Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
512/09.0TBTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
LUGAR DA PRÁTICA DO FACTO
INTERPRETAÇÃO
Data do Acordão: 09/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TONDELA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 65º E 65º-A DO CPC; REGULAMENTO (CE) Nº 44/2001, DE 22/12/2000
Sumário: I – A competência do Tribunal, em geral, deve ser aferida em função do pedido formulado pelo autor e dos fundamentos (causa de pedir) que o suportam, ou seja, de acordo com a relação jurídica tal como é configurada pelo autor.

II- A competência internacional pressupõe que o litígio, tal como o autor o configura na acção, apresenta um ou mais elementos de conexão com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro.

III- Sempre que um litígio cai no âmbito de aplicação do Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22/12/2000 - relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial –, as suas normas prevalecem sobre as normas de direito interno que regulam a competência internacional (vg. as previstas nos artºs 65º e 65-Aº, do CPC), numa afirmação do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, pelo que será à luz das regras estatuídas nesse Regulamento, e só delas, que deverá ser averiguado se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes para julgar a acção que neles foi interposta.

IV- Da conjugação do disposto nos artºs 2º, nº 1, e 3º, nº 1, do Regulamento resulta que o legislador comunitário estabeleceu, em matéria de determinação de competência internacional, um critério geral (o domicílio do réu) e vários critérios especiais (plasmados secções 2ª a 7ª do Capítulo II), podendo o autor escolher, para instaurar a sua acção, indistintamente qualquer um dos tribunais cuja competência lhe seja atribuída pela aplicação de um desses critérios (e desde que o litígio não envolva uma situação do competência exclusiva prevista no artº 22º)

V- Um desses critérios especiais é aquele que se encontra plasmado no artº 5, nº 3, e segundo o qual, em matéria extracontratual, o réu, embora com domicílio do território num Estado-Membro, poderá ser também demandado perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.

VI- A interpretação da expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso” tem sido objecto de controvérsia; sendo que uma corrente de opinião vem defendendo como reportando-se ao lugar onde ocorreu o facto ou evento que desencadeou ou causou o dano, ou seja, que esteve na origem do dano, gerador, portanto, da responsabilidade civil extracontratual; enquanto que outra corrente vai no sentido do entendimento que aquela expressão abrange tanto o lugar onde se verifica o dano como o lugar onde ocorre o evento causal do mesmo, de tal forma que não havendo coincidência entre tais lugares o autor sempre poderá escolher entre cada um dos tribunais que tem jurisdição sobre tais lugares.

VII- Porém, mesmo na acepção dessa segunda corrente, tal interpretação deverá ser feita com um campo limitado, no que concerne ao lugar da verificação do dano, por forma a entender-se não ser de considerar-se como lugar da materialização do dano o Estado ou Estados onde se façam sentir as consequências danosas – incluindo as sequelas e os danos futuros – de um evento que causou um dano num outro Estado. Ou seja, acontecendo que em consequência de um dano produzido num dado lugar venham ainda a produzir-se outros danos (adicionais ou sequenciais) noutros lugares, só o dano ocorrido em primeiro lugar determinará a competência do tribunal.

VIII- Para além dos critérios especiais de competência legal (a par do critério geral), a competência de um tribunal pode ainda ser fixada por critérios de competência convencional, na sequência de acordos expressos (pactos atributivos de jurisdição) ou tácitos outorgados entre as partes (artºs 23º e 24º), como expressão do reconhecimento da autonomia da vontade das partes nesse domínio (e desde que não estejam em causa situações de competência exclusiva).

IX- À luz do artº 24º do Regulamento, um tribunal, situado num Estado-Membro, que careça inicialmente de competência, pode vir a tornar-se competente se o réu nele comparecer sem arguir (desde logo) a incompetência desse tribunal (prorrogação tácita da competência).

X- Critério esse que concorre com os outros critérios de competência legal previstos no Regulamento, e aos quais o autor continua a poder recorrer indistintamente para escolher o foro competente para julgar a sua acção.

XI- Sempre que o demandado ao comparecer não se limitar a arguir a excepção de incompetência do tribunal, defendendo-se também quanto ao mérito da causa, isso não será obstáculo a que, nesses termos, se considere afastada a prorrogação tácita da competência.

XII- Nos casos que caiam no âmbito do Regulamento, o juiz só está obrigado oficiosamente a conhecer e a declarar a incompetência internacional nas situações de competência exclusiva de um tribunal de um Estado-Membro atribuída por esse Regulamento e nas situações em que o réu domiciliado num Estado-Membro for demandado perante um tribunal de um outro Estado-membro e não compareça (artºs 25º e 26º).

XIII- Pelo que fora de tais situações, e no âmbito de aplicação do Regulamento, a incompetência internacional não é de conhecimento oficioso.

