Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
253/07.3TBLMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
CAUSA DE PEDIR
MANDATO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 12/02/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - LAMEGO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: 941º E SS DO NCPC E 1161 AL D) E 1178º DO CC
Sumário: I – A causa de pedir da acção de prestação de contas de mandatário advém do próprio mandato expressa na respectiva procuração;

II – Não incorre em abuso de direito na modalidade do “venire contra factum proprium” o A. que, residindo nos EUA constituiu procurador o R., seu irmão, residente em Portugal para aqui e na sua ausência, administrar todos os seu bens, ainda que só ao fim de cerca de 40 anos que perdurou o mandato viesse pedir judicialmente a prestação de contas;

III – O mandato com representação para administrar os bens cessa com a revogação da procuração.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

A..., residente nos Estados Unidos da América, propos contra seu irmão B..., residente no lugar (...), Lamego, acção com forma de processos especial de prestação de contas, requerendo que o mesmo apresente as contas relativas a todos os actos que praticou desde 20 de Junho de 1963 a coberto dos poderes de administração dos seus bens, conferidos através de procuração para agir em nome dele e que, entretanto, revogou em 13 de Setembro de 2004.

O R. contestou, desde logo excepcionando a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial, por falta de descrição dos bens da titularidade do objecto da administração e impugnou, em suma, a obrigação de prestar contas.

O A. respondeu, concluindo como na petição inicial e pediu a condenação do R. como litigante de má fé, em multa e indemnização não inferior a 10 UC.

Afigurando-se não poder a causa ser sumariamente decidida, foram mandados seguir os termos subsequentes ao processo comum ordinário.

Entretanto o A. foi convidado a concretizar a matéria de facto da petição, convite que declinou.

Designada audiência preliminar, na respectiva acta foi exarado o despacho saneador e seleccionada a matéria de facto assente e controvertida.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi respondida a matéria de facto da base instrutória e, proferida sentença, foi a acção julgada parcialmente procedente e o R. condenado a prestar contas ao A., mas apenas, com fundamento em abuso de direito, desde a citação, ou seja, 30.4.07, até à data da sentença.

Inconformados, recorreram ambas as partes, apresentando alegações que remataram com as seguintes conclusões:

I. O Réu

a) – A petição inicial é inepta por falta e ininteligibilidade da causa de pedir dado o A. não haver descriminado os bens e direitos sobre que recai a pretendida prestação de contas;

b) – A sentença recorrida, se a matéria de facto vertida nas alín.s I) a S) se reporta aos 2 prédios constantes da alín. F) dos Factos Assentes, porque litigiosa a sua propriedade, sobre eles não pode ocorrer qualquer prestação de contas, pelo que, relativamente a tais factos, houve erro de julgamento;

c) – O tribunal a quo fez errada interpretação dos art.ºs 192.º, n.º 2, alín. a) e 668.º, n.º 1, alín. a), do CPC.

II. O Autor

a) – O apelante revogou a procuração em 2004 pelo que, deixando de produzir efeitos desde essa data, não tem interesse na obtenção de informações acerca da gestão do seu património a partir de então;

b) – Pela relação de confiança subjacente à relação entre as partes é legítimo o pedido de prestação de contas face ao período a partir do qual foi conferida a procuração;

c) – Não se encontram preenchidos os pressupostos do regime do abuso de direito na modalidade do “venire contra factum proprium”;

d) – A decisão recorrida é uma decisão-surpresa, não tendo o abuso de direito sido alegado nem discutido pelas partes pelo que, afrontando o princípio do contraditório, incorreu em nulidade;

e) – Violou ainda o disposto nos art.ºs 573.º e 1161.º, alín. d) do CC e 3.º do CPC, pelo que deve ser revogada e determinada a prestação de contas desde 20.6.1963 até à data de revogação da procuração.

O A., enquanto recorrido, respondeu às alegações do R., no sentido da manutenção da sentença no tocante à obrigação de prestação de contas por banda deste desde a outorga até à revogação da procuração.

O R. não respondeu às alegações do A.

