Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
830/09.8PBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
MOTIVO FÚTIL
FRIEZA DE ÂNIMO
Data do Acordão: 08/03/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO (CÍRCULO JUDICIAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Legislação Nacional: ART.º 132º, DO C. PENAL
Sumário: Motivo fútil é o móbil do crime da actuação despropositada do agente, sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação do facto, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente.

E actua com frieza de ânimo quem forma a sua vontade de matar outrem de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução; trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No Círculo Judicial de TTT..., foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção de tribunal do júri, o arguido:

- A..., solteiro, residente na Rua … Q..., presentemente detido no E.P. de Lamego,

sob acusação da prática, em autoria material, de um crime homicídio qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. e), in fine, h) e j), todos do Código Penal, e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a) e 2 e 132.º, n.º 2, al. h), do CP.


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2. B... foi admitido a intervir nos autos com a qualidade de assistente.

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3. B... e C... deduziram pedido de indemnização cível contra o arguido, pedindo a condenação deste no pagamento aos demandantes do montante global de € 196.622,50, a título de indemnização pelos alegados danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.

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4. Por acórdão de 23 de Março de 2011, o tribunal decidiu nos seguintes termos:

1. Julgou parcialmente procedente por provada a acusação do Ministério Público e, em consequência:

a) Absolveu o arguido A... da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º/1 e 2, als. e), in fine, h) e j), do Código Penal;

b) Condenou o arguido A...:

- Pela prática de um crime de homicídio simples, previsto e punido no artigo 131.º do Código Penal, na pena de 15 (quinze) anos de prisão;

- Pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º/1, 145.º/1, al. a) e 2 e 132.º/2, al. h), todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;

- Na pena única de 15 (quinze) anos e 6 (seis) meses de prisão;

c) Declarou perdida a favor do estado a faca apreendida a fls. 23 dos autos e  ordenou a sua oportuna destruição, por ter sido o objecto utilizado na prática do crime.

2. julgou parcialmente procedente, por provado, o pedido cível formulado por B… e C..., em função do que condenou o arguido-demandado A... no pagamento aos demandantes das seguintes quantias:

a) € 1422,50, a título de danos patrimoniais;

b) € 70.000,00, a título de danos não patrimoniais correspondentes à perda do direito à vida por parte da falecida;

c) € 25.000,00, a título de danos não patrimoniais referentes ao sofrimento por que passou a falecida antes do seu decesso, sendo as quantias referidas em b) e c) a repartir pelos demandantes segundo as regras do direito sucessório;

d) Ao demandante B..., € 3.500,00, a título de danos não patrimoniais, referentes às lesões que lhe foram infligidas;

e) A cada um dos demandantes, B... e C..., € 40.000,00, a título de danos não patrimoniais sofridos pela morte da sua filha D....


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5. Inconformados, interpuseram recurso o Ministério Público, o assistente B... e o arguido A..., tendo formulado nas respectivas motivações as seguintes (transcritas) conclusões:

5.1. Ministério Público:

1.ª - Por se impugnar a matéria de facto, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 412.º, n.º 3, al. a), do Código de Processo Penal, indica-se que os pontos que, concretamente, se reputam incorrectamente julgados são os factos dados como provados nos pontos 7. a 24. do acórdão recorrido. Tais pontos levam, em nosso entender, à conclusão contrária à vertida no douto acórdão agora questionado.

2.ª - O arguido A... foi absolvido da prática do crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs l e 2 als. e) in fine, h) e j) do Código Penal, pelo qual vinha acusado.

3.ª - A apreciação da prova feita pelo tribunal, que conduziu à matéria provada e não provada, com especial relevo para a apreciação que consubstancia a premeditação, da especial censurabilidade ou perversidade, a circunstância de o agente utilizar meio particularmente perigoso, de o agente matar determinado por qualquer motivo torpe ou fútil, e, com frieza de ânimo, com reflexão com os meios empregados ou com persistência na intenção de matar por mais de 24 horas, na sua conjugação com os demais elementos de prova produzidos, designadamente, os depoimentos das várias testemunhas, deveria merecer uma diferente conclusão.

4.ª - Não se compreende nem se aceita que a arma em causa nestes autos - faca, e, que faca - qualifique o crime de ofensa à integridade física de B... e não qualifique o crime de homicídio de D... - ver incriminações constantes do acórdão recorrido.

5.ª - Há, pois, frieza de ânimo quando se age a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana.

Como reflexão sobre os meios empregados deve entender-se a selecção de meios de actuação que facilitem a execução do crime ou pelo menos diminuam a vulnerabilidade da concretização do desígnio criminoso.

Isto é, o agente, ao escolher de entre os meios disponíveis ou possíveis os mais idóneos e com maior capacidade de êxito, diminui as possibilidades de defesa da vítima, pelo que, a sua conduta deve ser mais severamente punida.

6.ª - O Supremo Tribunal de Justiça refere no seu acórdão de 90/12/12 AJ n.º 13/14 Proc. n.º 41361 que:

a - A premeditação é caracterizada por a vontade do crime como que acompanhar o criminoso todo o tempo, levando-o a inúmeras representações e volições, com aceitação repetida do resultado.

b - A  figura do dolo de premeditação, como acontecia no direito romano, opõe-se à do dolo de ímpeto.

c - Actua com premeditação o agente que mantém a resolução de matar, pelo menos desde que iniciou uma viagem de mais de 100 quilómetros até ao local onde se encontrava a vítima que viria a matar.

7.ª - O arguido havia adquirido a mencionada faca após pesquisa na internet e através daquele meio, duas ou três semanas antes do dia 14 de Novembro de 2009 e depois de a D...ter terminado o relacionamento entre ambos, este facto dado como provado, diz o senso comum, que foi o momento durante o qual o arguido toma a resolução de matar a D… .

8.ª - A fundamentação decisória, nos termos do art. 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, está desenhada na lei para, pelo enunciar dos pontos de facto provados e não provados, como de uma súmula dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, o julgador explicitar o processo lógico e psicológico da sua decisão, excluindo da motivação o que não é passível de justificação racional, movendo-se unicamente no âmbito do racionalmente justificável. O acórdão violou o disposto no art. 374.º, n.º 2, conjugado com o disposto no art.  379.º, n.º l, ambos do Código de Processo Penal.

9.ª - Bastará enumerar as lesões sofridas pela vítima D... num total de 23 golpes, provocando-lhe:

- uma ferida perfurante na região supra clavicular direita com orientação de cima para baixo atingindo a clavícula, com cerca de 4 cm de comprimento e 10 cm de profundidade, atingindo a veia sub-clavia direita e a pleura parietal, uma ferida perfurante com cerca de 3 cm de comprimento, com orientação de cima para baixo e de fora para dentro, penetrando cerca de 3 cm até ao externo e bordo superior do 4.º arco costal direito, apresentando um entale de cerca de meio cm de profundidade;

- duas feridas lineares de secção transversal, de características perfurantes, com cerca de 2 e 4 cm de comprimento, na região supra clavicular esquerda, com orientação de cima para baixo;

- uma ferida perfurante de cima para baixo, com cerca de 3 cm de comprimento, no limite superior da mama esquerda, atingindo o bordo superior do 4.º arco costal esquerdo;

- duas feridas perfurantes na transição entre o tórax e a raiz do membro superior esquerdo, com cerca de 3 cm de comprimento e com orientação de cima para baixo e de fora para dentro, atingindo a pleura e o pulmão esquerdo;

- uma ferida perfurante na face interior da mama esquerda de trajecto horizontal, com cerca de 3 cm de profundidade e sem penetrar na cavidade torácica;

- três feridas perfurantes na região para vertebral esquerda, junto à linha média, com orientação oblíqua de cima para baixo, perfurantes até à cavidade pleural, uma com cerca de 4 cm de comprimento, de traço horizontal, e duas de cerca de 3 cm, de corte vertical;

- uma ferida para vertebral direita, perfurante, junto à linha média, atingindo a coluna vertebral ao nível da 2.ª vértebra dorsal e penetrando cerca de meio cm no osso;

-  três feridas perfurantes na região interescapular esquerda com cerca de 3 cm e orientação de cima para baixo, sendo as duas inferiores perfurantes para a cavidade pleural;

- uma ferida perfurante ao nível do ombro esquerdo, com cerca de 3 cm, atingindo a cabeça do úmero;

- duas feridas perfurantes na face antero interna do braço direito, com orientação de cima para baixo com cerca de meio cm de profundidade;

- ferida incisa, transversal, da face antero interna da mão direita, na transição metacarpo-falângica, desde a raiz do indicador até à zona média da palma da mão, com características de defesa;

- duas feridas perfurantes na região frontal desferidas com violência, com fractura do osso frontal;

- uma ferida cortante do lábio inferior até ao mento;

lesões estas que foram causa directa e adequada da morte daquela, principalmente as lesões traumáticas torácicas atrás mencionadas, para se verificar que o acórdão em crise não respeitou o estatuído no art. 132.º, n.ºs l e 2, als. e), h) e j), do Código Penal, quer pelo número de facadas quer pela intensidade e celeridade das mesmas, pois, o pai da vítima rapidamente apareceu junto da cena do crime, por chamamento da filha.

10.ª - Ao tribunal estes factos provados documentalmente não suscitaram dúvidas pois foram dados como provados.

11.ª - À luz das regras da experiência comum todas estas feridas, em número de 23, e pelas zonas vitais atingidas desrespeitam o normativo do homicídio qualificado e já enunciado.

12.ª - Nos autos e concretamente em audiência, foram apresentados, como meios de prova, os relatórios de autópsia, as fotografias do cadáver, e não foram valorados na devida medida;

13.ª - O acórdão deverá ser substituído por outro que considere tais factos provados e que condene o arguido pela prática do crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs l e 2, als. e) in fine, h) e j), do Código Penal, pelo qual está acusado, ou então se determine a repetição do julgamento nesta conformidade.

Pelo exposto, revogando o douto acórdão recorrido nos termos sobreditos, vossas Excelências farão justiça!


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5.2. Assistente B...:

1.ª - O Assistente não se conforma com a qualificação jurídica que conduziu à condenação do Arguido, apenas, por homicídio simples;

2.ª - O Tribunal a quo deveria ter tomado em consideração o documento que descreve as concretas características da faca, logrando assim provar-se a especial perigosidade da mesma, sendo que, ao não fazê-lo, violou o artigo 340.º do CPP, devendo tais factos ser dados como provados e tidos em conta por esse Venerando Tribunal;

3.ª - A faca utilizada pelo Arguido, atentas as suas características e uso, deve ser considerada particularmente perigosa e, consequentemente, aquele ser condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, nos termos dos artigos 131.º, 132.º/1 e 2 h) do CP, sendo que, ao não sufragar este entendimento, violou o Tribunal a quo as referidas normas;

4.ª - O Tribunal a quo, após ter considerado que o meio utilizado pelo Arguido não era particularmente perigoso, deveria ter aplicado a agravação de um terço das penas aplicáveis, nos respectivos limites mínimo e máximo, prevista no artigo 86.º/3 da Lei n.º 5/2006, de 23/2, na redacção conferida pelo Lei n.º 17/2009, de 6/5, com entrada em vigor a 6/6/2009, uma vez que o Arguido utilizou uma arma no cometimento do crime, sendo que, ao não o ter feito, violou as referidas normas;

5.ª - Ao não qualificar o crime de homicídio com base na motivação fútil, o Tribunal a quo violou os artigos 131.º, 132.º/1 e /2 e) do CP, devendo a douta decisão recorrida ser substituída por outra que condene o Arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado, com base, precisamente, nas referidas normas;

6.ª - O Arguido deve ser condenado, nos termos dos artigos 131.º e 132.º/1 e 2 j) do CP, pela prática de homicídio qualificado, atenta a frieza de ânimo com que actuou, sendo que, ao não decidir desta forma, violou o douto Acórdão estas mesmas normas;

7.ª - Deve, em suma, ser o Arguido condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, nos termos dos artigos 131.º, 132.º/1 e 2 e), h) e j) do CP;

8.ª -  Caso, todavia, se entenda que não existem fundamentos para qualificar o crime, deve, ainda assim, a pena ser alterada de modo a que o cálculo da mesma seja feito dentro da moldura legal resultante da conjugação dos artigos 131.° do CP e 86.º/3 da Lei n.º 5/2006, de 23/2, na redacção conferida pela Lei n.º 17/2009, de 6/5, com entrada em vigor a 6/6/2009, uma vez que o Arguido utilizou uma arma no cometimento do crime.

Assim decidindo, farão V. Ex.ªs, Venerandos Desembargadores, a costumada justiça!


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5.3. Arguido A...:

1.ª - O presente recurso, interposto do acórdão proferido pelo Tribunal de Júri, versa tão-somente sobre três aspectos do seu dispositivo, sendo certo que a discordância relativamente ao último é a natural consequência da divergência existente no que concerne aos dois primeiros; a saber:

2.ª - A condenação do ora recorrente a uma pena de prisão efectiva de quinze anos, pela prática de um crime de homicídio simples, previsto e punido pelo artigo 131.º do Código Penal; a uma pena de prisão efectiva de um ano pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º l, 145.º, n.ºs l, al. a) e 2, e 132.º, n.º 2, al. h), todos do Código Penal; a uma pena única de quinze anos e seis meses de prisão.

3.ª - Nos termos dos parágrafos 22. e 25. da matéria de facto dada como provada, pode ler-se, respectivamente, o seguinte: «Enquanto o arguido estava a ser agarrado pelo pai da D…, desferiu dois golpes com a mesma faca sobre o último, provocando-lhe uma ferida no tórax, região medi-clavicular esquerda com cerca de 3 cm de comprimento e aproximadamente 5 cm de profundidade, sem perfuração dos vasos subclávicos nem da pleura e ainda uma ferida incisa do primeiro dedo da mão esquerda, lesões que lhe determinaram 10 dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional»; e ainda que «O arguido, ao desferir os dois golpes com a faca em questão sobre o assistente B..., fê-lo de forma deliberada e consciente, com a propósito de o molestar fisicamente, bem sabendo que o objecto com que o atingiu era adequado a feri-lo, como veio a acontecer».

4.ª - Deste modo e com vista a aferir da efectiva existência de um propósito claro do recorrente em molestar fisicamente o assistente B..., importará desde logo atentar no que tanto um e outro, os únicos sujeitos com conhecimento directo (e possível) de tais acontecimentos, deixaram dito em sede de audiência de julgamento.

5.ª - Na verdade, o ora recorrente foi bastante claro e inequívoco em afirmar que, não se tendo dado conta da aproximação do pai da vítima D...- narrando um dado «vazio» que se apodera da sua memória, desde o momento em que dá o primeiro golpe de faca na jovem -, só vem a reparar na presença daquele, tomando consciência do mesmo, quando este já se encontrava em cima de si.

6.ª - Por outro lado, o ora recorrente, da altura em que se lembra estar completamente imobilizado, não guarda qualquer registo de que alguém estivesse a tentar impedir que ele desferisse mais golpes na vítima D....

7.ª - Ora, logo por aqui, face ao que assim se encontra afirmado pelo ora recorrente, torna-se difícil compreender o que é dito em 25. da matéria de facto dada como provada.

8.ª - De facto, duas interrogações surgem como naturalmente legítimas:

9.ª - Como terá sido possível que o recorrente, tendo-se apercebido apenas da presença do pai da D..., imediatamente antes do momento em que o mesmo o deita ao chão e o imobiliza - terminando, aí, o vácuo na sua memória - tenha desferido os golpes, já melhor relatados, no corpo daquele, com o exacto propósito de o molestar fisicamente?

10.ª - Como terá sido possível que o recorrente, que nem deu pela aproximação do assistente B..., tenha tido, em momento emocional particularmente intenso e descontrolado, a necessária clarividência para, de costas viradas para aquele - como melhor imediatamente mais abaixo se verá -, lhe desferir dois golpes com a precisa intenção de, pelo menos, causar-lhe graves danos físicos?

11.ª - Em boa verdade, sempre se dirá, ao contrário do que foi assim decidido pelo tribunal recorrido, que a tais golpes dados pelo recorrente ao pai da vítima mais não corresponde do que um acto reflexo de libertação, próprio de quem, envolto num estado de estenia se vê, de súbito, diga-se assim, dominado.

12.ª - De resto, segundo as declarações prestadas por B..., na mesma audiência de julgamento, resulta patente que, por um lado, nunca o assistente se apercebeu da faca com que o recorrente estava munido, constatando, por outro, que possuía dois ferimentos - melhor descritos em 22. do acervo probatório - apenas já no hospital.

13.ª - Acresce ainda que, não referindo que entre ambos tenha havido uma troca de socos, a «luta» a que o assistente B... se reporta traduziu-se apenas no esforço que este fez em, vindo de trás, agarrar o recorrente - que se encontrava de costas viradas e sobre o corpo de D..., que jazia no chão, de barriga para cima - e afastá-lo da sua filha.

14.ª - Ora, a ter sido esta, seguramente, a dinâmica de tais acontecimentos, uma vez mais se dá conta de que os golpes desferidos pelo ora recorrente não comportaram em si qualquer intenção agressiva, especialmente direccionada ao assistente.

15.ª - Mais: se é certo que o relatório de exame às faculdades mentais e o relatório de avaliação psicológica do recorrente, constantes de fls. 772 a 794 e 735 a 798, descrevem com minúcia todo o episódio que rodeia a morte da vítima D...às mãos daquele, certo será também que, relativamente aos golpes desferidos sobre o pai da mesma - que entretanto se lançara, por detrás, ao arguido no intuito de o manietar e de o afastar de sua filha - nada chega a ser dito.

16.ª - Valendo o mesmo por dizer que o carácter, diga-se assim, «marginal» de tal episódio é por demais evidente.

17.ª - Caso assim não fosse e certamente que uma qualquer valoração científica, de cariz psiquiátrico e psicológico, deveria ter sido ponderada, realizada e consagrada nas conclusões finais de tais relatórios.

18.ª - O certo é que, repita-se, nada é dito, ao nível da prova pericial - a que o julgador penal se encontra vinculado - que possa sustentar qualquer intenção ou vontade deliberada do ora recorrente em molestar fisicamente o assistente B....

19.ª - E é tendo presentes os considerandos vindos de tecer que não se pode concordar com o tribunal recorrido quando o mesmo, citando até o Acórdão da Relação do Porto de 12 de Março de 2008 - o qual prescreve não poder ver-se, na simples utilização de uma faca no cometimento de determinado crime, um indício bastante de especial perversidade ou censurabilidade, havendo sempre que relacionar tal aspecto com todas as outras circunstâncias envolventes -, quando o mesmo, dizia-se, ainda defende que o ora recorrente procurou determinadas zonas do corpo do assistente B... no claro propósito de o molestar fisicamente.

