Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
698/09.4TBLSA-Z.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
ADMINISTRADOR
RESPONSABILIDADE CIVIL
PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES
ABUSO DE DIREITO
DECISÃO SURPRESA
Data do Acordão: 03/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.72, 210, 213 CSC, 334, 483 CC, 3, 615 CPC
Sumário: 1. - Há decisão-surpresa quando o Tribunal adota uma solução jurídica que as partes, embora patrocinadas por advogados (especialistas), não previram nem tinham, segundo a diligência exigível, obrigação de prever.

2. - Em ação indemnizatória por facto ilícito, discutindo-se os pressupostos da responsabilidade civil, designadamente a ilicitude, sendo questão central a da legalidade do reembolso, pelo modo como efetuado, de prestações suplementares no âmbito societário, envolvendo um sócio e dois ex-sócios, inexiste decisão surpresa se o Tribunal, obrigado a indagar, interpretar e aplicar as regras de direito (art.º 5.º, n.º 3, do NCPCiv.), procurou e aplicou o regime legal da restituição das prestações suplementares (art.º 213.º do CSCom.).

3. - As sociedades, no exercício da sua atividade empresarial, estão sujeitas a um conjunto de normas jurídicas de natureza imperativa, que se impõem aos seus gerentes e cuja infração é geradora de ilicitude, o que pode ocorrer com normas da Lei Geral Tributária, como a do respetivo art.º 63.º-C, obrigando a que a sociedade possua conta bancária através da qual devem ser, exclusivamente, movimentados os pagamentos e recebimentos respeitantes à atividade empresarial desenvolvida, bem como efetuados todos os movimentos relativos a suprimentos, outras formas de empréstimos e adiantamentos de sócios, bem como quaisquer outros movimentos de ou a favor dos sujeitos passivos.

4. - A natureza tributária desta norma imperativa não impede que a sua infração faça incorrer o gerente em conduta ilícita perante a própria sociedade.

5. - As prestações suplementares (art.ºs 210.º a 213.º do CSCom.), que têm natureza distinta dos suprimentos – estes são vistos como empréstimos à sociedade ou, pelo menos, negócios jurídicos equiparáveis, a que são aplicáveis as regras respetivas –, constituem atribuições em dinheiro determinantes de um implemento do património social, incrementando o capital (o chamado “capital flutuante”, embora diferenciado do capital social fixo, restituível quando desnecessário, sem vencimento de juros).

6. - O ónus da prova dos factos de que depende a exclusão de responsabilidade dos gerentes ou administradores da sociedade (art.º 72.º, n.º 2, do CSCom.) impende sobre aqueles.

7. - O único sócio e gerente de sociedade que, logo após a aquisição das respetivas quotas sociais, dispõe de elevado montante patrimonial social – valor de € 80.000,00, para reembolso aos ex-sócios (transmitentes das quotas) de prestações suplementares, sem acordo prévio nesse sentido –, que lhe cabia proteger, com subsequente insolvência da sociedade (cerca de um ano volvido) sob a sua gerência, não age segundo critérios de racionalidade empresarial.

8. - É de concluir pela existência de atuação conjugada e dolosa dos três réus (aqueles sócio-gerente e ex-sócios transmitentes) se vem provada uma decisão conjunta, bem como comunhão de esforços na sua execução, para subtração, conseguida, de elevado montante do caixa social, inobservando norma imperativa de cariz tributário, com intenção, por todos comungada, de reembolsar os réus ex-sócios no montante de € 80.000,00 de prestações suplementares.

9. - Tal reembolso, à custa do património social, cujo sacrifício viria a desembocar naquela insolvência, configura abuso do direito por parte dos ex-sócios transmitentes, por exercício em termos clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico dominante, atentando contra a regra de conduta da boa-fé, assim desencadeando obrigação indemnizatória pelo dano causado, em solidariedade com o réu sócio-gerente, que responde por facto ilícito.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:



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I – Relatório ([1])

“A MASSA INSOLVENTE DE J (…), LDA.”, com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa de condenação, ao tempo sob a forma de processo ordinário (em 04/06/2012), contra

1.º - A (…) e mulher,

2.ª – E (…), ambos com os sinais dos autos, e

3.º - J (…), também com os sinais dos autos,

pedindo que os RR. sejam condenados, solidariamente, a reintegrar no património da A. quantia de € 200.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, vencidos, desde 23/03/3009 (data do depósito do cheque em questão), e vincendos, até efetivo e integral pagamento, sendo que até à data de instauração da ação ascendem a € 25.621,92,

Para tanto, alegou, em síntese:

- o 1.º e a 2.ª RR. (marido e mulher) foram sócios da sociedade “J (…) Lda.”, tendo a 2.ª R. desempenhado as funções de gerente dessa sociedade entre 23/06/1997 e 10/02/1999, data em que renunciou à gerência, sendo substituída pelo 3.º R.;

- em 11/02/2009 os 1.º e a 2.ª RR. cederam as respetivas quotas ao 3.º R., vindo a sociedade a ser declarada insolvente por sentença proferida em 08/02/2010, transitada em julgado em 24/03/2010;

- em 19/12/2008 os 1.º e a 2.ª RR., na qualidade de únicos sócios daquela sociedade, declararam vender à sociedade “In(…)” oito prédios, pelo preço global de € 476.257,95, pago de forma escalonada mas integralmente;

- a última parte do preço, de € 200.000,00, foi paga por cheque, datado de 23/03/2009, emitido sobre o BES e à ordem da sociedade agora insolvente (A.);

- contudo, nunca esse cheque entrou no caixa da sociedade, vindo antes a ser endossado e depositado numa conta terceira, titulada pelos 1.º e a 2.ª RR.;

- os três RR., em decisão conjunta e comunhão de esforços, subtraíram do caixa social tal quantia de € 200.000,00, que utilizaram, ilicitamente, em proveito próprio, sendo por isso solidariamente responsáveis pelo seu reembolso, desde a data em que o cheque foi depositado.

Os RR. contestaram conjuntamente, excecionando a caducidade do direito de ação e impugnando diversa factualidade alegada pela A.. Assim, invocaram que, apesar de o cheque de € 200.000,00 ter sido depositado em conta dos 1.º e a 2.ª RR., o respetivo montante foi creditado na contabilidade da sociedade e destinado ao pagamento de obrigações já vencidas da mesma, sendo que tais RR. haviam acordado, anteriormente à celebração da cessão de quotas, e como condição da mesma, o seu reembolso pelas prestações suplementares e empréstimos efetuados, motivo pelo qual o cheque lhes foi endossado.

Concluíram pela improcedência da ação e sua absolvição do pedido.

Replicou a A., pugnando pela improcedência da matéria de exceção deduzida.

Em saneador-sentença, foi julgada procedente a exceção da caducidade, com absolvição dos RR. do pedido, mas a A. recorreu, vindo a Relação de Coimbra a revogar a decisão recorrida, julgando improcedente aquela exceção e ordenando o prosseguimento do processo ([2]), o que, em revista, veio a ser confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça (doravante, STJ) ([3]). 

Dispensada a audiência prévia, foi saneado o processo e foram enunciados o objeto do litígio e os temas da prova, sem reclamações.

Procedeu-se depois à audiência de julgamento, com produção das provas, seguida da prolação de sentença (datada de 19/10/2016), julgando a ação parcialmente procedente, nos seguintes termos:

“… condeno solidariamente os réus a pagar à autora a quantia de € 81.323,43 (…), acrescida de juros à taxa legal, atualmente de 4%, vencidos desde a citação, e vincendos até integral pagamento, absolvendo-os do remanescente do pedido.” (cfr. fls. 460 a 483, com negrito subtraído).

Da sentença vieram todos os RR. – inconformados somente em matéria de direito – interpor recurso conjunto, apresentando alegação, culminada com as seguintes

(…)

A A./Recorrida contra-alegou, pugnando pela total improcedência do recurso.


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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo ([4]), tendo neste Tribunal ad quem sido mantido o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação recursória, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.