Dispensados os vistos, cumpre decidir, sendo questões a apreciar:

I. Quanto à apelação do R.:

a) – A nulidade processual por ineptidão da petição inicial;

b) – A impugnação, por erro de julgamento, da matéria de facto das ali.s ) I) a S) da sentença.

II. Quanto à apelação do A.

a) – Desde quando e até quando deve o R. prestar contas (revogação do mandato);

b) – O abuso de direito na modalidade do “venire contra factum proprium”;

c) – Se a sentença violou o princípio do contraditório ao conhecer oficiosamente e sem audição prévia das partes da excepção do abuso de direito.


*

2. Fundamentação

2.1. De facto

Foram os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida:

- A) Encontra-se junto a fls. 13 escrito designado de "Procuração", no que ora interessa, com o seguinte teor:

 Que no ano de mil novecentos e sessenta e três, aos vinte dias do mês de Junho, no escritório, na cidade de East Providence, Estado de Rhode Island, Estados Unidos da América do Norte e perante D... - Notário e as testemunhas adiante nomeadas e assinadas, comparece A..., operário, e sua mulher C..., doméstica, e seu tio F..., operário, solteiro, maior, residentes em (...), do Estado de Rhode Island, pessoas cuja identidade reconheço, por serem conhecidas das testemunhas e estas de mim pelos próprios. E disseram que constituem seu procurador em todo o território da República Portuguesa, B..., casado, empregado comercial, residente em (...), Queluz, a quem concedem todos os poderes em Direito permitidos para em nome deles outorgantes como se presentes fossem e com livre e geral administração civil, reger e gerir todos os seus bens e direitos, praticando, sem excepção nem limitação alguma, todos os actos próprios dessa administração ou a ele inerentes; e especialmente para ajustar e liquidar contas activas e passivas, receber rendas, saldos, fundos, juros, dívidas, rendimentos, géneros, heranças e tudo mais o que lhes pertencer, em qualquer parte, em qualquer tempo, e por qualquer via e titulo que seja, assim como passar recibos e quitações de todas as quantias de dinheiro, valores e objectos que receber; aceitá-los do que entregar ou pagar; fazer compra ou arrematação em hasta pública ou particularmente, de quaisquer bens e direitos, mobiliários ou imobiliários, pagando os preços ou convencionando a forma e prazo de pagamento e registando as transmissões na conservatória respectiva, dar dinheiro a juros; aceitar confissões de dívidas; aceitar fianças e outras garantias e registá-las na conservatória, quando isso tenha lugar; distratar títulos de divida; fazer, alterar, e cautelar manifestos; fazer arrendamentos, despedir rendeiros, fazer trocas de créditos de cotas hereditárias ou quinhões e os contratos que lhe pareçam a bem do interesse do outorgante; outrossim para, em juízo e fora dele requerer, alegar e defender todo o seu direito e justiça em quaisquer causas ou demandas civis, crimes, fiscais ou outras movidas ou por mover, em que os outorgantes forem autores ou réus e perante quaisquer magistrados e tribunais judiciais ou administrativos ou quaisquer outras repartições públicas, podendo fazer citar, oferecer acções libelos, excepções, embargos, suspeições e outros quaisquer artigos, contrariar, produzir, inquirir e perguntar testemunhas, dar de suspeito a quem lho for; prestar declarações e compromissos de honra ou juramentos, assistir ao termos de inventários e partilhas, amigável ou judicialmente, com citações para elas, licitar, nomear louvados ou árbitros nos casos em que tenham lugar, assinar autos, escrituras públicas ou particulares, títulos, requerimentos, protestos, contra protestos e termos, ainda os de confissão e negação, louvação, responsabilidade por perdas e danos, transacção e desistência; apelar agravar ou embargar qualquer sentença ou despacho e seguir estes recursos até maior alçada, fazer extrair sentenças, dá-las á execução e requerer arrestos e penhoras, assistir a autos de conciliação, e aí transigir, como bem entender. E nomeadamente os poderes de vender, hipotecar ou de outra qualquer forma alienar os seus bens, rústicos ou urbanos que lhe pertençam ou venham a pertencer, no todo ou em parte..... seguindo suas cartas de ordens e avisos particulares, que sendo preciso, serão considerados como parte desta, mas deverá substituir-se por advogado ou procurador habilitado, sempre que tenha de recorrer a juízo. E tudo quanto assim for feito pelo seu procurador ou substabelecidos promete haver por valioso e firme, reservando para suas pessoas toda a primeira e nova citação. Assim o disseram e outorgaram do que dou fé e me pediram estes instrumento a que foram testemunhas presentes G..., viúva, empregada comercial, e H..., solteira, maior, guarda-livros, residentes nesta cidade de East Providence, Estado de Rhode Island. Pelo facto outorgante F... não saber escrever o seu nomes, assina a seu rogo D..., casado, comerciante, residente nesta dita cidade de East Providene, que assinam com os outorgantes e comigo, notário, depois, deste ter sido por mim lido em voz alta na presença simultânea de todos.