XIV- Tendo o A. instaurado num tribunal português acção declarativa contra duas rés (domiciliadas em Espanha) visando por elas ser indemnizado pelos danos patrimoniais – que têm a ver com despesas por si despendidas para a cura das lesões por si sofridas, com perdas salariais, enquanto esteve totalmente incapaz para o trabalho e com danos futuros, ainda não quantificados, decorrentes da incapacidade física de que ficou afectado mas cujo grau ainda não está determinado – e não patrimoniais por si sofridos em consequência de ter sido corporalmente atingido, pelos restos de um tiro de arma caça, por um indivíduo (que tinha transferido essa sua responsabilidade) que como ele se dedicava no mesmo local, sito em território espanhol, ao exercício da caça, aquele tribunal é internacionalmente incompetente (competência essa deferida ao foro espanhol) para julgar a acção em relação a uma das rés (a 2ª), que comparecendo se defendeu arguindo a incompetência do mesmo, e já competente para julgar a acção quanto à outra ré (a 1ª), que compareceu em tribunal para se defender sem arguir a incompetência do foro português, por força do critério ou princípio de prorrogação tácita da competência.

XV- Nesses termos enquanto a 2ª ré deve ser absolvida da instância, já quanto à 1ª ré a acção deve prosseguir os seus ulteriores trâmites por não poder beneficiar no caso daquele tipo de defesa apresentado por aquela 2ª ré.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. O autor, H… - casado, gerente comercial, residente em … -, instaurou (em 16/10/2009), no tribunal judicial da comarca de Tondela (1º Juízo), contra as rés, Companhia de Seguros … –, com sede em Madrid, Espanha (doravante também designada por 1ª ré), e M…, com sede em Espanha (doravante também designada por 2ª ré), acção declarativa condenatória, com forma de processo ordinário.

Para fundamentar essa acção, alegou, em síntese, o seguinte:

No dia 24/10/2004, aconteceu um acidente de caça, num coutado privado sito em Espanha, propriedade de I…, morador na … – Espanha.

Nesse dia, quando ali se dedicava ao exercício da caça, juntamente com outros amigos, foi atingido pelos restos de um tiro de uma arma de caça, propriedade de um tal … que também se encontrava no mesmo local e dedicando-se à mesma actividade.

Tal disparo provocou várias lesões corporais ao autor, que motivaram, com vista à sua cura, o seu imediato internamento em instituição hospitalar da cidade de Badajoz, em Espanha, tendo subsequentemente o autor sido assistido e prosseguido o seu tratamento em Portugal, nos termos e condições que melhor descreve na p.i..

Em consequência de tais lesões, provocadas pelo aludido tiro, o autor sofreu danos de natureza patrimonial (vg. a título de danos emergentes e de danos futuros – estes ainda não quantificados dado a necessidade autor ter ainda de se submeter a uma nova intervenção cirúrgica, e da qual depende ainda a fixação da incapacidade física com que ficou afectado) e não patrimonial, que ali descrimina, e pelos quais pretende ser indemnizado, nos termos a final por si peticionados.

Por essa indemnização entende deverem ser responsabilizados ambas as rés, a 1ª pelo facto de o tal … (que o atingiu) ter celebrado com ela um contrato de seguro obrigatório na sequência do qual ficava coberta a sua responsabilidade decorrente do exercício da aludida actividade de caça e da utilização da respectiva arma, e a 2ª pelo facto de ter, como tomadora, subscrito a respectiva apólice daquele seguro.

2. Ambas as rés contestaram.

2.1 A 1ª ré, defendendo-se por excepção e por impugnação.

No que concerne àquele 1º tipo de defesa, aduziu a excepção (peremptória) de prescrição do direito o autor, e defendendo depois ainda, à cautela, que o referido contrato de seguro por si celebrado não abrange ou cobre todos os danos cujo ressarcimento o autor reclama nesta acção.

Quanto ao 2º tipo de defesa, impugnou uma parte dos factos, à luz do artº 490, nº 3, do CPC.

2.2 Quanto à 2ª ré, defendeu-se igualmente por excepção e por impugnação.

No que concerne àquele 1º tipo de defesa, aduziu, além de invocar a sua ilegitimidade e a prescrição do direito o autor, a excepção (dilatória) da incompetência internacional do tribunal português para julgar a demanda.

3. O autor, em articulado de réplica/requerimento que subsequentemente apresentou, veio declarar desistir dos pedidos formulados nesta acção contra a 2ª ré.

4. De seguida, o srº juiz do processo proferiu despacho (a fls. 196/199), na sequência do qual (pronunciando-se exclusivamente sobre essa excepção) declarou a incompetência internacional do tribunal português para julgar a presente acção, absolvendo, em consequência, da instância ambas as rés.

5. Na se conformado com tal decisão, o autor dela apelou.

6. Nas correspondentes alegações de recurso que apresentou, o autor/apelante concluiu as mesmas nos seguintes termos:

...

Deve, assim, o despacho recorrido ser revogado e substituído por decisão onde se declare que o Tribunal Judicial da comarca de Tondela é internacionalmente competente.

7. Não foram apresentadas contra-alegações.

8. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação


A) De facto.

Com relevância para a compreensão, apreciação e decisão do presente recurso, haverá que atender aos factos que supra se deixaram descritos no ponto I do relatório que antecede.


***

B) De direito.

É sabido (entendimento que continua a manter-se com a actual reforma, aqui aplicável, introduzida ao CPC pelo DL nº 303/2007 de 24/8 - artºs 684, nº 3, e 685-A, nº 1) que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se fixa e delimita o seu objecto.

