Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
26/08.6EACTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: PROVA
LEITURA PERMITIDA DE AUTO
JOGO CLANDESTINO
COMPETÊNCIA
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 04/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 164º, AL. U) CRP, 163º,355º, 356º, Nº 1, ALÍNEA B) ,355º, Nº 1 DO CPPE AL. AA) DO N.º 2 DO ARTIGO 3.º E 15ºDO DECRETO-LEI N.º 274/2007
Sumário: 1. É permitida, mas não obrigatória, a leitura de documentos ou de prova pericial junta aos autos e que, independentemente dessa leitura, tais provas têm valor em julgamento, nomeadamente para formação da convicção do tribunal.

2. A alínea aa) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 274/2007, de 30 de Julho, enquanto atribui competências à ASAE para desenvolver acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de jogo ilícito, e o artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 274/2007, na parte em que confere poder de órgãos e autoridade de polícia criminal à ASAE, em conjugação com a atribuição de competências para prevenir certos crimes que lhe é feita no artigo 3.º, n.º 2, alínea aa) do mesmo diploma, não padecem do vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 164.º, alínea u), da Constituição da República Portuguesa

Decisão Texto Integral: I. Relatório

No processo comum colectivo nº 26/08.6EACTB do 2º Juízo do Tribunal Judicial de ... o arguido F..., devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento mediante acusação pública da prática de:

- Um crime de corrupção de substâncias alimentares ou medicinais p. e p. pelo artigo 282º, nº 1, alínea b) do Código Penal, com referência à alínea a), desse preceito;

- Um crime de abate clandestino p. e p. pelo artigo. 22º, nº2, com referência ao nº 1, alínea a), desse preceito;

- Um crime contra a genuidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, p. e p. pelo artigo 24º, nº1, alínea c), ex vi do artigo 82º, nºs. 1 e 2, alínea c), todos do Decreto-Lei nº 28/84 de 20/1 .

Por acórdão de 8 de Julho de 2009 foi decidido condenar o arguido F... pela prática, em concurso real e sob a forma consumada, de:

1. Um crime de corrupção de substâncias alimentares ou medicinais p. e p. pelo artigo 282º, nº1, alínea b) do Código Penal, com referência à alínea a) desse preceito na pena de um ano e seis meses de prisão;

2. Um crime de abate clandestino p. e p. pelo artigo 22º, nº 2, com referência ao nº 1, alínea a) desse preceito, do Decreto-Lei nº 28/84 de 20.1, na pena de seis meses de prisão e cinquenta dias de multa, à taxa diária de cinco euros, ou seja em duzentos e cinquenta euros de multa;

3. Um crime contra a genuidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares p. e p. pelo artigo 24º, nº 1, alínea c), ex vi do artigo 82º, nºs. 1 e 2, alínea c), ambos do Decreto-Lei nº 28/84 de 20.1, na pena de sete meses de prisão e cinquenta dias de multa, à taxa diária de cinco euros, ou seja, em duzentos e cinquenta euros de multa;

4. Operando o cúmulo jurídico das penas, condenar o arguido na pena única de prisão de dois anos, e na pena única de multa de setenta dias, à referida taxa diária, ou seja, em trezentos e cinquenta euros de multa;

5. Atenta a idade do arguido, as suas habilitações literárias, e as circunstâncias dos crimes, suspender, nos termos do artigo 50º nº 1 do Código Penal, a pena única de prisão por dois anos.

6. Determinar o encerramento do estabelecimento por sete meses, nos termos do artigo 17º, nº 1 do Decreto-Lei nº 28/84, a perda dos bens apreendidos, em conformidade com o disposto no artigo 8º alínea a) e 9º nº 1, 22º nº 4 e 24º nº 3 do Decreto-Lei nº 28/84 e 109º nº 1 do Código Penal e a publicação do Acórdão, ao abrigo do disposto nos artigos 8º, nº 1, alínea l), 17º, nº 4, 22º, nº 5, e 24º, nº 4 do Decreto-Lei nº 28/84.

Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido, rematando a correspondente motivação com as seguintes conclusões:

1) Os artigos 15 e 3 al. h) do D.L. 274/2007, de 30/07, que instituiu a ASAE, são organicamente inconstitucionais, na medida em que criam um órgão de policia criminal com competências próprias para lavrar autos de noticia, matéria que de acordo com o artigo 164 al. d) e n) da constituição da República Portuguesa é de reserva especifica e absoluta da Assembleia da República e não do governo que, no caso concreto, legislou sobre tal matéria.

2) Por assim ser, não podiam os Inspectores da ASAE ter efectuado a diligência e elaborado o auto de noticia, que assim se deve julgar como nulo, inexistente ou inválido, o que também constitui falta de inquérito, cominada pelo artigo 118 n° 3 do C.P.P. como nulidade insanável.

3) O Tribunal recorrido socorreu-se de prova que não podia apreciar nem valorar para dar como provados os pontos 3 e 7 a 11 da factualidade dada como provada.

4) Isto porque o auto de perícia de fls. 25 invocado para sustentar essa matéria de facto, foi elaborado por pessoas não ouvidas em audiência.

5) Essas pessoas não têm a qualidade de peritos, por não terem prestado o respectivo compromisso, como determina o artigo 156 do C.P.P., pelo que o auto que elaboraram não tem o valor de prova pericial.

6) Logo, tudo o que o auto reproduz e não foi confirmado por ninguém em audiência, não pode ser valorado nem dado como provado, em atenção ao disposto no artigo 355 do C.P.P.

7) Os inspectores da ASAE ouvidos (D..., gravação no CD em 01/06/2009 com inicio às 15h45m52s e A..., gravação no mesmo CD e no mesmo dia com inicio às 16h16m48s) declararam que só a médica veterinária identificada no denominado auto de perícia é que podia explicar e confirmar que os alimentos apreendidos estavam avariados, corruptos e eram provenientes de abate clandestino.

8) Como a acusação não arrolou essa testemunha nem o Tribunal ordenou que fosse inquirida, toda a factualidade dos pontos 3 e 7 a 11 dos factos provados foi incorrectamente julgada e dada como verificada.

9) Também ninguém confirmou em audiência que o arguido foi notificado para nomear um consultor técnico, como impõe o artigo 155 do C.P.P., o que também inviabiliza que o auto em causa possa ser valorado como prova pericial, que, de resto, não dispensa que os peritos fundamentem as suas respostas ou conclusões, o que no caso não aconteceu.

9) A sentença recorrida não fundamenta nem explica a razão pela qual dá como provado o facto do ponto 13, (também incorrectamente julgado), ou seja, que a carne de porco, cabrito, coelho, aves e espécies cinegéticas não apresentam qualquer marca ou sinal comprovativo da respectiva inspecção sanitária, o que constitui inobservância dos requisitos do artigo 374 n° 2 do C.P.P. e a nulidade prevista no artigo 379 n° 1 al. a) do mesmo diploma.

10) Ninguém afirmou em audiência que o arguido destinava os produtos à venda ao público, não sendo suficiente o juízo de experiência decorrente das quantidades apreendidas e do local onde se encontravam, quer porque foram pesadas ou medidas "a olho", como afirmou o inspector D... (vide gravação já citada), quer porque há quantidades perfeitamente compatíveis com o consumo doméstico, quer porque o arguido vivia no Restaurante, guardando nas mesmas arcas produtos de consumo próprio e de  venda ao público.

11) Daí que também o ponto 14 da matéria de facto tenha sido incorrecta e precipitadamente julgado, incorrendo o Tribunal recorrido, neste caso particular, em erro notório na apreciação da prova.

12) A sentença recorrida violou ou interpretou incorrectamente os artigos 164 al. d) e n) do CRP, 118 n° 3, 127, 155, 156, 355, 374 n° 2, 379 do C.P.P. e artigo 282 n° 1 al. b) do Cód. Penal e 22 n° 1 a) e 2 e 24 n° 1 al. c) do D.L. 28/84 de 20/01.

Assim,

Deve a mesma ser substituída por outra que julgue inconstitucionais os citados preceitos do D.L. 274/2007 e, em qualquer caso, absolva o arguido dos crimes por que foi condenado.

Assim se fará JUSTIÇA!!!!

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso interposto, concluindo o seguinte:

I. A ASAE não é uma força de segurança, possuindo antes a natureza de um serviço central da administração directa do Estado, dotado de autonomia administrativa, com a missão de, para além do mais, fiscalização e prevenção do cumprimento da legislação reguladora do exercício das actividades económicas.

II. O D.L 274/2007 de 30/07, na parte em que atribui à ASAE poderes de autoridade e a define como órgão de polícia criminal, não é organicamente inconstitucional, por não se tratar de matéria de reserva legislativa absoluta da Assembleia da República.

III. Os peritos que tiveram intervenção no auto de notícia foram a Autoridade de Saúde do Concelho de ... e o Médico Veterinário Municipal, sendo que tiveram intervenção na qualidade de funcionários públicos e no exercício das suas funções.

IV. Assim sendo, os mesmos, por força do preceituado no art.91 ° n°6 do Código de Processo Penal, estavam dispensados de prestar o compromisso, pelo que o auto de perícia terá, necessariamente, de ser considerado como tendo o valor de prova pericial.

V. Resulta do auto de perícia constante nos autos que a advertência do disposto no art.155° do Código de Processo Penal foi feita e que tal auto foi assinado pelo arguido.