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II – Âmbito do Recurso

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor e aqui aplicável (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([5]) –, está em causa na presente apelação saber ([6]):

a) Se ocorre nulidade da sentença, por falta da fundamentação e omissão de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, al.ª b) e d), do NCPCiv.);

b) Se foi proferida decisão-surpresa (art.º 3.º, n.º 3, do NCPCiv.);

c) Se está (in)demonstrado o requisito da ilicitude, de que depende a obrigação indemnizatória por facto ilícito (art.º 483.º, n.º 1, do CCiv.);

d) Se ocorre, ou não, abuso do direito (art.º 334.º do CCiv.);

e) Se está excluída a responsabilidade do 3.º R..


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III – Fundamentação

         A) Matéria de facto

Na 1.ª instância foi considerada – de forma incontroversa – a seguinte factualidade como provada:

«1. J (…), Lda. é uma sociedade comercial por quotas registada na Conservatória do Registo Comercial da Lousã sendo titular do NIPC (...), com sede em (...), freguesia e concelho da Lousã, tendo sido constituída em 11.03.1983.

2. O seu capital social é de € 99.759,58, representado por duas quotas, no valor singular de € 49.879,79, ambas adquiridas pelo 3.º réu em 11.02.2009, sendo que anteriormente – e desde a constituição societária – cada uma das quotas pertencia aos dois primeiros réus.

3. O seu objeto social consiste no transporte e comercialização de quaisquer produtos ou mercadorias e comércio de materiais de construção.

4. A 2.ª ré exerceu o cargo de gerente da sociedade desde 23.06.1997, tendo em 10.02.2009 renunciado à gerência e sido substituída pelo 3.º réu.

5. Por sentença proferida em 8.02.2010, nos autos com o n.º 698/09.4TBLSA, e transitada em julgado em 24.03.2010, foi declarada a insolvência da sociedade J (…), Lda.

6. A (…), sócio e gerente da sociedade I (…), Lda., celebrou em 2.08.2007, a título pessoal, com a sociedade J (…) Lda., um contrato promessa de compra e venda que tinha por objeto diversos prédios, e através do qual aquele A (…) prometeu comprar, e a insolvente prometeu vender, aqueles prédios pelo preço de € 525.000,00.

7. Tendo as partes entretanto revogado o negócio.

8. Por escritura pública lavrada em 19.12.2008 no Cartório Notarial com sede na (...), segundo andar, Porto, os dois primeiros réus, na qualidade de primeiros outorgantes e de únicos sócios da sociedade J (…), Lda., declararam vender pelo preço global de € 476.257,95 à I (…), Lda., representada por A (…), na qualidade de 2.º outorgante e sócio gerente, que declarou aceitar a venda, os seguintes prédios sitos na freguesia e concelho da Lousã, descritos na respetiva Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs:

a) 1.315 (matriz urbana artigo 4.963.º);

b) 4.039 (matriz urbana artigo 5.402.º);

c) 5.744 (matriz urbana artigo 6.596.º);

d) 6.031 (matriz urbana artigo 7.210.º);

e) 8.163 (matriz urbana artigo 8.403.º);

f) 4.996 (matriz rústica artigo 5.319.º);

g) 9.338 (matriz rústica artigo 5.315.º);

h) 9.353 (matriz rústica artigo 5.308.º).

9. O preço foi integralmente pago pelo sócio maioritário e gerente da I (…), no interesse e por conta desta, da seguinte forma:

a) € 52.500,00 já haviam sido pagos à sociedade J (…), Lda., a título de sinal e princípio de pagamento, aquando da assinatura do contrato-promessa;

b) € 180.542,00 foram pagos por meio de cheque visado, datado de 19.12.2008, emitido pelo BES sobre a conta pessoal do sócio maioritário da II (…), à ordem do BANIF, por instruções e a pedido da sociedade insolvente, para que fosse emitido pelo mesmo BANIF a declaração de distrate e cancelamento das hipotecas registadas sobre os prédios com os artigos matriciais respetivos 4.963.º e 5.402.º;

c) € 5.215,95 foram pagos à sociedade J (…) Lda. por meio de cheque, datado de 19.12.2008, emitido sobre o BES e à ordem da desta;

d) € 38.000,00 foram pagos à sociedade J (…), Lda. por meio de cheque, datado de 27.02.2009, emitido sobre o Santander Totta e à ordem daquela sociedade;

e) Os restantes € 200.000,00 foram pagos à sociedade J (…), Lda. por meio de cheque, com o número 2 (...), datado de 23.03.2009, emitido sobre o BES e à ordem daquela sociedade.

10. O cheque com o número 2 (...), datado de 23.03.2009, foi endossado pelo 3.º réu e depositado numa conta titulada pelos dois primeiros réus.

11. Os réus, em decisão conjunta e em comunhão de esforços, subtraíram do caixa social a quantia de € 200.000,00.

12. O montante de € 200.000,00 foi creditado na contabilidade da sociedade J (…) Lda., na conta n.º 26883 de A (…), sócio gerente da compradora I (…), Lda., emitindo-se a favor desta última o respetivo recibo.

13. Com este valor foi liquidado um mútuo bancário ao Banco Millenium BCP pelo valor de € 20.000,00, conforme conta n.º 23111 da contabilidade.

14. Foram pagos, pelo valor total de € 59.237,13, empréstimos concedidos à sociedade, no período compreendido entre 2002 e 2008, pelo sócio A (…) e por M (…), pai da sócia E (…)efetuados através de depósitos de numerário e de cheques, estando os mesmos refletidos nas contas n.ºs 26802 e 26803 da contabilidade.

15. Foi pago o valor de € 6.928,16, correspondente ao reembolso de uma “letra de favor”, sacada pela sociedade insolvente e aceite por M (…) para financiamento bancário da sociedade através de desconto bancário, tendo a letra sido paga pelo aceitante junto da instituição bancária e não havendo da parte do aceitante perante a sociedade sacadora qualquer responsabilidade emergente de uma qualquer relação extracartular, estando o pagamento refletido na conta n.º 26810.

16. Foi pago o valor de € 15.885,20 correspondente ao reembolso de uma outra “letra de favor”, sacada pela sociedade insolvente e aceite por P (…), pagamento refletido na conta n.º 26811 da contabilidade.

17. Foram reembolsados € 10.090,00, correspondentes a uma “letra de favor” sacada pela sociedade insolvente e aceite por T (…), Lda. para financiamento bancário da sociedade através de desconto bancário, tendo a letra sido paga pela aceitante junto da instituição bancária e não havendo da parte da aceitante perante a sociedade sacadora qualquer responsabilidade emergente de uma qualquer relação extracartular, conforme conta n.º 26812 da contabilidade.

18. Foi pago o valor de € 6.536,08, correspondente ao reembolso de outra “letra de favor”, sacada pela sociedade insolvente e aceite por F (…) para financiamento bancário da sociedade através de desconto bancário, tendo a letra sido paga pela aceitante junto da instituição bancária e não havendo da parte da aceitante perante a sociedade sacadora qualquer responsabilidade emergente de uma qualquer relação extracartular, conforme conta n.º 26813.

19. Foram reembolsados aos sócios A (…) e E (…) prestações suplementares por estes efetuadas no valor total de € 80.000,00.

20. O 3.º réu endossou o cheque aos 1.ºs réus para que estes se pudessem pagar dos créditos que possuíam sobre a sociedade e para pagamento das dívidas sociais supra referidas.».

E foi considerado como não provado:

«a) Os réus utilizaram a quantia de € 200.000,00 em proveito próprio

b) Foi acordado entre os dois 1.ºs réus e o 3.º réu, anteriormente à celebração da cessão de quotas e como condição da realização da mesma que aqueles dois 1.ºs réus seriam reembolsados pela sociedade por todas as prestações suplementares de capital e empréstimos efetuados à mesma.

c) Tendo esse sido o motivo pelo qual o 3.º réu recebeu o cheque o endossou aos 1.ºs réus.

d) Foram depositados € 1.323,43 no Banco Totta & Açores.».