20.ª - Por outro lado, mesmo perfilhando o entendimento de que, por si só, a utilização da faca pelo ora recorrente nos golpes com que este atingiu o pai da vítima D..., é elemento bastante para se verificar a qualificativa em causa no tipo de ilícito em análise, então, em tal hipótese, faleceriam todas as outras valorações que o tribunal recorrido levou a cabo acerca do que poderão representar meios idóneos e não idóneos para preencher os conceitos de especial perigosidade e censurabilidade da conduta do agente perpetrante.

21.ª - É que, mesmo uma mão nua, desde que treinada em artes de combate, é susceptível de provocar graves lesões e até mesmo a morte.

22.ª - Ora, a ser assim, desde logo se toma como imperativo voltar a olhar para as circunstâncias concretas em que o alegado crime de ofensa à integridade física qualificada é praticado; mormente a existência, ou não, de um dado, mas claro propósito agressivo direccionado para determinado sujeito.

23.ª - E, desta forma, bom será de ver, de uma vez por todas - mercê de tudo quanto se encontra dito em sede de audiência de julgamento quer pelo recorrente, quer pelo assistente (e no presente recurso reproduzido) -, que nunca o ora recorrente, envolto num intenso torpor esténico, teve qualquer intenção de, com a mesma faca com que matou a jovem D..., agredir e molestar fisicamente o assistente B..., aliás, já Eduardo Correia se referia a tais situações psicológicas apelidando-as de “estado afecto esténico” (cfr. Direito Criminal, II, reimpressão, Almedina, 1971, página 49)

24.ª - Por tudo e salvo o devido respeito, o parágrafo 25. da matéria de facto dada como provada deverá ser eliminado do respectivo acervo, o que desde já se requer; impugnando-se desta forma o mesmo.

25.ª - Por outro lado, o parágrafo 22. da matéria de facto dada como provada, merecerá uma redacção diversa, mais consentânea com tudo aquilo que foi apurado em sede de audiência de julgamento e que pode ser formulada nos seguintes termos: «Enquanto o arguido estava a ser manietada pelo pai da D...- no esforço que o mesmo fazia para o afastar desta e sem que previamente se tenha apercebido da sua presença -, atingiu acidentalmente este último, provocando-lhe uma ferida no tórax, na região medi-clavicular esquerda com cerca de 3 cm de comprimento e aproximadamente 5 cm de profundidade, sem perfuração dos vasos subclávicos nem da pleura e ainda uma ferida incisa do primeira dedo da mão esquerda, lesões que lhe determinaram 10 dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade profissional»;

26.ª - Impugnando-se, pois, a sua actual redacção.

27.ª - Face ao exposto, também o parágrafo 26. deverá ser interpretado, quanto ao ilícito típico cometido pelo recorrente contra o assistente B..., cum granum salis, ou seja, quando é dito que «o arguido tinha, para além do mais, perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei», certamente que, no que  toca aos actos praticados contra o assistente B... - em virtude de tudo quanto já foi dito - essa mesma apreensão cognitiva não teve, de modo nenhum, lugar.

28.ª - Por seu turno, haverá ainda que olhar para o parágrafo 11. da matéria de facto não provada e para o seu possível, correspectivo, constante de 58., já da matéria de facto dada como provada.

29.ª - Ou seja, tanto a asserção de que não é crível que o arguido se encontre profundamente arrependido, como aqueloutra de que o mesmo, embora tendo revelado uma atitude contrita em audiência de julgamento, esta não contribuiu para a descoberta da verdade, bulem com o que é dito, a certo passo, na prova pericial constante de fls. 772 a 794.

30.ª - De facto, em tal passagem pode ler-se que «Deverá sublinhar-se, finalmente, o notório e genuíno esforço do examinado [o ora recorrente] em efectuar descrições extremamente rigorosas»; certamente reportadas quer às circunstâncias que rodearam a prática dos factos, quer quanto aos próprios em si mesmo considerados.

31.ª - Et pour cause, dúvidas não poderão restar que, pese embora tal esforço pouco signifique à luz das evidências gritantes de que um determinado crime foi cometido, o certo é que o mesmo foi feito, por quem até tem o direito de permanecer em silêncio.

32.ª - Devendo, justamente, tal opção ter sido valorada de um ponto de vista prático-normativo e axiológico-reflexivo, tendente a um juízo metonomologicamente tido como mais justo.

33.ª - Acresce ainda que, o arrependimento do ora recorrente, relativamente às condutas por si levadas a cabo, também é igualmente referido no relatório psicológico de fls. 795 a 798.

34.ª - E se dúvidas restassem acerca da genuinidade do arrependimento do ora recorrente bastará recordar que - sendo uma sala de audiências um espaço de intersubjectividade dialogante onde se deve cumprir cabalmente com o princípio da imediação -, não são apenas as declarações verbais das testemunhas, dos assistentes e dos próprios arguidos os únicos elementos «que contam».

35.ª - Também a linguagem corporal, os momentos de pausa, de reflexão e de silêncio, constituem, todos eles, critérios que o julgador deve ter em conta ao formular o seu juízo decisório e ao sedimentar, antes de mais, a sua convicção.

36.ª - E se é certo que sempre se poderia dizer, como muitas vezes é dito, que um tribunal de recurso - que, curiosamente, não abdica da sua prerrogativa legal em reapreciar matéria de facto (comportando a mesma todos aqueles elementos não verbais) - não pode superar ou transpor aquele limiar de presença espácio-temporal que o separa do tribunal de primeira instância - onde a audiência é realizada - certo será também, que no presente caso, tal argumento deverá falecer.

37.ª - E deverá falecer porque é perfeitamente apreensível, a certo passo do que se encontra registado em formato áudio (conforme o que é referido no corpo do presente recurso), o choro em que o ora recorrente irrompeu ao encarar o assistente B..., pai da vítima D....

38.ª - Mais do que «atitude contrita», este momento, particularmente intenso, do ponto de vista emocional - e analisado ao nível daquela mesma intersubjectividade dialogante já referida - reflecte, por parte do recorrente, na sua forma mais cristalina, um verdadeiro sentimento de arrependimento em relação aos trágicos acontecimentos de sua autoria.

39.ª - Acrescendo ainda, por outro lado e sem embargo, o facto de o recorrente ter iniciado e terminado as suas declarações acerca dos trágicos acontecimentos declarando a sua vontade em ser condenado pelos actos por si praticados; que nunca, em momento algum, deixou de admitir.

40.ª - Assim, tudo sopesado e ponderado, deverá ter-se por certo que o parágrafo 58. da matéria de facto dada como provada merece redacção diversa, tendente a atestar o genuíno e profundo arrependimento do recorrente; impugnando, por aí e desde já, os seus actuais termos.

41.ª - Sendo a seguinte a redacção por ora proposta: «o arguido mostrou-se profundamente arrependido em audiência de julgamento, tendo confessado os factos, o que, muito embora não tenha tido qualquer relevo para a descoberta da verdade material, revelou a sua vontade em nada esconder e assumir as suas responsabilidades - optando assim por colaborar com a Justiça».

42.ª - E no espírito de tudo quanto se vem de dizer, eis que se chega à questão das medidas concretas das penas parcelares aplicadas.

43.ª - Ou seja, relembrando, uma vez mais a necessidade de se verificarem determinadas circunstâncias - mormente uma clara intenção por parte do agente em molestar fisicamente outrem - para que a utilização de uma faca (ou, conforme os termos já acima melhor expostos, a própria mão nua, quando treinada em artes de combate) seja vista como elemento constitutivo de uma conduta revestida de especial perversidade ou censurabilidade, relembrando tudo isto, diz-se, dúvidas não restam de que o recorrente, ao invés de ter sido condenado por um crime de ofensas à integridade física qualificadas, deveria tê-lo sido, outrossim, pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples.

44.ª - O que, em consequência, importará, pois, o apuramento de uma medida concreta da pena, ainda que de prisão, inferior à que lhe foi fixada; julgando-se, desde já adequada, uma pena de prisão nunca superior a seis meses.

45.ª - Pela prática de um crime de homicídio simples, previsto e punido pelo artigo 131.º, do Código Penal, o ora recorrente foi condenado na pena de 15 anos de prisão efectiva.

46.ª - Por seu turno, de tudo quanto se encontra escrito no acórdão recorrido acerca deste conspecto punitivo, ressalta de modo impressivo a seguinte passagem: «é sobejamente conhecido que, neste tipo de ilícitos, não raramente, o agente entra numa espécie de mecanicidade em que já não o domina a sua vontade, sendo, por isso, despiciendo falar em especial censurabilidade ou perversidade da sua conduta».

47.ª - Assim e seguindo de perto os termos em que o acórdão ora posto em crise quis e soube considerar os depoimentos das testemunhas E......, F......, G...... e H......, nunca o tribunal recorrido - em coerência com tudo o que acabou por admitir neste mesmo aresto - poderia ter achado como adequada uma medida concreta da pena de prisão situada quase no limite máximo da moldura que ao crime de homicídio simples cabe.

48.ª - Diga-se de uma vez por todas: os factos praticados pelo ora recorrente, sujeito vulnerável a situações de grande stress e com grave défice afectivo, tiveram lugar no auge do síndroma depressivo grave de que o mesmo padecia.

49.ª - Deste modo e não querendo, como nunca se quis - nem quererá - escamotear sob o manto diáfano de um qualquer eufemismo que, de tão impossível que é se torna em puro cinismo, o crime perpetrado pelo ora recorrente, haverá, contudo, que ponderar a aplicação de uma medida concreta da pena privativa da liberdade que se venha a situar no meio da moldura legal aplicável e nunca perto do seu máximo, ou seja, 12 anos de prisão.

50.ª - E será nestes precisos termos que igualmente se deverá olhar para a questão da pena única aplicável.

51.ª - Uma pena que, fruto de uma aturada e isenta reflexão sobre as premissas acima estabelecidas, não poderá deixar de ser fixada em 12 anos e três meses de prisão.

52.ª - No meio de todo este impressivo drama - que bem revelou o lado mais frágil, emocional (e, ao mesmo tempo, sombrio) da Condição Humana - o que apenas se requer a este Alto Tribunal é a aplicação justa e ponderosa da regula máxima de um Direito Penal digno de um Estado de Direito Democrático; ou seja, o achamento da verdadeira medida da culpa do recorrente.

53.ª - Foram violadas, por erro de aplicação, as normas dos artigos 71.º e 72.º do Código Penal e, por erro de interpretação, as vertidas nos artigos 14.º, 143.º e 145.º do mesmo diploma legal.

Termos em que:

Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência ser o acórdão recorrido substituído por outro que:

i) absolva o ora recorrente da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos I43.º, n.º l, 145.º, n.ºs l, al. a) e 2 e 132.º, n.º 2, al. h), todos do Código Penal, por que o mesmo veio acusado;

ii) condene o ora recorrente, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, numa pena de prisão efectiva sempre inferior a seis meses;

iii) condene o ora recorrente, pela prática de um crime de homicídio simples, previsto e punido pelo artigo 131.º, do Código Penal, numa pena de prisão efectiva cuja medida concreta se situe a meio da moldura legal prevista, nunca superior a 12 anos;

iv) condene, em consequência, o ora recorrente, numa pena única de prisão efectiva cuja medida concreta seja sempre inferior a 12 anos e três meses.

Assim farão V. Exas. a esperada e costumada justiça!


*

6. O Ministério Público respondeu aos recursos do assistente e do arguido; o assistente apresentou resposta ao recurso do arguido e este retorquiu ao recurso do Ministério Público e do assistente.

6.1. Respostas do Ministério Público (conclusões):

6.1.1. Ao recurso do assistente:

1. Assiste razão ao recorrente, à excepção do ponto onde considera - ainda que o homicídio não seja qualificado - deve a pena ser agravada conforme art. 86.º, n.º 3, da Lei 17/2009, de 06/05, já que atentas as características da arma, embora esta seja meio particularmente perigoso, não preenche o conceito de arma, atenta o disposto no art. 2.º, n.º l, al. m) da citada Lei, atenta a dimensão da sua lâmina.

2. Deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que considerando violadas as normas legais apontadas pelo assistente/recorrente considere estarmos perante crime de homicídio qualificado com existência das apontadas circunstâncias qualificativas reveladoras da especial censurabilidade e perversidade da conduta do agente.


*

6.1.2. Ao recurso do arguido:

1. O crime de ofensa à integridade física cometido pelo arguido assume a sua forma qualificada e não simples e não justifica qualquer pena de 6 meses de prisão, como reclamado pelo arguido.

2. O crime é qualificado pelo uso da arma e pelas circunstâncias concretas em que esta foi usada.

3. Não se verifica qualquer arrependimento do arguido ou atenuantes de qualquer ordem.

4. O arrependimento há-de ser algo activo e não uma mera alegação de um estado de espírito.

5. Não se vislumbra “in casu” qualquer atenuante, ainda que se reconheça a existência da alegada “envolvente emocional do crime”.

6. Reclamar “in casu” uma pena única de 12 anos e 3 meses de prisão para os crimes dos autos praticados pelo arguido, é perder de vista os fins das penas que ficariam desacauteladas se fosse dado provimento a tal pretensão do recorrente.

7. Há que repor na comunidade o “velho” sentimento de confiança no direito, o que não seria consentido se viesse a pena pela qual o arguido agora pugna a ser-lhe aplicada.

8. Deve improceder, em toda a linha, a argumentação do arguido/recorrente.


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6.2. Resposta do assistente (conclusões):

1. Devem quedar-se inalterados os pontos 22, 25 e 26 da mataria de facto;

2. Deve manter-se inalterado o ponto 58 da matéria de facto assente e não provado o ponto 11 da matéria de facto não provada;

3. Deve improceder o recurso do arguido no que concerne à redução das penas parcelares e da pena única, aumentando-se as mesmas, de acordo com o recurso apresentado pelo assistente.


*

6.3. Resposta do arguido (conclusões):

1. No âmbito dos presentes autos e inconformados com o acórdão proferido pelo Tribunal de Júri, vieram Ministério Público e Assistente interpor os competentes recursos de apelação propugnando: pela substituição do acórdão condenatório por outro que, ao julgar como provados todos aqueles factos - constantes da acusação pública - que assim o não foram, condene o arguido pela prática de crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e), in fine, h) e j) do Código Penal, ou, então, que determine a repetição do julgamento nesta conformidade, no caso do Ministério Público; pela substituição do acórdão condenatório por outro que venha a condenar o recorrido pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido nos termos já acima referidos, ou, quando assim não se entenda, agrave a medida concreta da pena aplicada, em virtude de, nos termos dos artigos 131.º do Código Penal e 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro - na redacção conferida pelo Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio, com entrada em vigor a 6 de Junho de 2009 - a moldura legal a observar na prática de um crime com arma ter de ser, também ela, agravada, no caso do Assistente.

2. Logo a abrir as suas conclusões recursivas - a verdadeira «linha de rosa» que delimita os aspectos que se pretendem ver reexaminados - o Ministério Público afirma que «Por se impugnar matéria de facto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, al. a), do Código de Processo Penal, indica-se que os pontos que, concretamente, se reputam incorrectamente julgados são os factos dados como provados nos pontos 7. a 24. do acórdão recorrido. Tais pontos levam, em nosso entender à conclusão contrária à vertida no douto acórdão agora questionado».

3. Contudo, o número 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, além de afirmar realmente, na sua alínea a), que quando haja lugar à impugnação da matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, também consagra, logo na sua alínea b), que o mesmo dever de discriminação detalhada aproveita à indicação das «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida».

4. Ao ter-se bastado em invocar a alínea a) do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, o ora recorrente nunca terá tido presente a necessidade de trazer, como devia, à evidência prático-argumentativa a verdadeira relação de contraposição havida entre os considerandos motivacionais do aresto posto em crise e aqueloutros que, supostamente, deveriam ter merecido melhor atenção por parte do julgador decidente.

5. Sempre se terá de entender que o recorrente/Ministério Público realmente terá pretendido, nunca foi uma qualquer impugnação da matéria de facto dada como provada, mas tão só apontar para a circunstância de, perante esse mesmo acervo probatório assente, a conclusão jurídica deveria ter sido diversa; estando-se assim perante um recurso que versará única e exclusivamente matéria de direito.

6. O Ministério Público, ao pretender fazer valer unicamente os seus pontos de vista, parece obnubilar a circunstância do tribunal recorrido se encontrar cingido, no seu poder decisório, aos factos que enformaram a acusação por aquele mesmo idealizada.

7. De facto, é conveniente não esquecer que já na acusação por si deduzida contra o recorrido, o Ministério Público afirma que este último ter-se-á dirigido à cidade de TTT... apenas no «intuito de falar com a vítima».

8. Não assiste, pois, ao ora recorrente, qualquer razão ou, salvo o devido respeito, autoridade, para querer ver provadas circunstâncias, determinantes da verificação da qualificativa agravante do tipo de ilícito em causa, quando, logo na delimitação do «thema decidendum», que quis e soube levar a juízo, nada referiu em termos fácticos concretos.

9. Por outro lado, e na hipótese - que apenas por mera questão de patrocínio se admite - de a argumentação do Ministério Público merecer ainda uma qualquer relevância prático-decisória, cumprirá, pois, analisar cada questão por si enunciada, de modo detalhado e crítico.

10. Desta forma, e principiando pela questão da alegada premeditacão do crime pelo recorrido, sempre se convirá no seguinte: aventar, sem mais, que o mesmo adquiriu «tal faca após pesquisa na internet e através daquele meio, duas ou três semanas antes do dia 14 de Novembro de 2009 e depois de a D...ter terminado o relacionamento entre ambos», para, de seguida, somente impor a sua convicção de que foi esse «o momento durante o qual o arguido toma a resolução de matar a D...», nada mais traz a este Tribunal do que uma certa versão subjectiva dos factos que não é prestável a sobrepor-se à do julgador decidente - no caso um Tribunal de Júri, composto, também, pelo povo - enquanto titular da prerrogativa da livre convicção.

11. Melhor dito e seguindo a douta decisão: «...há que referir não constar da acusação, de forma clara e evidente, a motivação do arguido para actuar da forma que actuou. É certo que [se] consta da acusação que o arguido tomou a decisão de vir para TTT... depois de ter ficado a saber que a ofendida havia iniciado uma relação amorosa com terceiro, tendo inclusivamente mantido já relações sexuais com esse terceiro, também se refere, logo [a] seguir, que o arguido “decidiu também ele vir a TTT..., com o intuito de falar pessoalmente com ela (ofendida), em nenhum lado se estabelecendo a relação entre o conhecimento dos factos mencionados e a formação de intenção de matar a ofendida».

