Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1336/22.5T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
INTERESSE EM AGIR
INIMPUTÁVEL SOB INTERNAMENTO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 18.º E SEGUINTES E 243.º A 245.º DO CIRE
Sumário: I – Requerendo o devedor a declaração da sua insolvência e a exoneração do passivo restante, por ter sido declarado inimputável por anomalia psíquica, cumprindo medida de segurança de internamento, sendo que não trabalha e nunca trabalhou, não dispondo de qualquer património ou rendimento que lhe permita satisfazer o seu passivo, no valor global de € 463.832.84, não é caso de indeferimento liminar do pedido com fundamento em falta de interesse em agir.

II – Ainda que não esteja submetido ao dever legal de o fazer, o devedor terá sempre legitimidade e o direito de requerer a declaração da sua própria insolvência, com o decorrente interesse em agir, ao que não obsta o facto de o seu interesse principal residir na possibilidade de obter a exoneração do passivo restante ou a aprovação de um plano de pagamentos.

Decisão Texto Integral:

Apelação nº 1336/22.5T8VIS.C1

Tribunal recorrido: Comarca de Viseu - Viseu - Juízo Comércio - Juiz 2

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Maria João Areias

                               Paulo Correia

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

AA, residente na Rua ..., ..., ..., ... V... (atualmente internado em cumprimento de medida de segurança no Centro Hospitalar e Universitário ... – ..., Quinta ..., ..., ... ...), veio requerer a declaração da sua insolvência, pedindo também a exoneração do passivo restante.

Alega, para fundamentar a sua pretensão, que, no âmbito do processo comum colectivo que identifica, foi declarado inimputável em razão de anomalia psíquica para a prática de um facto ilícito típico previsto no artigo 131.º do Código Penal (homicídio) e outro facto ilícito previsto nos artigos 131º, 22º e 23º do Código Penal (homicídio tentado), tendo sido ordenado o seu internamento pelo período mínimo de 3 anos e máximo de 16 anos e que, por força dessa situação, não trabalha e nunca trabalhou (sendo que, à data da prática dos factos, era estudante), não dispondo de qualquer património ou rendimento que lhe permita satisfazer o seu passivo, no valor global de 463.832.84€, encontrando-se, por isso, em situação de insolvência.

Por despacho de 25/03/2022, foi determinada a notificação do Requerente para se pronunciar sobre a eventual impossibilidade de alcançar a única utilidade relativa à instauração da presente ação (exoneração do passivo restante) e sobre o seu interesse em agir em relação ao pedido de declaração de insolvência, com o esclarecimento de que existia a possibilidade de não preencher os requisitos para a exoneração do passivo restante por não dispor de qualquer rendimento a ceder durante o eventual período da cessão e estar impossibilitado de cumprir as obrigações exigidas, incluindo a relativa ao exercício de uma profissão remunerada (alíneas b) e c) do artigo 239.º do CIRE) e porque o seu passivo poderia considerar-se integrado na situação prevista na alínea b) do n.º 2 do art.º 245.º do CIRE e, como tal, excluído da exoneração.

Foi ainda determinada a sua notificação para juntar aos autos e relação de credores e a relação de todas as acções e execuções contra si pendentes.

O Requerente, além de juntar as relações em causa, pronunciou-se sobre a questão suscitada, sustentando não haver razões para recusar o pedido de exoneração do passivo restante.

Foi então proferido despacho – em 07/04/2022 – onde se decidiu indeferir liminarmente o pedido de declaração de insolvência com fundamento na excepção dilatória de falta de interesse em agir.

Inconformado com essa decisão, o Requerente veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

I. O Requerente encontra-se numa situação de insolvência atual, sendo que o número 1 do artigo 3º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas estabelece que “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.”

II. Aliás, tal facto foi dado como provado pelo douto Tribunal, e conforme se transcreve, é o seguinte: “O requerente declarou que não tem património, bens móveis ou imóveis, para satisfazer o seu passivo e que se encontra numa situação de insolvência atual.” – facto n.º 4.

III. É ainda indicado no ponto 2.2. do Despacho já mencionado que “É certo que, com base nos factos que o requerente alegou (dívidas no montante de €460.000,00, inexistência de património e de rendimentos), está verificada uma situação de insolvência, por o requerente estar impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (art. 3º, n.º 1 d Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) e, nessa medida, nada impediria a declaração de insolvência.”