Importa também deixar, desde já, salientado que, tal como vem sendo dominantemente entendido, o vocábulo “questões” referido no artº 660, nº 2, do CPC, de que o tribunal deva conhecer, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às concretas controvérsias centrais a dirimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.”, e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).

Ora, face às conclusões das alegações do presente recurso e tal como bem decorre, aliás, do que supra se deixou exarado, a única questão que importa aqui decidir e apreciar traduz-se em aferir se o tribunal português onde foi instaurada a presente acção é ou não competente, em razão da nacionalidade, para julgar o litígio a que se reporta a mesma.

Coloca-se, assim, a questão de saber se o tribunal português é ou não internacionalmente competente para dirimir o litígio da acção a que se reporta o presente recurso.

No despacho recorrido entendeu-se que não, deferindo-se essa competência aos tribunais espanhóis (e por isso absolveu-se ambas rés da instância), ao contrário da tese defendida pelo autor, que preconiza a competência do tribunal português.

Apreciemos.

É sabido que um dos pressupostos processuais tem a ver com a competência do tribunal para julgar a causa que nele foi instaurada.

Competência essa que, em geral, deve ser aferida em função do pedido formulado pelo autor e dos fundamentos (causa de pedir) que o suportam, ou seja, de acordo com a relação jurídica tal como é configurada pelo autor, isto é, afere-se pelo quid disputatum ou quid dedidendum (cfr., por todos, Acs. do STJ de 4/3/2010, proc. 2425/07.1TBVCD.C1 e de 10/12/09, proc. 0980470, publicados in www.dgsi.pt/jstj; Ac. da RP de 2/3/2003, in “CJ, Ano XXVIII, T1 – 165”; Ac. da RLx. de 8/11/2005, in “Ano XXX, T5 – 84” e o prof. Manuel de Andrade, in “Noções Elementares do Processo Civil, Coimbra Editora, págs. 90 e 91”).

Sendo a competência a medida de jurisdição de um tribunal, ele é competente para o julgamento de certa causa quando os critérios determinativos da competência lhe atribuírem uma medida de jurisdição que seja suficiente para essa apreciação.

A competência assim delimitada pode chamar-se competência jurisdicional.

A aferição do tribunal competente através desses critérios funciona como um factor de legitimação dos poderes de que esse tribunal se pode servir para apreciar a admissibilidade da acção, instrui-la e julgá-la. O tribunal competente é simultaneamente o tribunal que tem legitimidade para fazer uso desses poderes, dos quais, aliás, não pode ser privado (sobre a proibição de desaforamento, cfr. artº 23º LOFTJ, aprovada pela Lei nº 3/99 de 13/1, em vigor para a comarca em questão).

Podendo a competência jurisdicional classificar-se quanto ao âmbito e quanto à origem. E, quanto ao âmbito, a competência pode ser interna ou internacional (cfr. art. 17º LOFTJ e arts 61º e 62º CPC).

Como escrevem o prof. Antunes Varela e outros (in “Manual de Processo Civil, 2ª ed. revista, Coimbra Editora, pág. 198”), “a competência internacional, aquela aqui em causa, designa a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídica internacionais”, tratando-se, no fundo, de “definir a jurisdição dos diferentes núcleos de tribunais dentro dos limites territoriais de cada Estado”. Refere-se, nas palavras do prof. Teixeira de Sousa (in “A Nova Competência dos Tribunais Civis, pág. 21”), a causas que comportam uma ou várias conexões com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro.

Pode, assim, dizer-se que uma questão de competência internacional se suscita (ou pode suscitar-se) quando a causa, através de qualquer dos seus elementos, tem conexão com outra ordem jurídica, além da portuguesa. Desse modo a competência internacional dos tribunais portugueses traduz-se na competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspectiva do ordenamento jurídico português, uma relação com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, apresentam também uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa.

É que as facilidades das deslocações de pessoas, bens e capitais potenciam o surgimento de litígios que apresentam, quer através das partes interessadas, quer através do seu objecto, conexões com várias ordens jurídicas.

Nesse âmbito e visando acautelar e abarcar tais situações, o nosso legislador ordinário nacional consagrou no artº 61º do CPC que “os tribunais portugueses têm competência internacional quando se verifique algumas das circunstâncias mencionadas no artº 65º” (no qual se enunciam situações que se apresentam em conexão com o nosso território e susceptíveis de, em geral, determinar a competência internacional dos tribunais portugueses).

Aos tribunais portugueses cabe, assim, aferir a sua própria competência internacional, de acordo com as regras de competência internacional vigentes entre nós.

Todavia, essas regras não são apenas as que constam do Código de Processo Civil. Sobre estas prevalecem as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas, enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português, bem como as que se inserem em regulamentos comunitários e leis especiais.

Isso decorre, não só do próprio texto constitucional (artº 8º), como do artº 65º do CPC, que enuncia as circunstâncias de cuja verificação depende a competência internacional dos tribunais portugueses, mas expressamente aí esclarecendo e advertindo, no seu proémio, que essas circunstâncias não podem prejudicar ou contrariar o “que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais”, o mesmo sucedendo, aliás, quando no artº 65º-A do CPC enuncia as situações de competência exclusiva dos tribunais portugueses.