12. Por seu turno, e quanto à questão da suposta frieza de carácter sempre se dirá que melhor indício da mesma teria sido a existência - nem sequer nestes autos provada - de uma série de actos traduzidos, passo a passo, num simples golpe certeiro, numa preocupação de manietar a vítima para que a mesma não gritasse, numa fuga escorreita e limpa, sem deixar quaisquer vestígios da presença do seu autor.

13. Não podendo, por isso, valer, de modo algum - como critério definitivo para o estabelecimento da qualificativa agravante «frieza de carácter» - a referência à quantidade de golpes desferidos sobre a vítima D...;

14. Tanto para mais quando essa mesma quantidade de golpes desferidos pode encontrar a sua explicação no facto de o recorrido, padecendo de uma grave depressão, se ter visto envolto num dado turpor esténico cujo surgimento, repentino, instantâneo, se deveu a um insuportável desprezo manifestado pela jovem.

15. Por outro lado, e nos termos daquilo que o Ministério Público aflora quanto à utilização de meio especialmente perigoso, também se haverá de ter como certo que, mais uma vez, não soube o mesmo explicar o porquê de não poder ter merecimento a explicação sólida e, dir-se-á mesmo, bastante lógica que o acórdão recorrido deu quanto a esse mesmo conspecto.

16. Com efeito, à exclusão de tal elemento qualificativo agravante, operada pela douta decisão - com recurso à explicação doutrinária de que «meio particularmente perigoso» deverá ser aquele que «tem uma perigosidade tal que pode atingir terceiros, indiscriminadamente, independentemente, pois, da vontade e do controle do agente» - à exclusão de tal elemento, dizia-se, deveria o ora recorrente ter explicado, uma vez mais, de modo lógico-demonstrativo, porque razão se teria, ainda assim, que ver no instrumento utilizado pelo recorrido - desenhado para situações de combate individual, e, portanto, excluindo terceiros - um meio particularmente perigoso.

17. Tanto para mais sabendo que, em boa verdade, não será tal faca, ainda que tida como «táctica», mais perigosa que um corta-papéis, um picador de gelo ou, até como recentemente se viu demonstrado e amplamente noticiado, um saca-rolhas...

18. Por último, o Ministério Público afirma que o tribunal recorrido não levou em devida linha de conta tudo quanto foi demonstrado e dado como assente em sede de prova documental e, bem vistas as coisas, pericial; consubstanciada, nos relatórios de autópsia e fotografias do cadáver.

19. No entanto, bom se torna de ver que aquilo que o tribunal a quo soube fazer e bem, foi contextualizar tais elementos assépticos, porque puramente descritivos, dentro do quadro de depressão afectiva que o recorrido sofria.

20. Ou seja, ao contrário do que o Ministério Público afirma, o tribunal recorrido não deixou de considerar aqueles relatórios de autópsia e fotografias do cadáver; simplesmente fê-lo em termos necessariamente críticos e sempre coadjuvado por prova, também ela pericial, consubstanciada nos relatórios psiquiátricos e psicológicos relativos à personalidade e estado emocional do recorrido.

21. Nestes mesmos termos, a outra conclusão não se poderá chegar senão à de que os argumentos produzidos pelo Ministério Público, nesta instância recursiva, se mostram completamente desprovidos de sentido e, por aí, manifestamente improcedentes.

22. Por sua vez, no que toca ao recurso interposto pelo assistente B..., tem-se desde já como seguro, salvo melhor opinião, que o mesmo peca por uma clara extemporaneidade.

23. Na verdade, tendo a leitura do acórdão ocorrido a 23 de Março de 2011 e estando nessa sessão presentes todas as partes com interesse na causa - devendo as mesmas considerarem-se notificadas da decisão -, o prazo de vinte dias legalmente previsto para a interposição de recurso versando exclusivamente matéria de direito - como é o caso -, encontrou o seu termo no passado dia 12 de Abril.

24. Contudo, atentando no carimbo de entrada aposto pela secretaria do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de TTT..., verifica-se que o recurso a que por ora se responde entrou dois dias para lá daquele prazo; inexistindo, por outro lado, qualquer elemento probatório que mostre o pagamento da respectiva multa, devida pela prática do acto no segundo dia útil posterior ao seu termo.

25. Pelo que deverá tal recurso ser recusado, nos termos do n.º 2 do artigo 414.º do Código de Processo Penal.

26. Mas, mesmo quando assim não se entenda, a manifesta improcedência das argumentações ali expendidas revela-se como algo indelével.

27. Por um lado, e no que toca, uma vez mais, à qualificativa agravante de «meio   particularmente   perigoso»,   não   se   crê   que   as   informações comerciais expostas no sítio onde o recorrido adquiriu a mencionada faca, se prestem a abalar as doutas considerações expendidas pelo tribunal recorrido relativamente ao que pode e deve ser tido, tout  court, como tal.

28. Por outro lado, não faz igualmente qualquer sentido a alusão do recorrente à circunstância de uma faca ser instrumento de fácil ocultação e de, pelo menos esta faca concreta, apresentar pormenores técnicos especialmente destinados à máxima eficácia do golpe desferido.

29. Na verdade, e voltando aos exemplos dados, também um corta-papel, um picador de gelo, ou até um mero saca-rolhas poderão ser facilmente ocultados; mesmo não sendo certamente conhecidos, pelo menos por enquanto, como armas de uso militar.

30. A regra última de distinção persiste; qualquer um daqueles instrumentos, o dos presentes autos incluído, não se arvora em meio idóneo para colocar em perigo, de modo indiscriminado, a vida de terceiros.

31. Deste modo, caso o recorrente quisesse contrariar, de modo válido e eficaz, o entendimento do tribunal relativamente a esta questão, devê-lo-ia ter feito oferecendo outras considerações que permitissem concluir que o instrumento utilizado pelo recorrido era susceptível, afinal, de preencher aquele requisito.

32. Mais adiante, o recorrente insurge-se contra o facto de a medida concreta da pena privativa da liberdade em que o recorrido foi condenado não ter sido objecto de ponderação e achamento dentro de uma moldura penal agravada, pelo menos mercê da aplicabilidade da norma do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006.

33. Contudo, mesmo no caso de vir a aceitar a prática pelo recorrido de um crime de homicídio simples, em virtude do afastamento, para si ainda agora hipotético, da qualificativa agravante acabada de analisar, o recorrente terá de acabar por reconhecer que a pena concreta de quinze anos e seis meses de prisão por que o recorrido foi condenado, continua a situar-se dentro da moldura agravada que enuncia com recurso àquela norma.

34. O que apenas mostra que mesmo não a levando em conta, o tribunal recorrido também não a desrespeitou.

35. Já no que toca quer à alegada frieza de ânimo, quer ao suposto motivo fútil, que o recorrente insiste em ver presentes no caso dos autos, apenas se relembra, uma vez mais, o carácter fundamentado e sólido com que a douta decisão analisou, na esteira da prudência, o estado depressivo e angustiado em que o recorrido vivia, não tendo as mesmas imunidades que uma pessoa saudável perante a perda da pessoa que amava e por quem nutria, não se discute, doentios ciúmes;

36. E doentios ciúmes, porque volumosos e amargurantes, nunca se deverão considerar de importância diminuta - lá está fútil - ao ponto de se ver na pessoa objecto dos mesmos um ser «descartável» e onde se poderá perfeitamente deixar desaguar um leviano prazer homicida.

37. Por outro lado, o recorrente entra em clara contradição quando afirma, a um passo, que o recorrente era sujeito calculista, frio e cruel homicida e, a outro, já fala do mesmo como indivíduo que receia pela sua própria vida e que, quando se vê acossado, tudo faz para a preservar, ainda que de modo, diga-se, cobarde.

38. Tal como entra em contradição quando aos golpes desferidos num mais que comprovado torpor esténico - produto de todo um dramático desvario afectivo incontrolável, sofrido pelo recorrido naquela noite - pretende fazer corresponder uma precisão de um assassino treinado nas diversas artes de matar.

39. Se ao recorrido coubesse tal epíteto, acabar-se-ia por admitir como mais provável uma conduta, como acima já se foi dizendo, bem mais «limpa» e não tão impressiva.

40. Contra tais desideratos inaceitáveis - que ao presente caso não podem, por isso mesmo, ser aplicados - soube o douto acórdão recorrido estabelecer prudentes limites.

41. Mostrando-se, em consequência, insusceptível de qualquer reparo, pelo menos no sentido pretendido pelos recorrentes.

Termos em que:

Devem os recursos interpostos pelo Ministério Público e Assistente ser julgados improcedentes, por não provados - desde que, quanto ao último, o mesmo não seja logo recusado, por manifesta extemporaneidade - não se alterando o decidido, pelo menos no sentido requerido.


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7. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido procedência dos recursos do Ministério Público e do assistente e da improcedência do recurso do arguido (fls. 1178/1182 dos autos).
Cumprido o 417.º, n.º 2, do CPP, apenas o arguido exerceu o seu direito de resposta, reiterando, fundamentalmente, tudo quanto já havia dito em sede recursiva.
Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Questões prévias:
A) Segundo o arguido (cfr. resposta aos recursos, conclusões 23. a 25.), o recurso do assistente, cingido a matéria de direito, foi apresentado para além do prazo de vinte dias fixado no artigo 411.º, n.º 1, do CPP.
Porém, não lhe assiste razão, como passamos a demonstrar.
O acórdão foi depositado em 23 de Março de 2011. O recurso do assistente, remedido via fax, foi recebido no Tribunal de 1.ª Instância em 12 de Abril de 2011, ou seja, no último dia do referido prazo, contado do depósito daquela decisão final na secretaria.
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B) Por sua vez, alegou o assistente, na resposta que apresentou ao recurso do arguido, não ter sido cumprido por este o disposto no artigo 412.º, n.º 1, do CPP, porquanto a referida peça recursória não contém conclusões.

Assim não entendemos.

De acordo com a previsão dos arts. 411.º, n.º 3 (redacção decorrente da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, a aplicável, tendo em conta a data de interposição do recurso e o disposto no artigo 5.º, n.º 1, do citado diploma), o requerimento de recurso é sempre motivado, sob pena de rejeição.

A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1).

Se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir totalmente ou parcialmente as indicações supra referidas, é dirigido convite ao recorrente no sentido de apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido (art. 417.º, n.º 3).

A motivação integra:

- A enunciação especificada dos fundamentos do recurso, com indicação dos pontos de divergência e das razões de facto e de direito pelas quais o recorrente entende que a decisão impugnada não se deve manter;

- As conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido mais extensamente formuladas nos fundamentos do recurso.

Foi finalidade do legislador criar um conjunto de regras de natureza prática que permitam, uma vez observadas pelos recorrentes, colocar perante o tribunal ad quem, de forma clara, as razões de facto e de direito que os levam a discordar e a impugnar as decisões recorridas, de molde a que o tribunal possa apreciá-las com rigor, nem mais nem menos do que é pedido (salvo obviamente a margem de actuação oficiosa).

A formulação de conclusões, com observância dos requisitos exigidos pelo art. 412.º do CPP, insere-se no mesmo propósito, com o desiderato de ser apresentado um quadro sintético, um resumo das questões a conhecer pelo tribunal para que se recorre.

No caso sub judice, analisada a petição recursória, vê-se que o arguido nela observou os ditames da lei, já que, embora de forma algo prolixa, rematou a motivação do seu recurso com conclusões, nas quais deu cumprimento cabal ao disposto no artigo 412.º, n.ºs 2 a 5.

Nesta ordem de ideias, não existe razão que obste ao conhecimento do recurso na dimensão que o recorrente verdadeiramente lhe conferiu: versando matéria de facto e direito.

Não procede, assim, a referida questão prévia.


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C) Por fim, na exegese do arguido (vide resposta aos recursos), o recorrente Ministério Público, pretendendo recorrer também sobre matéria de facto, não cumpriu, em plenitude, as exigências normativas do artigo 412.º, do CPP.
Afigura-se-nos que lhe assiste inteira razão.
Pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, há-de cumprir o ónus de impugnação especificada imposto no art. 412.º, n.ºs  3 e 4 do Código de Processo Penal, de indicação pontual, um por um, dos concretos pontos de facto que reputa incorrectamente provados e não provados e de alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida e às provas que devem ser renovadas - als. a), b) e c) do n.º 3 -, sendo certo que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (n.º 4).
A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação.
Por outro lado, a exigência legal de especificação das “concretas provas” impõe a indicação do conteúdo específico do meio de prova. Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação.
«Acresce que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado»[1].
As menções exigidas pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limita a generalizações e abstracções que não permitem alcançar os concretos pontos de facto e as concretas provas e, tendo estas sido produzidas oralmente, as passagens com que o impugnante alicerça a sua discordância para com a matéria de facto provada e/ou não provada.
Como se escreveu no douto Acórdão do STJ de 24/10/2002[2] «(...) o labor do Tribunal da 2.ª instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida [art. 412.º, n.º 3, als. a) e b) do CPP].
Se o recorrente não cumpre aqueles deveres não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência às provas e respectivos suportes».

Apreciada a base impugnatória do Ministério Público, não resta a menor dúvida do desiderato do recorrente em estender o recurso também à matéria de facto.

Mas acentuam-se patentes deficiências de impugnação.

No intróito da motivação o recorrente alegou, neste contexto, o seguinte:

«1. Refere-se o presente recurso à apreciação que foi feita pelo tribunal da prova que conduziu à matéria provada e não provada, com especial relevo, em termos de discordância, quanto à apreciação feita aos factos dados como provados e que se prendem com a premeditação de que vinha acusado.

(…).

2. Ora, salvo o devido respeito, parece-nos que o tribunal não fez a devida e correcta apreciação dos meios de prova, e sobretudo não integrou os factos dados como provados na verificação daquele mencionado crime».

No texto da motivação, após proceder a uma dissertação dogmática sobre a circunstância agravante “frieza de ânimo, “reflexão sobre os meios empregados” e “premeditação”, elenca os factos provados dos pontos 7. a 24..

Após, refere o que se passa a transcrever:

«Em nosso entender, o ponto n.º 16 do acórdão (…), é o momento durante o qual o arguido toma a resolução de matar a D.... Primeiro porque compra a faca. Segundo, porque a compra através da Internet. Terceiro, porque “perdeu a posse” duma coisa/pessoa que ele arguido considerava sua propriedade.

Mesmo que assim se não entenda, não restam dúvidas que adquiriu a faca duas ou três semanas antes de 14 de Novembro de 2009, que se muniu previamente de tal faca, quando saiu de Q... e depois de percorrer cerca de 200 quilómetros, e de gastar cerca de três horas para aqui chegar (a TTT...), ainda esperou, pelo menos, meia hora até chegar a vítima, sendo bem de noite e o local pouco iluminado».

Depois de citar jurisprudência sobre o conceito de “premeditação” na prática do crime de homicídio, de aludir à falta de fundamentação, no domínio factual, do acórdão recorrido, e de exteriorizar considerações sobre o dolo e a especial censurabilidade de que fala o artigo 132.º do CP, avança com considerações deste teor:

«Pelo exposto supra, não fez, a nosso ver, o tribunal uma correcta apreciação ou exame crítico da prova, quer na conjugação dos factos dados como provados quer na globalidade da demais prova produzida (…).

Desse modo, mostram-se incorrectamente julgados todos os factos dados como não provados da acusação pública, indiciadores do crime de homicídio qualificado que, de acordo com o nosso entendimento (…), deverão ser dados como provados (…)».

Contraditoriamente, nas conclusões, o recorrente indica, como matéria de facto impugnada, a constante dos pontos provados n.ºs 7. a 24. (conclusão 1.ª), e, a final (conclusão 12.ª) se limita a acrescentar: «Nos autos e concretamente em audiência, foram apresentados meios de prova, os relatórios de autópsia, as fotografias do cadáver e não foram valorados na devida medida».

Verificamos, desde logo, a evidente discrepância entre o texto da motivação propriamente dita e das conclusões relativamente à indicação dos factos concretamente impugnados. Enquanto na primeira são referidos, genericamente, todos os factos dados como não provados da acusação pública, nas segundas, ao invés, estão expressamente indicados, como incorrectamente julgados, os factos provados dos pontos 7. a 24.

Esta desconformidade impede a correcta percepção deste tribunal de recurso sobre a matéria de facto efectivamente posta em questão pelo recorrente.

Por outro lado, as conclusões não podem extravasar o corpo da motivação, porque dela constituem um resumo, uma síntese.

Acresce ainda que, o Ministério Público não cumpriu também o disposto no alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, porquanto, tanto na motivação como nas respectivas conclusões, não concretiza as provas que impõem decisão diversa da recorrida.
De acordo com posição constante do Supremo Tribunal de Justiça, o não cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto não justifica o convite ao aperfeiçoamento, uma vez que só se pode corrigir o que está deficientemente cumprido e não o que se tem por incumprido[3]. Daí que o artigo 417.º, n.º 3 do Código de Processo Penal imponha o dever de convite tão só quando “a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º”.

Se o recorrente não faz, como no caso, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos números 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, não há lugar ao convite à correcção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do referido convite.

Como adverte o Tribunal Constitucional, em considerações que, se devidamente adaptadas, se mostram actuais, não obstante se reportaram à antiga redacção do artigo 412.º do CPP, «(...) não está aqui em causa apenas uma certa insuficiência ou deficiência formal das conclusões apresentadas pelo (...) recorrente, isto é, relativa à forma de exposição ou condensação de uma impugnação que é, quanto ao mais, apreensível pela motivação do recurso - falta, essa, para a qual a rejeição liminar do recurso, sem oportunidade de correcção dos vícios formais detectados, constitui exigência desproporcionada.

Antes a indicação exigida pela al. b) do n.º 3 e pelo n.º 4 do art. 412.º do CPP - repete-se, das provas que impõem decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes técnicos - é imprescindível logo para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto, e não um ónus meramente formal. O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto.

Importa, aliás, recordar, por um lado, que da jurisprudência do T.C. não pode retirar-se (...) uma exigência constitucional de convite ao aperfeiçoamento sempre que o recorrente não tenha, por exemplo, apresentado motivação, ou todos ou parte dos fundamentos possíveis da motivação (e que, portanto, o vício seja substancial, e não apenas formal). E ainda, por outro lado, que o legislador processual pode definir os requisitos adjectivos para o exercício do direito ao recurso, incluindo o cumprimento de certos ónus ou formalidades que não sejam desproporcionados e visem uma finalidade processualmente adequada, sem que tal definição viole o direito ao recurso constitucionalmente consagrado. Ora, é manifestamente este o caso das exigências constantes do artigo 412.º, n.ºs 3, alínea b) e 4, do CPP, cujo cumprimento (incluindo a referência aos suportes técnicos, com indicação da cassete em causa e da localização nesta da gravação das provas em questão) não é desproporcionado e antes serve uma finalidade de ordenamento processual claramente justificada. Aliás, o modo de especificação por referência aos suportes técnicos é deixado em aberto pelo n.º 4 do art. 412.º do CPP (...)»[4].