IV. Ora, a questão que se coloca é - como pode o douto Tribunal ter dado como provados aqueles factos e ter considerado, inclusive, que o Requerente se encontrava em situação de insolvência,

V. Mas, posteriormente, ter proferido despacho de indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência.

VI. Não se consegue assim perceber o entendimento do douto Tribunal, já que o Código da Insolvência e Recuperação das Empresas é claro no que concerne ao indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência.

VII. De acordo com o artigo 27º do mencionado Código, “1 - No próprio dia da distribuição, ou, não sendo tal viável, até ao 3.º dia útil subsequente, o juiz:

a) Indefere liminarmente o pedido de declaração de insolvência quando seja manifestamente improcedente, ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis de que deva conhecer oficiosamente;” (sublinhados nossos)

VIII. Ora, salvo melhor opinião, não ocorreram exceções dilatórias de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente,

IX. Nem o pedido de declaração de insolvência apresentado pelo Requerente é manifestamente improcedente,

X. E não o é, porque o Requerente se encontra numa situação de insolvência atual, (negrito nosso)

XI. Sendo o seu ativo, por não possuir quaisquer bens móveis e/ou imóveis, insuficiente para liquidar o seu passivo, que ascende a €460.000,00 (quatrocentos e sessenta mil euros) (negrito nosso).

XII. E essa situação – a de não estar em situação de insolvência atual - não está em causa nos presentes autos, uma vez que tal foi dado como provado pelo douto Tribunal no Despacho recorrido, conforme acima se transcreveu.

XIII. Daí não poder o Requerente conformar-se com a decisão proferida, uma vez que existe uma clara contradição com os factos dados como provados e a decisão final (negrito nosso).

XIV. Devendo, portanto, a decisão recorrida ser substituída por uma que declare a insolvência do Requerente,

XV. Uma vez que o mesmo se encontra em situação de insolvência atual, tendo a mesma sido requerida por este, por reconhecer a situação em que se encontra, demonstrando-se, assim, o seu interesse em agir em relação à declaração de insolvência,

XVI. Pois se interesse não existisse da parte do Requerente, não teria este feito entrar em juízo o respetivo pedido de declaração de insolvência, tendo tal sido expressamente declarado pelo Requerente na sua Petição Inicial (Referência: ...64).

XVII. Da mesma forma, e por mera cautela de patrocínio se dirá que, o próprio número 4 do artigo 3º do CIRE indica-nos que “Equipara-se à situação de insolvência atual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência.” (sublinhado nosso).

XVIII. Verificando-se assim um regime mais permissivo, quando é o devedor a apresentar-se à insolvência, sendo, certamente, intenção do legislador português com a introdução deste pressuposto a de promover o uso de meios antecipados para evitar o “dano da insolvência”.

XIX. Veja-se ainda o artigo 28º do já mencionado Código da Insolvência e Recuperação das Empresas, que estipula que “A apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência, que é declarada até ao 3.º dia útil seguinte ao da distribuição da petição inicial ou, existindo vícios corrigíveis, ao do respetivo suprimento.”

XX. Assim, por tudo quanto o exposto, não consegue o Requerente alcançar o fundamento para o douto Tribunal ter decidido pelo indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência do Requerente, pois, salvo melhor opinião, inexiste fundamento para tal indeferimento, sendo também esta a opinião da jurisprudência vigente.

XXI. Devendo, portanto, merecer censura a decisão recorrida no que à declaração de insolvência diz respeito, e ser substituída por outra que declare a insolvência do Requerente.

XXII. Ademais, e conforme é possível verificar no Despacho recorrido, apesar de dar como provado que o Requerente se encontrava numa situação de insolvência atual, o douto Tribunal fez depender a sua decisão de um outro critério, não previsto legalmente (sublinhado nosso),

XXIII. Isto porque o douto Tribunal, colocando entraves à declaração de insolvência do Requerente, considerou que “A questão que se coloca é a de saber se, por um lado, o requerente tem interesse em agir em relação à declaração de insolvência e, por outro lado, se a declaração de insolvência não acabaria por redundar na prática de atos inúteis.”