Tal consubstancia o reconhecimento e a afirmação do primado do direito internacional convencional ao qual o Estado Português se encontre vinculado sobre o direito nacional, e particularmente, e tendo em conta o caso em apreço, do direito comunitário sobre o direito nacional. (cfr. os profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, págs. 83 e ss”).

Tal significa que o âmbito de aplicação daquela regras de competência internacional estabelecidas internamente pelo CPC é, assim, negativamente delimitado pelo das convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas e publicadas no jornal oficial, enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.

É indiscutível que, in casu, estaremos perante uma situação de competência internacional, dado que o litígio que suporta a acção apresenta elementos vários de conexão (vg. quanto à nacionalidade e residência do sujeitos processuais e ao lugar da ocorrência do acidente e dos danos que desencadearam a causa de pedir desta acção) com a nossa ordem jurídica e com a ordem jurídica Espanhola.

Estamos, assim, perante um litígio privado internacional, sendo que a competência do estado do foro competente para o julgar terá que ser encontrada à luz do que dispõe o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22/12/2000 que doravante designaremos somente por Regulamento.

Regulamento comunitário esse relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial, que entrou em vigor em 1/3/2002, e veio substituir entre os Estados Membros (com excepção da Dinamarca) a Convenção de Bruxelas de 1968, sendo obrigatório e directamente aplicável a todos os Estados Membros (excepto à Dinamarca) – entre os quais se figuram, como é sabido, Portugal e Espanha -, por força do Tratado que instituiu a então Comunidade Europeia, e aplicando-se a todas as acções instauradas a partir daquela data em que entrou em vigor (cfr. artºs 249º do Tratado, e 1º, 66º, 68º e 76º do Regulamento).

Sendo, assim, como já resulta do atrás expresso, sempre que um caso cai no âmbito da sua aplicação tal Regulamento as suas normas prevalecem sobre as normas de direito interno que regulam a competência internacional (vg. as previstas nos artºs 65º e 65º-A, do CPC), numa afirmação do primado do direito comunitário sobre o direito nacional de que já falámos; pelo será à luz das regras estatuídas nesse Regulamento, e só delas, que deverá ser averiguado se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes para conhecer da acção que neles foi interposta. (Cfr. ainda artºs 24º TCE e 8º, nº 3, da CRPort., e 3º, nº 2, do Regulamento, e, por todos, os Acs. do STJ de 4/3/2010, proc. 2425/07.1TBVCD.C, de 10/12/2009, proc. 0980470, e de 25/11/2004, proc. 04B3758, publicados in www.dgsi.pt/jstj; Ac. da RLx. de 8/11/2005, in “CJ., Ano XXX, T5 – 84”; Ac. da RC de 27/11/2007, “Agravo nº 9/07, 3ª sec.”, disponível também no site desta Relação; Luís de Lima Pinheiro, in “Direito Internacional Privado, Competência Internacional e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras, Vol. III, págs. 70/71” e Dário Moura Vicente, no estudo “Competência Judiciária e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras no Regulamento (CE) nº44.2001”, publicado na revista “Scientia Iurídica, nº 293, págs. 347/379”).

Não será demais enfatizar que os actos normativos comunitários, entre os quais figuram os Regulamentos, integram a ordem jurídica interna, com os efeitos decorrentes dos princípios da aplicabilidade directa, efeito directo e primado.

O princípio da primazia hierárquica do direito comunitário é hoje incontroverso e tem sido reafirmado pelo TJCE desde o caso Costa v. ENEL (acórdão de 15/7/64, no proc. nº 6/64).

O âmbito de aplicação do Regulamento nº 44/2001 é delimitado em função da matéria civil e comercial - (artº 1º) e dos sujeitos, por ser aplicável, em princípio, quando o réu tenha domicílio ou sede num dos Estados-Membros, sendo irrelevante a nacionalidade da parte (cfr. artºs. 2º nº 1, 3º nº 1, e 4º nº 1).

Na verdade, depois de no artº 1º, nº 1, o Regulamento estipular que se aplica em matéria civil e comercial, independentemente da natureza de jurisdição, no capítulo II, dedicado à competência, consagra, na secção 1ª, o seguinte:

Artº 2º, nº 1: “Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse estado” (sublinhado nosso).

Artº 3º:

Nº 1: “As pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro só podem ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo”.

Nº 2: “Contra elas não podem ser invocadas, nomeadamente, as regras de competência nacionais constantes do anexo I”. (sublinhado nosso). Refira-se, desde já, que, compulsando o referido anexo, no que concerne a Portugal essas regras de competências são aquelas que se encontram plasmadas nos artºs 65º e 65-Aº do CPC e no artº 11º da C. Proc. de Trabalho.

Da conjugação de tais normativos, resulta que o legislador comunitário estabeleceu, em matéria de competência internacional, um critério geral e critérios especiais.

Como critério geral, o legislador comunitário elegeu, desde logo, o domicílio do demandado (localizado num dos Estados-Membros) como factor de conexão relevante para determinação da competência internacional (à semelhança do que já sucedia aquando da Convenção de Bruxelas).

Significa tal que sobre a competência (internacional) directa para as acções declarativas, o Regulamento estabelece como critério geral o do domicílio do demandado, sendo, por isso, competente, coo regra, o tribunal do domicílio do réu (artº 2º, nº 1).