" A..."

 " C..."

 "A rogo. D..."

 " G..."

 " H...""

 - B) Encontra-se junto a fls. 16 escrito designado de "Instrumento de Revogação", no que ora interessa, com o seguinte teor:

- No dia 13 de Setembro de dois mil e quatro, no escritório localizado em (...), cidade Central Falls, Estado de Rhode Island, Estados Unidos da América do Norte, perante mim, E..., Notário Público no condado de Providence, compareceram como outorgantes: A..., natural da Cidade de Central Falls, Estado de Rhode Island, portadora do cartão de identificação n.º (...), emitido em Rhode Island, casados segundo o regime de comunhão geral de bens, ambos residentes neste país em (...), estado de Rhode Island 02864, pessoas cuja identidade verifiquei através dos documentos apresentados e por serem minhas conhecidas.

E por eles foi dito que pelo presente instrumento revogam, consideram nula e de nenhum efeito a partir desta data, as procurações públicas outorgadas no ano de 1963, em East Providence, Estado de Rhode Island, EUA, no dia 18 de Janeiro de 2001, em Lamego, Portugal, e a de 30 de Setembro de 2003, em Central Falls, estado de Rhode Island, EUA, a favor do Senhor B..., casado, natural de (...), Lamego.

Fiz aos outorgantes, em voz alta e na presença de ambos, a leitura e a explicação do conteúdo deste instrumento.

Os Outorgantes

" A..."

 " C..."

O Notário:

" E...""

- C) O autor enviou ao réu carta, 30.08.2005, para a residência deste nos Estados Unidos da América, da revogação referida em B).

- D) O Réu recusou a referida carta que foi devolvida ao autor pelos Serviços Postais.

- E) A fls. 18 encontra-se anúncio do jornal "Lamego Hoje" de 6/10/2005, com o seguinte teor:

"No dia treze de Setembro de dois mil e quatro, no escritório localizado em (...), cidade de Central Falls, Estado de Rhode Island, estados Unidos da América, perante E..., Notário Público no Condado de Providance, compareceram como outorgantes: A..., natural da Cidade de Central, Falls, estado de Rhode Island, portador da carta de condução N.º C..., emitido em Rhode Island, e sua mulher C..., natural de valley Falls, estado de Rhode Island, portadora do cartão de identificação N.º (...), emitido em Rhode Islande, casados segundo o regime de comunhão geral de bens, ambos residentes nesse País em (...), Estado de Rhode Island 02864, pessoas cuja identidade verifiquei através dos documentos apresentado e por serem minhas conhecidas.

E por eles foi dito que pelo presente instrumento revogam, consideram nula e de nenhum efeito a partir desta data, as procurações públicas outorgadas no ano de 1963, em East providence, estado de Rhode Island, EUA, no dia 18 de Janeiro de 2001, em Lamego, Portugal, e a 30 de Setembro de 2003, em Central Falls, Estado de Rhode Islande, EUA, a favor do Senhor B..., casado, natural de C..., Lamego.

Fiz aos outorgantes, em voz alta e na presença de ambos, a leitura e a explicação do conteúdo deste instrumento.