XXIV. Continuando, dizendo: «A resposta a estas questões implica que previamente se aprecie se os créditos relacionados estão ou não excluídos da exoneração do passivo restante nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º2 do artigo 245.º, segundo a qual, estão excluídos da exoneração do passivo restante “as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamados nessa qualidade” e, bem assim, se o requerente reúne ou não as condições para que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante.»

XXV. Uma vez mais, não pode o Requerente concordar com tais afirmações, já que, neste momento/fase processual – declaração da insolvência do Requerente ou indeferimento do pedido formulado – não se colocam, ou não se deveriam colocar, as questões formuladas pelo douto Tribunal,

XXVI. Uma vez que a apreciação da eventual concessão da exoneração do passivo restante, ou pelo menos a possibilidade de se submeter a este instituto, cedendo os rendimentos auferidos para além do rendimento disponível durante 3 (três) anos, apenas deveria ser apreciada em momento posterior do processo.

XXVII. Pelo que não podia, nem deveria, o douto Tribunal ter apreciado esta questão neste momento, além de que, sobre estas questões também já se pronunciou o Requerente no seu requerimento de 05/04/2022 (Referência: ...85).

XXVIII. Assim, é entendimento do Requerente que o disposto na alínea b) do número 2 do artigo 245º do CIRE não lhe é aplicável, nem aplicável ao caso em apreço, nem pode ser admitida, in casu, uma interpretação extensiva da norma citada.

XXIX. Como indica o próprio normativo, a exoneração do passivo restante apenas não abrange indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos (negrito e sublinhado nossos),

XXX. Tendo o Requerente sido condenado por fatos ilícitos, é certo, mas sem culpa porque foi declarada a sua inimputabilidade para a prática dos atos, sendo o fundamento da condenação a equidade e não qualquer responsabilidade extracontratual ainda que meramente culposa;

XXXI. Assim, não existem dúvidas que não pode ser aplicada a exceção supra mencionada, especialmente porque uma interpretação extensiva da mencionada norma (artigo 245º/2/b) do CIRE), consubstancia uma restrição de direitos do Requerente.

XXXII. Ora, salvo melhor opinião, devemos entender que aquilo que o legislador consagrou foi de facto a sua vontade, consagrando a solução que entendeu ser mais adequada, excluindo apenas do benefício da exoneração do passivo restante as “indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor”, e não quaisquer outras indemnizações, nomeadamente aquelas, como é o caso do Requerente, que atuou sem culpa (negrito nosso).

XXXIII. Da mesma forma, consideramos que esta norma também não poderá ser aplicada ao caso concreto, uma vez que também uma interpretação extensiva só deve ser levada a cabo em determinados casos, e nunca relativamente a restrição/redução de direitos.

XXXIV. Por tudo quanto o exposto, entende-se que outra interpretação não poderá ser dada à alínea b) do número 2 do artigo 245º do CIRE, devendo apenas ser excluídas do âmbito da exoneração do passivo restante as “indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade”.

XXXV. E as indemnizações em causa nos presentes autos não foram reclamadas/apresentadas nessa qualidade – facto ilícito doloso – uma vez que o acórdão que condenou o Requerente é claro quando indica que este não atuou com dolo (negrito nosso).

XXXVI.E salientamos o indicado no Despacho – “As indemnizações fixadas, segundo a equidade, são relativas à prática desses factos ilícitos e típicos.” (sublinhado nosso)

XXXVII. Inexistindo qualquer menção ao dolo com que o Requerente atuou porque, de facto, atuou sem dolo (negrito nosso).

XXXVIII. Aliás, é referido no Despacho que o n.º 2 do artigo 245º assume caráter taxativo, mencionando Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, pág. 871.

XXXIX.No entanto, o Tribunal a quo conclui de forma de completamente diferente, realizando uma interpretação extensiva da alínea b) do n.º 2 do artigo 245º do CIRE, com a qual não concordamos, nem nos conformamos.

XL. Devendo ser objeto de censura, da mesma forma, o Despacho recorrido por indicar que “Em conclusão, na previsão da alínea b) do n.º 2 do artigo 242.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas cabem, por interpretação extensiva, as indemnizações relativas aos créditos relacionados pelo requerente.”