No que concerne às sociedades ou outras pessoas colectivas ou associações de pessoas singulares e colectivas, o legislador comunitário enunciou, em forma alternativa, como critério de domicílio o lugar onde tiverem quer a sua sede social, a sua administração central ou o seu estabelecimento principal (cfr. artº 60º), e no que concerne às pessoas singulares remeteu para a lei interna para saber se uma parte tem ou não domicílio no Estado-Membro (artº 59º, nºs 1 e 2) - critério de determinação esse que entre nós se encontra consagrado no artº 82º do C. Civil.

Porém, esse critério, por força do estatuído no citado artº 3, nº 1, não é absoluto, pois com ele, ou seja, com a regra geral do domicílio do réu, concorrem os critérios especiais de competência, previstos nas secções 2ª a 7ª do Capítulo II, o que permite concluir poder o autor escolher qualquer dos tribunais determinados pela aplicação de ambos os critérios (gerais e especiais). Ou seja, se o réu estiver domiciliado num Estado-Membro, pode ser demandado tanto no tribunal desse Estado, como nos tribunais de um outro Estado-Membro, em caso de verificação de alguns dos factores de conexão definidos ou previstos nos artºs 5º a 24º do Regulamento (os quais se encontram inseridos nas já referidas secções 2ª a 7ª do seu Capítulo II).

E esses critérios especiais podemos dividi-los entre aqueles que dizem respeito as regras de competência legal e aqueles que dizem respeito a regras de competência convencional.

No primeiro grupo inserem-se os artºs 5º a 22º (englobando as secções 2ª a 6ª) e os artºs 23º e 24º (integrados na secção 7ª).

Ou seja, nesse primeiro grupo encontram-se os normativos que estabelecem regras especiais de competência legal em função da verificação dos elementos de conexão neles referidos, enquanto que naquele segundo grupo a competência internacional do foro resulta da convenção, expressa (artº 23º) ou tácita (artº 24º), das partes, naquilo que também se designa por extensão ou prorrogação de competência, como expressão do reconhecimento da autonomia da vontade das partes para poderem também elas, nesse domínio, estabelecer a competência do foro (embora sujeitas a limitações, tais como não se tratar de um caso que caia no âmbito da competência exclusiva do foro atribuída pelo Regulamento – cfr. artºs 22º, 23º, nº 5, e 35º, nº 1. Ou seja, a regra da competência exclusiva dos tribunais de um Estado-Membro conferida pelo artº 22º do Regulamento afasta, desde logo, a aplicação quer do critério geral, quer de qualquer um dos critérios especiais).

No que concerne à competência convencional tácita ela encontra-se, como atrás acabámos de referir, plasmada no artº 24º do Regulamento onde se estatui que “para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro perante o qual o requerido compareça”, dispondo-se, todavia, no 2º parágrafo que “esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artº 22º”.

Resulta, assim, e desde logo, de tal normativo comunitário que muito embora uma acção tenha sido instaurada no tribunal de um Estado-Membro que, em princípio, não era competente, todavia, a comparência nele da parte (do réu) torna o mesmo competente, a não ser que ser que essa comparência se destine a arguir tal incompetência.

Nesse caso a competência do tribunal ocorre por força de um acordo tácito ocorrido no decurso da acção, ou seja, tudo se passa como se o réu, em acordo com o autor, tivesse aceitado tal competência (que assim fica determinada).

Já vimos que isso só não sucederá se o réu ao comparecer não arguir tal incompetência. Muito embora conste da letra de tal normativo que essa comparência deva ter como único objectivo arguir a incompetência do tribunal, todavia, vem sendo entendido dominantemente - numa interpretação autónoma do conceito de “comparência” -, que sempre que o demandado ao comparecer não se limitar a arguir a excepção de incompetência do tribunal, defendendo-se também quanto ao mérito da causa, isso não será obstáculo a que, nesses termos, se considere afastada a prorrogação tácita da competência, na esteira, aliás, do que nesse domínio já vinha sendo defendido pelo TJCE a propósito de norma similar do artº 18º da Convenção de Bruxelas (cfr., entre outros, e nesse sentido, Luís de Lima Pinheiro, in “Ob. cit., pág. 147”, Sofia Henriques, in “Os Pactos de Jurisdição no Regulamento (CE), nº 44, 2001, págs. 98/99” e Acs da RC de 12/6/2007 e de 27/11/2007, disponíveis em www.dgsi.pt.)

Importa também salientar que na secção 8ª, referente à verificação da competência e sua admissibilidade, o Regulamento estatui no seu o artº 25º, nº 1, que “o juiz de um Estado-Membro, perante o qual tiver sido proposta, a título principal, a acção relativamente à qual tenha competência exclusiva um tribunal de um outro Estado-Membro por força do artº 22º, declarar-se-á oficiosamente incompetente”, e no seu artº 26º, nº 1, que “ quando o requerido domiciliado no território de Estado-Membro for demandado perante um tribunal de outro Estado-Membro e não compareça, o juiz declarar-se-á oficiosamente incompetente se a sua competência não resultar das disposições do presente regulamento.” (sublinhado nosso)

Ora, resulta da conjugação de tais normativos (os únicos com inserção sistemática na secção 8ª dedicada à verificação da competência) - e em confronto ainda com os demais, espacialmente com aquele citado artº 24º - que nos casos que caiem na “alçada” do Regulamento, o juiz só está obrigado a oficiosamente a conhecer e a declarar a incompetência internacional nas situações de competência exclusiva de um tribunal de um Estado-Membro e nas situações em que o réu domiciliado num Estado-Membro for demandado perante um tribunal de um outro Estado-membro e não compareça.