O despacho de aperfeiçoamento neste caso «equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso»[5].

Em suma, pelas razões expostas, rejeita-se o recurso do Ministério Público relativo à impugnação da decisão recorrida sobre matéria de facto.


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2. Poderes cognitivos do Tribunal ad quem e delimitação do objectos dos recursos:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
No caso sub judice, as conclusões dos recorrentes demandam para conhecimento as seguintes questões:
A) Se a decisão recorrida é nula, nos termos do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal (recurso do Ministério Público);
B) Se o tribunal de 1.ª instância violou o artigo 340.º do CPP (recurso do assistente);
C) Alterabilidade da matéria de facto (recurso do assistente e do arguido);
D) Se alterada a matéria de facto, em consonância com os desígnios do arguido, este deve ser absolvido do crime de ofensa à integridade física, quer na sua forma simples quer na qualificada (recurso do arguido);
E) Se a verificar-se a prática, pelo arguido, de um crime de ofensa à integridade física, este deverá assumir a forma simples e não a qualificada (recurso do arguido);
F) Se o crime de homicídio deve ser qualificado, nos termos do disposto nos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e), in fine, h) e j), do Código Penal (recurso do Ministério Público e do assistente);
G) Caso se entenda que não existe fundamento para a qualificação do crime de homicídio, se a pena a impor ao arguido, pela prática de um crime de homicídio simples, deve ter em consideração a moldura legal decorrente da conjugação dos artigos 131.º, do CP e 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23-02, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 17/2009, de 06-05 (recurso do assistente);
H) Medida da pena, relativamente ao crime de ofensa à integridade física, se o crime for tido na forma matricial, ou seja, simples (recurso do arguido);
I) Medida da pena relativamente ao crime de homicídio que se tenha por verificado (recursos de todos os recorrentes).

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3. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1. O arguido e a D..., nascida a  …em TTT..., filha de B... e C..., estudante, solteira, residente na Rua …, TTT..., mantiveram uma relação de namoro durante cerca de 8 anos, desde o tempo em que ambos frequentaram o ensino universitário na cidade de Q....

2. Tal relação havia sofrido algumas interrupções e foi marcada por alguma conflituosidade, sendo que, pelo menos uma vez, em data não concretamente apurada, o arguido agrediu a ofendida com duas bofetadas.

3. A ofendida D… tinha colocado termo a essa relação há cerca de duas ou três semanas antes do dia 14-11-2009.

4. A falecida D... no dia 14 de Novembro de 2009 deslocou-se de Q..., onde residia e trabalhava, para esta cidade de TTT..., de comboio, tendo aqui chegado pelas 22 horas.

5. Após sair do comboio a D… dirigiu-se para casa dos pais, sita nesta cidade, juntamente com o pai, que a tinha ido esperar à gare dos comboios.

6. Pouco tempo depois, contudo, saiu novamente de casa dos pais, para ir jantar com uma prima que, nessa noite, festejava o seu aniversário.

7. Ainda no dia 14-11-2009, pelas 11 horas da manhã, o arguido havia comunicado com a ofendida D… pela internet, fazendo-se passar por uma amiga da última, tendo para o efeito usado o username desta, que obtivera mediante a instalação de um programa spyware no computador da ofendida.

8. O arguido procedeu a tal instalação em data não concretamente apurada, mas antes de Março de 2009, altura em que o arguido viajou para os U.S.A., onde se manteve até Junho, desse ano, no âmbito do doutoramento que estava a efectuar.

9. Durante essa conversa, tida da forma descrita em 7., o arguido ficou a saber que a ofendida havia já mantido relações sexuais com outro rapaz com quem esta havia, entretanto, iniciado uma relação amorosa.

10. Por via dessa mesma conversa o arguido ficou ainda a saber que a ofendida vinha, nesse dia, para TTT....

11. Depois de ter tido conhecimento dos factos descritos em 9. e 10., o arguido decidiu, também ele, vir para TTT....

12. Para o efeito, saiu de Q... conduzindo o veículo automóvel do seu pai, de marca Ford, tendo chegado a TTT... entre as 22,30 horas e as 23 horas.

13. Quando chegou a esta cidade, o arguido dirigiu-se logo para o Bairro …, mais precisamente à Rua …, zona onde residem os pais da falecida, e onde ele já havia estado pelo menos numa outra ocasião.

14. O arguido parou a viatura em frente da casa dos pais da D...... mesmos, à espera de a ver chegar.

15. Perto da meia-noite aquela regressou a casa e, assim que a viu, o arguido saiu de imediato do veículo, deixando o mesmo a trabalhar, munido da faca da marca Boker Jim Wagner, modelo Reality Based Blade, de cor preta, com lâmina articulada e cabo em material polimérico com o comprimento total de 22,5 cm, sendo o comprimento da lâmina o de 9,5 cm e a largura máxima da mesma de 2,5 cm, que trouxera consigo de Q....

16. O arguido havia adquirido tal faca após pesquisa na internet e através daquele meio, duas a três semanas antes do dia 14 de Novembro de 2009 e depois de a D...ter terminado o relacionamento entre ambos.

17. O arguido abordou, então, a ofendida, dizendo-lhe que precisavam de falar, tendo aquela retorquido que não tinham mais nada para falar, que estava tudo terminado entre ambos e para ele, arguido, seguir em frente e conhecer outras pessoas.

18. Perante tais palavras da D...o arguido, de imediato, aproximando-se da mesma e empunhando a aludida faca, desferiu com a mesma um golpe na região do ombro esquerdo da ofendida, que gritou pelo pai, pedindo ajuda.

19. Este grito foi perceptível para o pai da ofendida, que saiu logo de casa, para ver o que se passava.

20. Todavia, quando chegou às escadas que dão acesso à residência, onde se encontrava a ofendida e o arguido, já o último havia desferido outros golpes com a faca na ofendida, tendo-se o pai desta deparado com o arguido em cima da filha, que se encontrava já caída no chão.

21. O pai da ofendida dirigiu-se de imediato ao arguido para o impedir de fazer ou continuar a fazer o que quer que fosse, pois não se apercebeu logo o que estava a suceder.

22. Enquanto o arguido estava a ser agarrado pelo pai da D..., desferiu dois golpes com a mesma faca sobre o último, provocando-lhe uma ferida no tórax, na região medi-clavicular esquerda com cerca de 3 cm de comprimento e aproximadamente 5 cm de profundidade, sem perfuração dos vasos subclávicos nem da pleura e ainda uma ferida incisa do primeiro dedo da mão esquerda, lesões que lhe determinaram 10 dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.

23. No total o arguido desferiu 23 golpes com a faca na ofendida, provocando-lhe:

- uma ferida perfurante na região supra clavicular direita com orientação de cima para baixo atingindo a clavícula, com cerca de 4 cm de comprimento e 10 cm de profundidade, atingindo a veia sub-clavia direita e a pleura parietal, uma ferida perfurante com cerca de 3 cm de comprimento, com orientação de cima para baixo e de fora para dentro, penetrando cerca de 3 cm até ao externo e bordo superior do 4.º arco costal direito, apresentando um entalhe de cerca de meio cm de profundidade;

- duas feridas lineares de secção transversal, de características perfurantes, com cerca de 2 e 4 cm de comprimento, na região supra clavicular esquerda, com orientação de cima para baixo;

- uma ferida perfurante de cima para baixo, com cerca de 3 cm de comprimento, no limite superior da mama esquerda, atingindo o bordo superior do 4.º arco costal esquerdo;

- duas feridas perfurantes na transição entre o tórax e a raiz do membro superior esquerdo, com cerca de 3 cm de comprimento e orientação de cima para baixo e de fora para dentro, atingindo a pleura e o pulmão esquerdo;

- uma ferida perfurante na face interior da mama esquerda de trajecto horizontal, com cerca de 3 cm de profundidade e sem penetrar na cavidade torácica;

- três feridas perfurantes na região para vertebral esquerda, junto à linha média, todas com orientação oblíqua de cima para baixo, perfurantes até à cavidade pleural, uma com cerca de 4 cm de comprimento, de traço horizontal e duas de cerca de 3 cm, de corte vertical;

- uma ferida para vertebral direita, perfurante, junto à linha média, atingindo a coluna vertebral ao nível da 2.ª vértebra dorsal e penetrando cerca de meio cm no osso;

- três feridas perfurantes na região interescapular esquerda com cerca de 3 cm e orientação de cima para baixo, sendo as duas inferiores perfurantes para a cavidade pleural;

- uma ferida perfurante ao nível do ombro esquerdo, com cerca de 3 cm, atingindo a cabeça do úmero;

- duas feridas perfurantes na face antero interna do braço direito, com orientação de cima para baixo e com cerca de meio cm de profundidade;

- ferida incisa, transversal, da face interna da mão direita, na transição metacarpo-falângica, desde a raiz do indicador até à zona média da palma da mão, com características de defesa;

- duas feridas perfurantes na região frontal desferidas com violência, com fractura do osso frontal;

- uma ferida cortante do lábio inferior até ao mento;

Lesões estas que foram causa directa e adequada da morte daquela, principalmente as lesões traumáticas torácicas atrás mencionadas.

24. Ao agir da forma supra descrita, desferindo todos aqueles golpes com a faca de que previamente se munira, o arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito de tirar a vida a D....

25. O arguido, ao desferir os dois golpes com a faca em questão sobre o assistente B..., fê-lo de forma deliberada e consciente, com o propósito de o molestar fisicamente, bem sabendo que o objecto com que o atingiu era adequado a feri-lo, como veio a acontecer.

26. O arguido tinha, para além do mais, perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

27. Os demandantes são, respectivamente, pai e mãe da falecida e os seus únicos herdeiros.

28. Os demandantes suportaram as despesas do funeral, no montante de 1.422,50 €.

29. Suportaram ainda o pagamento do fato com o qual D...foi a sepultar, no montante de 200,00 €.

30. Nas circunstâncias de tempo e local descritas na douta acusação pública a D..., após ter sido desferida sofre si a primeira facada, sentiu medo.

31. Sentiu dor quando o primeiro golpe lhe foi infligido, bem como nos posteriores, até ao derradeiro golpe, que lhe retirou a vida.

32. Entretanto temeu a morte e clamou pelo auxílio de seu pai.

33. Sentiu angústia, desespero e impotência perante o agressor.

34. No momento da agressão descrita na acusação, os lesados encontravam-se no interior da sua habitação, à porta da qual aquela se consumou.

35. O Lesado B… ouviu a filha clamar pelo seu auxílio, tendo acorrido ao exterior da sua casa para ver o que se passava.

36. Deparando-se com o Arguido debruçado sobre a sua filha, agarrou-o para que este se afastasse, momento em que aquele lhe desferiu os golpes descritos na acusação.

37. Teve de ser transportado ao hospital para ser assistido aos ferimentos infligidos.

38. Logrou imobilizar o arguido, sem todavia perceber a gravidade dos ferimentos infligidos à sua filha, que já estaria morta nessa altura.

39. O lesado foi militar, encontrando-se reformado da Guarda Nacional Republicana.

40. Entregou o arguido às autoridades que se deslocaram ao local.

41. Os lesados ficaram consternados quando se aperceberam que a sua filha tinha falecido à porta de casa, sem que estes nada tivessem podido fazer.

42. Ficaram em estado de choque ao verem a filha mutilada por 23 facadas provenientes da faca descrita nos autos e ensopada no próprio sangue.

43. O lesado é perseguido pela amargura de, enquanto GNR reformado, ter cumprido o seu dever de entregar o Arguido às autoridades, mas, como pai, não ter posto termo à vida do arguido no próprio local do crime, o que, atento o seu treino, e após o ter manietado, poderia ter feito.

44. A D...era uma jovem mestra em Biologia, tendo feito a sua formação académica na Universidade de Q....

45. Tinha acabado de receber uma bolsa de estudo que suportaria o seu Doutoramento.

46. Era uma jovem determinada, estudiosa, sendo prezada pelos que a rodeavam.

47. Era o orgulho e razão de viver dos seus pais, que lhe devotavam todos os esforços para a respectiva realização pessoal e profissional.

48. Era, apesar de residir em Q..., uma filha interessada no dia-a-dia dos pais, a quem ligava frequentemente, bem como visitava ao fim-de-semana.

49. Era a única filha dos Lesados.

50. A morte da D...deixou os Lesados desmotivados para a vida e sem objectivos pessoais a cumprir.

51. Tendo ambos os Lesados mais de 50 anos, não têm expectativas de ver nascer um outro filho, pelo que a sua descendência terminou com a morte de D..., o que muito os angustia.

52. A lesada vem sendo acompanhada em consultas de psicologia.

53. Desde cerca de seis meses antes da prática do facto que o arguido vinha apresentando um quadro depressivo, com tendência para o suicídio.

54. Em Agosto de 2009, por pressão do Orientador no doutoramento recorreu a ajuda médica sendo que:

- No dia 10-08-2009, às 08:32, foi consultado no Centro de Saúde Norton de Matos, em Q..., onde pode ler-se o seguinte registo: “REACÇÃO AGUDA AO ?SSTRESS? + SENSAÇÃO DE DEPRESSÃO Desmotivação+anedonia+labilidade emocional, por vezes pensamentos destrutivos ... a fazer doutoramento sem interesse sobre o trabalho ... hipersonia, relacionamento namorada instavel.COC. Discurso coerente, sem alt. da senso percepção, humor depressivo, PERTURBAÇÕES DEPRESSIVAS (Cipralex 10), higiene do sono, volta dentro de 1 mês para reavaliação”.

- No dia 22-09-2009, às 13:56, foi consultado no Centro de Saúde Norton de Matos, em Q..., onde pode ler-se o seguinte registo: “não se sente em condições para trabalhar PERTURBAÇÕES DEPRESSIVAS (Cipralex 10 mg) + PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO (CIT)”;

- No dia 19-10-2009, às 08:38 foi consultado, novamente, no Centro de Saúde Norton de Matos, constando do respectivo registo “menos melancólico, mantém dificuldades de concentração e de rentabilidade. VEM PEDIR BAIXA”;

- No dia 26-10-2009, às 08:32, foi consultado, pela última vez, no Centro de Saúde Norton de Matos, constando do respectivo registo «vem pedir prorrogação de baixa para justificar falta de produtividade perante bolsa de estudo».

55. O arguido, até Outubro antes da data dos factos, encontrava-se a realizar doutoramento na área da biologia genética, tendo suspendido, nessa altura, devido ao quadro depressivo mencionado em 53. o projecto de doutoramento.

56. O arguido era considerado bom colega, amigo, filho e vizinho.

57. Não tem antecedentes criminais.

58. O arguido denotou atitude contrita em audiência de julgamento, tendo confessado os factos, embora sem relevo para a descoberta da verdade.

59. Da avaliação psicológica realizada ao arguido resulta que este apresenta um perfil de personalidade em que os sujeitos são descritos como ansiosos, deprimidos, tensos, retraídos, obsessivos, com sentimentos de insegurança, de inadequação e de inferioridade; que podem apresentar uma vida de fantasia, delírios e alucinações, pelo que, frequentemente são classificados como psicóticos;

Indica ser uma pessoa muito vulnerável ao stress, que quando confrontado com situações de grande tensão emocional tende a reagir com índices elevados de ansiedade, não possuindo capacidades para se adaptar a novas situações ou situações indutoras de stress.

60. À data da prática dos factos descritos nos autos o arguido apresentava quadro clínico-psiquiátrico compatível com o diagnóstico nosológico de Episódio Depressivo Grave, sem sintomas psicóticos, conforme ao ponto F32.2 da 10.ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial de Saúde (OMS).

61. À data da prática dos factos, a perturbação nomeada em 61. não interferiu com a capacidade do arguido avaliar a ilicitude dos factos dos quais vem acusado e/ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

62. De igual modo, à data da prática dos factos, tal perturbação, não diminuiu, sequer sensivelmente, a capacidade do arguido avaliar a ilicitude dos factos dos quais vem acusado e/ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

63. O arguido é o mais velho de uma fratria de 2 irmãos, sendo o pai professor do ensino básico e a mãe escriturária numa clínica de RX.

64. Tirou a Licenciatura de Biologia, passou a trabalhar numa Bolsa de Investigação no Porto e, na altura dos factos, encontrava-se a fazer o Doutoramento em Genética, cujo projecto suspendeu em Outubro de 2009.

65. Sempre teve tido um desenvolvimento escolar e profissional satisfatório.

66. O relacionamento com os pais e irmão e entre aqueles sempre se pautou pela normalidade, com algumas discussões mas também afecto.

67. Viveu em casa dos pais até aos 24 anos, quando se mudou para a cidade do Porto, em virtude do trabalho desenvolvido na Bolsa de Investigação onde passou a residir em casa de um familiar.


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4. Relativamente aos factos não provados, consta no acórdão recorrido:

Para além dos que resultam logicamente excluídos dos factos dados como provados, das meras conclusões ou alegações de direito, não se provou que:

1. O arguido tenha ficado a saber, no dia 14-11-2009, através da forma descrita em A) 7., que a ofendida havia iniciado um relacionamento amoroso com outrem.

2. O arguido tenha decidido vir para TTT... com o intuito de falar pessoalmente com a ofendida D......  .

3. O arguido tenha premeditado toda a situação, mais precisamente desde que conseguiu obter o username da amiga da falecida, para assim, falando com ela na internet, saber mais pormenores da relação amorosa que a mesma tinha arranjado recentemente, até à sua vinda a esta cidade com o propósito de a encontrar pessoalmente.

4. O arguido e a falecida haviam terminado o seu relacionamento em finais de 2008, por iniciativa desta.

5. O arguido vinha tentando reatar o relacionamento desde então, ao que a falecida não assentia.

6. O arguido tenha agredido a ofendida com duas bofetadas já na segunda metade de 2009, nos intentos referidos em 2.

7. A ofendida D...... sentiu medo ao ver o Arguido dirigir-se para si munido da faca descrita nos autos.

8. O lesado B..., aquando da facada que lhe foi infligida, na zona esquerda do peito, temeu a própria morte e teve dores.

9. Como filha única, era de D...que os Lesados esperavam ganhar pelo menos um neto.

10. O arguido tem vindo a ser seguido, na sua permanência em prisão preventiva, por médico da especialidade de psiquiatria.