XLI. Pois tal não pode ser admissível, já que se traduz numa redução e restrição dos direitos do Requerente.

XLII. Além de que, conforme indicado supra, não ser, salvo melhor opinião, o momento para o Tribunal a quo se pronunciar sobre esta questão,

XLIII. Nem poder o Tribunal a quo fazer depender a declaração da insolvência do Requerente da possibilidade deste beneficiar da exoneração do passivo restante.

XLIV. Ademais, igualmente não se entende o porquê de o Tribunal a quo ter analisado e realizado juízos de prognose quanto ao rendimento que virá a ser cedido pelo Requerente nos 3 (três) anos posteriores caso lhe fosse concedido o benefício da exoneração do passivo restante.

XLV. Uma vez mais, reforça-se que se entende não ser a fase processual indicada para tal.

XLVI. Além disso, e se o Tribunal a quo queria verificar se estavam verificados ou não os fundamentos de recusa do pedido de exoneração do passivo restante, é ao artigo 238º do CIRE que deve prestar atenção.

XLVII. E não estão verificados, in casu, nenhum desses fundamentos.

XLVIII. Ademais, também não se verifica uma violação do artigo 236º do CIRE, como o Tribunal a quo considerou, já que o devedor se dispôs a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes do mencionado código, sendo que o Tribunal a quo preferiu dar destaque à cessão do rendimento disponível.

XLIX. Ora, conforme indicado pelo Requerente aos autos, o mesmo encontra-se neste momento a frequentar no quadro do IEFP um curso de formação profissional de barbeiro/cabeleireiro de dupla certificação, frequência autorizada pela Mma. Juíza de Execução de Penas no quadro do Plano Individual de Inserção do Requerente, e no qual tem obtido aproveitamento com notas elevadas sendo de prever que o venha a concluir com sucesso, obtendo uma qualificação profissional numa atividade que pretende vir a exercer, e uma notação académica que lhe abre a possibilidade de se candidatar a qualquer emprego que exija como habilitação mínima o 12º ano, pelo que pode acontecer que venha ainda durante o período “de cessão” ou prova a desempenhar uma função remunerada (é aliás uma esperança que mantém) que lhe permita cumprir o dever enunciado, o que fará convictamente, pois o que lhe aconteceu foi uma tragédia totalmente involuntária, mas que marcou e marcará a sua vida para sempre.

L. Caindo assim por terra o argumento que o Tribunal a quo formulou e que conclui que o Requerente “não está em condições de beneficiar da exoneração do passivo restante que pretende obter com a propositura da presente ação.”, merecendo, uma vez mais, censura o Despacho recorrido.

Conclui pedindo que o recurso seja considerado procedente e que o despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que decrete a insolvência do Requerente.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se há (ou não) fundamento para indeferir liminarmente o pedido de declaração de insolvência por falta de interesse em agir do devedor.


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III.

Na decisão recorrida, foram enunciados os seguintes factos (com relevância para a decisão):

1. O Requerente AA nasceu no dia .../.../1998 e é solteiro (doc. 4 da p.i.).

2. No âmbito do processo comum colectivo n.º 321/19.... do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., por acórdão de 24-09-2020, transitado em julgado em 26-10-2020, cujo teor se dá por reproduzido, foi decidido:

Parte criminal:

1. Absolver o arguido AA, pela prática, de factos suscetíveis de integrarem a prática de 1 (um) crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo 132.º, do Código Penal e de 1 (um) crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelo 132.º, do Código Penal;

2. Julgar e declarar o arguido AA criminalmente inimputável e perigoso, em virtude de anomalia psíquica, para a prática dos factos ilícito-típicos que lhe vêm imputados na acusação, os quais integrariam a prática de um crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131.º, do Código Penal e um crime de homicídio tentado, p. e p. pelos artigos 131.º, 22.º e 23.º, do Código Penal;

3. Ordenar, nos termos do artigo 91.º n.ºs 1 e 2, do Código Penal, o internamento do arguido AA em estabelecimento adequada à sua cura, tratamento e segurança, pelo período mínimo de 3 (três) anos, até que cesse o seu estado de perigosidade social, medida esta que deve ser revista nos termos legais e com a duração máxima de 16 (dezasseis) anos.