VI. Falece, pois, toda a argumentação expendida pelo recorrente sobre a não valoração da perícia enquanto tal, sendo, obviamente, desnecessária a audição dos peritos ou a inquirição de outras pessoas sobre o conteúdo de tal auto pericial

VII. O tribunal "ad quo" valorou e ponderou adequadamente a prova produzida, fazendo-o com o respeito pelos critérios legais consagrados no nosso ordenamento jurídico, relatando na sentença proferida a forma como foram dados como provados e não provados os factos, não se vislumbrando que pudesse ter existido outra posição por parte do tribunal.

VIII. Não se vislumbra a existência de falta de fundamentação do auto de perícia, uma vez que ali é explicado o modo como foi efectuado o exame, o resultado de tal observação e a conclusão a que chegaram os peritos.

IX. Analisando o teor da fundamentação do acórdão dúvidas não restam que aí é explicado o modo como o Tribunal fundou a sua convicção, não colhendo assim os considerandos expedidos pelo arguido, a este respeito, tendo­-se, necessariamente, de concluir pela inexistência de nulidade do acórdão, pois o mesmo deu cumprimento às exigências contidas no art.374° n°2 do Código de Processo Penal.

X. No caso sub judice, nenhuma das conclusões extraídas da prova J produzida em audiência de julgamento, e que permitiram alicerçar a convicção do Tribunal se mostram contrárias ao que efectivamente resultou provado e não provado, às regras da experiência ou à lógica corrente, não se vislumbrando a existência de erro notório na apreciação da prova.

XI. Pelo exposto, entendemos que falecem de razão todos os argumentos invocados pelo recorrente, não merecendo censura o acórdão proferido pelo tribunal "ad quo", o qual deverá ser mantido na íntegra e assim improceder o recurso.

         

          Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto acompanhou a resposta do Ministério Público na 1ª Instância, emitindo, contudo, o seguinte parecer:

QUANTO AO DIREITO.

No que respeita ás considerações feitas quanto ao estatuto da ASAE como " força de segurança " e a reserva absoluta da A. R. para legislar sobre tal matéria, o que implicaria a pretendida nulidade absoluta por falta de inquérito prevista no art° 118° n° 3 do CPP, apenas se nos oferece dizer que a posição do nosso Ex.m° colega na 1ª instância coincide com a nossa e a do M.° P.° no Tribunal Constitucional, como se pode constatar das Alegações recentemente apresentadas no proc. N° 656/09 da 1a sec. daquele  T. C. e de que se junta cópia.

E não será por demais relembrar que a decisão da Relação de Lisboa citada pelo recorrente, de 25-06-2009, foi tirada em processo que seguiu a forma sumária, com a consequente valoração do conteúdo do auto de notícia, e em que não houve dedução de acusação pública, o que não ocorre nestes autos.

No que á alegada falta de fundamentação respeita (conclusão 9), temos para nós que o Tribunal recorrido fez uma cuidada apreciação crítica da prova, não merecendo reparo algum neste ponto.

Aliás, estranha-se que o arguido só após mais esta condenação (a terceira desde 2005) venha apenas em sede de recurso defender uma posição que se mostra contrária á sua postura durante a fase anterior dos autos. Com efeito, não nomeou consultor de sua confiança, conformando-se com os pareceres que as autoridades de saúde concelhia emitiriam, como se conclui de fls. 25 e é confirmado no douto acórdão a flh. 155. Para além disso, não propôs diligências apesar de notificado para tanto, como se limitou a oferecer o merecimento dos autos e apenas fez ouvir em sua defesa duas testemunhas - fls. 141.

QUANTO AOS FACTOS

Pede o arguido a sua absolvição - fls. 181 - não tocando na qualificação jurídica dos factos nas penas impostas.

Para tanto, invoca a ocorrência de um dos vícios previstos no n° 2 do art° 410° do CPP - erro notório na apreciação da prova (conclusão 14) - vício este de conhecimento oficioso, ao invés de cumprir o que vem fixado nos n°s 3 e 4 do art° 412° do CPP para uma correcta impugnação da matéria de facto.

No fundo, limita-se o recorrente a valorar de forma diferente a prova produzida quanto aos três crimes, considerando que se não fez prova suficiente da sua pratica, mas sem adiantar que provas impõem decisão diversa, como vem imposto na al. b) do n° 3 do art° 412° já citado.

A este propósito, e para além do que já consta da acutilante resposta do M.° P.°, afigura-se-nos dever acrescentar o seguinte:

Como é sabido, e entre outros princípios, a audiência pauta-se pela imediação (que se traduz, no essencial, no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova) e pela oralidade, princípios que permitem que as provas sejam apreciadas por quem assistiu à sua produção, «sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas» (Assim, Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", III Vol., págs. 232-233).

Dispõe, também por isso, o art. 127.° do CPP, que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, operação que, na expressiva definição contida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 198/2004 (DR, II série, de 2/6/2004) "não é pura e simplesmente lógico-­dedutiva, mas (...) parte de dados objectivos para uma formação lógico-­intuitiva".

Vale isto por dizer que o tribunal julga livremente, de acordo com a sua convicção, mas em estrita observância de limites impostos pela lei e, por outro lado, pelos conhecimentos científicos e pelas regras da experiência, da lógica e da racionalidade.

No sistema vigente, a prova não é repetida na 2ª instância. Por consequência, e citando o mesmo Aresto do T. Constitucional, "a censura quanto ao modo de formação da convicção do tribunal não pode (...) assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação, dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão".

Nesta perspectiva, cabe dizer que o papel do Tribunal de recurso no plano dos factos pode resumir-se da seguinte forma: «revelando-se a decisão recorrida compatível com os sobreditos parâmetros de apreciação da prova, isso significará que o julgamento da matéria de facto fixada não merece censura; revelando-se alguma ilegalidade ou arbitrariedade, então a decisão recorrida merece alteração ".

Em função da concreta expressão da eventual insuficiência probatória ou deficiência do juízo de facto, várias possibilidades se poderão, então, revelar, desde uma situação de "duvida razoável" relativamente à prova dos factos, até, no limite, ao "erro notório na apreciação da prova"».

Ora, no caso em apreço o recorrente, que, como já ficou dito, defende que não se fez prova dos aludidos crimes, para além de não indicar de forma clara que provas, em seu entender, impõem decisão diversa, não invoca qualquer ilegalidade, vício argumentativo ou quebra de objectividade no julgamento da matéria de facto, sendo' certo que a prova é nestes crimes essencialmente pericial e, por isso e nos termos do n° 1 do art° 163° do CPP, subtraída, em princípio, á livre apreciação do julgador e, quanto á "credibilidade dos depoimentos (...) é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzida na documentação da prova e logo reexaminada em recurso" (17-02-2005, SJ200502170043245).

Por outro lado, e para além das considerações feitas, em sede de motivação de facto, nas quatro páginas desde flh.154 do douto acórdão recorrido, enfatize-se ainda, nesta perspectiva e em síntese, o seguinte:

a) - Por um lado, que se não alcança qualquer dúvida razoável que seja susceptível de infirmar a livre convicção do Tribunal "a quo", formulada em conformidade com o disposto naquele art. 127.° do CPP, ao valorar, como valorou, a prova produzida em audiência, prova directa e indirecta ou indiciária, tanto mais que estão bem expressas as razões que conduziram a essa valoração e que o valor da prova não depende da sua natureza, mas sobretudo da sua credibilidade, pelo que nada obsta a que mesmo a prova indirecta possa por si só conduzir à convicção do julgador (assim, Acórdão desta Relação de Coimbra de 9-02-2000, CJ, 2000, Tomo 1, pág. 51 );

b) - Por outro, e "ex abundante", que o Tribunal tenha reconhecido determinado valor e alcance a certos meios probatórios, e que nesse labor não seja secundado por quem quer que seja com interesse no resultado, é absolutamente indiferente, no sentido de que nunca a concepção de um qualquer interveniente processual haverá de prevalecer só por si, em detrimento da do julgador. E o certo é que a decisão impugnada, enunciando abundantemente e de forma especialmente clara os meios de prova que foram tidos em consideração, encontra-se devidamente fundamentada, permitindo o controlo do processo lógico-dedutivo empreendido pelo Tribunal "a quo" e a razão de ser da decisão tomada, não traduzindo, cremos, qualquer violação das regras que norteiam a actividade do julgador neste particular, correspondendo e contendo-se nos exactos limites do estruturante princípio da apreciação da prova: o da livre convicção do julgador.

Muito embora se não critique a sanção imposta, sempre diremos que as penas parcelares e a pena única se mostram ajustadas, e, a serem passíveis de crítica, seria pela sua brandura e não pela sua dureza, já que se deveria ter em conta que este arguido já por mais duas vezes foi condenado por factos análogos praticados em Agosto de 2005 e em Setembro de 2007.

Nestes termos se conclui no sentido da improcedência do recurso como muito bem defendem o nosso Exm° colega na sua resposta.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o recorrente não exerceu o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

II. Fundamentos da Decisão Recorrida

Da sentença recorrida constam os seguintes fundamentos de facto:

Realizada a audiência de julgamento, provou-se que:

1. F..., em 12 de Setembro de 2008, era dono de um estabelecimento de restauração denominado Restaurante X…, sito na Estrada Nacional nº. 17, Km. 88, Torrozelo, Catraia de S. Romão, ..., que se encontrava em plena laboração.

2. Naquela data, era F... quem geria o estabelecimento, sendo responsável pelo mesmo, procedendo, além do mais, à aquisição dos produtos ali consumidos, ao seu armazenamento, à sua distribuição pelo estabelecimento; à fixação dos seus preços, à elaboração das ementas, sendo quem servia os clientes que ali se dirigiam e quem recebia destes o preço pelos bens que consumiam.