Os Outorgantes

 " A...

" C..."

O Notário

" E..."

- F) Corre termos neste Juízo o processo Acção Declarativa com processo comum e forma SUMÁRIA, sob o n.º 35/07.2TBLMG em que são autores:

B..., casado no regime da separação de bens, CF 183054407, com residência habitual em Várzea de Abrunhais e: 1ºs RR- A... e mulher C..., casados na com. adquiridos, residentes nos USA, C..., Estado de Rhode Island, 02864, 2ºsRR- F... e marido G..., casados na com. ger. bens, residentes na (...) e concelho do Porto.

Na qual o pedido consiste em:

I - Declarar-se:

1º) – Na sua vertente principal:

A – Que as 3 parcelas provenientes da divisão de facto ocorrida em 1934 – a do 1º R, a do A. e a que fora de seu irmão H..., tal como vêm referidas em I.5,6, e à data de 1968 – eram já parcelas distintas entre si.

B – Que a parcela do A. e a do 1º R formam, hoje e em conjunto, um só prédio rústico, em tudo distinto da parcela que fora pertença de seu irmão H..., com a descrição referida em I.11, cujo teor aqui se dá por reproduzido, tendo-se aquele e esta, autonomizado por usucapião.

C – Que o A. é proprietário, por o ter adquirido à luz do mesmo instituto, do prédio rústico atrás referido, ou seja, do que hoje engloba as duas parcelas atrás referidas, e que tem a seguinte descrição:

“Prédio rústico, com a área de 5.000m2, a confrontar do nascente com caminho de consortes, do norte com a 2ª Ré, do poente, com herdeiros de I... e do sul com B..., a que correspondem, na matriz de V. Abrunhais, 2/3 do art. 99- D”, e na CRP de Lamego, a descrição sob Nº42.625, do L.B-116,fls 196-v (Cf. doc.3).

2º – Na vertente subsidiária, para a hipótese de vir a decidir-se que essas duas parcelas – a do A. e a do 1º R – se encontram, ainda, em situação de compropriedade:

A – Que ao outorgarem na escritura referida no item I-25, mais não pretenderam os 1ºs RR senão alienar, e os 2ºs adquirir, uma parte certa e determinada de coisa comum;

B – Que a escritura de compra e venda com justificação outorgada pelos RR no Cart. Not. Lamego em 06.06.02, por configurar venda de coisa alheia, é nula, inoponível ao A. e absolutamente ineficaz em relação a si.

II – Consequentemente, condenarem-se todos os RR a reconhecerem os direitos do A, devendo os 2ºs RR retirar os paus de demarcação, fios, pedras, arames e outros materiais que colocaram ou venham a colocar nesse prédio, bem como a absterem-se de, no futuro, praticarem ali actos semelhantes;

III – Ordenar-se: A – O cancelamento da inscrição na CRP a favor dos 2ºs RR de 1/3 do rústico que fora objecto da referida escritura de compra e justificação concomitante celebrada em 06.06.02, inscrição que ali foi feita através das Apresent. 8 e 9 de 2006/07/07 e Averb. - Ap. 5 e 6 de 2006/08/03.

B – E, ainda, por não corresponderem à realidade, o cancelamento de todas as inscrições posteriores à cota G-3, Ap.10/071099;

IV – E para a hipótese de apenas vingar o pedido reconvencional subsidiário formulado em III, deverá proceder a reconvenção, condenando-se os 1ºs RR a indemnizarem o A. pelo valor actualizado das despesas que seria necessário efectuar com o furo artesiano, respectiva bomba de imersão e tanque, todos referidos no item I.19, cujo montante, face às razões aduzidas, deverá relegar-se para execução de sentença;

- G) Corre termos no 2.º Juízo, a acção de preferência, com processo sumário sob o n.º36/07.0TBLMG em que é autora: J..., CF (...), casada na separação de bens, com residência habitual em Várzea de Abrunhais, e réus:

1ºs A... e mulher C..., casados na com. Adquiridos, residentes nos USA, (...), Estado de Rhode Island, 02864;