[…]

Parte Civil:

Julgar os pedidos formulados pelas demandantes C..., EPE e Instituto de Segurança Social procedentes por provados e os pedidos formulados pelos demandantes BB, CC e DD parcialmente procedentes por provados e, em consequência:

1. Condenar o demandado/arguido AA a pagar ao demandante C..., EPE, a quantia global de 2.743,14 euros (dois mil setecentos e quarenta e três euros e catorze cêntimos) acrescidos de juros de mora à taxa legal em vigor desde a interpelação para pagar (20 de janeiro de 2020);

2. Condenar o demandado/arguido AA a pagar ao demandante Instituto da Segurança Social, a quantia global de 1.089,70 euros (mil e oitenta e nove euros e setenta cêntimos) acrescidos de juros de mora à taxa legal em vigor desde a notificação;

3. Condenar o demandado/arguido AA a pagar:

i) Ao demandante BB a quantia global de 55.000,00 euros (cinquenta e cinco mil euros) a título de danos emergentes e danos não patrimoniais (próprios e os devidos pelo sofrimento pelo falecimento de EE), acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor desde esta data;

ii) Ao demandante CC a quantia global de 30.000,00 euros (trinta mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor desde esta data;

iii) Ao demandante DD a quantia global de 30.000,00 euros (trinta mil euros) acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor desde esta data;

iv) Aos demandantes BB, CC e DD a quantia global de 345.000,00 euros (trezentos e quarenta e cinco mil euros), a título de sofrimento e perda do direito à vida de EE e danos futuros/lucros cessantes, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor desde esta data” [docs. 2, 3 e 4 da p.i.]

3. O Requerente declarou que não pode trabalhar por estar a cumprir o internamento ordenado na decisão mencionada no artigo anterior, que não pode antecipar a data em que cessará o cumprimento do mesmo.

4. O Requerente declarou que não tem património, bens móveis ou imóveis, para satisfazer o seu passivo e que se encontra numa situação de insolvência actual.

5. O Requerente declarou que, com autorização do Tribunal de Execução de Penas ..., está a frequentar um curso de formação profissional, com dupla certificação, de barbeiro/cabeleireiro com aproveitamento.

6. O Requerente relacionou os seguintes credores:

a) DD, dívida exequenda no valor de €145.000,00 (cento e quarente e cinco mil euros) – crédito comum;

b) C..., EPE, dívida exequenda no valor de €2.743,14 (dois mil, setecentos e quarenta e três euros e catorze cêntimos) – crédito comum;

c) INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, dívida exequenda no valor de €1.089,70 (mil e oitenta e nove euros e setenta cêntimos) – crédito privilegiado;

d) CC, dívida exequenda no valor de €145,000.00 (cento e quarenta e cinco mil euros) – crédito comum;

e) BB, dívida exequenda no valor de €170.000,00 (cento e setenta mil euros) – crédito comum.


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IV.

Apreciemos então o objecto do recurso.

Apesar de reconhecer que estava verificada – em face da matéria de facto alegada – uma situação de insolvência do Requerente, a decisão recorrida indeferiu liminarmente o pedido de declaração de insolvência por considerar verificada a excepção de falta de interesse em agir.

Considerou, para o efeito e em resumo:

· Que o interesse do Requerente em relação à declaração de insolvência se resumia ao deferimento do pedido de exoneração do passivo:

· Que o Requerente não reúne as condições necessárias para que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante, uma vez que, apesar de não preenchido o elemento “doloso” aí exigido, os créditos que relacionou devem considerar-se excluídos dessa exoneração nos termos da alínea b) do art.º 245.º do CIRE, por interpretação extensiva dessa norma, tendo em conta a sua ratio legis e tendo em conta a natureza desses créditos;

· Que, além do mais, não é previsível que o Requerente – por força do seu internamento – venha a dispor de qualquer rendimento que possa ceder e que tenha a possibilidade de exercer uma profissão remunerada, pelo que, também com esse fundamento, seria de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, por não preencher os requisitos da exoneração do passivo restante;

· Que, não estando em condições de beneficiar da exoneração do passivo e de, por essa via, alcançar a única utilidade relativa à instauração da presente acção, o Requerente não tem interesse na declaração da sua insolvência sendo certo que esta declaração redundaria na prática de actos e despesas inúteis.

