Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6103/16.2T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
RESOLUÇÃO
VICÍOS DO LOCADO
EXCEPÇÃO DO NÃO CUMPRIMENTO
ABUSO DE DIREITO
DESOCUPAÇÃO
Data do Acordão: 04/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 334, 1032, 1036, 1038, 1040, 1081, 1083, 1084, 1087 CC
Sumário: 1 - Se a locatária não avisa a locadora dos vícios da coisa, ela não pode depois invocar o incumprimento desta, quanto ao vício respectivo.

2 - O princípio da confiança exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas, numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura.

3 – A resolução contratual por falta de pagamento de rendas opera por comunicação à contraparte.

4.- Decorridos mais de 2 anos sobre a resolução do contrato, válida, não se justifica fixar um prazo para a desocupação.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A (…) instaurou ação contra V (…) e M (…), pedindo a cessação do contrato, decretado o despejo e a condenação do réu a entregar de imediato o locado e os réus condenados no pagamento das rendas vencidas e não pagas, no montante de 17.000,00€ (dezassete mil euros) e das rendas vincendas até à entrega efetiva do locado, com juros de mora, à taxa legal, sobre todas as rendas em dívida, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

            Para tanto, a Autora alega, em síntese:

Por contrato de arrendamento, celebrado em 1 de fevereiro de 2008, e pela renda mensal de 250,00€, deu de arrendamento o descrito prédio para habitação do réu; a ré M (…) assumiu a qualidade de fiadora; o réu deixou de pagar as rendas vencidas desde dezembro de 2010; apesar das diversas interpelações, a ré não procedeu ao pagamento das rendas em dívida; a ré pediu que lhe fosse concedido um prazo, até janeiro de 2016, por forma a desocupar o locado, já que não dispunha de condições económicas para pagar a renda; a autora concedeu tal prazo mas a ré não desocupou o locado.

Os Réus contestaram, em síntese:

Apesar de figurar como fiadora no contrato, é a ré e não o réu V (…) quem, desde o início, ocupa o locado, fazendo uso do mesmo; é falso que os réus tenham deixado de pagar as rendas devidas desde dezembro de 2010; nos termos do disposto na al. b) do artº 310º do Código Civil, estão prescritas as rendas vencidas anteriormente a 26.08.2011; o locado apresenta infiltrações e humidades em todas as divisões da casa, o que obriga a ré a ter de realizar constantes pinturas e reparações; essas infiltrações diminuem, ou retiram mesmo, as condições de habitabilidade do imóvel, devendo ser reduzida proporcionalmente a quantia em dívida; a autora abusa do direito, pois disse à ré que não queria as rendas, apenas que logo que lhe fosse possível desocupasse o locado; a ré só não desocupou o imóvel porque ainda não foi atendido o pedido de habitação social feito junto da Câmara, apesar de já lhe ter sido dada informação de que estariam reunidos os requisitos para o efeito.

A Ré deduziu reconvenção, pelo custo de obras por si realizadas no locado, alegando que, autorizada pela autora, quem pagaria, fez obras e reparações, no interior e no exterior da habitação, com um custo total de 13.887,00€.

Por fim, a Ré pede, a ser julgada procedente a ação, um prazo razoável para proceder à desocupação do locado, logo que lhe seja disponibilizada uma casa pela Câmara Municipal de (...) .

A Autora respondeu, alegando que nunca lhe foi comunicada qualquer necessidade ou obra, por realizar ou realizada.

            Realizado o julgamento, foi proferida a seguinte sentença:

Declaro resolvido o contrato de arrendamento em causa, com fundamento na falta de pagamento de rendas e condeno os réus a entregar o locado à autora, imediatamente, livre e devoluto de pessoas e bens.