2º- F... e marido G..., casados na com. ger. bens, residentes na (...)e concelho do Porto;

Nesta, o pedido consiste em:

a) Decretar-se que assiste à A, enquanto arrendatária de parte do prédio em causa, o direito de preferir na compra da fracção de 1/3 - ainda que venha decidir-se que a mesma está indivisa - ou da parcela de terreno em que a mesma se materializa, se vier a entender-se que a mesma já se autonomizou em parcela independente e distinta das demais;

b) Consequentemente, que assiste à A. o direito de se substituir aos RR compradores na escritura de justificação de 06.06.02, havendo essa fracção ou parcela para si, pelo preço ali declarado de € 5.000,00;

c) Condenarem-se os 2ºs RR. a abrirem mão desse bem e ainda em custas e procuradoria, com as demais consequência de lei;

d) Ordenar-se à CRP, caso a presente acção venha proceder, o cancelamento da inscrição que ali se fez constar a favor dos 2ºs RR na CRP, através das apresentações 8 e 9 de 2006/07/07 e Averb. - Ap. 5 e 6 de 2006/08/03.

- H) O réu celebrou em nome do Autor, negócios variados, nomeadamente contratos de arrendamento, de compra e venda de imóveis e outros, de que não lhe deu qualquer conhecimento;

- I) O réu a partir de Janeiro de 1968, passou a granjear e mandar cultivar os prédios onde ambos figuravam como co-titulares como de uma só unidade agrícola se tratasse;

- J) Fazendo seus os respectivos rendimentos;

- L) Sem nunca ter prestado contas ao autor ou a ninguém;

- M) E sem que este alguma vez lhas tivesse exigido ou mesmo pedido;

- N) O que tudo tem feito o réu sem interrupção, desde há 43 anos;

- O) À vista de toda a gente;

- P) Sem oposição de ninguém;

- Q) E, muito menos, do Autor, a quem nunca deu quaisquer satisfações;

- R) Agindo perante toda a gente como único dono dos prédios que administra;

- S) Sendo respeitado como tal por todos os proprietários dos prédios vizinhos.


*

            2. 2. De direito

Como é sabido, são as conclusões do recurso que delimitam o objecto deste, não podendo conhecer-se de questões nelas não versadas, salvo se forem de conhecimento oficioso (art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do NCPC).

E, recortadas que foram, comecemos pelas alegações do recorrente R.  

I. A apelação do R.

a) – A nulidade de processo por ineptidão da petição inicial por falta ou ininteligibilidade da petição inicial

Versa o presente processo especial do art.º 1014.º e ss do CPC (a que ora corresponde o art. 941.º e ss do NCPC) sobre uma acção de prestação de contas requerida pelo A. enquanto outorgante, como mandante, da procuração que juntou e conferiu ao R. enquanto mandatário, cuja obrigação deriva, além do mais, do art.º 1161.º, alín. d), do CC, mandato esse com representação, dados os termos da procuração e a intervenção em nome dos mandantes (art.º 1178.º do CC).

Como, com a clareza que lhe é peculiar, sustenta A. dos Reis[1], o princípio geral subjacente à obrigação de prestação de contas é este: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses.

Essa obrigação é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (art.º 573.º do CC).

Aqui, tal como refere Almeida Costa[2], em ordem ao princípio transversal da boa fé pode dizer-se que “será obrigado a prestar informações sobre a existência ou o conteúdo de um direito todo aquele que se encontre em situação de o fazer, contando que as dúvidas do respectivo titular seja fundadas”.

Através daquela procuração o A., então residente nos EUA, concedeu ao R., então residente em Portugal, “todos os poderes em direito …e especialmente para….”, seguindo-se uma amplitude de actos que abarcam, de forma diríamos completa e exaustiva, a vida económica de qualquer pessoa, desde o recebimento de rendas, dinheiros…compras e vendas, hipotecas, etc, etc.