Discordando dessa decisão, argumenta o Apelante:

· Que, existindo uma situação de insolvência, não poderia ter sido indeferido liminarmente o pedido de declaração dessa insolvência;

· Que, para efeitos de deferimento/indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência não poderá relevar a decisão a tomar sobre o pedido de exoneração do passivo restante, uma vez que tal questão não deveria ser apreciada nesta fase, mas sim em momento posterior;

· Que, além do mais, não é admissível a interpretação extensiva feita na decisão recorrida da alínea b) do n.º 2 do art.º 245.º, pelo que, ao contrário do que se considerou, os créditos relacionados pelo Apelante estão abrangidos pela exoneração;

· Que, além do mais, não se verificava nenhuma das situações que, nos termos do art.º 238.º do CIRE, pudessem justificar o indeferimento liminar da exoneração do passivo.

Pensamos que assiste razão ao Apelante.

Vejamos porquê.

O interesse processual ou interesse em agir – que tem sido encarado, pela doutrina e jurisprudência, como um pressuposto processual cuja falta corresponde a uma excepção dilatória inominada – consiste, segundo referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”, significando, em suma – como refere Pais do Amaral[1] –, que o direito do demandante está carecido de tutela judicial e que, como tal, tem necessidade de se socorrer dos tribunais, instaurando o respectivo processo. Como referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[2], “a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem que ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção – mas não mais que isso”.  Em sentido semelhante, afirma Manuel de Andrade[3] que “não se trata de um necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece”.

A falta de interesse em agir reportar-se-á, portanto, às situações em que o autor não tem uma necessidade justificada e razoável de recorrer aos tribunais para assegurar o seu direito ou para satisfazer a sua pretensão e, portanto, a decisão que viesse a julgar a acção procedente seria inútil ou perfeitamente dispensável porque, na realidade, não determinaria para o autor um qualquer benefício ou proveito prático que, de algum modo, justificasse a demanda do réu e a actividade do tribunal.

Esse interesse em agir manifesta-se e concretiza-se de formas diferentes consoante o tipo de acção que está em causa. Nas acções de condenação, ele resulta da violação do direito do autor por parte do réu – ou, pelo menos, da previsão dessa violação – concretizando-se, portanto, na necessidade de o autor obter a reintegração do seu direito; nas acções constitutivas, tal interesse radicará na circunstância de estar em causa um direito potestativo que não possa ser exercido mediante simples acto unilateral do seu titular, concretizando-se, por isso, na necessidade de recorrer ao tribunal para efectivar esse direito; nas acções de simples apreciação tal interesse resultará da circunstância de existir uma situação de incerteza que, além de ser objectiva (resultando, portanto, de factos ou circunstâncias exteriores ao autor e que não se reconduzam a meras dúvidas, apreciações ou valorações subjectivas), seja grave (por ser susceptível de causar prejuízo ao autor), concretizando-se, portanto, na necessidade – justificada, razoável e fundada – de o autor solicitar a intervenção do tribunal com vista à resolução/definição daquela situação.

Tendo em conta o disposto nos artigos 18.º e seguintes do CIRE, será seguro afirmar que, ainda que não esteja submetido ao dever legal de o fazer, o devedor terá sempre legitimidade e o direito de requerer a declaração da sua própria insolvência.  E, tendo esse direito, será difícil considerar que não tenha interesse em agir para o efeito de instaurar acção com vista à declaração de tal insolvência; sendo certo que a insolvência só pode ser decretada judicialmente, é certo que quem pretenda obter aquele efeito (declaração de insolvência) tem efectiva necessidade de recorrer ao tribunal para efectivar essa pretensão, não tendo outra forma de a assegurar.

Poder-se-á, no entanto, olhar para a questão na perspectiva do interesse/proveito que o devedor pretende retirar da declaração da insolvência nos casos em que não está submetido ao dever legal de a requerer. E, desse ponto de vista, não haverá dúvidas que, apesar de poderem existir outros interesses e proveitos para o devedor emergentes dos efeitos da declaração de insolvência, o seu interesse principal residirá na possibilidade de obter a exoneração do passivo restante ou a aprovação de um plano de pagamentos.