3. Porém, F... explorava aquele estabelecimento e detinha ali géneros alimentícios para serem consumidos pelos seus clientes fazendo-o fora das condições legalmente fixadas para o efeito e sem que os aqueles géneros alimentares observassem as necessárias e indispensáveis condições de higiene, ali tendo alimentos que não estavam em condições de serem consumidos.

4. Na verdade, nesse dia, cerca das 09:00 horas, elementos da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (A.S.A.E.), deslocaram-se àquele estabelecimento, que se encontrava devidamente aberto ao público, e onde verificaram que na cozinha e dependência anexa, que servia de dispensa onde se encontrava instalado um aparelho de refrigeração, estavam vários produtos alimentares acondicionados em sacos plásticos e recipientes de plástico, sendo que aqueles apresentavam um aspecto, cor e cheiro que, desde logo, evidenciavam não estarem em condições para serem consumidos, nomeadamente apresentavam-se rançosos, com bolor ou amarelados, e deles exalava um forte odor desagradável a produtos deteriorados ou em putrefacção.

5. Quando se apercebeu da chegada daqueles elementos da A.S.A.E., F... retirou daquele armário vários géneros alimentícios e colocou-os num logradouro contíguo.

6. Com acesso do referido logradouro, F... possuía um compartimento onde procedia ao acondicionamento de géneros alimentícios, dormia e fazia as suas necessidades fisiológicas, ali existindo um forte odor a urina e a mofo activo e nauseabundo, sendo que os géneros alimentícios acondicionados nas quatro arcas ali existentes, evidenciavam não se encontrarem em condições de serem consumidos, dado apresentarem-se: embalados em material que não era próprio para produtos alimentares; queimados pelo frio, sem a sua coloração característica e com odores desagradáveis.

7. Na altura foi efectuado, pela Autoridade de Saúde do Concelho de ... e pelo Médico Veterinário Municipal, exame directo e macroscópico aos diversos produtos alimentares que se encontravam naquele estabelecimento, nomeadamente: carnes de suíno, bovino, peru, frango, coelhos, cabrito e espécies cinegéticas (coelho), pescado, trutas, filetes de pescada, bacalhau, tamboril, robalo, pescada, salmão, marisco, raia, amêijoa, carapau, sardinha, polvo, cherne e corvina, legumes, pimentos, batata, milho, ervilhas, favas, feijão e presunto, queijo, rissóis de camarão, pastéis de bacalhau, coxas de frango, delícias do mar, torresmos e gelados, tendo os mencionados peritos concluído que:

8. O presunto, camarão cozido, marisco e sardinhas, tinham entrado em apodrecimento, apresentavam-se de forma repulsiva e encerravam substâncias, germes ou seus produtos nocivos (sendo, assim, considerados alimentos corruptos), estando em condições de colocar em risco a saúde e/ou a integridade física daqueles que os consumissem;

9. A carne de porco, de cabrito, de coelho, aves e espécies cinegéticas, foram consideradas provenientes de abate efectuado fora das condições e entidades competentes para o efeito (abate clandestino), não apresentavam qualquer marca ou sinal comprovativa da respectiva inspecção sanitária, pois que provinham de animais que tinham sido abatidos fora dos locais permitidos (matadouros ou recintos a esse efeito destinados pelas autoridades competentes) e sem apresentarem marcas de inspecção post mortem, sendo que F... obteve aqueles produtos para serem confeccionados e servidos ao público no seu restaurante;

10. Os demais géneros alimentícios inspeccionados – sobremesas, gelados, azeite, aguardente, queijos, legumes variados, carne de bovino, filetes de pescada, mariscada, raia, amêijoa, dourada, delícias rissóis de camarão, coxas de frango, polvo, bacalhau à posta e migas, carne de suíno, presunto, trutas, lulas frescas, torresmos, berbigão, dobrada, tamboril, robalo, pescada, salmão, pernil de porco, cherne, pescado variado, carne de porco temperada, géneros alimentícios confeccionados (leitão, carne de porco, novilho e bolos) foram considerados não estarem em condições para serem consumidos, estando, assim, “anormais/ avariados”, em virtude de se encontrarem já deteriorados e com a sua natureza, composição e qualidade alteradas, por acção intrínseca do meio, do tempo ou de outros agentes causais a que estiveram sujeitos, não sendo contudo, susceptíveis de prejudicarem a saúde e integridade física de potenciais consumidores:

11. Uma vez que todos esses géneros alimentícios não estavam em condições de ser consumidos e caso o fossem poderiam, na sua maioria, prejudicar a saúde e integridade física dos seus consumidores foi determinado pelos peritos a sua inutilização num camião de recolha de lixo urbano no município de ..., decisão que mereceu a anuência de F....

12. Naquela ocasião foi F... notificado para cessar toda a actividade naquele estabelecimento, até que após a realização de uma inspecção, fosse o mesmo autorizado a reutilizá-las.

13. F... detinha géneros alimentícios (a carne de porco, de cabrito, de coelho, aves e espécies cinegéticas) que não apresentavam qualquer marca ou sinal comprovativa da respectiva inspecção sanitária, pois que provinham de abate efectuado fora das condições e entidades competentes para o efeito, destinando-os ao consumo de terceiros que frequentassem aquele estabelecimento comercial, apesar de o arguido saber que não podia adquirir para servir no seu restaurante carne de animais abatidos fora dos locais próprios ou sem a competente inspecção sanitária.

14. Além disso, F... detinha produtos alimentares naquele seu estabelecimento comercial e não obstante saber que os mesmos se encontravam no estado supra descrito; continuava a guardá-los e a utilizá-los nesse estado, porque os destinava à venda ao público apesar de saber que, por se encontrarem nesse estado, o não podia fazer e que os deveria ter eliminado.

15. Na verdade, e por força daqueles géneros alimentícios estarem nas condições supra descritas, sabia F... que os mesmos não estavam em condições de serem consumidos, podendo alguns deles, nomeadamente o presunto, camarão cozido, marisco e sardinhas, causar risco para a saúde e/ou a integridade física, caso fossem consumidos.

16. F... agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que tais condutas eram proibida e punidas por Lei Penal e contra-ordenacional.

17. No âmbito do Processo nº. 59/05.4EACBR do 2º Juízo do Tribunal Judicial de ..., F... foi condenado, por douta decisão transitada em julgado, datada de 22/09/2005, pela prática de crime contra a genuidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares p. p. pelo artº 24º nºs 1 al c) e 2 al. c) ocorrido naquele mesmo estabelecimento comercial em 30/08/2005, na pena de dois meses de prisão substituída por sessenta dias de multa e em quarenta dias de multa, e em cúmulo jurídico, na pena de oitenta dias de multa, à taxa diária de dois euros, o que perfaz a multa global de cento e sessenta euros, bem como pela prática, em concurso real, da contra-ordenação p.p., pelas normas conjugadas dos artºs 32º nº 1 e 38º nºs 1 al. n) e nº 3, ambos do D.L. nº 57/2002, de 11.03, na coima de cento e cinquenta euros.

18. Acresce que, também por factos similares, no âmbito do Processo nº. 30/07.1EACTB do 1º Juízo deste Tribunal, e por factos ocorridos em 5 de Setembro de 2007, F... foi condenado, por decisão datada de 23/09/2008, e transitada em julgado, em 13/10/2008, pela prática de:

- um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, p. e p. pelo artigo 24º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, na pena de sete meses de prisão e cinquenta dias de multa, à taxa diária de seis euros, perfazendo trezentos euros,

- uma contra-ordenação contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, p. e p. pelo artigo 58º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, na coima de quinhentos euros;

- uma contra-ordenação p. e p. pelo artigo 6º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 113/2006, de 12 de Junho, na coima de seiscentos euros;

- e uma contra-ordenação p. e p. pelo artigo 6º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 113/2006, de 12 de Junho, na coima de setecentos e cinquenta euros.

Operado o cúmulo jurídico entre as coimas, foi condenado na coima única de mil euros.

Foi ainda condenado, nas penas acessórias de perda de bens, encerramento por setenta e cinco dias do estabelecimento de restauração e publicação da sentença.

19. F... nasceu no dia 29 de Março de 1940.

20. Tem cerca de quatro anos de escolaridade.

21. Aufere rendimentos na ordem dos seiscentos euros mensais.

22. Solteiro, vive sozinho e não tem filhos, nem pessoas a cargo.


factualidade não provada

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa, designadamente, não se provou que:

1. alguns dos produtos descritos sob os p. 8 e 10 da factualidade provada estivessem em condições de serem consumidos;

2. O presunto, camarão cozido, marisco e as sardinhas estivessem em condições de serem consumidos sem causarem risco para a saúde e/ou a integridade física;

3. alguns dos produtos descritos sob o p. 9 (a carne de porco, de cabrito, de coelho, aves e espécies cinegéticas) tivessem sido adquiridos em superfícies comerciais, como o Lidl ou o Intermarché;

4. alguns dos produtos, designadamente o camarão ou o presunto, fossem propriedade de outrem, designadamente de V..., que não o arguido;

5. alguns dos produtos, como os coelhos com pelo ou o camarão não se destinassem a consumo no restaurante. 


motivação

Baseou-se a convicção do Tribunal na apreciação crítica de toda a prova produzida, nomeadamente: das declarações do arguido, do auto de perícia e lista anexa, a fls. 24 e 25, dos depoimentos dos inspectores da ASAE, D… e A…, da cliente E…, e do cliente, amigo e auxiliar, V…, nos documentos juntos aos autos.