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B) Substância do recurso

1. - Nulidades da sentença

Pretendem os Apelantes, desde logo, que ocorrem duas causas de nulidade da sentença, a falta da fundamentação e a omissão de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, al.ª b) e d), do NCPCiv.), pelo que deve aquela ser julgada nula (conclusões 21.ª a 23.ª da apelação).

Cabia, por isso, aos Apelantes, argumentando sobre o tema, mostrar onde se encontram consubstanciados na sentença apelada aqueles vícios geradores de nulidade da mesma, o que devia ser feito mas conclusões da apelação, já que estas, como dito, definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso.

Na verdade, como se retira do disposto no art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv., cabe aos Recorrentes, nas suas conclusões, indicar os fundamentos por que pedem a alteração ou anulação da decisão.

Em seguida se verá se o fizeram e se estão demonstrados tais vícios.

1.1. - Da omissão de pronúncia

Resulta do art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv., que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Vêm entendendo, de forma pacífica, a doutrina e a jurisprudência que somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.

De acordo com Amâncio Ferreira ([7]), “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda”.

E, segundo Alberto dos Reis ([8]), “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.

Já Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes ([9]), por sua vez, referem que “a observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão”, sendo que “por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão”.

Por seu turno, Antunes Varela ([10]) esclarece,
em termos de delimitação do conceito de nulidade da sentença, face à previsão do art.º 668.º do CPCiv., que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.

Na nulidade aludida está em causa o uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender conhecer de questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não se tratar de questões de que deveria conhecer-se (omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada.

Como já se mencionou, para apuramento quanto ao vício de omissão (ou excesso) de pronúncia cabe perspetivar as questões em sentido técnico, só o sendo os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, só esses constituindo verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer.

Assim, não são, obviamente, questões para este efeito os factos (alegados ou provados), nem os argumentos apresentados pelas partes, nem as razões em que sustentam a sua pretensão ou defesa, nem as provas produzidas, nem a apreciação que delas se faça em termos de formação da convicção do Tribunal.

Ora, dito isto, descortina-se onde os Apelantes fazem radicar a pretendida omissão de pronúncia: consideram que a sentença não refere se há dolo ou mera culpa, em sede de responsabilidade civil por facto ilícito, do 3.º R., faltando, assim, à pronúncia devida sobre a modalidade da culpa desse agente/lesante, matéria relevante para a sorte dos autos, designadamente ao nível da fixação de montante indemnizatório.

Vejamos.

Da fundamentação de facto logo constam os factos 11., 19. e 20., com o seguinte teor:

“11. Os réus, em decisão conjunta e em comunhão de esforços, subtraíram do caixa social a quantia de € 200.000,00.

(…)

19. Foram reembolsados aos sócios A (…) e E (…) prestações suplementares por estes efetuadas no valor total de € 80.000,00.

20. O 3.º réu endossou o cheque aos 1.ºs réus para que estes se pudessem pagar dos créditos que possuíam sobre a sociedade e para pagamento das dívidas sociais supra referidas.» (itálico aditado).

E da fundamentação de direito da sentença resulta, após análise e pronúncia positiva quanto ao pressuposto da ilicitude, que «Temos, pois, uma conduta ilícita, por integrar a infração de deveres legais específicos e deveres legais gerais, e que se presume culposa, nos termos do art. 72.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais» (itálico aditado).

Quer dizer, estando em causa ação indemnizatória por responsabilidade civil por facto ilícito, não poderia o Tribunal deixar de se pronunciar, como pronunciou, sobre os diversos requisitos dessa responsabilidade, entre eles, como é consabido, a culpa, o juízo de censura sobre a conduta do agente (nexo de imputação subjetiva do facto ilícito ao agente/lesante, tornando a sua conduta merecedora de reprovação).

E a culpa reveste, na verdade, duas modalidades possíveis, a mera culpa – atuação negligente do agente, seja com negligência consciente ou inconsciente ([11]) – e o dolo (elemento intencional face ao dano), em que “… o agente tem a representação do resultado danoso, sendo o acto praticado com a intenção malévola de produzi-lo, ou apenas aceitando-se reflexamente esse efeito” ([12]), dolo esse que, consabidamente, consoante a sua intensidade, pode ser direto, necessário ou eventual.

Ora, apesar de ter a decisão em crise, na sua fundamentação jurídica, invocado por um juízo de culpa presumida – referiu, dir-se-ia subsidiariamente, que esta sempre seria de presumir, nos termos do art.º 72.º, n.º 1, do CSCom. –, claro se torna que não fundou o juízo de censura em simples mera culpa, mas em atuação dolosa, também do 3.º R..

Na verdade, a sentença é expressa em afirmar a atuação dolosa dos demais RR., acabando por os condenar solidariamente com o 3.º R. no pedido, ao que não será estranha, quanto a este, a prova positiva de que todos atuaram mediante decisão conjunta e em comunhão de esforços, de molde a subtrair – como comprovado – do caixa social a quantia de € 200.000,00, com uma finalidade (e intenção) também comum a todos (reembolso aos co-RR. ex-sócios da sociedade de prestações suplementares no montante de € 80.000,00, com endosso de cheque para o efeito).

Donde que deva concluir-se, em interpretação da decisão proferida, que a conduta imputada ao 3.º R. como ilícita foi qualificada também como dolosa.

Inexiste, pois, nesta perspetiva, a invocada omissão de pronúncia, improcedendo as conclusões dos Apelantes em contrário.

1.2. - Da falta de fundamentação

Ligada ao argumento da omissão de pronúncia em matéria de graduação da culpa do 3.º R., acrescentam os Apelantes que ocorre falta de fundamentação da sentença nessa matéria, pois que não foram suficientemente especificados os fundamentos de direito que justifiquem nessa parte a decisão condenatória.

Invocam a norma da al.ª b) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPCiv., que se refere à não especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão.

Cabia, pois, a tais Apelantes demonstrar esse vício, o que não lograram fazer, pois que, como visto, a sentença se apresenta suficientemente fundamentada nesta parte, mostrando como se motivou, desde logo no plano fáctico – este nem sequer objeto de impugnação recursória –, no seu juízo positivo de culpa (dolo) do 3.º R..

Na verdade, são consabidas as exigências de fundamentação das decisões dos tribunais (cfr. art.º 154.º, n.º 1, do NCPCiv., tal como o antecedente art.º 158.º, n.º 1, do CPCiv./2007), sejam sentenças ou despachos – em termos de fundamentos de facto e de direito respetivos –, a que se reporta o art.º 615.º, n.º 1, al. b), do NCPCiv. (tal como o anterior art.º 668.º, n.º 1, al.ª b), do CPCiv./2007), e cuja violação, uma vez verificada, é causa de nulidade da sentença ([13]), cabendo naturalmente aos Recorrentes clarificar onde pudesse ter faltado a decisão à fundamentação devida/exigível, em termos de omissão absoluta de fundamentos, o que in casu não ocorreu.

Com efeito, este Tribunal não logra descortinar sequer insuficiente fundamentação da sentença, muito menos total/absoluta ausência de fundamentação (neste particular), ou outra causa de nulidade da mesma, sendo que não se trata de matéria de conhecimento oficioso do Tribunal ([14]).

Donde que seja de concluir também pela não verificação deste vício de nulidade da sentença.

2. - Do caráter surpreendente da decisão

Socorrem-se ainda os Apelantes do disposto no art.º 3.º, n.º 3, do NCPCiv., invocando (conclusão 19.ª) conclusão surpreendente – ao detetarem na fundamentação de direito a referência ao não cumprimento dos requisitos do art.º 213.º do CSCom. –, por a questão nunca ter sido discutida nos autos (decisão-surpresa), ademais sem qualquer suporte na matéria de facto provada.

Ora, se esta questão da falta de suporte fáctico se prende já com o mérito da decisão (eventual erro de direito), importa, porém, desde já, verificar se ocorreu decisão-surpresa, pois que se trata de suscitado vício de cariz processual (referente ao procedimento e não à substância).