11. O arguido se encontre profundamente arrependido.


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5. Quanto à motivação da decisão de facto, ficou consignado no acórdão sob recurso:

O Tribunal fundou a sua convicção:

1. Nas declarações do arguido sendo que o mesmo, para além de esclarecer o tribunal sobre as suas condições de vida, confirmou que ele e a falecida D...... mantiveram uma relação amorosa desde 2001, desde que estudavam na faculdade, relação que teve pelo menos duas interrupções, tendo admitido o arguido que na mesma se verificavam algumas situações de conflituosidade, nomeadamente que, em data que não soube precisar, agrediu a ofendida com duas bofetadas; mais referiu o arguido ter tido conhecimento, cerca de duas a três semanas antes do dia em causa nos autos, que a D...... se tinha envolvido afectivamente com outro rapaz e colocou termo ao relacionamento nessa altura; não obstante, o arguido, tendo referido que a ofendida naquele período de tempo, “lhe enviava sinais contraditórios”, não levou a sério tal termo; referiu ainda que antes de ter ido a última vez para os USA, o que aconteceu em Abril/Maio de 2009 instalou um programa informático no computador da D...... que lhe permitia aceder, a partir do seu computador, a todo o correio electrónico daquela e ainda obter as passwords de qualquer pessoa que utilizasse o dito computador da D......, aí digitando as suas passwords; o arguido não apresentou explicação coerente e consistente para tal comportamento, repetindo apenas que saber o que fazia a D...... dava-lhe alguma segurança referindo, todavia, estar plenamente consciente de que o mesmo é ilícito; disse ainda o arguido que por volta das 11 horas da manhã do dia 14 de Novembro de 2009, encetou conversa através de correio electrónico com a D..., fazendo-se passar por uma amiga desta , aí tendo ficado a saber que a D...... tinha já mantido relações sexuais com o indivíduo com quem iniciara relacionamento amoroso e que nesse mesmo dia viria para TTT...; o arguido mencionou que depois de ter sabido de tal facto sentiu-se muito mal, tendo passado o dia em “estado vegetativo” e dizendo não se recordar muito bem do que fez ou pensou durante todo o dia; por volta das 9 da noite saiu de Q..., levando consigo a faca que havia adquirido pela internet depois de a D...... ter terminado o namoro, alegando que a única coisa que tinha em mente era matar-se em frente à arguida com a dita faca, castigando-a, dessa forma, por tudo o que o tinha feito sofrer; dessa forma tendo chegado a TTT... dirigiu-se para a zona da casa dos pais da falecida, à porta da qual já uma vez tinha estado, e ficou a esperar pela ofendida; quando a viu abordou-a logo, levando consigo a faca, e disse-lhe que precisavam de falar ao que ela respondeu que nada mais tinham de falar, para ele seguir em frente e estar com outras pessoas; perante esta resposta da ofendida o arguido disse sentir-se enraivecido recordando-se de ter desferido o primeiro golpe na zona do ombro da D...... e de uma outra facada na zona das costas e depois disse não se recordar de mais nada até ao momento em que o pai da ofendida o agarrou e imobilizou; disse ainda, de forma perfeitamente clara e serena que não entregou a faca ao pai da D...... porque teve medo que ele o agredisse com tal instrumento, o que claramente contraria a sua expressa intenção de se suicidar em frente à D......, não tendo o Tribunal ficado minimamente convencido desta sua intenção; no que toca à aquisição da faca já aludida, o arguido disse que a comprou através da Internet, apenas porque na altura passava muito tempo ao computador e porque a mesma representava uma “saída de emergência” para ele; tentando explicar-se, o arguido disse que, na altura, estava tão deprimido, sentia que a vida tinha acabado para ele, que sentia uma certa segurança saber que com aquela faca podia facilmente acabar com a sua vida; referiu ainda que desde Julho/Agosto antes dos factos andava a tomar uma anti-depressivo (Cipralex 10 mg), tendo ido ao médico de família por insistência do seu orientador de doutoramento, mas que nunca consultou um psiquiatra, insistindo nas ideias suicidas que o assaltavam com frequência nessa altura (o que, pode afirmar-se com segurança, não é incompatível com a medicação com o dito fármaco[6]);

1. Nas declarações do assistente:

B..., tendo o mesmo referido que no dia em causa foi buscar a sua filha ao comboio, sendo que esta chegou por volta da 9 da noite, e dirigiram-se para casa; a sua filha permaneceu aí durante muito pouco tempo, tendo saído quase de imediato, para ir ao jantar de uma festa de anos de uma prima; por volta da meia-noite ouviu um barulho na porta da casa e um grito da filha, tendo acorrido de imediato; quando chegou à porta da rua viu a filha estendida no chão e o arguido em cima dela, não se tendo apercebido exactamente o que se estava a passar, tendo pensado até que seria o caso de uma violação; a testemunha agarrou o arguido e imobilizou-o e só depois reparou que este tinha uma faca com ele, sendo que ainda lha tentou tirar sem sucesso; disse ainda que o arguido disse que a filha “andava a gozar com ele há 8 anos” e disse ainda “a tua mulher nunca te enganou?”; mais referiu que só se apercebeu que estava ferido no Hospital Amato Lusitano de TTT... mas que não tem dúvidas nenhumas de que as feridas que sofreu, sobretudo a da região torácica foi feita pelo arguido tentando libertar-se dele, projectando a faca para trás, o que pelas mais elementares regras de experiência comum, visualizando a situação tal como ela foi apresentada quer pelo arguido, quer pelo assistente, ponderando o local em que o assistente foi ferido e tendo em conta que nunca os dois estiveram frente e frente, nos parece ter correspondido à verdade dos factos; no que toca ao relacionamento da sua filha com o arguido, o assistente não demonstrou ter grande conhecimento da mesma, referindo que a filha desabafava mais com a mulher sobre esses assuntos, sendo que há uns anos atrás a filha apareceu com um olho negro mas disse-lhes que tinha batido numa gaveta, só agora, perante os factos suspeita de que a filha terá sido vítima de agressões do arguido enquanto namoravam, o assistente referiu também que o namoro em causa tinha acabado há 4/5 anos atrás, mas sem, como se mencionou já, demonstrar efectivo conhecimento desses factos;

3. Nos depoimentos conjugados das testemunhas:

J......, o qual referiu residir relativamente perto dos pais da vítima e, tendo chegado a casa, ouviu, pouco tempo depois um barulho, cerca de meia-noite, o que a levou a chamar a PSP, tendo visto ainda um carro parado em 2.ª mão; mais referiu ter visto dois vultos junto da casa da vítima, parecendo-lhe que um deles estava a imobilizar o outro; nessa ocasião ouviu ainda alguém a dizer “pega na faca e foge”; depois viu um dos ditos vultos a ser levado pelo carro da polícia; a testemunha esclareceu ainda que, no local há iluminação pública, ainda que fraca, sendo que, na altura, estava a chover e a noite era escura;

K......, que esclareceu morar na mesma rua do assistente, tendo ouvido dois gritos de uma rapariga; a testemunha deslocou-se para junto da casa do assistente e, aí chegada, viu o assistente em cima de um jovem, que reconheceu como sendo o arguido, sendo que aquele lhe disse que o rapaz estava a atacar a filha; o assistente tentou tirar a faca ao rapaz batendo-lhe com o pulso no chão mas não conseguiu; a testemunha pediu-lhes para terem calma, sendo que o arguido disse que se entregava à polícia; a testemunha disse-lhe para ele lhe dar a faca o que o arguido fez, fazendo-a passar por cima de um murete, dizendo-lhe, nessa altura, “pega nela (faca) e foge”; referiu que enquanto o assistente imobilizava o arguido este tentava libertar-se e resistir, sendo que, a dada altura, o arguido teve as mãos à frente dele com o assistente a segurar-lhas por trás, o que corrobora a convicção formada pelo Tribunal de que o arguido, de forma voluntária e consciente, agrediu o assistente com a faca em questão, enquanto e para se tentar libertar dele;

L......, que referiu ser namorado da falecida D...... desde há cerca de um mês antes do dia dos factos dos autos; referiu que a D...... lhe contou que, em certa altura, que não soube precisar, o arguido tinha ido à porta de cada dela e deu uns pontapés na porta; confirmou ainda ter recebido o e-mail de fls. 195 dos autos, que considerou “pejorativo” mas não entendeu como ameaçador, tendo ele e a D...... optado por “não ligar”; mais referiu que a D...... lhe demonstrou ter medo do arguido e que lhe contou que este, pelo menos uma vez, já lhe tinha batido;

M......, amiga da falecida D......, tendo referido que a D...... tinha medo do arguido, sendo que este, no dia 16 de Agosto partiu o vidro de uma porta daquela; confirmou ainda que a relação do arguido e da ofendida sofreu várias interrupções, tanto “andando juntos como não”; a testemunha referiu-se ainda à D...... como sendo uma pessoa muito altruísta e meiga, estudiosa, que tinha acabado de ganhar uma bolsa de estudo para fazer o doutoramento, facto que a tinha deixado muito entusiasmada; referiu ainda que com a morte da D...... os pais desta era como se tivessem “deixado de viver”;

N......, amiga e colega da D...... no liceu e depois na faculdade, onde também foi colega de curso do arguido, tendo admitido frontalmente não gostar do último porque este, no entendimento da testemunha, sempre “deu mostras” de tratar mal a D......, tornando-se mais agressivo ao longo do tempo; referiu ainda que sempre achou que o relacionamento de ambos tinha várias coisas estranhas, nomeadamente o facto de não partilharem quaisquer amizades, sendo que uma vez a D...... lhe contou que o arguido a ameaçou dizendo-lhe que “se não fores minha não és de mais ninguém” e que tinha medo que ele a perseguisse do call center onde trabalhava até casa; disse ainda que os demandantes ficaram completamente devastados com a morte da filha, nada lhes trazendo alegria e chorando a cada momento a sua perda, até porque a D...... sempre foi para ambos motivo de orgulho;

P..., prima da falecida, tendo referido que, no dia dos factos a D...... tinha combinado jantar com ela, em virtude da testemunha fazer anos, o que efectivamente veio a acontecer, sendo que aquela chegou já tarde; referiu que naquela noite a prima lhe pareceu feliz como há muito tempo não a via; por volta da meia-noite menos um quarto a prima foi-se embora e a testemunha não a viu mais; também esta testemunha descreveu o relacionamento entre o arguido e a ofendida como sendo bastantes estranho, sendo que a prima tentou acabar imensas vezes sem o conseguir, tendo ainda visto a porta da casa de banho partida, sendo que a D...... lhe disse que tinha sido obra do arguido; também referiu que a D...... lhe contou que o arguido, em determinada ocasião lhe disse que “se não fores minha não és de mais ninguém”; este depoimento, muito embora sendo evidente e notória a animosidade da testemunha relativamente ao arguido, conjugado com os prestados pelas testemunhas L…, M...... e P…, permite ao tribunal concluir, de forma segura, atendendo aos factos sobre os quais tem que se pronunciar e ao estatuído no artigo 129.º/1, in fine do Código de Processo Penal, que o relacionamento entre arguido e ofendida se caracterizou sempre por situações de conflituosidade;

Q..., tendo referido que a vida dos demandantes tem sido horrível desde a morte da filha, tendo aqueles perdido todo o interesse em viver, tendo ficado arrasados; têm tido e recebido assistência e cuidados médicos, por deles necessitarem; a testemunha referiu ainda que logo a seguir aos factos foi ao Hospital Amato Lusitano de TTT..., onde esteve com o assistente, tendo-o visto no peito e num dedo, mas ele só pensava na filha; referiu-se à D...... como sendo uma rapariga educada, pronta a lançar-se na vida, sendo que os pais têm mais de 50 anos, não vão ter mais filhos, sendo que aquela era filha única;

R…, psicóloga, tendo referido que ambos os demandantes, após os factos, começaram a consultar-se com ela, tendo o assistente optado, depois, por abandonar a consulta; quanto à demandante, a mesma continua a ser seguida por ela, testemunha; a testemunha referiu que a demandante tem recebido medicação, encontrando-se muito abalada, tendo sofrido ambos os demandantes provavelmente o choque mais violento que um ser humano pode receber: a morte de um filho único, de forma inesperada, violenta, sendo que ambos estiveram no “palco” dos acontecimentos sem que os pudessem ter evitado, sendo entendimento da testemunha que jamais recuperarão do desgosto que lhes foi causado;

G......, tendo referido conhecer o arguido, desde os 2 anos de idade, desde quando ele foi morar com os pais para o prédio onde a testemunha já residia; caracterizou o arguido como sendo bom filho e bom vizinho, só tendo bem a dizer do mesmo, sempre tendo considerado que os pais do arguido eram uns pais presentes e preocupados e ele um filho igualmente atento e presente; além disso sempre foi bom aluno e sempre o considerou um rapaz pacato, muito a tendo surpreendido e chocado o que se passou com o arguido, assim como ficaria chocada se soubesse que o arguido tinha batido, anteriormente aos factos, na namorada;

H…, amigo do arguido desde os tempos do liceu, tendo referido que sempre o considerou uma pessoa correcta, sem qualquer tipo de comportamentos ou manifestações estranhas ou anormais; sempre foi uma pessoa calma, um pouco introvertida, estudioso, muito inteligente e responsável pelo que a situação pela qual está a ser julgado não se enquadra minimamente em qualquer comportamento que se poderia esperar do arguido; a testemunha aliás, utilizou uma expressão bastante sugestiva para expressar esta sua ideia, pelo inverso, que foi a de que o arguido “é uma pessoa tão normal que pensar que ele fez isto faz-me pensar que isto podia acontecer a qualquer pessoa”;

E......, orientador do doutoramento do arguido, que referiu ter conhecido o arguido por este ter ganho uma bolsa para um projecto de investigação, por mérito, tendo, depois, manifestado interesse em prosseguir os seus estudos para o doutoramento; a testemunha referiu ter dado conta de uma grande alteração no comportamento do arguido: nos dois primeiros anos os seus trabalhos dói sempre exemplar, sem qualquer reparo que se lhe pudesse fazer e quando o arguido regressou dos USA notou-o claramente desmotivado, sendo que a testemunha, nessa altura, lhe perguntou se era por causa do trabalho ao que aquele respondeu negativamente, sendo que a dada altura lhe confidenciou que tinha problemas de ordem afectiva; o arguido passou a não ser capaz de cumprir prazos e de completar as tarefas mais rotineiras, até que ele, testemunha lhe sugeriu que procurasse ajuda médica e suspendesse a bolsa de doutoramento; por insistência da testemunha e porque esta estava convencida de que o arguido estaria com algum esgotamento, devido à pressão do trabalho, o arguido meteu uma baixa médica; alguns dias antes dos factos o arguido mandou-lhe uma mensagem electrónica a pedir-lhe para marcarem um encontro, mas a testemunha, na ocasião não pôde e ainda telefonou ao arguido mas aqui foi este que não manifestou disponibilidade; nesse telefonema o arguido fez alusão a um desentendimento com os pais e referiu que a vida dele estava acabada, tendo referido a testemunha que mal pousou o telefone, nessa ocasião, teve um “mau pressentimento”, tendo julgado que aquele seu aluno estava à beira do suicídio, tanto que quando recebeu o telefonema do pai do arguido e este se identificou como tal pensou logo que era isso que tinha acontecido, sempre tendo estado longe de imaginar que o arguido pudesse ter cometido os factos pelos quais se encontra a responder; o depoimento desta testemunha, conjugado com as declarações do arguido com os relatórios de fls. 772 a 794 e 795 a 798, permitem ao Tribunal concluir, sem qualquer dúvida que o arguido, tempos antes dos factos, foi desenvolvendo um processo depressivo bastante acentuado e que, eventualmente, não recebeu o tratamento adequado e que, não justificando, naturalmente, os factos ilícitos, não poderá deixar de ser considerado na compreensão da imagem global dos mesmos;

F......, tendo referido ter sido colega de escola do arguido do 7.º ao 12.º Anos de Escolaridade, tendo namorado durante seis meses no 11.º Ano, relação que terminou naturalmente; depois encontravam-se pontualmente em Q..., na Universidade e intensificaram os contactos entre si quando ela foi viver para Lisboa, visto que o arguido gostava de futebol, sendo ambos do mesmo clube e aquele chegou a pernoitar em casa da testemunha quando ia a Lisboa assistir aos jogos do Sporting; a testemunha caracterizou o arguido como sendo uma pessoa tímida, pouco extrovertida mas que nunca lhe causou qualquer tipo de problemas; referiu ainda que a última vez que esteve com ele pessoalmente achou-o distante mas na quarta-feira antes dos factos ele telefonou-lhe e mostrou-se mais animado, com planos para o fim-de-semana (assistir ao jogo de futebol) e, inclusivamente perguntando-lhe se ela estava interessada em ir, o que corrobora a versão apresentada pelo arguido e traduzida na própria acusação de que o arguido só no dia dos factos teve conhecimento de algo que o fez mudar radicalmente de disposição, afastando, também desta forma alguma ideia de premeditação do crime;

4. No auto de apreensão de fls. 23 (faca utilizada pelo arguido); nos documentos de fls. 25 (atinentes ao pagamento da portagem na A1, pelo arguido, com entrada em Q... Sul e saída em Torres Novas, às 21:41:48); na reportagem fotográfica de fls. 30 a 43 (atinente ao exame ao hábito externo do cadáver da vítima), fotos constantes de fls. 91 a 111, atinentes ao local onde ocorreu o crime, corpo da vítima, com as diferentes lesões no mesmo provocadas, viatura utilizada pelo arguido; fotografia de corpo inteiro do arguido e pormenor das suas mãos); na reportagem fotográfica de fls. 287 a 290 (referente à roupa recolhida ao assistente, B...), reconstituição dos factos, segundo a versão do arguido, apresentada em folhas de suporte e com sequência fotográfica e infografia (concluindo com a construção de um modelo virtual na zona da ocorrência), constante de fls. 357 a 362), fls. 56 a 57 (atinentes ao transporte de ambulância, do assistente e da demandante); auto de exame directo de fls. 169 (dois pares de óculos, chinelos de quarto, blusão camisa de xadrez e camisola interior, objectos os primeiros encontrados no local do crime e os últimos tratando-se da roupa que o assistente vestia na altura dos factos); auto de exame directo de fls. 183 (pen drive pertencente ao arguido, tal como resulta do documento de fls. 184); fls. 195 (e-mail enviado pelo arguido no dia 31 de Outubro de 2009 a L…, do mesmo resultando que, nessa data ou até antes dessa data, havia terminado a relação entre a falecida e o arguido); 239 a 253 (atinentes a carta enviada electronicamente pelo arguido à ofendida e conversa tida entre o arguido e a ofendida, sendo que o primeiro se fazia passar pela amiga da falecida ), auto de exame directo de fls. 257 a 268 (atinente ao computador portátil de marca Hewlett-Packard, modelo “HP G7000, com n.º de série “CND80730V8”; auto de reconstituição de fls. 273 a 283; informações de fls. 366 a 367 (reportando-se a análise do telemóvel do arguido no que toca a chamadas efectuadas para a vítima, dela recebidas, atendidas ou não, e mensagens escritas sendo que gravadas no telemóvel e cartão SIM se encontram 50 mensagens recebidas da vítima, resultando dessas mensagens a intenção da vítima de não mais continuar a trocar mensagens com o arguido e terminar a relação; estão ainda gravadas no telemóvel 15 mensagens enviadas para a vítima, das 20:09:46, do dia 10-11-2009 e a última às 22:14:05, do dia 13-11-2009); doc. de fls. 374, print do site www.navalhas.com, onde aparece a faca utilizada pelo arguido, as suas características, e preço; informação de fls. 375, atinente à roupa do assistente, aí se concluíndo que foi apenas um golpe que provocou os três cortes comuns às três peças de roupa; documentos de fls. 742 a 744 (documentação clínica referente ao arguido enviada pelo Centro de Saúde Norton de Matos, de Q...);

5. No relatório do exame efectuado ao telemóvel do arguido Nokia, modelo 1208 e respectivo cartão SIM relativo ao n.º …, constante de fls. 113 a 160; no relatório do exame efectuado ao telemóvel de L…, Nokia, modelo 6021 e respectivo cartão TMN, com n.º  …, constante de fls. 197 a 234; ficha clínica de fls. 27 a 29 (relatório de urgência atinente à assistência prestada ao assistente no Hospital Amato Lusitano de TTT..., pelas 05:20 horas do dia 15-11-2009); relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal do assistente, constante de fls. 164 a 167; relatório de autópsia de fls. 328 a 335; exame pericial de fls. 345 a 347 (atinente à faca e a um pedaço com aparência metálica, de reduzidas dimensões, concluindo-se que os mesmos são compatíveis em termos de composição elementar, sendo que não se identificou uma superfície de fractura comum entre a lâmina e o fragmento; o fragmento recebido não completava a lâmina, indiciando-se a ausência de outros fragmentos); relatórios periciais de fls. 368 a 372 e 432 a 434;

6. No Certificado de Registo Criminal do arguido, constante de fls. 437.

7. Relatório de exame às faculdades mentais e relatório de avaliação psicológica do arguido constantes de fls. 772 a 794 e 795 a 798.