Desde logo, decorreu das declarações do arguido, ser o proprietário do restaurante X… (cfr., ainda ementa a fls. 29), - fundando a matéria provada sob o p. 1. – que, como também emerge das suas declarações, vinha gerindo, nos termos provados sob o p. 2.

A matéria sob os pontos 3. a 6. da matéria de facto provada resultou dos depoimentos dos senhores inspectores da ASAE, D… e A… que, a solicitação da autoridade de saúde do concelho de ..., e a fim de averiguarem o conteúdo de denúncia anónima (cfr. fls. 32), levaram a cabo acção de fiscalização, que relataram, dando conta designadamente, não só das condições dos locais onde se encontravam os produtos, como da reacção do ora arguido ao aperceber-se da sua chegada, e das condições aparentes quanto ao aspecto, cor e cheiro, embalamento e acondicionamento, dos produtos alimentares (cfr. auto de notícia a fls. 2 e 3).

Efectuado exame pericial, directo e macroscópico, conforme auto de perícia a fls. 25, concluíram os senhores peritos que, os objectos descritos na lista anexa a fls. 24 (cfr. matéria provada sob o ponto 7.), se apresentavam nas condições referidas sob os pontos 8. a 10 (cfr. quesitos, métodos e constatações do auto de perícia a fls. 25).

Pode ler-se, no auto de perícia, a fls. 25 que:

- os presuntos, camarão cozido, marisco e sardinha, consideram-se corruptos, com perigo para a vida e saúde e integridade física dos potenciais consumidores;

- a carne de porco, cabrito, de coelho, aves e espécie cinegética, consideram-se provenientes de abate clandestino por não apresentarem marcas de inspecção post morten,

- e os restantes produtos foram considerados anormais por avaria.

O auto de perícia foi assinado pelo ora arguido, que foi notificado para nomear consultor técnico da sua confiança para assistir á perícia, o que prescindiu, tendo, ainda, prescindido de propor a efectivação de diligências, formular observações e objecções (cfr. fls. 25).

Aliás, uma vez que foi concluído que todos esses géneros alimentícios não estavam em condições de ser consumidos e caso o fossem poderiam, na sua maioria, prejudicar a saúde e integridade física dos seus consumidores foi determinado pelos peritos a sua inutilização num camião de recolha de lixo urbano no município de ..., decisão que mereceu a anuência de F... – facto provado sob o p. 11 – como resultou dos depoimentos dos inspectores da ASAE, D… e A…, em conformidade aliás com o teor do auto de notícia a fls. 2.

O destino dos produtos alimentares, para consumo no restaurante e a propriedade dos mesmos (por parte do arguido), decorre de um juízo de experiência considerando a quantidade e local dos produtos, em confronto com a actividade desenvolvida pelo arguido, e até (no que se refere à propriedade), da anuência deste para que fossem destruídos.

A matéria descrita sob o p. 12 decorre do auto de notícia a fls. 3, bem como das declarações do arguido.

Os elementos subjectivos provados sob os pontos 13. a 16. resultam da apreciação, segundo um juízo de experiência, face à conduta objectiva encetada pelo arguido, que era dono do restaurante, assumindo a condução de tal negócio.

No respeitante às condições pessoais do arguido baseou-se a convicção nas suas próprias declarações, enquanto os seus antecedentes criminais decorrem da apreciação do certificado de registo criminal, bem como nas certidões de sentenças juntas aos autos.

Não se provou outra matéria com relevo para a decisão da causa, na ausência de elementos probatórios (como sejam, declarações do arguido, pericial, documental, testemunhal ou outros) que, com a necessária segurança a suportem.

Desde logo, carecem de consistência, face ao teor do auto pericial, as declarações do arguido, (de algum modo suportadas pelo depoimento de V…, quanto ao presunto, ao camarão, à sardinha, aos coelhos, ao azeite, à aguardente) no sentido de que todos produtos alimentares examinados estariam em condições de serem consumidos, e não constituindo qualquer deles perigo para a vida, integridade física e saúde de potenciais consumidores.

Não se provou, assim que alguns dos produtos descritos sob os p. 8 e 10 da factualidade provada estivessem em condições de serem consumidos; nem que o presunto, camarão cozido, marisco e as sardinhas estivessem em condições de serem consumidos sem causarem risco para a saúde e/ou a integridade física (factos não provados sob os pontos 1. e 2.).

Por outro lado, pese embora as declarações do arguido de que carne de aves, cabrito, porco, coelho (sem pelo) teria sido adquirida em superfícies comerciais, certo é que, de acordo com o auto de perícia e os depoimentos de D… e A… não apresentava as correspondentes marcas de inspecção post morten. Por conseguinte não se provou a matéria sob o p. 3 da matéria de facto não provada, aliás sem qualquer suporte documental.

Não obstante as declarações de F... e o depoimento de V… de que os coelhos com pelo viriam de Espanha (remetidos pela irmã do primeiro) destinando-se a patuscadas com amigos romenos, pertencendo o camarão à identificada testemunha, destinando-se também a patuscadas, como supra aludido, decorre de um juízo de experiência considerando a quantidade e local dos produtos, em confronto com a actividade desenvolvida pelo arguido, e até (no que se refere à propriedade), da anuência deste para que fossem destruídos, que os produtos se destinavam a consumo no restaurante, pertencendo ao dono do estabelecimento.

Não se provou, assim que alguns dos produtos, designadamente o camarão ou o presunto, fossem propriedade de outrem, que não o arguido, nem tão pouco que alguns dos produtos, como os coelhos com pelo ou o camarão não se destinassem a consumo no restaurante (matéria não provada sob os pontos 4. e 5.).

A testemunha E…, que referiu ter sido cliente do X..., não revelou qualquer conhecimento relevante para a boa decisão da causa.

 


Do Enquadramento Jurídico

Vem imputado ao arguido a prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de .. um crime de corrupção de substâncias alimentares ou medicinais p. e p. pelo artº. 282º, nº1, al. b) do Código Penal, com referência à alínea a), desse preceito; um crime de abate clandestino p. e p. pelo artº. 22º, nº2, com referência ao nº. 1, al. a), desse preceito e; um crime contra a genuidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares p. e p. pelo artº. 24º, nº1, al. c) ex vi artº. 82º, nºs. 1 e 2, al. c), ambos do D.L. nº. 28/84, de 20/01.

Vejamos.

Comete o crime de corrupção de substâncias alimentares ou medicinais p. e p. pelo artº. 282º, nº1, al. b) do Código Penal, com referência à alínea a), desse preceito, designadamente: quem tiver em depósito para venda substâncias destinadas ao consumo alheio que estiverem avariadas ou corruptas, criando deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, dolosamente (cfr. artºs 13º e 14º do Código Penal).

Pratica o crime contra a genuidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares p. e p. pelo artº. 24º, nº1, al. c) ex vi artº. 82º, nºs. 1 e 2, al. c), ambos do D.L. nº. 28/84, de 20/01, quem detiver, quando destinados ao consumo público, géneros alimentícios avariados, não considerados susceptíveis de criar perigo para a vida ou para a saúde e integridade física alheias, dolosamente (cfr. artº 1º do cit. D.L., e artºs 13º e 14º do Código Penal).

Género alimentício avariado, nos termos do citado artº 82 nºs 1 e 2 al. c), é o género alimentício anormal que, não estando falsificado ou corrupto se deteriorou ou sofreu modificações de natureza, composição ou qualidade, quer por acção intrínseca, quer por acção do meio, do tempo ou de quaisquer outros agentes ou substâncias a que esteve sujeito.

Comete o crime de abate clandestino, previsto no artº 22º nº 2 do D.L. nº 28/84, designadamente, quem adquirir para consumo público, carne de animais abatidos sem a competente inspecção sanitária ou fora dos matadouros licenciados ou recintos a esse efeito destinados pelas autoridades competentes, dolosamente (cfr. artºs 1º do cit. D.L. e 13º e 14º do Código Penal).

In casu, provou-se que F... detinha géneros alimentícios (a carne de porco, de cabrito, de coelho, aves e espécies cinegéticas) que não apresentavam qualquer marca ou sinal comprovativa da respectiva inspecção sanitária, pois que provinham de abate efectuado fora das condições e entidades competentes para o efeito, destinando-os ao consumo de terceiros que frequentassem aquele estabelecimento comercial, apesar de o arguido saber que não podia adquirir para servir no seu restaurante carne de animais abatidos fora dos locais próprios ou sem a competente inspecção sanitária, agindo livre, voluntária e conscientemente, ciente da ilicitude criminal da sua conduta.

Preencheu, assim, F..., em autoria material e sob a forma consumada, todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de abate clandestino, p. e p. pelo artº. 22º, nº2 do D.L. nº 28/84, com referência ao nº. 1, al. a), desse mesmo preceito, de que vem acusado.

Além disso, provou-se que F... detinha produtos alimentares naquele seu estabelecimento comercial e não obstante saber que os mesmos se encontravam avariados, continuava a guardá-los e a utilizá-los nesse estado, porque os destinava à venda ao público.

Sabia F... que os mesmos não estavam em condições de serem consumidos, podendo alguns deles, nomeadamente o presunto, camarão cozido, marisco e sardinhas, causar risco para a saúde e/ou a integridade física, caso fossem consumidos. Agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal.