Dispõe o art.º 3.º, n.º 3, do NCPCiv. (norma basilar do nosso edifício processual civil, decorrência de consabidas exigências constitucionais), que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Como refere Abrantes Geraldes ([15]), “… só a audição de ambas as partes interessadas no pleito e a possibilidade que lhes é conferida de controlarem o modo de decisão dos tribunais permitirão que a verdade seja descoberta e que sejam acautelados os interesses dos litigantes.

Ao nosso sistema processual civil repugnam as decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, o que apenas excepcionalmente é admitido em situações em que os restantes interesses o impõem.

Da consagração legal do princípio do contraditório decorre que cada parte processual é chamada a apresentar as respectivas razões de facto e de direito, a oferecer as suas provas ou a pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras.

Todas as fases do processo (…) decorrem segundo as regras da mais pura contraditoriedade, num diálogo entre as partes, sob a direcção do juiz, prosseguindo ainda em fase de alegações de direito e em via de recursos …”.

A estrutura de diálogo, consequentemente dialética, entre as partes, perante o Tribunal, que está, por sua vez, obrigado a ouvi-las antes de decidir sobre as questões que se suscitem ao longo da vida do processo, garante o “tratamento paritário” das partes e “uma decisão mais justa e imparcial”, evitando, ao mesmo tempo, que, mormente quanto a questões de direito, de conhecimento oficioso, sejam proferidas decisões “contra a corrente do processo, à revelia das posições jurídicas que cada uma das partes tomara nos articulados ou nas alegações de recurso” ([16]) – as chamadas decisões-surpresa.

Neste âmbito, o preceito do art.º 3.º, n.º 3, do CPCiv., visa alcançar objetivos essenciais do sistema de justiça, tais como “a boa administração da justiça, a justa composição dos litígios, a eficácia do sistema, a satisfação dos interesses dos cidadãos” ([17]).

Assim, o Tribunal, para além de assegurar, a cada passo, o cumprimento do princípio do contraditório, garantindo às partes o atempado e recíproco conhecimento dos atos processuais e das questões suscitadas, terá também, ele próprio (Tribunal), de observar esse princípio, submetendo-se às suas imposições, só podendo decidir questões de facto ou de direito, ainda que de conhecimento oficioso, depois de conceder às partes a possibilidade de pronúncia respetiva, exceto em situações de manifesta desnecessidade.

Não poderá, pois, o Tribunal, sem cuidar da prévia audição das partes, de molde a que possam elas pronunciar-se, apreciar, ex officio, questões jurídicas idóneas a projetarem-se, em termos relevantes e inovatórios, no desfecho do processo (solução jurídica da causa), mormente se ao arrepio de toda a tramitação e posições processuais anteriores, que levaram as partes a pôr de lado um desfecho que, posteriormente, o julgador vem a adotar, sem aviso prévio e contra todas as expectativas dos litigantes.

Assim, a “decisão surpresa, como os vocábulos indicam, faz supor que a parte possa ser apanhada em falta por uma decisão que embora pudesse ser juridicamente possível, não esteja prevista nem tivesse sido configurada por aquela” ([18]).

Quer dizer, haverá “decisão surpresa se o juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correcta e atinada decisão do litígio” ([19]).

E, como de há muito vem entendendo a jurisprudência, “A lei, ao referir-se à decisão-surpresa, não quis excluir delas as que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas, antes estabeleceu uma relação com o pedido formulado para a concreta decisão, ter ou não sido prevista em função da pretensão colocada a quem irá decidir.” ([20]).

Da fundamentação jurídica da sentença em crise resulta, designadamente, que:

«Defendem os réus que o reembolso das prestações suplementares e empréstimos efetuados à sociedade foi condição da cessão, e que, de todo o modo, o valor em causa foi empregue para liquidar dívidas societárias, inexistindo por isso qualquer conduta ilícita. Ora, para além de se não ter demonstrado a existência do alegado acordo ou cláusula condicional da cessão, sempre se dirá que nem todos os pagamentos realizados correspondem à liquidação de dívidas societárias e que, por outro, os pagamentos de dívidas sociais realizados não permitem, por si só, concluir que a conduta dos réus, rectius do réu administrador, foi norteada, pelo menos exclusivamente, pela prossecução do interesse societário.

Com efeito, estes pagamentos não foram realizados de acordo com critérios de racionalidade económica, com vista a permitir a continuidade da atividade da empresa e tendo em vista a salvaguarda dos seus interesses, mas antes com o intuito claro de acautelar os interesses económicos, e até morais, dos anteriores sócios ou de pessoas com estes especialmente relacionadas. Veja-se a este respeito que nenhuma das dívidas liquidadas respeitava a fornecedores da sociedade, e nessa medida promovia a prossecução da sua atividade empresarial. Ao invés, todas respeitavam a financiamentos, sendo parte dívidas bancárias, pelas quais seguramente seriam os réus também pessoalmente responsáveis, outra parte dívidas resultantes de financiamentos particulares a estes concedidos, e outra parte ainda empréstimos dos sócios e de seus familiares à sociedade.

Por outro, as prestações suplementares efetuadas pelos sócios, e que aos mesmos vieram a ser reembolsadas, não revestem a natureza de dívidas societárias.

As prestações suplementares são um meio de financiamento interno da sociedade, traduzido em «prestações em dinheiro sem juros que a sociedade exigirá aos sócios quando, havendo permissão do estatuto, deliberação social o determine (cfr. o art. 210.º)». As prestações suplementares, ao contrário do que sucede com os suprimentos e as prestações acessórias, que não estão sujeitas a semelhante restrição, apenas podem ser restituídas aos sócios se a situação líquida da sociedade não ficar inferior à soma do capital e da reserva legal (art. 213.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais). As prestações suplementares não podem ainda ser restituídas depois de declarada a insolvência da sociedade (art. 213.º, n.º 3).

Deste regime decorre que as prestações suplementares constituem capital próprio da sociedade, vinculadas à proteção do capital social: «De facto, as prestações estão vinculadas à proteção do capital social, não podendo ser restituídas se o património líquido da sociedade se tornar inferior à soma do capital social e da reserva legal (art. 213.º, n.º 1). Por outro lado, as prestações suplementares são responsáveis pelas dívidas sociais, uma vez que não podem ser restituídas depois de declarada a insolvência da sociedade (art. 213.º, n.º 3). Portanto, estas prestações constituem capital vinculado e responsável pelas dívidas sociais, as duas características essenciais do capital próprio».

Coerentemente, em termos contabilísticos as prestações suplementares são tratadas como um elemento integrante do capital, ao passo que os suprimentos constituem um elemento do passivo.

Do que resulta que o reembolso das prestações suplementares efetuadas pelos anteriores sócios - para mais sem que se demonstrasse a verificação dos requisitos para tanto exigidos pelo art. 213.º do Código das Sociedades Comerciais - não traduz a satisfação de dívidas societárias, e não permite afastar a ilicitude (e acrescente-se o caráter danoso) da conduta do réu.

Temos, pois, uma conduta ilícita, por integrar a infração de deveres legais específicos e deveres legais gerais, e que se presume culposa, nos termos do art. 72.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais.».

A questão era, pois, em sede de ação indemnizatória, a da ilicitude da conduta, estando em causa a legalidade, ou ilegalidade, do reembolso/restituição, pelo modo efetuado, de prestações suplementares no âmbito societário, envolvendo um sócio e dois ex-sócios.

Assim, é matéria central dos autos, discutida pelas partes, a da ilicitude desse reembolso/restituição, pretendendo os RR./Apelantes inexistir tal ilicitude e concluindo a sentença, ao contrário, pela sua verificação.

Foi neste âmbito que o Tribunal a quo, obrigado a indagar, interpretar e aplicar as regras de direito (art.º 5.º, n.º 3, do NCPCiv.), procurou o regime legal aplicável a tal matéria de prestações suplementares e seu reembolso (dito art.º 213.º do CSCom.).

E, tendo-o encontrado, aplicou-o no sentido que entendeu adequado face aos factos provados, com o que podiam contar as partes, patrocinadas por mandatários judiciais (especialistas em matéria de direito).