8. Documentos de fls. 510 a 513 referentes às despesas efectuadas pelos demandantes no que toca ao funeral na D...e ao fato adquirido para a mesma ir a enterrar.


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No que concerne à matéria de facto dada como não provada fundou-se o Tribunal na inexistência de prova suficientemente consistente, firme e estruturada sobre os factos em causa, de modo a poder o Tribunal formar um juízo positivo isento de dúvida sobre os mesmos.

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6. Do mérito dos recursos:

6.1. Da invocada nulidade do acórdão:

Preliminarmente, deixamos consignado que as considerações em seguida efectuadas sobre a génese e finalidade da fundamentação da sentença seguem ipsis verbis a exposição contida em diversos acórdãos[7] nos quais o relator do presente interveio na mesma qualidade. 

Em consonância com o imperativo constitucional do artigo 205.º, n.º 1 da CRP, segundo a qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”, impõe o legislador ordinário, como requisito estruturante da sentença, a indicação dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão (cfr. n.º 2 do art. 374.º do CPP).
Por sua vez, na al. a) do n.º 1 do supra citado art. 379.º do CPP comina-se de nula a sentença que não contiver as menções referidas no art. 374.º, n.ºs 2 e 3, al. b), do mesmo Código.
Esta disposição está intimamente ligada à do art. 127.º do CPP, nos termos do qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
O julgador é, assim, livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja «vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório».[8] 
No entanto, a livre convicção do juiz não se confunde com a sua convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.

A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.

Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional.[9]

Vigorando na nossa lei adjectiva penal um sistema de persuasão racional e não de íntimo convencimento, instituiu o legislador mecanismos de motivação e controle da fundamentação da decisão de facto, dando corpo ao princípio da publicidade, em termos tais que o processo - e, portanto, a actividade probatória e demonstrativa -, deva ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo, e presumivelmente se convença como o julgador.[10]

A obrigação de fundamentação respeita à possibilidade de controle da decisão do julgador, a viabilizar a exigível sindicabilidade da decisão e a reforçar a sua compreensibilidade pelos destinatários directos e da comunidade em geral, como elemento de relevo para a sua aceitação e legitimação.
É, pois, na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador. Não é suficiente a mera indicação das provas, sendo necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção.
«Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente relevante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).

Assim que baste que apenas um dos referidos passos do juízo devido seja omitido, para que se esteja a prejudicar a tutela judicial efectiva que tem de ser garantida como patamar básico da convivência social, impossibilitando ou diminuindo a justificação e compreensibilidade do decidido»[11].

Só motivando nos moldes descritos a decisão sobre matéria de facto, mesmo vendo a questão do prisma do decisor, é possível aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da referida convicção, para que seja permitido sindicar se a prova não se apresenta ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum.

A análise crítica da prova não terá, no entanto, de ser exaustiva, mas apenas a suficiente para se poder concluir que a decisão assentou na prova produzida e não é fruto de qualquer discricionariedade ou arbitrariedade.

Assim, o dever de indicação e exame crítico das provas, como elemento da fundamentação da decisão de facto, não exige, naturalmente, uma assentada do depoimento das testemunhas, ou seja, que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética.

Como não impõe uma fundamentação formalmente distinta para cada um dos arguidos ou uma fundamentação autónoma para cada um dos factos.

Em síntese conclusiva, dir-se-á, pois, que a exigência normativa do exame crítico das provas torna insuficiente a referência àquilo em que o tribunal se baseou, tornando-se necessário saber o porquê, a razão de ser da formação da convicção do tribunal.

Enunciados estes princípios e analisada a exposição dos motivos probatórios exarada na sentença recorrida, verifica-se que o tribunal a quo expôs, com um rigor minimamente aceitável, os motivos de facto que fundamentaram o decidido.

Conforme expressa fundamentação, supra reproduzida, o tribunal a quo motivou suficientemente, no específico domínio em apreciação, as razões que determinaram a formação da sua convicção, não se limitando a uma simples enunciação ou especificação dos meios de prova que considerou relevantes e decisivos, mas procedendo também a uma análise crítica, embora sucinta, das provas, da qual decorre reconstituído o “iter” que conduziu ao juízo de valoração.

No que agora importa considerar, da reprodução das declarações do arguido é possível inferir a confissão deste, nomeadamente sobre: a relação de namoro com a  falecida D...; as vicissitudes dessa relação amorosa, mantida desde 2001 e marcada por repetidas situações de conflitualidade; a agressão, com duas bofetadas, em D...; a instalação do programa referido nos pontos 7. e 8. do acervo factológico provado; a viagem do arguido desde Q... a TTT..., levando consigo a faca descrita no ponto 15. da matéria de facto provada; a prática do crime de homicídio na forma descrita no factualidade dada como provada.

Segundo decorre implicitamente do acórdão, tais declarações, quanto ao acto homicida e às circunstâncias que o determinaram, têm a corroboração do assistente e das testemunhas J......, K......, M......, N......, P... e da vasta documentação elencada, a final, na motivação da decisão de facto.

Relativamente à “premeditação” descrita na acusação, considerada não provada pelo tribunal a quo (cfr. ponto 3. da matéria de facto não provada), na parte alusiva às declarações da testemunha F......, está exposto o juízo crítico dos julgadores, como se vê do extracto que se passa a citar: «(…) o que corrobora a versão apresentada pelo arguido e traduzida na própria acusação de que o arguido só no dia dos factos teve conhecimento de algo que o fez mudar radicalmente de disposição, afastando, também desta forma alguma ideia de premeditação do crime».

No que concerne aos factos estritamente respeitantes ao imputado crime de ofensa à integridade física qualificada, mas que se também se correlacionam com o crime de homicídio, o substrato lógico e racional que presidiu à opção valorativa do tribunal está bem expresso na motivação.

Está dito em duas passagens: «disse ainda, de forma perfeitamente clara e serena que não entregou a faca ao pai da D...... porque teve medo que ele o agredisse com tal instrumento, o que claramente contraria a sua expressa intenção de se suicidar em frente à D......, não tendo o Tribunal ficado minimamente convencido desta sua intenção (…)» (fls. 16 do acórdão, a propósito das declarações do arguido); «referiu que enquanto o assistente imobilizava o arguido este tentava libertar-se e resistir, sendo que, a dada altura, o arguido teve as mãos à frente dele com o assistente a segurar-lhas por trás, o que corrobora a convicção formada pelo Tribunal de que o arguido, de forma voluntária e consciente, agrediu o assistente com a faca em questão, enquanto e para se tentar libertar dele» (fls. 18 do acórdão, parte relativa ao depoimento da testemunha K......).

Assim, a decisão recorrida, ainda que não se revele modelar, longe disso, contém fundamentação crítica, que permite a apreensão, por quem quer, das razões subjacentes à valoração do tribunal a quo, de dar como provados e não provados os factos relevantes para a boa decisão da causa

Afigura-se-nos, deste modo, que a fundamentação contida no acórdão é bastante para atingir os desígnios da lei, supra referidos.


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6.2. Da violação do artigo 340.º do Código de Processo Penal:
Na interpretação do recorrente B... (assistente), o tribunal a quo deveria ter tomado em consideração o documento que descreve as concretas características da faca usada pelo arguido, logrando assim provar-se a especial perigosidade da mesma, sendo que, ao não fazê-lo, violou o artigo acima citado; devem tais factos ser tidos em conta por este Tribunal da Relação e dados como provados.
Vejamos, então, se assiste razão ao recorrente.
Dispõe o normativo em causa, no seu n.º 1: «O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa».
Consagra, assim, para a audiência, o princípio da investigação, isto é, que, em última instância, recai sobre o juiz o encargo de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento. Os meios de prova não estão limitados aos indicados pela acusação ou pela defesa.
«Este princípio não se opõe a uma estrutura basicamente acusatória do processo penal, pois que não impede ou limita a apresentação de prova pelo Ministério Público e o seu total aproveitamento pelo tribunal»[12]. «Só significa que – ao contrário do que sucede com o princípio da discussão – a actividade investigatória do tribunal não é limitada pelo material de facto aduzido pelos outros sujeitos processuais, antes se estende autonomamente a todas as circunstâncias que devam reputar-se relevantes»[13].
O dito princípio significa, pois, que o tribunal de julgamento tem o poder-dever de investigar por si o facto, isto é, fazer a sua própria “instrução” sobre o facto, em audiência, atendendo a todos os meios de prova relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, sem estar em absoluto vinculado pelos requerimentos e declarações das partes[14].
O preceito estabelece os critérios respeitantes à admissão da prova relativa, inter alia, à imputação dos factos da acusação e da contestação, à determinação das incriminações e das sanções eventualmente aplicáveis[15].
Em suma, o tribunal deve, oficiosamente ou a requerimento de sujeitos processuais, ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e boa decisão da causa, desde que se verifique a essencialidade ou necessidade dessa diligência.
Contudo, relativamente aos requerimentos de prova, o princípio tem os limites fixados no n.º 3 do artigo 340.º, onde se refere que são indeferidos se for notório que:
«a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
b) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa;
c) O requerimento tem finalidade meramente dilatória».
É certo que, se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta (cfr. n.º 2 do artigo 340.º do CPP).
O conhecimento, com a antecedência possível, imposto por esse normativo tem em vista garantir os mais elementares direitos de defesa do arguido, em termos obstativos de qualquer surpresa decorrente dos novos meios de prova a produzir, sendo, assim, assegurada àquele a possibilidade de organizar ou reorganizar a sua estratégia defensiva.
Volvendo ao caso dos autos, claramente o tribunal não omitiu diligência de prova relevante para a descoberta da verdade material, pela simples razão de o documento em causa ter sido junto aos autos, pelo assistente, no decurso da 1.ª sessão de julgamento, realizada no dia 09-03-2011 (cfr. fls. 842/844).
 Bem vista a situação, o verdadeiro desiderato do recorrente consiste na impugnação da matéria de facto provada, pretendendo o mesmo que, com base nesse elemento de prova, seja reformulado o ponto 15. da matéria de facto provada, questão que será objecto de análise já de seguida.
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6.3. Alterabilidade da matéria de facto:
6.3.1. Na consagração, como provado, do ponto 15., o tribunal considerou o exame pericial de fls. 345, donde consta que o instrumento utilizado pelo arguido constitui uma faca de cor preta, com lâmina articulada e cabo em material polimétrico, com as seguintes dimensões, em valores aproximados: comprimento da faca, 22,5 cm; comprimento da lâmina, 9,5 cm; largura máxima da lâmina 2,5 cm.
No documento de fls. 842, print do site www.navalhas.com, o referido objecto é anunciado do seguinte modo: «melhor faca táctica do mundo, equipada com uma lâmina estilo gládio de alto factor de penetração, uma zona de corte em arco - mais área de corte em menor espaço e dois rasgos de sangue no reverso (…). Permite um saque do bolso com abertura rápida (…). Esta faca resulta de um pedido da Boker ao próprio Jim Wagner após este ter desencadeado toda a parte do treino com facas do GSG9 (as forças especiais Alemãs de contra-terrorismo). O pedido foi simples: criar a melhor faca jamais existente para operacionais de polícia, militares e contra-terroristas em termos de auto-defesa (…)».
Não obstante as definições ora citadas, é nosso entendimento que o tribunal a quo só poderia considerar o exame pericial efectuado, uma vez que, tratando-se de prova vinculada, só este garante, no caso concreto, a fidedignidade das específicas características da faca, não sendo despiciendo lembrar que o anúncio exposto na internet, com divulgação de preço, não deixa de constituir, de acordo com as regras da experiência comum, uma fonte publicitária.
Nestes termos, o ponto 15.º da matéria de facto provada não sofrerá qualquer alteração.
*

  Por sua vez, o juízo de censura crítico do arguido dirige-se aos pontos 22., 25.º, 26.º, 58.º, do acervo factológico provado, e ao ponto 11. da factualidade dada como não provada.
a) Questiona o recorrente, em primeira linha, o ponto provado n.º 22, contrapondo que os factos que o integram não decorrem da prova produzida em audiência de julgamento, rectius, das suas próprias declarações e das do assistente B.... Preconiza o recorrente a alteração, por este tribunal ad quem, desse ponto de facto, nos seguintes termos: «Enquanto o arguido estava a ser manietado pelo pai de D...- no esforço que o mesmo fazia para o afastar desta e sem que previamente se tenha apercebido da sua presença -, atingiu acidentalmente este último, provocando-lhe uma ferida no tórax, na região medi-clavicular esquerda com cerca de 3 cm de comprimento e aproximadamente 5 cm de profundidade, sem perfuração dos vasos subclávicos nem da pleura e ainda uma ferida incisa do primeiro dedo da mão esquerda, lesões que lhe determinaram 10 dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade profissional»;
b) Quanto ao ponto n.º 25., o recorrente pugna pela sua eliminação do quadro fáctico dado como provado;
c) Em complemento do seu raciocínio, o recorrente pretende que o ponto 26. seja restringido aos actos consubstanciadores do imputado crime de homicídio;
d) Em relação ao ponto 11. da matéria de facto não provada e correspectivo ponto 58. da factualidade provada, o desígnio afirmado pelo recorrente vai no sentido de se eliminar o ponto 11., dando-se ao ponto 58. a seguinte redacção: «o arguido mostrou-se profundamente arrependido em audiência de julgamento, tendo confessado os factos, o que, muito embora não tenha tido qualquer relevo para a descoberta da verdade material, revelou a sua vontade em nada esconder e assumir as suas responsabilidades - optando assim por colaborar com a Justiça».
Para tanto, a nível probatório, invoca determinada passagem do “Relatório de exame médico-legal em psiquiatria forense” de fls. 772 a 794, elaborado pelo Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de São Teotónio Viseu E.P.E. («Deverá sublinhar-se, finalmente, o notório e genuíno esforço do examinado em efectuar descrições extremamente rigorosas»), chama à colação o relatório psicológico de fls. 795 a 798 e destaca o seu comportamento em julgamento, traduzido no choro em que irrompeu ao encarar com o assistente B..., pai da vítima D....