Praticou, assim, em concurso real com o crime de abate clandestino, os imputados crimes de corrupção de substâncias alimentares ou medicinais p. e p. pelo artº. 282º, nº1, al. b) do Código Penal, com referência à alínea a), desse preceito (no respeitante às substâncias susceptíveis de criarem perigo para a vida ou integridade física de consumidores), e contra a genuidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares p. e p. pelo artº. 24º, nº1, al. c) ex vi artº. 82º, nºs. 1 e 2, al. c), ambos do D.L. nº. 28/84, de 20/01 (relativamente aos géneros alimentares em que aquele perigo concreto não se verifica).

Cometeu pois, o arguido, em autoria material, sob a forma consumada e em concurso real, todos os crimes de que vem acusado.


*

Da medida das penas

Sendo este o enquadramento jurídico-penal, cabe agora proceder à determinação das penas aplicáveis (sem esquecer a aplicação subsidiária do Código Penal aos crimes previstos no D.L. nº 28/84, em conformidade com o artº 1º nº 1 deste diploma).

São as seguintes as molduras penais:

.. prisão até três anos e multa não inferior a cem dias, para o crime de abate clandestino (artº 22º nº 1 e 2 do D.L. nº 28/84);

.. prisão de um a oito anos, para o crime de corrupção de substâncias alimentares ou medicinais ( artº 282º nº 1 al. b) do Código Penal);

.. prisão até 18 meses e multa não inferior a 50 dias, para o crime a contra a genuidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios (artº 24º nº 1 do D.L. nº 28/84, de 20 de Janeiro).

De acordo com o art. 71º nº 1 do Código Penal «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».

Desta disposição resulta que a culpa e a prevenção são os critérios gerais de individualização da medida da pena.

A culpa definirá o limite máximo da pena, que não poderá ser excedido sem colocar em causa o princípio jurídico-constitucional da dignidade humana.

Dentro destes limites funcionam os fins das penas de tutela de bens jurídicos e de reintegração do agente (cfr. art.º 40º do Código Penal).

A medida da pena é dada, primacialmente, pela medida da necessidade dos bens jurídicos, através da tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo reforço) da vigência da norma infringida.

A protecção dos bens jurídicos, em especial através da designada prevenção geral positiva (de reafirmação contrafáctica da norma) permite delinear uma sub-moldura cujo limite máximo coincidirá com a medida óptima de tutela dos valores ofendidos pelo crime e cujo limite inferior coincidirá com a pena ainda suportável pela comunidade com vista a essa tutela. Neste último caso faz-se apelo à ideia de mínimo de defesa do ordenamento jurídico.

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração, podem e devem actuar pontos de vista de prevenção geral positiva ou de integração, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.

Esta deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só desta medida se alcançando uma eficácia de protecção de bens jurídicos.

As exigências de prevenção especial de socialização vão determinar, no quadro da moldura de prevenção geral, a medida exacta da pena concreta, susceptível de descer até ao limite inferior daquela moldura quando o agente do crime não careça de ser socializado, mas tão-só advertido.

A quantificação da culpa e bem assim da intensidade ou grau de exigência das razões de prevenção, em função das quais se vão dimensionar as correspondentes molduras, faz-se através da ponderação das circunstâncias gerais presentes no caso concreto, nos termos do nº 2 do art. 71º «circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele».

Tais circunstâncias, sendo umas relevantes por via da culpa, outras por via da prevenção, e grande parte delas ambivalentes, devem ser investigadas e sopesadas pelo julgador, à luz dos referidos princípios regulativos, e ainda do princípio da proibição da dupla valoração, por forma a concluir pela aplicação de uma pena concreta ao agente.

Favorecem o arguido, diminuindo a culpa, a modéstia das suas condições pessoais e das suas habilitações literárias. A desfavor do arguido ponderam-se, por um lado, a intensidade dos dolos, que foram directos, aumentando a culpa e exacerbando as exigências de prevenção especial positiva, e por outro, as condenações em ilícitos criminais cometidos no Restaurante, que elevam as necessidades de reinserção social.

Atende-se ainda à intensidade média do preenchimento dos crimes. Tudo considerado, entende-se de fixar as penas em:

- seis meses de prisão e cinquenta dias de multa para o crime de abate clandestino;

- um ano e seis meses de prisão para o crime de corrupção de substâncias alimentares;

- sete meses de prisão e cinquenta dias de multa para o crime contra a qualidade de géneros alimentícios.

Considerando os rendimentos e encargos pessoais do arguido, nos termos do artº 47º nº 1 do Código Penal, fixa-se a taxa diária em cinco euros.

Ainda que se considerasse que a substituição da pena de prisão por pena não detentiva, opera relativamente a cada uma das penas parcelares, in casu, a substituição designadamente por multa sempre seria de afastar para as penas parcelares fixadas em cinquenta dias, atendendo ao comportamento anterior à prática dos factos (de que aliás já resultara uma condenação transitada).

Como se deixou implícito, o juízo necessário à substituição da pena de prisão, designadamente, por prestação de trabalho a favor da comunidade ou à suspensão da pena de prisão, implicam a apreciação global das condutas encetadas.

Ora, operando o cúmulo das penas, considerando a globalidade dos factos (praticados na mesma data e no âmbito de exercício de actividade de restauração no mesmo estabelecimento comercial) e a personalidade do agente (atendendo às condições pessoais supra referidas), fixa-se a pena única de prisão em dois anos e a pena de multa única em setenta dias.

Se a idade do arguido (actualmente com 69 anos de idade) e as suas habilitações literárias (ao nível do ensino básico) aliadas às circunstâncias dos crimes (no âmbito do exercício da actividade profissional do arguido) desaconselham a substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade (ao abrigo do artº 58º do Código Penal), justificam, nos termos do artº 50.º do Código Penal, a suspensão da pena de prisão, na sua execução, por igual período, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Aquando dos ilícitos a que se reportam os autos (12-09-2008), já fora o arguido condenado, no âmbito do Processo nº. 59/05.4EACBR do 2º Juízo do Tribunal Judicial de ..., por douta decisão transitada em julgado, datada de 22/09/2005, pela prática de crime contra a genuidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares p. p. pelo artº 24º nºs 1 al c) e 2 al. c) do D.L. nº 28/84, ocorrido naquele mesmo estabelecimento comercial em 30/08/2005.

No entanto, a pena de dois meses de prisão que foi fixada, foi substituída por sessenta dias de multa e não foi condenado em pena de encerramento temporário de estabelecimento.

Por outro lado, a sentença proferida no âmbito do processo nº 30/07.1EACTB, que, pela prática de crime contra a genuidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares p. p. pelo artº 24º nºs 1 al c) do D.L. nº 28/84, condenou o arguido em pena de prisão supensa e encerramento temporário do estabelecimento transitou em 13-10-2008, ou seja, posteriormente aos factos a que se reportam os presentes autos.

Não se verificam, pois, os pressupostos de que o artº 18º do D.L. nº 28/84 faz depender a aplicação da pena acessória de encerramento definitivo do estabelecimento (ter o agente sido condenado por infracção prevista no diploma, em pena de prisão, se as circunstâncias demonstrarem que a condenação ou condenações anteriores não constituíram suficiente prevenção; ter anteriormente sido condenado em pena de encerramento temporário do mesmo ou de outro estabelecimento; ou ter sido condenado em pena de prisão por infracção prevista no diploma que determinou danos de valor consideravelmente elevado ou para um número avultado de pessoas).

Justifica-se, no entanto, o encerramento temporário do estabelecimento – que não apenas se revela ajustado à gravidade e reiteração dos factos, nos termos do artº 17º nº 1 do D.L. nº 28/84, como é meio adequado a remover a possibilidade de o agente reiterar a prática dos crimes – pelo prazo de sete meses, aqui ponderando o já referido em sede de determinação das penas (principais).

A sentença será publicada, ao abrigo do disposto nos artºs 8º nº 1 al. l), 17º nº 4, 22º, nº 5, e 24º nº 4 do D.L. nº 28/84, não só como meio de prevenção dos cometidos crimes contra a saúde pública e actividade económica, como para que o público em geral seja alertado sobre o modo de funcionamento do estabelecimento gerido pelo arguido e sobre as razões do encerramento temporário.

Finalmente, determina-se a perda dos bens apreendidos ao arguido, nos termos do artº 8º al. a) e 9º nº 1, 22º nº 4 e 24º nº 3 do D.L. nº 28/84 e 109º nº 1 do Código Penal, o que, in casu, tem a virtualidade de confirmar a destruição oportunamente efectuada, aliás, com a anuência do arguido.


***

III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (artigos 363° e 428° nº 1 do Código de Processo Penal).

Não obstante, o concreto objecto do recurso é sempre delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) sem embargo das questões do conhecimento oficioso.

E vistas as conclusões do recurso interposto, as questões que reclamam solução são as seguintes:

1. Se os artigos 15º e 3º, alínea h) do Decreto-Lei nº 274/2007 de 30.7 são organicamente inconstitucionais, ocorrendo a nulidade insanável de falta de inquérito cominada no artigo 118º, nº 3 do Código de Processo Penal;

2. Se o Tribunal a quo se socorreu de prova que não podia valorar para dar como provados os factos 3 e 7 a 11 porque o auto de perícia de fls. 25 não é válido;

3. Se a sentença recorrida é nula nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal por violação do disposto no artigo 374º, nº 2 na medida em que não fundamenta o facto que deu como provado no ponto 13;

4. Se a sentença recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova;

5. Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto.

 

Apreciando:

1. Da invocada inconstitucionalidade orgânica

Começa o recorrente por alegar que os artigos 3º, alínea h) e 15º do Decreto-Lei nº 274/2007 de 30.7 que institui a ASAE são organicamente inconstitucionais na medida em que criam um órgão de polícia criminal com competências próprias para lavrar autos de notícia, matéria que, de acordo com o artigo 164º, alíneas d) e n) da Constituição da República, é da reserva específica e absoluta da Assembleia da República.