No que, se bem vemos, inexiste qualquer decisão-surpresa ou atropelo ao princípio do contraditório, tal como previsto no aludido art.º 3.º, n.º 3, do NCPCiv., não se vislumbrando, pois – parafraseando jurisprudência antes citada –, que, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, se tenha enveredado por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter a juízo.

Donde a improcedência da argumentação em contrário dos Recorrentes.

3. - Da pretendida errada aplicação do direito

3.1. - Quanto à responsabilidade do 3.º

3.1.1. - Pretendem os Apelantes que o Tribunal a quo incorreu em defeituosa decisão de direito, desde logo por não poder ter-se como demonstrado o requisito da ilicitude, de que depende a obrigação indemnizatória por facto ilícito (art.º 483.º, n.º 1, do CCiv.).

Seguindo a estrutura da decisão recorrida e por razões de ordem lógica, começar-se-á pela apreciação da conduta do 3.º R. (gerente/disponente), deixando para depois os demais RR. (ex-gerentes/beneficiários).

Em causa estão, como já percecionado, questões que radicam em operado reembolso de prestações suplementares ([21]) pelo novo sócio-gerente (o 3.º R.) aos anteriores sócios-gerentes (os 1.º e 2.ª RR., que àquele haviam transmitido integralmente as respetivas quotas), não se provando qualquer acordo (entre os RR.), previamente à cessão de quotas e como condição da sua realização, no sentido do reembolso pela sociedade de prestações suplementares.

Esgrimem os Apelantes que o art.º 63.º-C, n.ºs 1 e 2, do LGT (tal como o demais preceituado neste diploma legal), visando proteger exclusivamente interesses fiscais, por consequência públicos – não privados, da sociedade ou dos credores –, não tem virtualidades de aplicação ao caso dos autos, pelo que não poderia fundar aí o Tribunal a imputada ilicitude.

A este propósito, lê-se na fundamentação da sentença:

«Afigura-se desde logo verificado o requisito da ilicitude na medida em que a conduta do réu integra uma clara violação do disposto no art. 63.º-C, n.ºs 1 e 2, da Lei Geral Tributária, e assim encerra a preterição de um dever legal específico. Com efeito, esta norma impõe aos sujeitos passivos de IRC, maxime as sociedades comerciais, a obrigação de movimentar exclusivamente através da respetiva conta bancária todos os pagamentos e recebimentos respeitantes à atividade empresarial desenvolvida, assim como todos os movimentos relativos a suprimentos, outras formas de empréstimos e adiantamentos de sócios, bem como quaisquer outros movimentos de ou a favor dos sujeitos passivos. Imposição que se justifica por evidentes razões de controlo interno e contabilístico das empresas, e visa facultar demonstrações financeiras que fornecem informação verdadeira e apropriada. O réu J (…), gerente da sociedade, violou tal obrigação, na medida em que o recebimento da última prestação do preço da venda dos imóveis da sociedade, e subsequente entrega aos primeiros réus, foi feito à margem da conta bancária da sociedade e sem passar por esta.

Acresce que se julgam igualmente violados os deveres legais gerais de lealdade impostos ao gerente pelo art. 64.º, n.º 1, al. b), do Código das Sociedades Comerciais, porquanto, ao endossar o cheque em causa aos primeiros réus, de forma a permitir aos mesmos (e não à sociedade insolvente) embolsar a última parte do preço dos imóveis vendidos, deu preferência aos interesses destes sobre os interesses da sociedade por si administrada.».

A contraparte, secundando a sentença, acrescenta que o preceito daquele art.º 64.º não tem um âmbito/alcance aplicativo ou de eficácia confinado às relações jurídico-tributárias, antes assumindo uma dupla dimensão normativa: (i) tributária e (ii) de proteção dos interesses societários, visando evitar também a descapitalização da sociedade, para além da distribuição oculta de rendimentos.

Conclui, assim, pela afirmação de uma adicional dimensão de proteção extra tributária de interesses societários no concernente à norma da LGT em questão.

Dispunha aquele art.º 63.º-C da Lei Geral Tributária (com a epígrafe “Contas bancárias exclusivamente afectas à actividade empresarial”):

«1 - Os sujeitos passivos de IRC, bem como os sujeitos passivos de IRS que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada, estão obrigados a possuir, pelo menos, uma conta bancária através da qual devem ser, exclusivamente, movimentados os pagamentos e recebimentos respeitantes à actividade empresarial desenvolvida.

2 - Devem, ainda, ser efectuados através da conta ou contas referidas no n.º 1 todos os movimentos relativos a suprimentos, outras formas de empréstimos e adiantamentos de sócios, bem como quaisquer outros movimentos de ou a favor dos sujeitos passivos.

(…)».

Enunciando, desde logo, o respetivo art.º 1.º (com a epígrafe “Âmbito de aplicação”):

«1 - A presente lei regula as relações jurídico-tributárias, sem prejuízo do disposto no direito comunitário e noutras normas de direito internacional que vigorem directamente na ordem interna ou em legislação especial.

2 - Para efeitos da presente lei, consideram-se relações jurídico-tributárias as estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas.

(…)».

É patente, assim, que a Lei Geral Tributária (doravante, LGT) tem como campo de aplicação natural “as relações jurídico-tributárias”, as que se estabelecem entre a administração tributária, agindo como tal, e os contribuintes (pessoas singulares e coletivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas).

Assim, aquele art.º 63.º-C estabelece deveres/obrigações de pendor tributário, perante a Administração Tributária, mas não se esgota aí, a nosso ver, a eficácia da norma, pois que a LGT, com todos os seus preceitos, consagrem direitos ou deveres, se insere no nosso sistema jurídico, cuja unidade a lei visa proteger (cfr. art.º 9.º do CCiv.), constituindo a ordem jurídica vigente e atuante.

Assim sendo, embora tratando-se de preceito(s) de natureza tributária, é fora de dúvida que aquele art.º 63.º-C, com os deveres/obrigações que estabelecia, se aplicava às sociedades e aos seus gerentes, como era o caso do 3.º R., o qual, inobservando preceitos imperativos, que lhe estabeleciam obrigações, no âmbito das suas responsabilidades societárias e tributárias, não devia ignorar que incorria em conduta ilícita (violadora de lei expressa).

E tal ilicitude pode ser isolada, de molde a valer (apenas) no âmbito das ditas “relações jurídico-tributárias”, mas não poder ser invocada no âmbito societário, precisamente no centro de atividade onde é cometida?

Haverá a ilicitude de ser neutralizada, de modo a não poder ser invocada pela respetiva sociedade, na medida em que lesada pela inobservância da norma imperativa de natureza tributária?

Sendo o sistema jurídico uno, como é uma só a ordem jurídica existente, a ilicitude, uma vez verificada, não pode ser acantonada numa certa latitude do sistema, antes se impondo à luz e no perímetro de todo o sistema jurídico, não se vendo como uma conduta ilícita à luz de preceitos de ordem tributária, que se impõem a uma sociedade, não possa ser invocada (a ilicitude da conduta) pela sociedade, se por essa via lesada, apesar de a norma violada se destinar, em primeira linha, a proteger os interesses da administração tributária.

Em suma – e como entendido na sentença –, se a conduta é ilícita, por violação de norma jurídica imperativa/impositiva (de cariz tributário ou outro) e causa danos, o lesado não está impedido de invocar essa ilicitude, mormente se tem o ónus da prova dos pressupostos do direito a indemnização do seu dano decorrente/conexo com a violação.

Nesta perspetiva, não deve interpretar-se a dita norma de cariz tributário como exclusivamente destinada a proteger o interesse público tributário, tendo, para além disso, virtualidades de proteção dos próprios sujeitos particulares, sendo admissível a invocação da sua violação para determinação da ilicitude em ação indemnizatória de sociedade contra o seu sócio incumpridor, seja por danos na relação com a administração tributária seja por outros danos patrimoniais causados por tal sócio (no relacionamento com outrem, por ex., ex-sócios).