Revertendo ao caso concreto, no que concerne aos pontos impugnados n.ºs 22., 25. e 26., a audição da prova gravada em audiência, evidencia, em apertada mas suficiente síntese, as seguintes declarações do arguido, do assistente e das testemunhas J...... e K......:
Arguido:
- Só se apercebeu da presença do pai da vítima quando este já estava em cima de si. Supõe que o mesmo o tenha agarrado, tendo-o atirado ao chão já depois da agressão da D.... Tenta lembrar-se do que se passou, mas “é tudo uma espécie de vazio”. Não se lembra como o assistente o agarrou. Sabe que nessa fase já estava deitado no chão. Não tem qualquer ideia de como agrediu B.... Este imobilizou-o;
Assistente:
- Ouviu gritos e um pedido de ajuda de sua filha. Saiu de cada e viu um indivíduo em cima daquela. Agarrou-o por trás, “puxou-o como se estivesse a dar-lhe um abraço” e, assim, retirou-o da posição em que se encontrava; o arguido procurava libertar-se. Este tentou voltar-se para si mas mão conseguiu. Estava imobilizado. Na altura, não se apercebeu de ter sido esfaqueado, nem sabe como tal aconteceu;
Testemunha J......:
- Morava, ao tempo dos factos, na mesma rua em que também reside o pai da vítima. Na noite de 14 de Novembro de 2009, quando estava em casa, começou a ouvir barulho. Abriu uma janela e viu pessoas em confronto físico. Decorrido pouco tempo, dirigiu-se ao exterior e vislumbrou novamente duas pessoas “em distúrbio”; deu conta de um corpo e ouviu alguém dizer: “pega na faca e foge”. Estava uma noite muito escura e chovia. Só se apercebeu de vultos. Pareceu-lhe que uma das pessoas estava a imobilizar a outra;
Testemunha K......:
Naquela noite, ouviu gritos de mulher. Foi à varanda do 1.º andar da sua residência e ouviu vozes de dois homens. Desceu, saiu à rua e, quando se aproximou do local, viu o assistente a segurar um indivíduo. Tinha-o imobilizado, com as mãos atrás das costas. A dada altura, o assistente apercebeu-se de que o arguido tinha uma faca, já que o ouviu dizer: “este indivíduo tem uma faca na mão”. Após, o assistente segurou o punho do arguido e bateu-lhe, com uma chave, nessa zona do corpo, na tentativa daquele largar o referido objecto. Contudo, o arguido resistiu. “O assistente continuava a segurar o pulso do arguido e este mantinha a resistência, fazia força com a mão, gesticulava. Anteriormente, quando viu o arguido imobilizado, este não resistiu, não reagiu. Nunca viu o arguido esfaquear o assistente.
É dado indiscutível a ocorrência de ferimentos sofridos pelo assistente na noite de 14 de Novembro de 2009, em resultado do envolvimento físico com o arguido, como é evidenciado pelas declarações daquele e pelos documentos de fls. 27/29 e 165 dos autos (respectivamente, relatório de urgência do Hospital Amato Lusitano e relatório da perícia de avaliação de dano corporal, elaborado pelo Gabinete Médico-Legal de TTT...).
Porém, a análise complexiva e crítica das declarações/depoimentos acima identificados, não permite concluir, acima de qualquer dúvida razoável, as concretas circunstâncias em que aqueles ferimentos, produzidos com a faca utilizada pelo arguido na perpetração do acto homicida, é certo, ocorreram.
Na ausência de prova concludente, várias hipóteses são configuráveis, nomeadamente, o acto voluntário do arguido até à possibilidade de as lesões provirem de acção involuntária do mesmo.
Deste modo, perante a insuperabilidade dessa dúvida objectiva, o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência previsto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, impõe a alteração dos pontos impugnados n.ºs 22., 25. e 26. do acervo factológico dado como provado, em termos que em sede própria ficarão definidos.
*
Passando ao facto provado n.º 58. e ao facto não provado n.º 11., no registo de gravação da prova oralmente produzida em audiência de julgamento, reportado ao momento que imediatamente antecedeu as declarações do assistente, mas quando este já se encontrava na sala de audiências, são audíveis sons, provindos do arguido, característicos de choro.
No final da audiência, o arguido leu uma declaração escrita, previamente preparada, a qual, em resumo, continha um pedido de desculpas à família da vítima.
Mas nunca o arguido referiu expressamente o seu arrependimento sincero, afigurando-se-nos que a crise de choro, no descrito momento, traduz tão só uma forte comoção ocasional, determinada pela presença do pai da vítima, pessoa que viveu de perto os acontecimentos trágicos ocorridos naquela fatídica noite de 14 de Novembro de 2009.
Por outro lado, no relatório de exame médico-legal em psiquiatria forense (fls. 772 a 794), referido pelo recorrente, nada consta sobre a problemática em análise.
Apenas no relatório de avaliação psicológica (fls. 795/798), a questão é abordada. Quando perguntado sobre se se mostrava arrependido, o arguido respondeu, singela e incompreensívelmente, nestes termos: “sim, aquilo que eu devia ter feito naquele dia era ter tomado um calmante, mas não tive forças”.
A postura do recorrente em julgamento, assumindo embora os factos, não traduz arrependimento, por a sua imaturidade o levar a centrar-se em si, numa atitude auto-punitiva, e não no impacto da sua conduta na vítima e nas repercussões sociais do acto praticado.
Para ilustrar o que se deixa dito, deixamos registo de um excerto das declarações do arguido: “ia para me suicidar à frente da D......, para a penalizar”, mas acabou por a matar. Com o acto suicida pretendia criar na vítima um sentimento de culpabilização por lhe haver dedicado 8 anos da sua vida.
Por outro lado, como tem salientando jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, não há uma relação necessária e inevitável entre a confissão e o arrependimento, por forma a que este haja de ser forçosamente extraído daquela[16].
*

 6.3.2. Procedendo à assinalada modificação da matéria de facto [cfr. art. 431.º, al. b) do Código de Processo Penal], os factos provados e não provados passam a ser os seguintes:

A) Factos provados:

- Pontos 1. a 21. - sem alteração;
- 22. Enquanto o arguido estava a ser agarrado pelo pai da D..., em circunstâncias que não foi possível determinar, o último sofreu duas feridas - uma no tórax, na região medi-clavicular esquerda, com cerca de 3 cm de comprimento e aproximadamente 5 cm de profundidade, sem perfuração dos vasos subclávicos nem da pleura, e outra, incisa do primeiro dedo da mão esquerda -, provocadas pela faca descrita no ponto 15., as quais determinaram no mesmo 10 dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional;
- Pontos 23. e 24. - sem alteração;
- Ponto 25. - transita para os factos não provados;
- Ponto 26. (na numeração sequenciada passa a ser o 25.): o arguido tinha, para além do mais, perfeito conhecimento de que a sua conduta, relativa ao imputado crime de homicídio, era proibida e punida por lei;
- Ponto 27. a 35 (na numeração sequenciada passam a ser os pontos 26. a 34) - sem alteração;
- Ponto 36. (cuja numeração passa a ser 35.): Deparando-se com o arguido debruçado sobre a sua filha, agarrou-o para que este se afastasse (o inciso final deste ponto de facto passa a constar dos factos não provados);
- Ponto 37. (na actual numeração, ponto 36.): O assistente José Martins teve de ser transportado ao hospital para ser assistido aos ferimentos;
- Pontos 38. a 60. (na actual numeração, pontos 37. a 59.) - sem alteração;
- Ponto 61. (cuja numeração passa a ser o 60.): À data da prática dos factos, a perturbação nomeada em 59 [a alusão, no acórdão recorrido, ao ponto 61. encerra evidente lapso material, que ora se corrige, uma vez que a remissão só pode ser dirigida ao ponto 60];
- Pontos 62. a 67. (numeração sequenciada, 61. a 66.) - sem alteração.

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B) Factos não provados (as alterações serão registadas a itálico):

1. O arguido tenha ficado a saber, no dia 14-11-2009, através da forma descrita em A) 7., que a ofendida havia iniciado um relacionamento amoroso com outrem.

2. O arguido tenha decidido vir para TTT... com o intuito de falar pessoalmente com a ofendida D...... .

3. O arguido tenha premeditado toda a situação, mais precisamente desde que conseguiu obter o username da amiga M......da falecida, para assim, falando com ela na internet, saber mais pormenores da relação amorosa que a mesma tinha arranjado recentemente, até à sua vinda a esta cidade com o propósito de a encontrar pessoalmente.

4. O arguido e a falecida haviam terminado o seu relacionamento em finais de 2008, por iniciativa desta.

5. O arguido vinha tentando reatar o relacionamento desde então, ao que a falecida não assentia.

6. O arguido tenha agredido a ofendida com duas bofetadas já na segunda metade de 2009, nos intentos referidos em 2.

7. A ofendida D...... sentiu medo ao ver o Arguido dirigir-se para si munido da faca descrita nos autos.

8. Enquanto o arguido estava a ser agarrado pelo pai de D..., desferiu dois golpes com a mesma faca sobre o último, provocando-lhe uma ferida no tórax, na região medi-clavicular esquerda, com cerca de 3 cm de comprimento e aproximadamente 5 cm de profundidade, sem perfuração dos vasos subclávicos nem da pleura e ainda uma ferida incisa do primeiro dedo da mão esquerda.

9. O arguido desferiu, no assistente, os golpes descritos na acusação, quando foi agarrado pelo último para que se afastasse da vítima D....

10. O arguido, ao desferir os dois golpes com a faca em questão sobre o assistente B..., fê-lo de forma deliberada e consciente, com o propósito de o molestar fisicamente, bem sabendo que o objecto com que o atingiu era adequado a feri-lo, como veio a acontecer.

11. O arguido tinha perfeito conhecimento de que, em relação ao imputado crime de ofensa à integridade física qualificada, a sua conduta era proibida e punida por lei.

12. O lesado B..., aquando da facada que lhe foi infligida, na zona esquerda do peito, temeu a própria morte e teve dores.

13. Como filha única, era de D...que os Lesados esperavam ganhar pelo menos um neto.

14. O arguido tem vindo a ser seguido, na sua permanência em prisão preventiva, por médico da especialidade de psiquiatria.

15. O arguido se encontre profundamente arrependido.


*

6.3.3. À modificação da matéria de facto, nos pontos supra expostos, foram determinantes os motivos de convicção que pontualmente, caso a caso, ficaram expostos.

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6.4. Da qualificação jurídica dos factos:

6.4.1. Em face da matéria de facto provada, é manifesto, desde  logo, o não preenchimento do tipo objectivo do crime de ofensa à integridade física qualificada imputado ao arguido, por não estar demonstrado que este ofendeu o corpo ou a saúde do assistente.

Deste modo, por falta de tipicidade, impõe-se, quanto ao referido crime, a absolvição do arguido.


*
6.4.2. Examinemos então se os factos integram a prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. e), in fine, h) e j), do Código Penal, como pretendem os recorrentes Ministério Público e assistente, ou apenas um crime de homicídio simples, como foi decidido no acórdão recorrido.
Escreveu-se no acórdão recorrido, acerca do “motivo fútil”:
«No que concerne a este ponto há que referir não constar da acusação, de forma clara e evidente, a motivação do arguido para actuar da forma que actuou. É certo que consta da acusação que o arguido tomou a decisão de vir para TTT... depois de ter ficado a saber que a ofendida havia iniciado uma relação amorosa com terceiro, tendo inclusivamente mantido já relações sexuais com esse terceiro, também se refere, logo a seguir, que o arguido “decidiu também ele vir a TTT..., com o intuito de falar pessoalmente com ela (ofendida)”, em lado nenhum se estabelecendo a relação entre o conhecimento dos factos mencionados e a formação de intenção de matar a ofendida.
Provado ficou apenas que no dia 14/11/2009, pelas 11 da manhã, o arguido ficou a saber que a ofendida havia já mantido relações sexuais com outro rapaz com quem esta havia, entretanto, iniciado uma relação amorosa, tendo ainda ficado a saber que a ofendida vinha, nesse dia, para TTT....
Depois de ter tido conhecimento destes factos o arguido decidiu, também ele, vir para TTT....
Já nesta cidade, assim que viu a ofendida, o arguido saiu de imediato do veículo, deixando o mesmo a trabalhar, munido da faca que trouxera consigo de Q... e abordou, então, a ofendida, dizendo-lhe que precisavam de falar.
Aquela retorquiu que não tinham mais nada para falar, que estava tudo terminado entre ambos e para ele, arguido, seguir em frente e conhecer outras pessoas e, perante tais palavras, o arguido, de imediato, veio a desferir o primeiro golpe sobre a ofendida, diga-se, seguido de mais 21.
Perante tal factualidade poder-se-á concluir, embora mais uma vez se refira que tal não consta da douta acusação (sendo certo que o exemplo-padrão constante da al. e) é estruturado com apelo a elementos estritamente subjectivos, relacionados com a especial motivação do agente, pelo que tal motivação terá que constar expressamente da acusação e ser demonstrada), que o arguido terá actuado motivado por ciúmes ou por ter tomado consciência, de forma definitiva e irreversível, do fim do seu relacionamento com a ofendida. Em qualquer dos casos, admitindo que o arguido formou o propósito de tirar a vida à ofendida por ciúmes, ou por não se haver conformado com o rompimento da relação existente entre ambos há que afastar liminarmente a verificação da circunstância qualificativa motivo torpe ou fútil , não esquecendo ainda que ficou igualmente provado que o arguido meses antes da prática do facto vinha apresentando um quadro depressivo, com tendência para o suicídio, vindo a ser seguido e medicado clinicamente, quadro que o levou até a suspender o seu projecto de doutoramento, factor, sem dúvida importante num correcto enquadramento global dos factos e na compreensão, que nos traz as mais elementares regas da experiência comum e do próprio julgador, de que uma pessoa deprimida, ainda que essa depressão não afecte a sua capacidade de se auto determinar, não assimila a realidade da mesma forma que o faz uma pessoa saudável e sem essa patologia. Os problemas mais comezinhos e naturais atingem, para uma pessoa deprimida, proporções distorcidas e desadequadas. Por essa razão entendemos que, no caso concreto, a ter havido uma motivação por ciúmes, subjacente ao crime, não pode afirmar-se ser uma situação de “motivo fútil”, para os termos da alegada qualificativa.
Assim sendo, não se pode, pura e simplesmente concluir que, não existindo motivação, ou não tendo a mesma logrado provar-se, que o homicídio é qualificado, sob pena de, mais uma vez, se estar a qualificar todo e qualquer homicídio».

E no que concerne à qualificativa da alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, no caso concreto:

«No caso dos autos, provou-se que o arguido utilizou, para perpetrar o crime, uma faca marca Boker Jim Wagner, modelo Reality Based Blade, de cor preta, com lâmina articulada e cabo em material polimérico com o comprimento total de 22,5 cm, sendo o comprimento da lâmina o de 9,5 cm e a largura máxima da mesma de 2,5 cm. Nada mais se provou no sentido de se poder concluir que tal faca, atentas as provadas características, revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar, tendo em conta, naturalmente, que todas as facas são perigosas e, em princípio, adequadas e suficientes ao cometimento do crime em causa.

Crimes de perigo comum, por outro lado, são os constantes dos artigos 272.º a 286.º do Código Penal, sendo que, neste caso a culpa do agente é especialmente agravada pela falta de escrúpulos em princípio revelada pela utilização de um meio adequado à criação ou produção de perigo comum. No caso dos autos, em face da matéria dada como provada é evidente não se verificar a qualificativa em causa».

Por fim, quanto às circunstâncias qualificativas especiais da alínea j) do mesmo artigo:

«Cremos bem que, no caso sub judice, patentemente, se não verificará uma situação susceptível de integrar o conceito de premeditação (a que se reconduzirão os diferentes conceitos contidos na alínea em análise), seja a persistência da intenção de matar a vítima, por mais de 24 horas isto porque se não logrou provar o contexto em que a acusação pública estrutura esta circunstância.

Desde logo que o arguido tenha “premeditado toda a situação”, mais precisamente desde que conseguiu o username da amiga da falecida, e, por essa forma logrou contactar com a vítima e, por essa forma, saber dela pormenores da sua actual vida íntima. Ou seja, não resulta minimamente provado nem, tão pouco vem alegado na acusação que tal actuação do arguido (utilização do username teve em vista a preparação do homicídio, o fortalecimento de uma prévia intenção formada de matar ou se tenha tratado de um passo de um plano previamente traçado com vista a colocar termos à vida da D....

E tais considerações aplicam-se plenamente ao facto da aquisição da faca pelo arguido nas circunstâncias que lograram provar-se.

Se é certo que a faca acompanhou o arguido durante a viagem, na qual terá gasto não mais do que três horas, para efectuar o percurso de Q... até TTT..., mesmo que haja iniciado a viagem já com a intenção já formada de tirar a vida à vítima – facto que, de todo, se não provou, não constitui susceptível de integrar qualquer uma das vertentes da apontada qualificativa prevista na al. j).

Certo é que o arguido desferiu 23 golpes com a dita faca, circunstância que sendo impressionante e que, naturalmente, horroriza qualquer sã consciência, não chega para, sem mais qualificar o crime. Na verdade é sobejamente conhecido que, neste tipo de ilícitos, não raramente, o agente entra numa espécie de mecanicidade em que já não o domina a sua vontade, sendo, por isso despiciendo falar em especial censurabilidade ou perversidade da sua conduta.

Assim sendo, afastadas que estão todas as qualificativas do crime em causa, resta concluir que, tendo ficado provado que o arguido ao actuar da forma descrita, desferindo os ditos golpes com a referida faca sobre a ofendida D......, golpes que lhe causaram lesões que foram causa directa e necessária da sua morte, resultado que o arguido pretendeu e conseguiu, bem sabendo ser proibida e punível por lei a sua conduta, está, assim, o arguido, incurso, tão-somente, enquanto autor, num crime de homicídio simples previsto e punido no artigo 131.º do Código Penal, a que corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 8 a 16 anos».


*

Constitui hoje em dia aquisição pacífica na doutrina e na Jurisprudência a afirmação de que as diversas situações elencadas n.º 2 do art. 132.º do Código Penal não são de preenchimento automático.

E, se igual unanimidade não pode ser constatada no que concerne ao exacto enquadramento dogmático dos chamados “exemplos-padrão” - se elementos do tipo de ilícito, se do tipo de culpa - dúvidas também não existem, de que foi este segundo entendimento o que veio a sobrelevar naqueles domínios do pensamento e praxis jurídicas, ao ser propugnada por autores como Eduardo Correia e Figueiredo Dias, ou ao colher o beneplácito unânime das decisões do STJ.

  Erigiu pois, o legislador, na definição da qualificação do homicídio, um sistema que fazendo apelo, por um lado, a uma forma de culpa agravada - a especial censurabilidade e perversidade do agente referida no respectivo n.º 1 - faz implicar, por outro, pela sua definição mediante uma cláusula geral, descrita com conceitos indeterminados, o seu preenchimento de forma integrada na enumeração casuística do número subsequente, buscando-se ali o “tipo orientador”, ou por outras palavras, a concretização e a determinação de tal critério, de molde a, nomeadamente, se lograr a sua compatibilidade com o princípio da legalidade.

Nas palavras do Professor Figueiredo Dias[17], «(...) no n.º 2 do art. 132.º é enumerado um conjunto de circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade referida. Tais circunstâncias não são taxativas, nem implicam por si só a qualificação do crime; isto é, pode o juiz considerar como homicídio qualificado a conduta do agente que não se acompanhasse de qualquer das circunstâncias descritas, mas sim de outras, e pode, por outro lado, deixar de operar tal qualificação apesar da existência clara de uma ou mais dessas circunstâncias».

É, assim, certo que a existência de alguma das circunstâncias referidas no n.º 2 do art. 132.º não conduz necessariamente à especial censurabilidade ou perversidade da cláusula geral do n.º 1 do mesmo artigo, como é também incontestável que outras circunstâncias não catalogadas podem conduzir a tal censurabilidade ou perversidade, o que, porém, não significa que as circunstâncias não previstas possam ser descobertas discricionariamente pelo julgador. Ainda então, como nos parece correcto, tendo presente que se está perante uma moldura penal agravada, em conexão com os princípios da legalidade e do Estado de Direito, a relação do juiz não se estabelece com o n.º 1 do art. 132.º sem mediação do seu n.º 2.

Como é salientado no Ac. do STJ de 13-07-2005[18], «seria violar a legalidade fazer um apelo directo à cláusula da especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos-padrão e de por isso comprovar a existência de um caso expressamente previsto no art. 132.º ou de uma situação valorativamente análoga».
A especial censurabilidade ou perversidade do agente é, pois, uma especial culpa por referência à que é pressuposta na moldura penal do homicídio simples (art. 131.º) e que aqui assumirá a qualidade de uma culpa “normal”. Para o preenchimento valorativo do conceito indeterminado “especial” revelará, atenta a noção material de culpa, a vontade culpável e o seu objecto nas manifestações concretas do caso.
«Sendo assim, o especial grau de culpa subjacente à “especial censurabilidade ou perversidade” que o agente manifesta em tais circunstâncias aquilo que motiva a agravação, esta tem afinal a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática do crime de homicídio simples (...)»[19].
O art. 132.º, trata, pois, de uma censurabilidade especial, relativamente à que constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa de culpa, que se revela quando as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores.
«Com referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto, pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder.
Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor (...), atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente»[20].