Do alegado extrai que os inspectores da ASAE não podiam ter efectuado a diligência que realizaram nos autos e elaborado o respectivo auto que se deve ser julgado nulo, inexistente ou inválido o que constitui falta de inquérito, cominada pelo artigo 118º, nº 3 do Código de Processo Penal como nulidade insanável.

As referidas alíneas do artigo 164º da CRP referem-se à organização da defesa nacional e das forças armadas e às autarquias locais. Certamente que o recorrente se quer referir à alínea u) do preceito que se refere à reserva legislativa absoluta da Assembleia da República para legislar quanto ao regime das forças de segurança. Com efeito, é relativamente a tal previsão que se tem discutido da eventual inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei nº 274/2007 de 30.7 que atribuem à ASAE competência para promover acções de natureza repressiva em matéria de infracções económicas e outras e poderes de autoridade e de órgão de polícia criminal, no pressuposto de que a noção de que órgão de polícia criminal se assimilaria à noção de força de segurança.

O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se debruçar sobre a matéria no Acórdão nº 84/2010 publicado em www.tribunalconstitucional.pt nos seguintes termos (transcrição):

(…)

3. O Tribunal Constitucional já se pronunciou quer sobre o conceito legal de forças de segurança quer sobre o conceito constitucional de forças de segurança (cf., respectivamente, Acórdãos n.ºs 557/89, 675/97 e 452/2009, em matéria de inelegibilidades para os órgãos das autarquias locais, e Acórdão n.º 304/2008, face às normas constitucionais que mobilizam este conceito. Arestos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

 Neste último acórdão, lê-se que:
«o regime das forças de segu­rança mereceu uma especial atenção do legislador constitucional (artigos 163.º, i), 270.º, 164.º, u), e 272.º, da C.R.P.) devido, por um lado, ao papel fundamental que elas desempenham na garantia de funcionamento da vida em sociedade num Estado de direito e, por outro lado, à possibilidade de afectação dos direi­tos e liberdades dos cidadãos que pode resultar da sua actividade. Se aquele interesse reclama operacionalidade e eficácia das forças de segurança, o segundo exige que a lei conforme a sua actividade de modo a que não se possam verificar restrições desproporcionadas àqueles direitos e liberdades. Foi a procura da garantia da obtenção de um ponto de equilíbrio entre estes dois interesses, mesmo que cintilante e precário, por força da pressão de temo­res sociais com sentidos opostos, que motivou o legislador constitucional a consagrar especiais exigências neste domínio, sobretudo ao nível da definição dos órgãos competentes e da forma dos actos nor­mativos necessários à regulamentação de tal matéria.
O legislador constitucional não ignorou que na tensão dialéctica entre os direitos à liberdade e segurança, consagrados no artigo 27.º, n.º 1, da C.R.P., a actividade das forças de segurança interna do Estado desempenha um papel fundamental que justifica especiais preocupações relativamente a outros sectores da Administra­ção Pública.
Sendo esta actividade de elevada importância e risco que está na mira das referidas directrizes constitucionais, o conceito constitucional de forças de segurança não pode deixar de ser perspectivado numa visão ampla que abranja todos os corpos organizados que tenham por missão, principal ou secundária, garantir a segurança interna, o que inclui obrigatoriamente a prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos (artigo 27.º, n.º 1, da C.R.P.)».

3.1. Esta visão ampla do conceito constitucional de forças de segurança não suporta, no entanto, que nele seja incluída a ASAE, diferentemente do sustentado pela decisão recorrida. Diferentemente da Polícia Judiciária, a ASAE não tem por missão secundária garantir a segurança interna, prevenindo crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos.(sublinhado nosso).

As atribuições constantes das alíneas z), aa) e ab) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 274/2007, atribuições secundárias por referência à missão que está legalmente cometida à ASAE no n.º 1 do mesmo artigo e de que as outras alíneas do n.º 2 são expressão, são absolutamente estranhas à prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos, constitucionalmente consagrado no artigo 27.º Até mesmo a atribuição de desenvolver acções de natureza preventiva em matéria de jogo ilícito, promovidas em articulação com o Serviço de Inspecção de Jogos do Turismo de Portugal, já que tal não se traduz numa qualquer acção de protecção contra agressões ou ameaças de outrem, face ao disposto nos artigos 95.º a 101.º do Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro (sobre a dimensão positiva do direito à segurança aqui pressuposta, cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 27.º, ponto II.).

Mais genericamente, é de concluir que a ASAE, ao prosseguir aquelas atribuições, não participa na função de garantir a segurança interna, que o artigo 272.º, n.º 1, da CRP comete à polícia (à polícia de segurança, por contraposição à polícia administrativa e à polícia judiciária). Não podendo afirmar-se que conceito de segurança interna seja um «conceito constitucionalmente vazio», tem de reconhecer-se que a sua caracterização não se alcança por forma directa e definitória no texto constitucional (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 479/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. Sobre as dificuldades do conceito, cf. Catarina Sarmento e Castro, A questão das Polícias Municipais, Coimbra Editora, 2003, p. 294 e ss.). Mas já é alcançável de forma indirecta, ainda que não definitória, a partir do conceito constitucional de forças de segurança, uma vez que a função de garantir a segurança interna cabe, no âmbito da polícia, às forças de segurança (assim, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 479/94. Na doutrina, cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1993, anotação ao artigo 272.º, ponto IV. e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 272.º, pontos VIII e XVIII).

3.2. A introdução da alínea u) no artigo 164.º da CRP, ocorrida por via da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, revela-se decisiva para delimitar o conceito de forças de segurança que encontramos em várias normas da Constituição e de que aquela mesma alínea é exemplo. Se quanto à matéria ínsita na alínea u) daquele artigo, inequivocamente nela se contém a definição dos serviços organizações ou forças que devem compor as forças de segurança, é de concluir, então, que aquele conceito abrange apenas os serviços, organizações ou forças a que lei parlamentar sobre o regime das forças de segurança atribua esta natureza (relativamente àquela alínea, cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2002, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. E no mesmo sentido, cf. o Acórdão n.º 304/2008, infra ponto 4.). Em bom rigor, a delimitação do conceito constitucional de forças de segurança, à margem do elenco constante de lei parlamentar sobre o regime das forças de segurança, justifica-se apenas quando seja de apreciar do ponto de vista jurídico-constitucional a atribuição de tal natureza a certos serviços, organizações ou forças.

No momento da emissão do Decreto-Lei n.º 274/2007 a lei parlamentar em matéria de regime das forças de segurança não incluía a ASAE no elenco das forças e serviços de segurança (cf. artigo 14.º da Lei de Segurança Interna, Lei n.º 20/87, de 12 de Junho, cujo elenco está agora no artigo 25.º da Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto, nele não se incluindo a ASAE). Sendo certo que o princípio da reserva de lei contido no artigo 272.º, n.º 4, da CRP obriga a uma enumeração taxativa das forças de segurança (assim, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 557/89), há que concluir que o Governo não invadiu a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República ao emitir aquele Decreto-Lei.

3.3. Diga-se, por último, que é de todo irrelevante para a inclusão da ASAE no conceito constitucional de forças de segurança o que se dispõe nos artigos 15.º (Órgão de polícia criminal) e 16.º (Uso e porte de arma) do Decreto-Lei n.º 274/2007.

De acordo com o artigo 1.º, alínea c), do Código de Processo Penal «órgãos de polícia criminal» são todas as entidade ou agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer actos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código. O que significa que se parte da ideia de que o que define a actividade de um órgão, enquanto órgão de polícia criminal, é, não a sua qualificação orgânica ou institucional, mas sim a qualidade dos actos que pratica (Damião da Cunha, O Ministério Público e os Órgãos de Polícia Criminal no Novo Código de Processo Penal, Porto, Universidade Católica, 1993, p. 14). Assim se justificando, por exemplo, que alguns funcionários de justiça desempenhem, no âmbito do inquérito, as funções que competem aos órgãos de polícia criminal (cf. artigo 6.º do Estatuto dos Funcionários de Justiça e alínea i) do Mapa I anexo ao Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto).

O uso e porte de arma, independentemente da respectiva licença, não é propriamente algo que seja exclusivo das forças de segurança. Por exemplo, também os magistrados judiciais e do Ministério Público e os oficiais de justiça têm este direito especial (artigos 17.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Magistrados Judiciais, 107.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público e 63.º, alínea b), do Estatuto dos Funcionários Judiciais).

4. A conclusão a que se chegou no sentido de o conceito constitucional de forças de segurança não incluir a ASAE é suficiente para afastar o vício de inconstitucionalidade orgânica das normas em apreciação. Note-se, contudo, que à mesma conclusão se chegaria se a resposta fosse positiva, já que as normas cuja aplicação foi recusada não integram o regime geral das forças de segurança, diferentemente do sustentado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.

É de concluir, mais uma vez, que o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 304/2008 aponta precisamente no sentido contrário, na parte que incide sobre o conteúdo de sentido da expressão regime geral, reiterando a interpretação que o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2002 fez da alínea u) do artigo 164.º da CRP. Com relevo para as questões a decidir nos presentes autos, lê-se naquele Acórdão que:


«O regime das forças de segurança referido na alínea u), do artigo 164.º, da C.R.P., deve, pois, ser entendido apenas na acepção de regime geral das forças de segurança, o qual contemplará os fins e os princípios que devem nortear as forças de segurança, a previsão dos corpos que as devem compor, o modo de inter-relacionação entre eles, as grandes linhas de regulação destes corpos e os princípios básicos relativos à interferência das forças de segurança com os direitos fundamentais dos cidadãos».