De acrescentar que os factos denotam, a mais de uma conduta ilícita do 3.º R., uma atuação dolosa de todos os RR., os quais – todos eles – agiram “em decisão conjunta e em comunhão de esforçose de propósitos (subtração do caixa social de certa quantia, com finalidade/intenção determinada).

3.1.2. - Esgrimem depois os Apelantes que não se logra demonstrar incumprimento do disposto no art.º 213.º do CSCom. (com a epígrafe “Restituição das prestações suplementares”).

Prescreve este dispositivo legal, na parte aplicada, que as «prestações suplementares só podem ser restituídas aos sócios desde que a situação líquida não fique inferior à soma do capital e da reserva legal» (n.º 1), não podendo «ser restituídas depois de declarada a falência da sociedade» (n.º 3).

Na sentença entendeu-se que:

“… as prestações suplementares efetuadas pelos sócios, e que aos mesmos vieram a ser reembolsadas, não revestem a natureza de dívidas societárias.

As prestações suplementares são um meio de financiamento interno da sociedade, traduzido em «prestações em dinheiro sem juros que a sociedade exigirá aos sócios quando, havendo permissão do estatuto, deliberação social o determine (cfr. o art. 210.º)». As prestações suplementares, ao contrário do que sucede com os suprimentos e as prestações acessórias, que não estão sujeitas a semelhante restrição, apenas podem ser restituídas aos sócios se a situação líquida da sociedade não ficar inferior à soma do capital e da reserva legal (…).

Deste regime decorre que as prestações suplementares constituem capital próprio da sociedade, vinculadas à proteção do capital social (…). Por outro lado, as prestações suplementares são responsáveis pelas dívidas sociais, uma vez que não podem ser restituídas depois de declarada a insolvência da sociedade (…). Portanto, estas prestações constituem capital vinculado e responsável pelas dívidas sociais, as duas características essenciais do capital próprio».

Coerentemente, em termos contabilísticos as prestações suplementares são tratadas como um elemento integrante do capital, ao passo que os suprimentos constituem um elemento do passivo.

Do que resulta que o reembolso das prestações suplementares efetuadas pelos anteriores sócios - para mais sem que se demonstrasse a verificação dos requisitos para tanto exigidos pelo art. 213.º do Código das Sociedades Comerciais - não traduz a satisfação de dívidas societárias, e não permite afastar a ilicitude (e acrescente-se o caráter danoso) da conduta do réu.

Temos, pois, uma conduta ilícita, por integrar a infração de deveres legais específicos e deveres legais gerais (…)”.

A Recorrida, por sua vez, defende que cabia aos RR./Apelantes o ónus da prova da deliberação de restituição (n.º 2 daquele art.º 213.º), bem como de que poderiam praticar esse ato por não violarem o princípio da intangibilidade do capital social (n.º 1 do mesmo art.º), de molde a ficar assegurada a solvabilidade da sociedade, o que não viria a ocorrer, por a insolvência daquela ter sido declarada um ano volvido sobre o negócio ilícito.

Ora, dir-se-á que, ao dispor daquele montante a título de reembolso de prestações suplementares ([22]), o 3.º R. estava efetivamente a dispor de património social (o aludido “capital circulante”, elemento, obviamente, do ativo e não do passivo), que lhe cabia proteger, vindo, ao invés, a ocorrer a rápida insolvência posterior da sociedade.

Contexto esse em que bem se compreenderia, como dito na sentença, que procurasse, atenta a decisão que voluntariamente adotou, potencialmente danosa para a sociedade (não traduzindo satisfação de dívidas societárias e vindo a desembocar na ulterior insolvência), demonstrar a verificação dos requisitos impostos pelo art.º 213.º mencionado.

Mas mesmo que se entendesse que o ónus da prova cabia aqui à A./Apelada, certo é que a ilicitude da conduta resulta, desde logo, da violação dos deveres legais anteriormente mencionados, pelo que deve ter-se por demonstrada nos autos (havendo mesmo, como dito, conduta dolosa em prejuízo da sociedade).

3.1.3. - Argumentam também os Apelantes que o 3.º R. agiu em termos de exclusão de responsabilidade, de acordo com o disposto no art.º 72.º, n.º 2, do CSCom..

Prescreve este art.º (com a epígrafe “Responsabilidade de membros da administração para com a sociedade”):

«1 - Os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.

2 - A responsabilidade é excluída se alguma das pessoas referidas no número anterior provar que actuou em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial.

(…)».

Ora, de todo o exposto já resulta que o 3.º R., dispondo, como dispôs, de elevado montante patrimonial social (sem estar em causa, nesta parte, satisfação do passivo), que lhe cabia proteger, vindo, ao invés, a ocorrer a rápida insolvência posterior da sociedade, sob a sua gerência, não agiu segundo critérios de racionalidade empresarial, pelo que não poderia ter-se por excluída, sem mais, a sua responsabilidade civil (era seu o ónus probatório e nada provou nesse sentido).

3.2. - Quanto à responsabilidade dos 1.º e 2.ª RR.

Os Apelantes defendem nesta vertente que nem se logra demonstrar ilicitude nem abuso do direito por parte dos 1.º e 2.ª RR., pelo que, quanto a estes, não poderia a ação proceder na parte objeto de recurso.

Voltemos à fundamentação da sentença:

“Estamos no caso perante danos puramente patrimoniais, sofridos pela sociedade insolvente sem prévia lesão de direitos subjetivos (absolutos), e sem que se tenha verificado a violação de disposições legais de proteção por parte dos réus A (…) e E (…)Assim, e visto que estes nenhum vínculo tinham para com a sociedade à data dos factos, a ilicitude da sua conduta, e consequente responsabilização pelos danos verificados na esfera patrimonial da sociedade, apenas poderá ser afirmada por via do abuso de direito.

O abuso de direito verifica-se quando um determinado direito é exercido de modo que ofende o sentimento de justiça dominante da comunidade social, por exceder «manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito» (art. 334.º do Código Civil). Abrange-se no exercício de direitos (…) os meros poderes, liberdades ou faculdades diretamente resultantes da capacidade jurídica: «Ponto decisivo é que o comportamento do agente mereça a reação da ordem jurídica prevista para o abusivo e disfuncional exercício de um autêntico e concretizado direito».

O conteúdo delitual mínimo do abuso de direito consiste, de acordo com o ensinamento de Sinde Monteiro, na ofensa dos bens costumes e na causação dolosa de danos a outrem, sendo estes os requisitos que permitem afirmar de plano a ilicitude, com o consequente nascimento da obrigação de indemnizar. «De acordo com o que nos parece constituir uma espécie de fundo cultural comum europeu, esses requisitos são dois, permitindo-nos formular a seguinte regra: a conduta do agente será ilícita quando, de uma forma ofensiva para os bons costumes se causem dolosamente danos a outrem».

Requisitos que, salvo melhor opinião, se verificam no caso em apreciação.

É que, tendo sido os réus A (…) e E (…) sócios, e esta última gerente, da sociedade insolvente, e tendo ambos outorgado naquela qualidade o contrato de compra e venda dos imóveis de que a quantia de que se apoderaram constituía o preço, tinham necessário conhecimento de que tal valor integrava o património da sociedade. E terão sido seguramente estes quem terá determinado (seja por acordos celebrados, seja por eventual ascendente que sobre o mesmo detivessem) o terceiro réu a entregar-lhes o montante em causa, a fim de lhe darem o destino que lhes aprouvesse, procedendo designadamente ao pagamento parcial das dívidas sociais de acordo com as suas conveniências pessoais.