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Na significação corrente do termo, motivo fútil é o “que tem pouca ou nenhuma importância, nulo, vão, inútil”[21].
De egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até à insensibilidade moral, fala Nélson Hungria, citado por Leal-Henriques e Simas Santos, enquanto Bettiol entende haver motivo fútil quando se estabeleça uma “desproporção manifesta” entre a gravidade do facto e o motivo que impeliu à acção, em suma, uma situação de “insensibilidade moral” [22].
Nas palavras de Figueiredo Dias, motivo “torpe ou fútil” «significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado repugnante, baixo ou gratuito»[23].
No domínio da jurisprudência do STJ, tem sido entendimento constante que motivo fútil “é o notoriamente desproporcionado ou inadequado, do ponto de vista do homem médio, em relação ao crime praticado”; para além da desproporcionalidade, deve acrescer a insensibilidade moral que tem a sua manifestação mais elevada na brutal malvadez do agente, ou se traduz em motivos subjectivos ou antecedentes psicológicos que, pela sua insignificância ou frivolidade, sejam desproporcionados com a acção[24].
«Motivo fútil é o motivo de importância mínima. Será também o motivo “frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida”, o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime de que se trate, o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática.
Sendo certo que a aludida desproporcionalidade ocorrerá sempre, com maior ou menor relevo, entre um homicídio e a razão que o haja motivado, qualquer que ele seja, alguma coisa mais deverá acrescer, em ordem a avivar a dita desproporcionalidade, e esse aditável algo terá que ver com índices subjectivos expressos ou inferíveis do conjunto da factualidade apurada ou detectáveis na sua antecedência psicológica, e que, por sua insignificância patente ou por sua evidente frivolidade, incompatíveis se mostrem e inconciliáveis se alcancem com a actuação homicida.
O vector fulcral que identifica o “motivo fútil” não é pois tanto o que passe por dizer-se que, sendo ele de tão pouco ou imperceptível relevo, quase que pode nem chegar a ser motivo, mas sim, aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou: no fundo, em essência, o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade, sendo que esta pressupõe um motivo por ela rotulável e que dele e por ela se envolva»[25].
Em síntese conclusiva: motivo fútil é o móbil do crime da actuação despropositada do agente, sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação do facto, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente.
Revertendo ao caso dos autos, como é salientado, e bem, na decisão sob recurso, não está cabalmente explicitado na matéria de facto, tal como já não estava na acusação, o motivo determinante do acto homicida praticado pelo arguido.
Todavia, o encadeamento dos factos descritos nos pontos 1 a 18 do acervo factológico provado sugerem fortemente que o arguido formou o propósito de tirar a vida a D...em função da ruptura da relação de namoro, que manteve durante oito anos, por iniciativa da vítima e/ou movido por ciúmes decorrentes do novo envolvimento sentimental da sua ex-namorada com outro homem.
Se assim é, estamos perante um “desgosto de amor” que provocou uma dinâmica de emoções e sentimentos no arguido. Ora isto não é de considerar irrisório ou insignificante.
Se assim não é, a inexistência de motivo não equivale, de todo, a motivo fútil, uma vez que só há motivo (ainda que fútil) se existir. De outra forma, todo o homicídio envolveria sempre motivo fútil, desde que inexistisse motivo[26].
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Conforme opinião que supomos unânime da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, o meio faca ou navalha não constitui meio particularmente perigoso, por não se revestir de uma perigosidade muito superior ao normal dos meios usados para matar. Como acentua Figueiredo Dias[27], em nota à utilização de meio particularmente perigoso no domínio daquele crime, não cabem seguramente no exemplo-padrão em causa e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes.
Também neste contexto, não podemos deixar de concordar com a análise jurídica do acórdão recorrido.
Efectivamente, a faca utilizada pelo arguido na prática do crime de homicídio, definida no ponto 15. da matéria de facto provada, não revela uma perigosidade acrescida em relação ao normal dos instrumentos corto-perfurantes usualmente utilizados para matar.
Para os efeitos da alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º, são crimes de perigo comum não apenas os previstos nos artigos 272.º e ss. do CP, mas também outros crimes de perigo comum previstos fora daquele diploma, como, por exemplo, o crime previsto no artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, na redacção dada pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio[28].
Sucede, porém, que o facto praticado pelo arguido não consubstancia a prática de um crime de detenção de arma proibida.
Vejamos:
Dispõe o referido artigo 86.º, na parte que importa considerar, na redacção introduzida pela Lei 17/2009, a vigente à data da prática dos factos:
«1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:
d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados com arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse (…), é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias».
Por sua vez, o artigo 2.º, al. m) do mesmo diploma dá-nos o conceito de arma branca, onde se integra todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm.
Ora a lâmina da faca utilizada pelo arguido tem o comprimento de 9,5 cm.
Deste modo, a faca em causa não é arma branca e, consequentemente, a detenção desse instrumento pelo arguido não configura o crime (de perigo comum) do citado art. 86.º, n.º 1, alínea d).
*
Actua com frieza de ânimo quem forma a sua vontade de matar outrem de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução; trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução.
Com a previsão simultânea dos três tipos de circunstâncias referidas na al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP, «o legislador português pretendeu afinal englobar uma realidade unitária, susceptível de possibilitar por si mesma um maior juízo de censura jurídico-penal sobre o agente; é a particular intensidade da vontade criminosa daquele que age com reflexão ou domínio de si, e não sob emoções ou impulsos de momento, e que desse modo pode manifestar uma personalidade marcadamente mais desviada dos padrões supostos pela ordem jurídica»[29].
Na situação dos autos, em suma, está provado que o arguido se dirigiu à residência dos pais da vítima, munido da faca descrita no ponto 15. da matéria de facto provada, na noite de 14 de Novembro de 2009.
Quando D...chegou à residência, o arguido disse-lhe que precisavam de falar um com o outro, tendo a primeira retorquido não terem mais nada para dizer, porquanto a relação de namoro entre ambos tinha terminado, devendo o segundo seguir em frente e conhecer outras pessoas.
Perante tais palavras, o arguido, de imediato, aproximou-se de D...e, empunhando a aludida faca, desferiu com esse instrumento, sucessivamente, 23 golpes, provocando na vítima as lesões concretizadas no ponto 23. do acervo factológico dado como provado.
O arguido havia adquirido a faca, após pesquisa na Internet e através daquele meio, duas a três semanas antes do dia 14 de Novembro de 2009, mas sem que se encontre apurada a finalidade dessa aquisição, ou seja, relação causal entre a compra e a utilização da faca nas circunstâncias acima indicadas.
Nestes termos, não se vislumbra como objectivamente preenchidas as circunstâncias da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º. Na realidade, não se detectam elementos de facto donde se rotule o comportamento do arguido de deliberado, reflexivo, frio e persistente, não estando também demonstrada, por conseguinte, a persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.
Por tudo o que ficou exposto, o arguido cometeu tão só um crime de homicídio simples.
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6.5. Consequências jurídicas do crime de homicídio:

Preliminarmente, há a referir que a moldura legal abstracta do crime de homicídio simples é a fixada no artigo 131.º do CP, sem interferência, por conseguinte, da disposição normativa do artigo 86.º, n.º 3, da Lei 17/2009, de 6 de Maio, porquanto, como acima já ficou dito, a faca utilizada pelo arguido não constitui arma branca.

 

Preceitua o art. 40.º, do Código Penal, que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).

Abstractamente a pena é definida em função da culpa e da prevenção, intervindo, ainda, circunstâncias que não fazendo parte do tipo, atenuam ou agravam a responsabilidade do agente - art. 71.º, n.ºs 1 e 2 do CP.

A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Como refere Claus Roxin, em passagens escritas perfeitamente consonantes com os princípios basilares no nosso direito penal, «a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada.

A sensação de justiça, à qual corresponde um grande significado para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só uma pena de acordo com a culpabilidade.
Certamente a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva.
A pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais».[30]
Ao definir a pena o julgador nunca pode eximir-se a uma compreensão da personalidade do arguido, afim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformação com a personalidade suposta pela ordem jurídico-penal, exprimindo a medida dessa desconformação a medida da censura pessoal do agente, e, assim, o critério essencial da medida da pena[31].
A submoldura da prevenção geral é fortemente influenciada pela importância dos bens jurídicos a proteger, desempenhando uma função pedagógica através da qual se procura dissuadir as consequências nocivas da prática de futuros crimes e conseguir o reforço da crença colectiva na validade e eficácia das normas, em ordem à defesa da ordem jurídica penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva.
Por sua vez, a prevenção especial positiva ou de socialização responde à necessidade de readaptação social do arguido.


No processo de determinação da pena que impôs ao arguido, teceu o tribunal a quo as seguintes considerações:
«No caso em apreço, tendo presente a necessidade de prevenir o surgimento deste tipo de delitos, importa, desde já, não punir, exemplarmente, no sentido de fazer do arguido o bode expiatório da culpa de todos os outros crimes, antes de forma clara, segura, firme e veemente, para que a punição seja interiorizada pela sociedade e assim se satisfaça a prevenção geral, factor que servirá de patamar mínimo à medida concreta da pena e levando em consideração:
- a elevada intensidade dolosa, no seu aspecto volitivo, a nível de dolo directo;
- a indiferença, o desprezo manifestado, pelo arguido, em relação à vida humana, em relação a um seu semelhante, sem qualquer motivo que levasse à compreensão, ainda que remota, de tais actos, e nos transporta para um quadro de violência inusitada, tanto pelo meio empregue, pela forma de cometimento, de grosseira e ignóbil violação da mais elementar regra de convivência social, o respeito pela vida humana;
- o período de tempo em que persistiu o dolo, a actuação criminosa do arguido na sua globalidade, desferindo 23 facadas sobre a ofendida num curtíssimo espaço de tempo (…);
- a circunstância de o crime ter sido cometido à porta da casa da ofendida, lugar onde esta tinha razões para se crer em segurança, sendo que o pai da mesma presenciou, impotente, parte dos factos;
- a atitude do arguido em audiência de julgamento, tendo admitido os factos na sua globalidade e assumido as suas responsabilidades, sendo certo, porém, que a sua confissão, relevando em sede de apreciação da personalidade, não foi relevante para a descoberta da verdade;
- o facto do arguido apresentar integração em termos familiares, profissionais e sociais, nada o diferenciando, até ao momento do cometimento do crime, de qualquer cidadão normal, cumpridor da lei, como resulta do facto de não ter antecedentes criminais, o que é especialmente significativo em sede de não se imporem, no caso concreto, especiais cautelas ao nível da prevenção especial;
- a circunstância de, à data dos factos, o arguido apresentar quadro clínico-psiquiátrico compatível com o diagnóstico nosológico de Episódio Depressivo Grave, sem sintomas psicóticos, estado que, contudo, não interferiu com a sua capacidade de avaliar a ilicitude dos factos e/ou de se determinar de acordo com essa avaliação (…),
julgamos adequada e proporcional a aplicação ao arguido (….) da pena de 15 anos de prisão».
Não podemos estar mais de acordo com os elementos concretos considerados na determinação da pena, razão por que nos dispensamos, neste contexto, de outras considerações.
Todavia, sopesando as circunstâncias agravantes e atenuativas, afigura-se-nos algo excessiva a pena concreta; mais justa e adequada se mostra a pena de 14 anos de prisão, a qual respeitada o limite máximo correspondente à medida da culpa e a consideração equilibrada das exigências concretas, muito elevadas, de prevenção geral positiva ou de integração, ao mesmo tempo que responde equilibradamente às exigências de prevenção especial ou de socialização, de molde a que o arguido interiorize o profundo desvalor do seu acto, por forma a um retorno à convivência social sem risco de afrontamento dos padrões impostos pela ordem jurídica.

*
 6.6. A absolvição do arguido do imputado crime de ofensa à integridade física (qualificada) determina, por força do disposto no artigo 403.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, também a absolvição do mesmo em relação à parte do pedido cível que assenta a causa de pedir nos elementos típicos desse ilícito penal, uma vez que não estão presentes os pressupostos (cumulativos) do dever de indemnizar fixados no artigo 483.º do Código Civil.
Em conformidade, a indemnização a arbitrar aos demandantes reportar-se-á aos danos decorrentes do crime de homicídio.
*
III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam os Juízes que compõem a 5.ª Secção desta Relação de Q... em:
1. Na procedência parcial do recurso do arguido A…:
a) Absolvê-lo da prática do imputado crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, al. a) e 2 e 132.º, n.º 2, alínea h), todos do Código Penal;
b) Condená-lo, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio simples, p. e p. no artigo 131.º, do Código Penal, na pena de 14 (catorze) anos de prisão;
2. Julgar improcedentes os recursos do Ministério Público e do assistente B....
3. Alterar o acórdão recorrido, no que concerne ao pedido de indemnização civil, ficando o arguido/demandado condenado a pagar aos demandantes B… e C... as seguintes quantias:

a) € 1422,50, a título de danos patrimoniais;

b) € 70.000,00, a título de não danos patrimoniais correspondentes à perda do direito à vida por parte da falecida;

c) € 25.000,00, a título de danos não patrimoniais referentes ao sofrimento por que passou a falecida antes do seu decesso, sendo as quantias referidas em b) e c) a repartir pelos demandantes segundo as regras do direito sucessório;

d) A cada um dos demandantes, € 40.000,00, a título de danos não patrimoniais sofridos pela morte da sua filha D....

O arguido não suporta custas, tendo em conta o disposto no artigo 513.º, n.º 1, do CPP, na redacção dada pelo DL 34/2008, de 26-02.

Taxa de justiça pelo assistente, cujo quantitativo se fixa em 3 UC´s [artigos 515.º, n.º 1, al. b), do CPP, art. 8.º, n.º 5 e tabela anexa III, do Regulamento das Custas Processuais].


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Envie cópia do presente acórdão ao Tribunal de 1.ª Instância.

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 (Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário)
Q..., 3 de Agosto de 2011

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)


[1] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1134/1135.
[2] Processo n.º 2124/2002, in www.dgsi.pt.
[3] V.g., Acs. de 04-10-2006, proc. n.º 812/06-3.ª; 08-03-2006, proc. 185/06-3.ª; 04-01-2007, proc. n.º 4093-3.ª; e de 10-01-2007, proc. 3518/06-3.ª.
[4] Ac. n.º 140/2004, de 10-03-2004 (proc. n.º 565/2003) - DR, II Série de 17-04-2004.
[5] Ac. n.º 259/2002, de 18-06-2002 (proc. n.º 101/02) - DR, II Série de 13-12-2002.
[6] Aliás, basta consultar o folheto informativo referente a tal fármaco, o que se fez em www.folheto.net/cipralex/, para se chegar a tal conclusão inevitável. Referindo-se aos efeitos secundários consta de tal folheto que “…Ideação suicida e agravamento da sua depressão ou perturbação de ansiedade. Se se encontra deprimido e/ou tem distúrbios de ansiedade poderá, por vezes, pensar em se auto-agredir ou até suicidar. Estes pensamentos podem aumentar no início do tratamento com antidepressivos, uma vez que estes medicamentos necessitam de tempo para actuarem. Normalmente, os efeitos terapêuticos demoram cerca de duas semanas a fazerem-se sentir mas, por vezes, pode demorar mais tempo. Poderá estar mais predisposto a ter este tipo de pensamentos nas seguintes situações: se tem antecedentes de pensamentos de suicídio ou de auto-agressão.
Se é um jovem adulto. A informação proveniente de estudos clínicos revelou um maior risco de comportamento suicida em indivíduos adultos com menos de 25 anos com problemas psiquiátricos tratados com antidepressivos.
Se em qualquer momento vier a ter pensamentos no sentido de auto-agressão ou suicídio, deverá contactar o seu médico ou dirigir-se imediatamente ao hospital».
[7] Vide, a título meramente exemplificativo, os Acs. da Relação de Q... de 16-09-2009, proc. n.º 16/08.9JACBR.C1; 07-10-2009, proc. n.º 23/06.6FDCBR.C1; e 28-04-2010, proc. n.º 13/07.1GACTB.C1.
[8] Prof. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol. I, pág. 211.
[9] Cfr., Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, pág. 202-206.
[10] Cfr. Prof. Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, pág. 302.
[11] Paulo Saragoça da Mata, A livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Organizadas pela Faculdade da Universidade de Lisboa e pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, com a colaboração do Goerthe Institut, Almedina, pág. 261-279. 
[12] Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, Editorial Verbo, 1999, pág. 109.
[13] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª Ed. 1974 reimpressão, Q... Editora 2004, pág. 192.
[14] Cfr. acórdão da Relação de Guimarães de 27-04-2009, in www.dgsi.pt.
[15] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, pág. 837.
[16] Cfr., v.g., Acs. de 21-06-2007, proc. n.º 21-06-2007, e de 14-06-2007, proc. n.º 07P1895)
[17] In parecer publicado na “Colectânea”, Ano XII - 1987, Tomo 4, pág. 51/55.
[18] In CJ/STJ, Ano XIII, Tomo II/2005, pág. 244/249.
[19] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, idem, pág. 52. 
[20] Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Tipo de culpa e medida da pena, Almedina, pág. 63/64.
[21] Cfr. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, locais próprios.
[22] Código Penal Anotado, 2, 1996, pág. 43 e 47.
[23] In Comentário Conimbricense, Parte Especial, I, pág. 32.
[24] Cfr., entre outros, os acórdãos do STJ, de 12/06/97, proc. n.º 359/07, sumariado no Boletim Interno n.º 12/Junho/97, 11/12/97, BMJ 472, pág. 163, e de 7/12/99, BMJ 492, pág. 175.
[25] Ac. do STJ de 4/10/2001, citado no Ac. do mesmo Tribunal de 15/12/2005, publicado em http://www.dgsi.pt/jstj.
[26] Neste sentido, a título meramente exemplificativo, veja-se o Ac. do STJ de 10-12-2008, publicado, em sumário, no site www.dgsi.pt.
[27] Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, pág. 37.
[28] Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 352
[29] Prof. Figueiredo Dias, in parecer publicado na “Colectânea”, Ano XII - 1987, tomo 4, pág. 51/55.
[30] Derecho Penal - Parte General, Tomo I, Tradução da 2.ª edição Alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas), págs. 99/101 e 103.
[31] Prof. Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa, Direito Penal, pág. 184.