É por demais evidente que as normas questionadas não se incluem no regime geral das forças de segurança. Incluem-se, isso sim, no regime específico da ASAE: uma, insere-se nas atribuições específicas desta autoridade (artigo 3.º, n.º 2, alínea aa), do Decreto-Lei n.º 274/2007); outra, confere a este serviço central da administração directa do Estado estatuto processual penal (artigos 15.º e 3.º, n.º 2, alínea aa), do Decreto-Lei n.º 274/2007).

5. Impõe-se concluir, por conseguinte, que a alínea aa) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 274/2007, de 30 de Julho, enquanto atribui competências à ASAE para desenvolver acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de jogo ilícito, e o artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 274/2007, na parte em que confere poder de órgãos e autoridade de polícia criminal à ASAE, em conjugação com a atribuição de competências para prevenir certos crimes que lhe é feita no artigo 3.º, n.º 2, alínea aa) do mesmo diploma, não padecem do vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 164.º, alínea u), da Constituição da República Portuguesa. (fim de citação)

E mais não cabe referir em face da argumentação expendida pelo Tribunal sobre a questão, cuja clareza é manifesta e a que se adere integralmente. E se o Tribunal Constitucional concluiu que não ocorre inconstitucionalidade relativamente à alínea aa) do artigo 3º, nº 2 do Decreto-Lei nº 274/2007 do mesmo modo se deve concluir relativamente à alínea h) do mesmo artigo e número, posto que o primeiro se refere a infracções de jogo ilícito, enquanto a segunda a infracções relativas a alimentos. Aliás, genericamente o Tribunal Constitucional desde logo afasta a possibilidade de qualificar a ASAE como força de segurança, distinguindo claramente deste conceito o conceito de órgão de polícia criminal, o que imediatamente afasta a possibilidade de considerar como organicamente inconstitucional qualquer das normas do mencionado diploma legal.

Não se verificando inconstitucionalidade também não ocorre qualquer nulidade processual decorrente de ter sido a ASAE a levantar auto de notícia que cabe dentro das suas atribuições (cfr. artigo 243º do Código de Processo Penal). Sempre se diga que não se vislumbra como no caso a invalidade do auto de notícia poderia corresponder à nulidade de falta de inquérito prevista no artigo 119º, alínea d) do Código de Processo Penal e não no artigo 118º, nº 3 mencionado pelo recorrente.

  Carece, pois, de fundamento o alegado.

2. Da alegada impossibilidade de valoração da perícia de fls. 25

O recorrente invoca que o Tribunal para a formação da sua convicção não se podia socorrer do auto de perícia de fls. 25 pela seguinte ordem de razões:

- Foi elaborado por pessoas não ouvidas em audiência;

- Essas pessoas não têm a qualidade de peritos por não terem prestado compromisso;

- Não foi confirmado em audiência que o arguido não foi notificado para nomear consultor técnico;

Os peritos não fundamentaram as suas respostas ou conclusões.

Ao contrário do que sustenta o recorrente o disposto no artigo 355º, nº 1 do Código de Processo Penal não contém qualquer impedimento a que a prova pericial questionada seja valorada como meio de prova.

Com efeito, o citado artigo com a epígrafe “Proibição de valoração de provas” dispõe no seu nº 1 «que não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência».

Contudo, o seu nº 2 preceitua que «ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura em audiência seja permitida nos termos dos artigos seguintes».

Ora, o artigo 356º, nº 1, alínea b) estipula a permissão da «leitura em audiência de autos … de instrução ou de inquérito que não contenham declarações de arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas».

Da conjugação destas normas resulta que é permitida, mas não obrigatória, a leitura de documentos ou de prova pericial junta aos autos e que, independentemente dessa leitura, tais provas têm valor em julgamento, nomeadamente para formação da convicção do tribunal. Esta tem sido, aliás, a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. entre outros o Acórdão proferido no processo 03P23606 de 19-3-2003 publicado em www.dgsi.pt/jstj).

E bem se compreende que seja essa a interpretação efectuada porque, tratando-se de documentos ou prova pericial constantes do processo em momento anterior à audiência e a que os sujeitos processuais têm acesso, nada obsta a que sobre eles seja exercido o contraditório antes ou no decurso do julgamento. A disposição terá o seu campo de aplicação em relação a prova junta aos autos após o encerramento da audiência e que, portanto, não foi sujeita ao contraditório ou a autos cuja leitura não seja permitida em audiência.

Acresce que a prova pericial tem o seu valor probatório fixado no artigo no artigo 163º do Código de Processo Penal estipulando que o juízo técnico, cientifico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador e sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.

Trata-se, pois, de meio de prova vinculada a que não é aplicável o princípio da livre apreciação contido no artigo 127º do Código de Processo Penal que, precisamente, exclui as situações em que a lei dispuser diferentemente, como é o caso.

E esse valor probatório da perícia não depende da audição dos peritos em audiência de julgamento (não é essa a forma legalmente prescrita para a sua produção) havendo apenas a faculdade de as partes requererem a audição dos peritos ou de o Tribunal decidir oficiosamente nesse sentido (cfr. artigos 158º, 315º, nº 3 e 340º, nº 1 do Código de Processo Penal).

 

Do auto de perícia de fls. 25 consta que o arguido foi notificado para nomear consultor técnico. O auto mostra-se assinado pelo arguido (fls. 25 vº). Estando pois documentado o cumprimento do disposto no artigo 156º do Código de Processo Penal, sendo certo que esse facto não necessitava de confirmação em audiência.

Os peritos que realizaram a perícia foram, como consta do respectivo auto, o médico veterinário municipal e a autoridade de saúde concelhia, pessoas que têm a qualidade de funcionários públicos e que por força do disposto no artigo no artigo 91º, nº 6, alínea b) do Código de Processo Penal estão dispensados de prestar compromisso, sendo certo que a valoração do auto que elaboraram não necessitava de ser confirmado em audiência pelos próprios.

Tinham, assim, a qualidade de peritos ao contrário do alegado.

Finalmente e no que concerne à alegada falta de fundamentação do auto de perícia (apenas referida na motivação e não nas respectivas conclusões) refere o recorrente que os peritos, quanto ao presunto, camarão cozido, marisco e sardinha, apenas concluem que se encontram corruptos por representarem perigo para a vida, saúde ou integridade física dos potenciais consumidores. Na sua perspectiva era necessário que os peritos mencionassem que deterioração se verificava em concreto e que aspecto apresentavam esses alimentos.

No que se refere à categoria de género alimentício corrupto a própria lei (artigo 82º, nº 2, alínea b) do Decreto-Lei nº 28/84 de 20.1) nos fornece a sua definição mencionando que se considera como tal o género alimentício anormal por ter entrado em decomposição ou putrefacção ou por encerrar substâncias, germes ou seus produtos nocivos ou por se apresentar de alguma forma repugnante. Assim a menção de que o género alimentício se encontra corrupto, o que é constatável através de observação visual e olfactiva, não carece de maiores esclarecimentos, sendo certo que os peritos consignaram a justificação de que tal ocorreu por deterioração e modificação da sua natureza, composição e qualidade, por acção do meio, do tempo e de outros agentes causais a que estiveram sujeitos, o que também não oferece dificuldade de compreensão, porque até, exclusivamente o decurso do tempo é susceptível de provocar a anormalidade verificada.

Não se vislumbra, assim, que o auto de perícia careça da necessária e suficiente fundamentação e que, por consequência viole o disposto no artigo 157º, nº 1 do Código de Processo Penal.

Aliás, se essa fundamentação não era suficientemente esclarecedora, deveria o arguido ter pedido no acto os esclarecimentos que entendesse necessários (cfr. o mencionado artigo 157º) ou usado das faculdades posteriores de esclarecimento a que alude o artigo 158º do Código de Processo Penal.

Em suma se conclui que o meio de prova em causa foi validamente produzido e não só podia, como devia, fundamentar a convicção do Tribunal.      

3. Da alegada nulidade da sentença recorrida

O recorrente invoca que a sentença recorrida padece de nulidade nos termos previstos no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal por incumprimento do artigo 374º, nº 2 do mesmo diploma legal porque não fundamenta nem explica a razão pela qual dá como provado o facto constante do ponto 13 (que a carne de porco, cabrito, coelho, aves e espécies cinegéticas não apresentam qualquer marca ou sinal comprovativo da respectiva inspecção sanitária).

Ora, consta expressamente da sentença recorrida que nesse aspecto o tribunal se baseou no teor do relatório pericial e transcreve até o respectivo teor nas conclusões a que chegou não só relativamente a esses alimentos, como em relação aos restantes.

Não se vislumbra, pois, qualquer incumprimento do disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal que determine a pretendida nulidade.

E se a alegação do recorrente tinha como pressuposto a invalidade do auto de perícia, também por essa via há que negar procedência a esta pretensão pelas razões já aduzidas.    

4. Do invocado vício de erro notório na apreciação da prova

O recorrente, de forma imprecisa porque não distingue claramente entre o erro de julgamento que igualmente invoca e o erro notório na apreciação da prova, alega, para sustentar a ocorrência de ambos, que o Tribunal a quo com base em juízo de experiência não podia concluir como concluiu que o arguido destinava os produtos referidos no ponto 14 (onde se referem todos os géneros alimentícios que foram objecto de fiscalização) à venda ao público em razão das quantidades porque compatíveis com o consumo doméstico, quer porque o arguido vivia no restaurante, guardando também nas arcas os produtos de consumo doméstico. 