Sustenta o R. recorrente que, no caso, não basta a mera invocação de que o recorrente, enquanto procurador do A., praticou actos que o obrigam a prestar contas, antes, na petição inicial, deveria ter descriminado os bens e direitos sobre que recaía a pretendida prestação de contas e, porque o não fez na petição, esta é inepta por absoluta falta de causa de pedir.

Não tem razão.

Como é sabido, a causa de pedir em qualquer acção consiste no acto ou facto jurídico de onde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer (art.º 581.º, n.º 4, do NCPC)[3].

Reportada à acção de prestação de contas, também a causa de pedir, na expressão de A. dos Reis[4], é o acto ou facto que justifica o pedido e razão por que o autor pede contas ao réu, ou “a razão por que se julga no direito de exigir a prestação de contas e por que entende se sobre o réu impende a obrigação de as prestar”.

Ora, essa razão, ou seja, a causa de pedir, traduz-se no mandato com representação que o A. conferiu ao R. na procuração que juntou com vista a administrar o seu património em Portugal.

A obrigação de informação daí decorrente e a dúvida fundada do mandante, desde logo pela sua ausência em país distante e pela amplitude material e temporal do mandato torna fundada qualquer dúvida, sendo que o R, porque de factos pessoais se trata, está em melhores condições de prestar as informações necessárias correspondentes às contas da administração (cit. art.º 573.º do CC).

Daí decorre não estar o A. obrigado a individualizar todo e qualquer dos bens e direitos sobre que possa ou deva recair a prestação de contas, embora nos termos legais deva ser ele a apresentá-las se o R. o não fizer, este fincando, no entanto, impedido de as contestar (art.º 943.º, n.ºs 1 e 2, do NCPC).

O A. alegou, portanto, a causa de pedir o que, contrariamente ao ainda alegado, é claramente inteligível, já que não obscura nem ambígua[5].

Porque não inepta a petição inicial, indefere-se a nulidade arguida.


*

b) – A impugnação da matéria de facto

            Não são claros os termos em que o R. recorrente assenta a alegação da impugnação do teor das alín.s I) a S) dos factos dados como provados na sentença.

Não se vislumbra, contudo, onde possa constar o erro de julgamento.

O recorrente parece querer dizer que tal matéria é deficiente ou obscura e, daí, que esta Relação pudesse proceder à sua anulação ao abrigo do disposto do art.º 662.º, n.º 1, alín. c) do NCP (anterior art.º 712.º, n.º 4, do CPC).

Mas não é.

Reporta-se a mesma à administração dos prédios (de todos eles, que não de alguns dos indicados na alín. F) até porque … não é só em relação a um deles que se discute a propriedade, no outro sendo de preferência que se trata?) geridos pelo R. ainda que só parcialmente alheios (compropriedade entre o A. e ele próprio).

O R. recorrente reporta-se ainda à violação da alín. c) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC, ou seja, invoca a nulidade de sentença por oposição dos fundamentos com a decisão.

Não indica, contudo, nem se enxerga, onde resida tal vício!

Soçobrando, assim, todas as conclusões recursivas, importa julgar improcedente a apelação do R.


*

II. A apelação do A.

a) – O abuso de direito

Embora parca e minimalista na fundamentação, a sentença recorrida julgou abusivo o direito da A. porquanto até à data de entrada em juízo nunca pedira contas ao R. pela administração dos bens, cujas contas ora julgou dever prestar e porque essa administração se estendeu por cerca de 40 anos (que não o diz, mas supõe-se), o que terá feito crer ao R. já não lhas pedir, a sua atitude, agora, traduzida nesse pedido, é abusiva por “venire contra factum proprium”.

Daí que houvesse fixado ao R. a obrigação de prestar contas somente desde que o pediu, ou seja, desde a citação e até à sentença.

Ora, não se compreendendo o raciocínio da sentença – se o direito era abusivo, por frustrar a confiança do R. não era para todo o sempre? – Ficcionou-se uma interrupção dessa frustração com que fundamento?

Entendeu a sentença que o A., qualquer autor, está onerado com o pedido prévio (extrajudicial) de prestação de contas?