Mas, mesmo nessa perspectiva, não parece possível afirmar que o Requerente/Apelante não tivesse interesse em agir relativamente à declaração de insolvência porque ele requereu, de facto, a exoneração do passivo. Assim, se o Requerente pretendia obter a exoneração do passivo e sendo certo que não a podia obter sem ver declarada a sua insolvência, é certo que tinha interesse em agir relativamente ao pedido de declaração de insolvência.

Na verdade, o interesse em agir – ainda que fosse reportado ao concreto benefício que o Requerente pretendia obter (no caso, a exoneração do passivo) – não depende, ao contrário do que se considerou na decisão recorrida, da efectiva procedência desse benefício. Na verdade, o interesse em agir é um pressuposto processual ou formal cuja verificação não poderá estar dependente da apreciação do mérito da pretensão; a apreciação do mérito da pretensão é que está dependente da verificação dos pressupostos processuais necessários.

A entender-se – como entendeu a decisão recorrida – que o interesse em agir relativamente ao pedido de declaração de insolvência está dependente do facto de o interesse ou proveito que, com ela, o devedor pretende obter estar em condições de obter procedência, tal significaria que, quando esse interesse/proveito corresponde à obtenção da exoneração do passivo restante – como acontece frequentemente e como acontece no caso em análise – o despacho liminar da insolvência teria sempre que ponderar se tal benefício poderia (ou não) ser concedido e tal situação foi expressamente afastada pelo legislador quando estabeleceu que o despacho inicial da exoneração e a sua apreciação liminar seria proferido em momento posterior e não no momento em que é proferido o despacho liminar referente à declaração de insolvência.

Pensamos, por outro lado, que a decisão recorrida não estava habilitada a concluir – pelo menos na fase processual em que o fez – que o devedor não reunia condições para usufruir da exoneração do passivo e que, nessas circunstâncias e por esse motivo, não tinha interesse em agir para o efeito de requerer a declaração da sua insolvência.

São as seguintes as razões da nossa afirmação:

Primeira: a decisão recorrida – no sentido de justificar e considerar que os créditos relacionados estariam excluídos da exoneração e que, por isso, o Requerente não reunia as condições necessárias para a exoneração do passivo restante – adopta uma interpretação extensiva da alínea b) do n.º 2 do artigo 245.º do CIRE que é, ou pode ser, discutível e fá-lo, em sede de despacho liminar relativamente à insolvência num momento que não era (ainda) o apropriado para apreciar o pedido de exoneração do passivo restante e sem dar aos credores e ao administrador judicial (que, obviamente, não chegou a ser nomeado) a possibilidade de sobre ele se pronunciarem, conforme disposto no art.º 236.º, n.º 4 do CIRE. Embora não interesse, por ora, aprofundar essa questão e apreciar a correcção (ou não) da interpretação da norma que esteve subjacente à decisão recorrida, importará referir que a citada alínea b) apenas se reporta a factos ilícitos dolosos e, podendo entender-se[4] que aquilo que lhe está subjacente – e que justifica a exclusão do crédito da exoneração – é a especial censurabilidade da conduta que não se compatibiliza com o comportamento  recto e de boa fé do devedor que é pressuposto da concessão do benefício da exoneração do passivo, será, no mínimo, discutível que uma indemnização por facto ilícito praticado por inimputável possa ser aí enquadrada.

Segunda: ainda que os créditos relacionados pelo devedor estivessem excluídos da exoneração nos termos previstos no n.º 2 do citado art.º 245.º, essa circunstânia nem sequer constituiria fundamento legal para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo, conforme resulta do art.º 238.º onde são enunciados os fundamentos de indeferimento liminar (solução que, aliás, se compreende se tivermos em conta que podem existir outros credores além dos que são indicados pelo devedor e tendo em conta que, conforme dispõe o art.º 245.º, n.º 1, a exoneração importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, independentemente de terem sido indicados ou reclamados); ora, se essa circunstância não determinava o indeferimento liminar do pedido de exoneração, é certo que, por maioria de razão, não poderá justificar o indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência com fundamento em falta de interesse em agir.