Preceitua o artigo 410º, nº 2, a) e b) do Código de Processo Penal que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da sentença recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

Imediatamente importa reter que estamos perante vícios cuja verificação deve resultar exclusivamente do texto da própria decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência, sem apelo a elementos a ela externos como o conteúdo da prova produzida.

Quanto ao alegado erro notório na apreciação da prova, trata-se daquele que é de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum, na leitura do texto da decisão recorrida ainda que conjugada com as regras da experiência comum e pode traduzir-se na violação do princípio contido no artigo 127º do Código de Processo Penal (o tribunal dá como provado facto que afronta ostensivamente as regras da experiência).

Como é sabido, o conceito de erro notório na apreciação da prova tem de ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, como o facto de que todos se apercebem directamente, ou que, observado pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório (v. por ex. Ac. do S.T.J. de 6.4.94 in Col. Jur. Acs. do STJ, II, tomo 2, 186).

Na definição de M. Simas Santos e M. Leal Henriques em Código de Processo Penal Anotado, Volume II, 2ª edição, pag. 740, existe erro notório na apreciação da prova quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto contido no texto da decisão. Mais existe esse erro quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis (cfr. também Ac. do S.T.J. de 13.10.99 in C.J., Ano VII, Tomo III, pag. 184 entre outra jurisprudência abundante).

Como resulta da matéria de facto provada, o arguido explorava um restaurante que foi objecto de fiscalização, tendo sido constatado que guardava produtos alimentares na cozinha, numa dependência anexa com um aparelho de refrigeração que servia de dispensa e num outro compartimento que tinha quatro arcas e que utilizava também para dormir.

Não menciona o arguido, nem tal resulta da factualidade provada que existissem outros locais de armazenamento de alimentos que se pudessem distinguir dos espaços em que estavam guardados os produtos alimentares que eventualmente destinasse a consumo privado. Esse seria o primeiro cuidado exigível a quem explora um restaurante.

Como diz o ditado popular “quem não quer ser lobo não lhe veste a pele” contrariando claramente as regras da experiência que quem explora restaurante armazene juntamente com os bens destinados ao consumo público, produtos destinados a consumo privado e ainda para mais sem marcas de inspecção sanitária ou no estado descrito (a não ser que o arguido pretendesse ser autuado como foi). Sintomático é que o arguido, como vem consignado na matéria provada, quando se apercebeu da chegada da ASAE, tenha retirado de um armário vários géneros alimentícios, colocando-os num logradouro contínuo (aqui cabe citar o provérbio “quem não deve não teme”). E citam-se os referidos provérbios porque eles são a expressão do próprio sentimento popular e da noção que qualquer pessoa têm, ainda que iletrada, do que sejam as regras da experiência e do que estas podem legitimar em termos de extrair do provado directamente outras ilações/factos que, embora não apreensíveis directamente, são igualmente certos e seguros.

Pelas expostas razões não se vislumbra que da sentença recorrida e da motivação da convicção que nela foi consignada resulte qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova e do limite que lhe é imposto pelas regras da experiência, antes pelo contrário se vislumbram razões acrescidas, não expressamente mencionadas no seu texto, que impunham que o Tribunal recorrido concluiu-se como concluiu.

E, sendo assim, não ocorre o alegado erro notório na apreciação da prova.    

Da impugnação da matéria de facto

O recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto pretendendo que se considerem não provados os factos constantes dos pontos 3, 7, 9, 10 e 11 da sentença recorrida e que se considere apenas provado que a inspecção foi feita, que foram apreendidos e examinados alimentos e que o resultado do exame foi o retirado por quem o efectuou.

Para tanto invoca essencialmente a invalidade da perícia realizada.

Como já se concluiu, a prova pericial é válida. Tratando-se de prova subtraída da livre apreciação do Tribunal, como também já se mencionou e que não necessitava de confirmação em audiência de julgamento, devia fundamentar, como fundamentou, a convicção do Tribunal a quo quanto aos impugnados factos.

Não ocorre, pois, o pretendido erro de julgamento que legitimaria a modificação da matéria de facto que foi considerada provada. 

Também entende o recorrente que não pode ser considerado como provado o factos 13 nada mais alegando nesse sentido do que a falta de fundamentação acima mencionada e, eventualmente (tal não resulta claro do exposto) a invalidade da perícia realizada).

            Ora o facto em questão que se refere aos géneros alimentícios que não apresentavam qualquer marca ou sinal comprovativo de inspecção sanitária foi dado como provado com base no relatório de perícia e na parte que se refere ao destino ao destino que lhe seria dado com base nos depoimentos dos agentes da ASAE que procederam à fiscalização do estabelecimento do arguido com as devidas extrapolações derivadas das regras da experiência (meios de prova a que o recorrente nem sequer alude como fundamento para a sua impugnação).

         Porque o relatório de perícia é meio de prova válido, manifesta é a inexistência de erro de julgamento e o infundado da impugnação realizada.

Ainda entende o recorrente que não pode ser considerado provado o ponto 14 dos factos provados da sentença recorrida, convocando para tanto o depoimento do inspector D…, as suas declarações e as da testemunha V… (apenas na motivação, não nas respectivas conclusões).

O facto é do seguinte teor:

14. Além disso, F... detinha produtos alimentares naquele seu estabelecimento comercial e não obstante saber que os mesmos se encontravam no estado supra descrito; continuava a guardá-los e a utilizá-los nesse estado, porque os destinava à venda ao público apesar de saber que, por se encontrarem nesse estado, o não podia fazer e que os deveria ter eliminado.

O que o recorrente verdadeiramente contesta é que tenha sido usado juízo de experiência para concluir que os produtos alimentares referidos nesse ponto fossem destinados à venda ao público quer porque a sua quantidade é compatível com o uso doméstico quer porque o arguido vivia no restaurante.

O facto de o arguido viver ou não no restaurante pelas razões já acima assinaladas é indiferente para a consideração do facto como provado ou não provado, quer o seu peso maior ou menor, sendo sim relevante o local onde os géneros se encontravam. Determinante é que o arguido não tinha local especialmente destinado para guardar produtos eventualmente destinados a consumo privado, como relevante é que não tinha os produtos alimentares deteriorados separados dos restantes.

         Da própria lei deriva a obrigação para quem detém produtos alimentares destinados ao consumo público (artigo 26º do Decreto-Lei nº 24/84) de retirar esses produtos dos locais de armazenamento habituais e identificá-los em local destinado a esse efeito quando se encontrem falsificados, corruptos ou avariados (por maioria de razão não deve misturar produtos deteriorados de consumo privado com produtos de consumo público).

 Pelas razões que já se assinalaram quando se analisou o invocado erro notório na apreciação da prova, as regras da experiência ditavam que o Tribunal a quo tivesse decidido no sentido de considerar provado que os ditos produtos se destinavam à venda ao público.

O facto de testemunha, V…, ter mencionado que nas arcas eram guardados, indiferentemente, produtos de consumo privado e público, depoimento que também deve ser analisado à luz das regras da experiência, em nada afecta a conclusão a que o Tribunal recorrido chegou. E nem se mencionam as declarações do arguido porque relativamente a elas o recorrente não cumpriu o ónus de da sua especificação e localização, sendo certo que o mesmo se pode referir em relação a elas.

E o juízo de experiência em causa não surgiu do nada, antes encontra respaldo nas declarações dos Inspectores da ASAE que encontraram os produtos alimentares em causa nos locais referidos.

A prova indirecta não tem estatuto de menoridade relativamente à prova directa, pois se na prova indirecta intervém a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência o que vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova directa poderá intervir um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunha.

Acresce que a nossa lei penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.

Ou seja, na prova directa tal como na prova indirecta intervém o princípio da livre apreciação consignado no artigo 127º do Código de Processo Penal que implica a avaliação da prova e das condicionantes da sua produção segundo as regras da experiência.

Sobre o tema da prova indiciária, pode ler-se no Acórdão do STJ de 12-9-2007 publicado em www.dgsi.pt, citado no acórdão recorrido, “Vejamos que o indício apresenta-se de grande importância no processo penal, já que nem sempre se tem à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, como o esforço lógico-juridico intelectual necessário antes que se gere a impunidade.” “ E sobre a prova indiciária (…) entende-se, ainda, que aquela é suficiente para determinar a participação no facto punível se (requisito de ordem formal) da sentença constarem os factos-base e se mostrarem provados, os quais vão servir de base à dedução ou inferência, se se explicitar o raciocínio através do qual se chegou à verificação do facto punível e da sua participação no facto de que é acusado, essa explicitação é imperativa para se controlar a racionalidade da inferência em sede de recurso. Requisito de ordem material é estarem os indícios completamente provados por prova directa, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência. O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência da vida; dos factos base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência.”

E é nesta perspectiva que foi analisada a prova produzida e a convicção do Tribunal plasmada na sentença recorrida que não revela em confronto com essa prova qualquer erro de julgamento.

        

Em face do exposto improcede na totalidade a impugnação da matéria de facto.


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IV. Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido F..., mantendo a sentença recorrida.

Pelo seu decaimento condenam o arguido em custas, fixando a taxa de jsutiça em três unidades de conta.


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Coimbra,

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora).

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                                                                 (Maria Pilar Pereira de Oliveira)

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                                                             (José Eduardo Fernandes Martins)