Donde seja de extrair a conclusão que, fora dessas duas situações, o juiz, em casos que caiam no âmbito de aplicação do Regulamento, não está obrigado a conhecer oficiosamente da incompetência internacional, ou seja, e por outras palavras, que fora de tais situações, e no âmbito de aplicação do Regulamento, a incompetência internacional não é de conhecimento oficioso.

Aqui chegados, e tendo por base as considerações de cariz teórico-técnico que se deixaram expandidas, avancemos de forma mais incisiva para a resolução do problema aqui em equação.

É inquestionável que o autor e as rés têm o seu domicílio em território de Estados-Membros da Comunidade Europeia/União Europeia, ou seja, respectivamente, em Portugal e em Espanha, como indiscutível é que a presente acção tem natureza civil e que a mesma foi instaurada depois da entrada em vigor do Regulamento, sendo assim (como supra já deixámos expresso) este aqui aplicável e sendo exclusivamente à sua luz que a problemática da resolução de saber qual o tribunal que internacionalmente é competente para julgar a referida acção terá que ser aferida.

Já atrás vimos que à luz de tal Regulamento, e fora dos casos de competência exclusiva (cfr. artº 22º) – que no caso não ocorre -, os réus poderão ser demandados indistintamente em qualquer um dos tribunais cuja competência (internacional) resulte da aplicação quer do critério geral, quer de alguns dos critérios especiais previstos nas secções 2ª a 7ª (artºs 5º a 24º, excluído o tal artº 22º da competência exclusiva).

Pelo critério geral (inserto no artº 2º, nº 1), do domicílio do demandado, seria competente o foro espanhol, já que é em Espanha que as rés têm o seu domicílio.

Viremo-nos, agora, para os critérios especiais, previstos também no Regulamento.

Parece ser claro que, à luz dos fundamentos da acção, nos encontramos perante um caso de responsabilidade civil extracontratual (por factos ilícitos), sendo com base nela que o autor fundamenta a razão de ser da sua pretensão indemnizatória aí formulada.

Sendo, assim, após o artº 5º começar por estatuir que uma pessoa, com domicílio em território de um Estado-Membro, poderá também ser demandada noutro Estado-Membro, dispõe depois no seu nº 3 que em matéria extracontratual essa demanda deverá ocorrer no “tribunal onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”.

Tal normativo (artº 5º, nº 3) corresponde à redacção que já constava (também sob o artº 5º, nº 3) quer da Convenção de Bruxelas, quer da Convenção de Lugano, com o acrescento apenas da expressão “ou poderá”.

Com tal acrescento, ou seja, com aquela formulação utilizada o legislador comunitário quis tornar claro que tal critério de competência se aplica não só nos casos em que efectivamente ocorreu um facto danoso mas também naqueles em que esse facto pode ainda ocorrer. Esta 2ª hipótese de previsão (que foi acrescentada) releva essencialmente para efeitos de abranger medidas preventivas, tais como acções de abstenção condutas ilícitas (cfr., Luís de Lima Pinheiro, in “Ob. cit., pág. 85”, Exposição de Motivos da Proposta da Comissão, 14. e o cons. Neves Ribeiro, in “Processo Civil da União, pág.70”).

Tal critério especial de competência é particularmente justificado pela proximidade do foro do lugar onde ocorreu o facto danoso relativamente às provas e pela coincidência entre este foro e o direito aplicável à responsabilidade extracontratual.

Não vem sendo, todavia, pacífica a interpretação a dar à expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”.

A tal propósito, podemos sintetizar tal controvérsia em duas correntes de opinião.

Uma - mais arreigada à letra da lei (e portanto suportada no elemento literal e da interpretação feita com base nele) - defendendo que “o facto danoso” deve ser entendido como o facto ou evento que desencadeou ou causou o dano, ou seja, que esteve na origem dos dano, e gerador, portanto, da responsabilidade civil extracontratual, e que está normalmente associado a um facto dominável ou controlável pela vontade humana, pelo que o tribunal competente é aquele do lugar onde esse facto ocorreu. (Nesse sentido, cfr., por todos, Acs. da RC de 1/6/2004 e de 19/12/2000, respectivamente, in “CJ, Ano XXIX, T3 – 21” e in “Agravo de 19/12/2000”).