Terceira: se é certo, conforme se disse, que a circunstância de os créditos relacionados pelo devedor estarem excluídos da exoneração nos termos previstos no n.º 2 do citado art.º 245.º não constituía fundamento legal para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo, a verdade é que tal circunstância nem sequer obstaria à efectiva concessão do benefício, já que tal circunstância não constitui – nos termos previstos nos artigos 243.º e 244.º –  fundamento para a sua recusa (o que – reafirma-se – pode ser compreendido à luz do disposto no n.º 1 do art.º 245.º de onde resulta que a exoneração do passivo não é concedida para créditos individualizados, mas sim – em termos gerais – para todos os créditos que possam existir – sejam ou não conhecidos e tenham ou não sido reclamados ou indicados pelo devedor – sendo, por isso, irrelevante, para efeitos de concessão da exoneração, que os créditos conhecidos estejam excluídos da exoneração por se integrarem nas situações previstas no n.º 2 da citada disposição legal). Catarina Serra admite, a este propósito, que a exoneração seja indeferida, por manifesta inutilidade, quando se torne seguro que todos os créditos sobre a insolvência estão excluídos da exoneração[5]. No entanto, ainda assim, seria sempre necessário que fosse seguro afirmar que todos os créditos sobre a insolvência estão excluídos da exoneração e, se é certo que tal segurança será sempre difícil de obter tendo em conta que podem existir créditos não reclamados cuja existência não chega ao conhecimento do tribunal, a verdade é que, de qualquer modo, ela nunca poderia ser afirmada na fase inicial/liminar do processo e apenas com base nas informações prestadas pelo devedor.

Quarta: não podemos ter como certo que o Requerente – por força do seu internamento – não venha a dispor de qualquer rendimento que possa ceder e que não tenha a possibilidade de exercer uma profissão remunerada, tendo em conta que tal internamento foi decretado por período variável entre o mínimo de três anos e o máximo de dezasseis e, portanto, existe a possibilidade – ainda que não muito provável – de o internamento cessar a tempo de o Requerente ter a oportunidade de exercer uma profissão e ceder rendimento; de qualquer forma, ainda que assim não seja, essa circunstância (imposta e resultante do internamento a que o Requerente está sujeito), não constituiria, só por si, fundamento para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo ou para recusar a exoneração à luz do disposto nos artigos 238.º, 243.º e 244.º[6]. Com efeito, a não obtenção de qualquer rendimento por força do internamento a que o devedor está sujeito não corresponderia, só por si, à violação de qualquer um dos deveres enunciados no art.º 239.º, n.º 4, e, ao contrário do que se considerou na decisão recorrida, não seria incompatível com a declaração do devedor (exigível para a formulação do pedido) de que se dispõe a observar todas as condições exigidas, sendo certo que nenhuma dessas condições (legalmente enunciadas) pressupõe a efectiva existência de rendimentos e o efectivo exercício de uma profissão remunerada; o que se exige é que o devedor procure diligentemente tal profissão (se, naturalmente, tiver possibilidade de o fazer) e a circunstância de o devedor estar impedido – por força do seu internamento – de procurar e exercer tal profissão não significa que ele não esteja disposto a fazê-lo se e a partir do momento em que tenha essa possibilidade.

Entendemos, portanto, em face de tudo o exposto, que não há fundamento para indeferir liminarmente o pedido de declaração de insolvência, revogando-se, por isso, a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento dos autos com vista à declaração de insolvência do devedor.


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V.
Pelo exposto, concedendo-se provimento ao presente recurso, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos com vista à declaração de insolvência do devedor.
Custas a cargo do Requerente (ou da respectiva massa insolvente, caso a insolvência venha efectivamente a ser declarada).
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                                      (Paulo Correia)                    




[1] Direito Processual Civil, 7ª ed., pág. 113.
[2] Ob. Cit. págs. 180 e 181.
[3] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora 1979, págs. 79 e 80.
[4] Cfr. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2018, págs. 575 e 576.
[5] Ob. cit., pág. 571, nota 884.
[6] Cfr. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2018, pág. 568, e jurisprudência aí citada.