Com este comportamento, prejudicaram de forma consciente não apenas os credores sociais que não obtiveram qualquer satisfação, sequer parcial, dos respetivos créditos, mas sobretudo a própria sociedade, que veio a ser declarada insolvente. Salienta-se nesse sentido que, apesar de mais de metade do valor que cabia à sociedade, e de que os réus se apropriaram, ter sido destinado ao pagamento de dívidas sociais, a restante, ainda significativa (€ 80.000,00), foi utilizada pelos réus para se reembolsarem das prestações sociais que haviam efetuado. (…)

Por fim, considera-se que este comportamento, por traduzir um aproveitamento da especial relação que haviam mantido com a sociedade, para salvaguardar os seus interesses pessoais em detrimento dos interesses societários (aqui se compreendendo os interesses dos sócios, dos trabalhadores, dos fornecedores e clientes), ofende o que corresponde ao hodierno entendimento de uma atuação correta e honesta e, assim, a cláusula geral dos bons costumes.

Afirmam-se, deste modo, os requisitos da ilicitude e da culpa da conduta dos 1.ºs réus, resultando o dano da sociedade das considerações já expostas em sede de fundamentação da responsabilidade do 3.º réu.

Resta, pois, concluir que também os réus A (…) e E (…) são solidariamente responsáveis perante a autora pelos prejuízos decorrentes do desvio do aludido cheque (art. 497.º do Código Civil).”.

Deve dizer-se que se concorda, no essencial, com esta motivação da sentença, não podendo olvidar-se – repete-se – que da factualidade provada resulta atuação conjugada, dolosa, dos três RR. – existe uma decisão conjunta, bem como comunhão de esforços na sua execução, para subtração, conseguida, de elevado montante do caixa social, em obstrução, designadamente, a norma imperativa tributária, com finalidade/intenção, por todos comungada, de reembolsar/beneficiar os 1.º e 2.ª RR., à custa do património social (enfraquecendo-o significativamente), cujo sacrifício (ascendendo a € 80.000,00 de reembolso de prestações suplementares) viria a desembocar na insolvência da sociedade cerca de um ano depois.

Como referido na fundamentação do Ac. STJ, de 05/07/2016 ([23]):

“Porque o Código Civil vigente consagrou a concepção objectivista do abuso de direito, não se exige, por parte do titular do direito, a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que, objectivamente, esses limites tenham sido excedidos de forma manifesta e grave – cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de 5.5.2015, Procº 3820/07.1TVLSB.L2lS1, in www.dgsi.pt.

Consagra-se, como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal que passaremos a citar, de 9.9.2015, Pº nº 499/12.2TTVCT.G1.S1, neste dispositivo um princípio fundamental da ordem jurídica, qual seja o de que o exercício dos direitos tem limites (…).

Por um lado, o exercício dos direitos está limitado pela boa fé e pelos bons costumes, e, por outro lado, pelas finalidades de natureza económica e social subjacentes à conformação desse direito.

Deste modo, «o exercício do direito não deve exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, por a todos se impor uma conduta de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis no comércio jurídico, pelo que «os sujeitos de determinada relação jurídica devem agir como pessoas de bem, com correção e probidade, de modo a contribuírem, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica» ( cf. Ac. do STJ, de 15.12.2011, Pº 2/08.9TTLMG.P1.S1).

Assim, «serão excedidos limites impostos pela boa fé, designadamente, quando alguém pretenda fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior, quando tal conduta objetivamente interpretada, de harmonia com a lei, justificava a convicção de que se não faria valer o mesmo direito», e «outro tanto se poderá dizer dos limites impostos pelos bons costumes, ou seja, pelo conjunto de regras éticas de que costumam usar as pessoas sérias, honestas e de boa conduta no meio social onde se mostram integradas».

De acordo com VAZ SERRA, Abuso do Direito (em Matéria de Responsabilidade Civil”, Boletim do Ministério da Justiça, nº 85, Abril de 1959, p. 253, «há abuso do direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a do titular do direito ser tratado como se não tivesse direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito contratual», e de acordo com o mesmo autor, quanto a saber quando haveria «ofensa clamorosa do sentimento jurídico», existiriam duas orientações fundamentais: «a subjetiva, segundo a qual há abuso quando o direito é utilizado com o propósito exclusivo de prejudicar outrem (ato emulativo); a objetiva, segundo a qual o abuso se manifesta, objetivamente, na grave oposição à função social do direito, no facto de se exceder o uso normal do direito ou em circunstâncias mais ou menos equivalentes».”.

Assim sendo, tem de afirmar-se a existência de abuso do direito ([24]) quando o seu titular o exerce em termos clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico dominante, atentando contra a regra de conduta da boa-fé ([25]), como ocorre no caso de conduta dolosa, direcionada à obtenção de uma vantagem, que inevitavelmente vai causar um dano patrimonial correspondente a outrem, que doutro modo não ocorreria, o que pode desencadear obrigação indemnizatória pelo dano causado.

É o que ocorre, como visto, in casu, atenta a descrita atuação conjugada dos três RR., geradora do dano apurado, que deverá ser indemnizado, seja à luz das regras da responsabilidade civil extracontratual (art.º 483.º, n.º 1, do CCiv.), seja no âmbito da obrigação indemnizatória por abuso do direito (art.º 334.º do CCiv.), sendo que aquela atuação conjugada justifica a aplicação do disposto no art.º 497.º, n.º 1, do CCiv. (responsabilidade solidária dos demandados).

Improcedem, pois, salvo o devido respeito, as conclusões dos Apelantes em contrário, sendo de manter a douta decisão recorrida.

                                               ***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Há decisão-surpresa quando o Tribunal adota uma solução jurídica que as partes, embora patrocinadas por advogados (especialistas), não previram nem tinham, segundo a diligência exigível, obrigação de prever.

2. - Em ação indemnizatória por facto ilícito, discutindo-se os pressupostos da responsabilidade civil, designadamente a ilicitude, sendo questão central a da legalidade do reembolso, pelo modo como efetuado, de prestações suplementares no âmbito societário, envolvendo um sócio e dois ex-sócios, inexiste decisão surpresa se o Tribunal, obrigado a indagar, interpretar e aplicar as regras de direito (art.º 5.º, n.º 3, do NCPCiv.), procurou e aplicou o regime legal da restituição das prestações suplementares (art.º 213.º do CSCom.).

3. - As sociedades, no exercício da sua atividade empresarial, estão sujeitas a um conjunto de normas jurídicas de natureza imperativa, que se impõem aos seus gerentes e cuja infração é geradora de ilicitude, o que pode ocorrer com normas da Lei Geral Tributária, como a do respetivo art.º 63.º-C, obrigando a que a sociedade possua conta bancária através da qual devem ser, exclusivamente, movimentados os pagamentos e recebimentos respeitantes à atividade empresarial desenvolvida, bem como efetuados todos os movimentos relativos a suprimentos, outras formas de empréstimos e adiantamentos de sócios, bem como quaisquer outros movimentos de ou a favor dos sujeitos passivos.

4. - A natureza tributária desta norma imperativa não impede que a sua infração faça incorrer o gerente em conduta ilícita perante a própria sociedade.

5. - As prestações suplementares (art.ºs 210.º a 213.º do CSCom.), que têm natureza distinta dos suprimentos – estes são vistos como empréstimos à sociedade ou, pelo menos, negócios jurídicos equiparáveis, a que são aplicáveis as regras respetivas –, constituem atribuições em dinheiro determinantes de um implemento do património social, incrementando o capital (o chamado “capital flutuante”, embora diferenciado do capital social fixo, restituível quando desnecessário, sem vencimento de juros).

6. - O ónus da prova dos factos de que depende a exclusão de responsabilidade dos gerentes ou administradores da sociedade (art.º 72.º, n.º 2, do CSCom.) impende sobre aqueles.

7. - O único sócio e gerente de sociedade que, logo após a aquisição das respetivas quotas sociais, dispõe de elevado montante patrimonial social – valor de € 80.000,00, para reembolso aos ex-sócios (transmitentes das quotas) de prestações suplementares, sem acordo prévio nesse sentido –, que lhe cabia proteger, com subsequente insolvência da sociedade (cerca de um ano volvido) sob a sua gerência, não age segundo critérios de racionalidade empresarial.

