que, relativamente aos factos dos autos, aí fixados em 3 de Julho de 2016 [pela respectiva acusação], teria que prestar depoimento. A testemunha disse à Mma. que não queria falar e que ninguém a obrigava a falar, tendo a Magistrada Judicial, de novo e pacientemente, informado a testemunha dos factos sobre os quais podia e não podia recusar a prestação de depoimento, e ainda que a recusa ilegítima a poderia fazer incorrer em responsabilidade criminal.

A testemunha disse ter percebido a explicação, afirmou que não queria depor sobre os factos de 7 de Maio de 2016 e, depois de iniciais reservas, prestou juramento após o que, depôs.

Posto isto.

Aceita-se a existe algum rigor excessivo na fixação do termo da coabitação entre a testemunha e o arguido no dia 11 de Maio de 2016, uma vez que a própria testemunha afirmou que já antes desta data se encontravam separados, vindo a reconciliarem-se após a prisão do arguido, que teve lugar no dia 28 de Julho de 2016. Isto mesmo é aceite pelo recorrente, que não impugnou o ponto 1 dos factos provados da sentença em crise, onde consta que «O arguido e a ofendida B... , viveram juntos, cerca de 27 anos até 11 de Maio do presente ano, como marido e mulher, partilhando a mesma mesa, cama e habitação, na residência sita na Rua (...) , Lamego».   

Porém, ainda que a, pela testemunha afirmada, reconciliação tivesse ocorrido após 28 de Julho de 2016, e mesmo que se entendesse que a reconciliação significa, sem mais, dada a situação prisional do recorrente, o retomar da coabitação, a lei não prevê, quando tal sucede, a extensão do direito ao silêncio aos factos ocorridos no período em que a coabitação esteve interrompida [nesta situação, não existe identidade de tratamento processual entre a testemunha, membro de uma união de facto e a testemunha, cônjuge ou ex-cônjuge]. 

Deste modo, tendo-se por certo que os factos objecto dos presentes autos [autos principais] ocorreram em período temporal em que não existia coabitação entre testemunha e arguido, àquela não assistia a faculdade de recusar a prestação de depoimento sobre tais factos o que significa, por outro lado, que quanto a eles, não tinha que ser-lhe feita a advertência prevista no art. 134º, nº 2 do C. Processo Penal, não tendo sido, portanto, cometida qualquer nulidade.    

Em todo o caso, ainda que, por mera hipótese de raciocínio, assim não fosse, entendendo o recorrente que deveria ter sido feita à testemunha aquela advertência, relativamente aos factos objecto dos presentes autos portanto, dos autos principais, por se tratar, como vimos, de nulidade relativa, impunha-se que a tivesse arguido até ao fim do depoimento, o que não sucedeu, como resulta da acta da audiência de julgamento onde ele, depoimento, foi prestado e do respectivo registo gravado [não corresponde a tal arguição, e também a mesma não seria tempestiva, a simples afirmação do Ilustre Defensor do recorrente, feita em sede de alegações finais, de que a defesa discordava de não ter sido concedido à vítima o direito ao silêncio].  

Assim, não tendo sido sequer arguida, atento o disposto no art. 120º, nºs 1 e 3, a) do C. Processo Penal, sempre teria que considerar-se sanada a invocada nulidade.

Em conclusão, não enferma de nulidade o depoimento da testemunha B... .


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Da modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, tendo por objecto os pontos 3, 6, 7, 8 e 9 dos factos provados e consequente absolvição

3. Pretende o recorrente a modificação dos pontos 3, 6, 7, 8 e 9 dos factos provados da sentença recorrida, de forma a que passem a dela constar como factos não provados, o que faz, no pressuposto da procedência da invocada nulidade do depoimento da ofendida, testemunha B... , e com o entendimento de que o meio de prova que suportou a convicção do tribunal recorrido quanto à decisão proferida foi o referido depoimento.

O recorrente tem razão quando afirma a essencialidade do depoimento da testemunha B... para fundar a convicção da Mma. Juíza a quo quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto e, muito particularmente, sobre os concretos pontos de facto impugnados. Com efeito, é isso o que resulta da motivação de facto da sentença, supra transcrita, sendo claro que, face à concreta natureza dos factos em questão e à negação da sua prática pelo recorrente, a desconsideração probatória do depoimento da testemunha retiraria qualquer suporte à decisão de facto proferida, impondo a sua alteração no sentido pretendido pelo recorrente.

Sucede que, como se deixou dito nos pontos 1 e 2 que antecedem, entendemos não existir fundamento para julgar verificada a nulidade prevista no art. 134º, nº 2 do C. Processo Penal, determinante da desconsideração probatória do depoimento em causa.

Consequentemente, e não tendo o recorrente invocado outras razões para a modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, deve esta manter-se nos exactos termos em que foi fixada pela 1ª instância.


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            Improcedem, assim, as conclusões do recurso.

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.


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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCS. (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra, 8 de Fevereiro de 2017


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro – adjunta)