Se entendeu, não entendeu bem (sdr).

Já vimos que a obrigação para o R. de prestar contas deriva do mandato (com representação), obrigação essa decorrente da alín. d) do art.º 1161.º do CC e reportada, como aí se indica, ao final do mandato ou  ao momento que o mandante exigir as contas.

Porque se trata de mandado com representação, como já vimos, a revogação da procuração implica a revogação do mandato (art.º 1179.º).

Fora o mandato geral, poderia terminar unilateralmente nos termos do art.º 1170.º, n.º 1, do CC.

Mas, será que há abuso de direito na modalidade invocada do “venire”?

- O abuso de direito, consagrado no art.º 334.º do CC, mais não é que um expediente técnico ditado pela consciência jurídica para obtemperar em algumas situações particularmente clamorosas, às consequências da rígida estrutura das normas legais e ocorrerá quando certo direito, em si mesmo válido, seja exercido em termos que ofendam o sentimento de justiça dominante na comunidade, tudo se passando, então, como se esse direito não existisse[6].

De acordo com o adquirido pela jurisprudência, o abuso de direito, consubstanciado no venire consiste em alguém exercer um direito depois de criar a aparência à contra-parte de que o não exercia, causando-lhe essa legítima convicção.

Ora bem.

A situação em apreço não se compatibiliza com esse instituto.

O facto de o mandato conferido pelo A. ao R. para administrar os seus bens ter durado cerca de 40 anos e só agora o mesmo vir pedir a prestação das respectivas contas, eles que são irmãos, o A. a viver nos EUA e o R., pelo menos à data da procuração, em Portugal, e sem que fosse provada, muito menos alegada, qualquer situação de conduta contraditória frustradora da confiança do R., a sua conduta está longe de ser “clamorosamente ofensiva da justiça”, para utilizar a sempre conhecida expressão de Manuel de Andrade.

Importa, pois, revogar, nessa parte, a sentença e reportar a obrigação à data de início da administração dos bens alheios e/ou parcialmente alheios, ou seja, da procuração (20.6.63).

Até quanto?

- Obviamente até à data da revogação ocorrida em 13.9.04, data essa para que o pedido foi reduzido e não teve, de resto, oposição expressa na contestação, desde então se tendo o mandato como extinto ou caduco.

Afastado que está o abuso de direito em que a sentença se louvou, prejudicada ficou a apreciação da questão da violação do princípio do contraditório por falta do seu conhecimento sem se ter dado às partes a oportunidade de sobre ela se pronunciarem.

Procede, portanto, a apelação do A.


*

            3. Resumindo e concluindo, em jeito de sumário:

            I – A causa de pedir da acção de prestação de contas de mandatário advém do próprio mandato expressa na respectiva procuração;

            II – Não incorre em abuso de direito na modalidade do “venire contra  factum proprium” o A. que, residindo nos EUA constituiu procurador o R., seu irmão, residente em Portugal para aqui e na sua ausência, administrar todos os seu bens, ainda que só ao fim de cerca de 40 anos que perdurou o mandato viesse pedir judicialmente a prestação de contas;

            III – O mandato com representação para administrar os bens cessa com a revogação da procuração.


*

            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar:

a) – Improcedente a apelação do R.;

b) – Procedente a apelação do A. e em consequência revogar, em parte, a sentença recorrida e condenar o R. a prestar contas ao A. desde 20 de Junho de 1963 até 13 de Setembro de 2004, no mais a mantendo.

c) – Custas, em ambas as instâncias, pelo R.


***

Francisco Caetano (Relator)

António Magalhães

Ferreira Lopes



[1] “Processos Especiais”, I, pág. 303.
[2] “Direito das Obrigações”, Almedina, 3.ª ed., pág. 550.
[3] Manuel de Andrade, Noções Elem. de Proc. Civil”, 1976, pág. 111.
[4] Ob. cit., pág. 314.
[5] Antunes Varela, et al., “Manual de Proc. Civil”, 1985, pág. 246.        
[6] Almeida Costa, ob. cit., pág. 58 e ss.