Um outra corrente - alicerçada na jurisprudência do TJCE e na interpretação autónoma que dela vinha sido feita por esse Tribunal - entendendo que aquela expressão abrange tanto o lugar onde se verifica o dano como o lugar onde ocorre o evento causal do mesmo, de tal forma que não havendo coincidência entre tais lugares o autor sempre poderá escolher entre cada um dos tribunais que tem jurisdição sobre tais lugares, dada a estreita conexão que têm com o litígio, não se justificando a exclusão de qualquer deles. Porém, tal interpretação deverá ser feita com um campo limitado, no que concerne ao lugar da verificação do dano, por forma a entender-se não ser de considerar-se como lugar da materialização do dano o Estado ou Estados onde se façam sentir as consequências danosas – incluindo as sequelas e os danos futuros – de um evento que causou um dano num outro Estado. Ou seja, embora seja em princípio de admitir que o referido conceito possa abranger quer o lugar onde se produziu o dano, quer o lugar do evento que o produziu, não pode, todavia, ser interpretado de modo extensivo no sentido de abranger ou englobar todo e qualquer lugar onde se possam fazer sentir as consequências danosas de um facto que causou já um dano efectivamente ocorrido noutro lugar. De tal forma que, sintetizando tal corrente de opinião, deve concluir-se que a interpretação do referido conceito, inserto no artº 5, nº 3, do Regulamento, deve se feita no sentido de abranger tanto a competência do tribunal do lugar onde ocorreu o dano, como a competência do tribunal do lugar onde ocorreu o evento/facto causal dele. Porém, acontecendo que, em consequência de um dano produzido num dado lugar, venham ainda a produzir-se outros danos (adicionais) noutros lugares, só o dano ocorrido em primeiro lugar determinará a competência do tribunal. (Cfr., a propósito, entre outros, Acs. do TJCE de 30/11/1976, no caso Bier, in “CTCE 1976, 677, nºs 15 e ss”; e de 27/10/1998, no Caso Réunion européenne, in “CTCE, 1998, I-6511, nº 27 e s”s, de 10/6/2004, relatado pelo “nosso” conselheiro Cunha Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt.; de 19/5/95, relatado pelo “nosso” conselheiro Moitinho de Almeida; Ac. do STJ de 3/3/2005, in “CJ, Acs. do STJ, Ano XIII, T1, págs. 116/117” e Luís de Lima Pinheiro, in “Ob. cit., págs. 85/87”).

Ora, posto isto, e independentemente da corrente de opinião que se perfilhe, sobre a interpretação a dar ao conceito expressivo inserto no artº 5º, nº 3, do Regulamento (“tribunal onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”), é patente que, também à luz da aplicação do critério especial previsto em tal normativo comunitário, é competente o foro espanhol para julgar a presente acção.

Na verdade, foi no território espanhol que ocorreu o evento causal do dano gerador da responsabilidade civil extracontratual (por facto ilícito) na qual se fundamenta o autor para exercitar na acção a sua pretensão indemnizatória. Ou seja, foi nesse território que o autor foi atingido, de forma ilícita, corporalmente pelos restos de um tiro de arma caça dado por um indivíduo que como ele se dedicava no mesmo local ao exercício da caça.

Foi também nesse território que ocorreu o primeiro dano sofrido pelo autor, traduzido em lesões que puseram em causa a sua integridade física e levaram a que logo ali fosse transportado para um hospital espanhol e ali fosse internado a fim de receber a primeira assistência médica (a qual passou inclusive por uma intervenção cirúrgica a que foi submetido).

Só alguns dias depois regressou a Portugal, onde continuou a receber assistência médica com a vista a obter cura definitiva de tais lesões, sendo que a sua pretensão indemnizatória visa o ressarcimento de danos de natureza patrimonial (vg. relacionados com as despesas que teve de suportar com o tratamento de tais lesões, com os rendimentos/salários que deixou de auferir durante o período temporal em que ficou de baixa médica devido à lesões sofridas e bem com danos futuros ainda não quantificados dado a necessidade de ter ainda de se submeter a uma nova intervenção cirúrgica, e da qual dependerá ainda a fixação da incapacidade física com que ficou afectado) e não patrimonial, que sofreu devido à sobredita conduta ilícita. Danos esses que não são mais do que consequências ou sequelas daquele evento que causou um primeiro efectivo dano (quer a nível da ofensa à integridade física, traduzido nas lesões causadas, quer a mesmo nível dos primeiros danos de natureza não patrimonial) também ocorrido em território espanhol, e que lhe são subsequentes, ou seja, que se lhe sucederam.

Volta a enfatizar-se que caindo um caso, como sucede com o litígio da presente acção, no âmbito da aplicação do Regulamento é exclusivamente à luz das suas regras que deverá ser determinada a competência (internacional), e não também através do recurso às regras nacionais (vg. do artº 65º do CPC).

Não tendo sido celebrado, entre as partes, qualquer pacto expresso de atribuição de jurisdição, será que no caso ocorre alguma situação de extensão ou prorrogação tácita de competência de que fala o acima citado artº 24º do Regulamento?

Já vimos que ela ocorre quando muito embora uma acção tenha sido instaurada no tribunal de um Estado-Membro que, em princípio, não era competente, todavia, a comparência nele do réu torna o mesmo competente, a não ser que essa comparência se destine a arguir, de imediato, tal incompetência.

Como acima já deixámos expresso, nesse caso a competência desse tribunal ocorre por força de um acordo tácito ocorrido no decurso da acção, ou seja, tudo se passa, à luz do referido normativo comunitário, como se o réu, em acordo (tácito) com o autor, tivesse aceitado tal competência (que assim fica determinada).