8. - É de concluir pela existência de atuação conjugada e dolosa dos três réus (aqueles sócio-gerente e ex-sócios transmitentes) se vem provada uma decisão conjunta, bem como comunhão de esforços na sua execução, para subtração, conseguida, de elevado montante do caixa social, inobservando norma imperativa de cariz tributário, com intenção, por todos comungada, de reembolsar os réus ex-sócios no montante de € 80.000,00 de prestações suplementares.

9. - Tal reembolso, à custa do património social, cujo sacrifício viria a desembocar naquela insolvência, configura abuso do direito por parte dos ex-sócios transmitentes, por exercício em termos clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico dominante, atentando contra a regra de conduta da boa-fé, assim desencadeando obrigação indemnizatória pelo dano causado, em solidariedade com o réu sócio-gerente, que responde por facto ilícito.

                                               ***

V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, assim confirmando a decisão recorrida.

Custas da apelação pelos RR./Apelantes.

Escrito e revisto pelo relator

Elaborado em computador


Coimbra, 07/03/2017

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo (1.º Adjunto)

Fernando Monteiro (2.º Adjunto)


([1]) Segue-se, no essencial, por economia de meios, o teor do relatório da decisão recorrida.
([2]) Cfr. Ac. TRC de fls. 127 a 145.
([3]) Cfr. Ac. STJ de fls. 222 a 235.
([4]) Cfr. despacho de fls. 506 dos autos em suporte de papel, sem pronúncia quanto à arguição de nulidade da sentença (conclusões 21.ª a 23.ª), não sendo necessária a remessa para tal dos autos à 1.ª instância (art.º 617.º, n.º 5, do NCPCiv.).
([5]) Processo instaurado após 01/01/2008, mas antes de 01/09/2013 e decisão recorrida posterior a esta data (cfr. sentença aludida, a fls. 460 a 483, bem como art.ºs 5.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, este por argumento de maioria de razão, e 8.º, todos da Lei n.º 41/2013, de 26-06, e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 14-16, Autor que refere que, tratando-se de decisões proferidas a partir de 01/09/2013, portanto, após a entrada em vigor do NCPCiv., em processos instaurados anteriormente, mas não anteriores a 01/01/2008, se segue integralmente, em matéria recursória, o regime do NCPCiv.).
([6]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([7]) Cfr. “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9.ª ed., pág. 57.
([8]) Vide “Código de Processo Civil, Anotado”, vol. V, pág. 143.
([9]) In “Dos Recursos”, Quid Júris, pág. 117.

([10]) Cfr. “Manual de Processo Civil”, pág. 686.
([11]) Nas palavras de Mário Júlio de Almeida Costa – Direito das Obrigações, 11.ª ed. rev., Almedina, Coimbra, 2008, p. 582 –, a mera culpa (ou negligência) “… consiste no simples desleixo, imprudência ou inaptidão. Portanto, o resultado ilícito deve-se somente a falta de cuidado, imprevidência ou imperícia”.
([12]) Cfr. Almeida Costa, op. e loc. cits..

([13]) É pacífico o entendimento de que a fundamentação insuficiente ou deficiente da sentença não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, mas apenas a falta absoluta da respetiva fundamentação. Com efeito, a causa de nulidade referida na al. b) do n.º 1 do dito art.º 668.º (atual art.º 615.º do NCPCiv.) ocorre quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido, mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão, violando o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (cfr. art.º 208.º, n.º 1, CRPort., e art.º 158.º, n.º 1, do CPCiv. aplicável). Como refere, a este propósito, Teixeira de Sousa – cfr. “Estudos Sobre o Processo Civil”, pág. 221 –, “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”. Também Lebre de Freitas – cfr. Código de Processo Civil, pág. 297 – esclarece que “há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação”. Por sua vez, Alberto dos Reis já ensinava – cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140 – que deve distinguir-se “a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
([14]) A nulidade da sentença, não sendo cominada pela lei como insanável, tem de ser invocada pelas partes, não sendo de conhecimento oficioso – assim, por todos, o Ac. STJ, de 07/07/1999, Proc. 99B536 (Cons. Simões Freire), tal como o anterior Ac. STJ, de 07/12/1995, Proc. 086843 (Cons. Sá Couto), ambos com sumário em www.dgsi.pt.
([15]) Cfr. Temas da Reforma do Processo Civil, I vol., Almedina, Coimbra, 2.ª ed., 1998, pág. 75, que se cita.
([16]) Assim, Abrantes Geraldes, op. cit., págs. 75 e 77.
([17]) Continua a seguir-se Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 79.
([18]) Cfr. Ac. STJ, de 24/02/2015, Proc. 116/14.6YLSB (Cons. Ana Paula Boularot), em www.dgsi.pt..
([19]) Vide Ac. STJ, de 19/05/2016, Proc. 6473/03.2TVPRT.S1 (Cons. António da Silva Gonçalves), em www.dgsi.pt, explicitando que “apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever”.
([20]) Assim já o Ac. STJ, de 14/05/2002, Proc. 02A1353 (Cons. Lopes Pinto), em www.dgsi.pt.
([21]) Refere-se no Ac. STJ, de 21/12/1976, Proc. 066521 (Cons. Acácio Carvalho), com sumário publicado em www.dgsi.pt, que “As sociedades por quotas tem a possibilidade de reclamar pagamentos suplementares, obtendo por essa forma um capital flutuante, diferenciado do capital social fixo. Essas prestações não constituem aumento do capital social, são um capital circulante com características de fundo de reserva. Até certo ponto, são um empréstimo dos sócios à sociedade, restituível quando desnecessário”.
([22]) Como pode ler-se no Ac. STJ, de 26/10/2010, Proc. 357/1999.P1.S1 (Cons. Paulo Sá), em www.dgsi.pt, “Tem sido discutida a natureza jurídica das prestações suplementares”, aceitando-se “que elas não se confundem com o que na prática se chama de suprimentos, pois que o regime jurídico destes é diferente do das prestações suplementares”. E continua este aresto do STJ:
«Estas são, no dizer de PINTO FURTADO, um implemento do património social, ou, mais propriamente, elas são suprimentos com regime especial (Código Comercial, Das Sociedades em Especial, Almedina, Coimbra, vol. II, tomo II, pp. 758 e 759).
As prestações suplementares de capital constituem “uma figura híbrida que, apesar de apresentar elementos análogos aos que integram o aumento de capital ou os suprimentos, contudo, não se identificam com qualquer deles. Assim, as prestações suplementares, embora façam parte do património da sociedade não se integram no seu capital, pelo que não constituem conceito daquele” (…).
Justificam-se pelas razões concorrentes de nem sempre haver possibilidade de prever qual o capital necessário para o desenvolvimento dos negócios sociais e também pelo facto de, não constituindo aumento de capital, serem a ele equivalentes, dispensando o cumprimento de formalidades legais e despesas (…).
As prestações suplementares são sempre em dinheiro e não vencem juros. Por essa razão e pelo respectivo regime designam-se habitualmente como “quase capital” (…).
Os suprimentos "tout court" são, em contrapartida, considerados uniformemente pela jurisprudência como verdadeiros empréstimos ou mútuos feitos à sociedade, ou são, pelo menos, negócios jurídicos a eles equiparáveis, a que são aplicáveis as regras respectivas.
De maneira geral, pode dizer-se, até, que quase todos os contratos da sociedade permitem que os sócios façam suprimentos, que são normalmente as importâncias complementares que eles fornecem quando o capital é insuficiente para as despesas da exploração (…).
Os suprimentos propriamente ditos, a que são aplicáveis as regras do mútuo, não estão sujeitos ao regime mais apertado das prestações suplementares.
As prestações suplementares de capital, tal como se encontram reguladas nos artigos 210.º a 213.º do Código das Sociedades Comerciais (…), implicam a verificação de diversos requisitos imperativos …».
([23]) Proc. 752-F/1992.E1-A.S1-A (Cons. Lopes do Rego), em www.dgsi.pt.
([24]) Com a inerente “ilegitimidade” e, por consequência, ilicitude.
([25]) Que postula a adoção pelos sujeitos de direitos de uma conduta honesta, correta e leal.