Tendo esta acção sido instaurada no foro português contra as duas rés, acontece que ambas elas nele compareceram. Porém, enquanto a 2ª ré (C…) o fez arguindo, além de outro tipo defesa, a incompetência, em razão da nacionalidade, do tribunal para conhecer do litígio, já a 1ª ré (a Companhia de Seguros …) apresentou a sua defesa sem que dela conste a arguição da incompetência (internacional) do tribunal português para julgar a acção. Comportamentos processuais esses que devem ser interpretados no sentido de que a 1ª ré, ao contrário da 2ª ré, aceitou a competência do tribunal português para julgar a acção (não obstante o mesmo não ser à partida competente) – tudo se passando como se tivesse acordado com o autor tal competência -, sendo claro que não estamos perante nenhuma situação de competência exclusiva (artº 22º).

Sendo, assim, que consequências jurídicas se devem extrair de tais comportamentos?

No que concerne à 2ª ré, pela aplicação quer do critério geral, quer dos critérios especiais, resulta claro não ser o foro português, mas sim o espanhol, competente para julgar a acção em relação a si.

Já em relação à 1ª ré, a competência (internacional) do foro português (para julgar a acção em relação a si) advêm-lhe unicamente em resultado da aplicação do critério especial da prorrogação tácita da competência fixado no artº 24º do Regulamento (pois que à luz da aplicação do critério geral do domicílio do demandado inserto no artº 2º, nº 1, ou do critério especial previsto no artº 5º, nº 3, essa competência estava atribuída à jurisdição espanhola).

E a questão que se poderia, agora, colocar traduz-se em saber se à 1ª ré poderia neste caso aproveitar aquela defesa da 2ª ré (pois o inverso é, no caso, manifestamente inviável), por forma a ser “arrastada” pelas consequências da declaração da incompetência do tribunal português em relação à última?

A nossa resposta é negativa, e é alicerçada na seguinte ordem de razões:

Como se extrai do que supra deixámos expresso, a competência que advém do citado artº 24º é uma competência de natureza convencional, já que resulta de um acordo tácito das partes (sendo que a que advém do artº 23º resulta, como vimos, de um acordo expresso, ou seja, dos chamados pactos atributivos de jurisdição), ao contrário daquela que resulta da aplicação quer do critério geral, quer dos demais critérios especiais fixados no Regulamento, que é uma competência legal.

Depois nenhum obstáculo legal ou contradição existem em que o tribunal português seja considerado incompetente para julgar a acção em relação à 2ª ré, e já não em relação à 1ª ré.

Desde logo porque essa competência resulta da aplicação de critério especialmente previsto no Regulamento (que se limita a atribuir a competência a um tribunal, inicialmente incompetente, por força da simples comparência de uma parte que não aduz tal incompetência).

Ora se tal acordo (ainda que tácito) de atribuição de competência é legalmente válido, nada impede o julgamento da acção por esse tribunal em relação às partes que participaram nesse acordo.

Agora pense-se a hipótese inversa: numa acção que envolve três partes, duas delas haviam celebrado (de forma expressa) um pacto atributivo de competência (à luz do artº 23º) a outro tribunal (de um Estado-Membro) que seria, não fora esse pacto, incompetente, à luz dos outros critérios (o geral e os especiais) previstos no Regulamento, para julgar a acção que nele foi intentada. Será que a outra parte (a terceira), que não o assinou ou aderiu a tal pacto, ficava vinculada a ele e à competência do tribunal por ele determinada, e assim impedida de arguir a sua incompetência? Parece-nos ser claro que não.

E tanto mais, diremos por fim, que no caso em apreço, tendo em contra os termos em que o autor configurou a acção, estaremos na presença de uma situação de litisconsórcio voluntário e não necessário.

Perante o exposto, ter-se-á, assim, de julgar o tribunal português onde a presente acção foi interposta incompetente (internacionalmente) para a julgar em relação à 2ª ré, que em consequência deverá ser absolvida da instância, e competente para a julgar em relação à 1ª ré, devendo, em consequência, quanto a ela os autos prosseguir os seus ulteriores trâmites legais (cfr. artºs 101º, 288º, nº 1 al. a), 493º, nº 2, e 494º, do CPC).

Diga-se, por fim, que muito embora o Regulamento não concretize as consequências da incompetência do tribunal, deverá, para esse efeito, recorrer-se à aplicação das normas do direito interno do Estado do foro, pelo que a incompetência por violação das regras de competência directa nele positivadas configura um situação de incompetência absoluta conducente à absolvição da instância.

Termos, pois, em que apenas se decide julgar parcialmente procedente o recurso, revogando-se parcialmente a decisão recorrida.


III- Decisão


Assim, em face do exposto, e na parcial procedência do recurso e parcial revogação da decisão da 1ª instância, acorda-se em:

a) Julgar o tribunal português internacionalmente incompetente para julgar a presente acção no que concerne à 2ª ré, M…, absolvendo-se, em consequência, a mesma da instância.

b) Julgar o tribunal português internacionalmente competente para julgar a presente acção no que concerne à 1ª ré, Companhia de Seguros …, devendo, em consequência, os autos prosseguir contra ela os seus ulteriores trâmites legais.

Custas pelo autor, na proporção do seu decaimento e que para o efeito fixo em ½.


Isaías Pádua (Relator)
Teles Pereira
Manuel Capelo