Condeno os réus no pagamento à autora das rendas vencidas e não pagas à data da propositura da acção, nomeadamente as rendas vencidas desde Novembro de 2011 - mas levando-se em conta o montante de 200 € pago em Agosto 2012 -, bem como as rendas vincendas até à entrega efectiva do locado, e ainda a pagarem juros de mora à taxa legal sobre todas as rendas em dívida, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Decido julgar a reconvenção improcedente e por isso absolver a autora do pedido reconvencional contra si formulado.


*

            Inconformada, a Ré M (…) recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

(…)


*

            Contra-alegou a Autora, defendendo a correção do decidido.

*

            As questões a decidir são as seguintes:

            A falta de fundamentação da sentença recorrida;

            A reapreciação da matéria de facto;

            As consequências desta reapreciação, no que respeita à diminuição do gozo da coisa locada, ao abuso do direito às rendas e à prescrição;

            O prazo para a entrega do locado.


*

            O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:

A autora é comproprietária de uma moradia destinada à habitação sita no (...) , (…) na freguesia de (...) , concelho de (...) , inscrita na respectiva matriz predial sob o artigo nº (...) .

Por contrato de arrendamento, celebrado em 30 de Janeiro de 2008, e pela renda mensal de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros), a autora deu de arrendamento para habitação ao réu o aludido prédio.

A ré figura como 3º outorgante, assumindo a qualidade de fiadora no referido contrato de arrendamento.

Tal como resulta da cláusula 10ª do referido contrato “A fiadora fica como principal pagadora do arrendatário, pelo exacto cumprimento de todas as cláusulas deste contrato, seus aditamentos e renovações.”.

Sucede que há anos que os réus deixaram de pagar pontualmente e na íntegra as rendas vencidas. Fizeram depósito de algumas quantias: em Janeiro de 2011, no valor de 250,00€; em Fevereiro de 2011, no valor de 200,00€; em Abril de 2011, no valor de 240,00€; em Maio de 2011, no valor de 100,00€; em Julho de 2011, no valor de 100,00€; em Setembro de 2011, no valor de 150,00€; emOutubro de 2011, no valor de 60,00€; em Agosto de 2012, no valor de 200,00€. Em Novembro de 2011 deixaram de pagar/depositar qualquer montante - à excepção do já referido montante de 200 € em Agosto de 2012.

A autora fez diversas diligências, nomeadamente diversas interpelações verbais e escritas para obter o pagamento das rendas, mas as mesmas não foram pagas, nem o locado foi entregue.

Em 3/05/2012 a ré escreveu uma carta à autora explicando que não pagava as rendas por dificuldades económicas. Tal carta veio devolvida, mas posteriormente, nesse mesmo mês de Maio, a ré falou com a autora pessoalmente. A autora disse que queria que a ré saísse do locado.

Em 21/12/2015, a autora, através de advogado, remeteu aos réus cartas registadas a solicitar a presença deles no respectivo escritório. A ré veio a comparecer nesse escritório, onde lhe foi comunicado que teriam que proceder ao pagamento das rendas em atraso ou proceder à desocupação do imóvel. A ré pediu que lhe fosse concedido um prazo, até Janeiro de 2016, para desocupar o locado, já que não dispunha de condições económicas para pagar a renda.

A autora concedeu tal prazo por consideração à ré e às dificuldades económicas da mesma.

Como o locado não foi entregue, em 15/07/2016, a autora, através de advogado, remeteu aos réus cartas registadas com A/R, interpelando-os para o pagamento das rendas em atraso.

Todavia, até ao presente, os réus não procederam ao pagamento das rendas em dívida, nem à desocupação do locado.


*

A falta de fundamentação da sentença recorrida.

O artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República impõe que as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei.

            Obedecendo a esse comando constitucional, o Código de Processo Civil (art.154º) estabelece que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas, acrescentando o artigo 615º,1,b), que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

            E diz-nos ainda o art.607º, nº4, que a decisão sobre a matéria de facto declara quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.

            A fundamentação consiste no conjunto nas razões de facto e/ou de direito em que assenta a decisão; os motivos pelos quais se decidiu de determinada maneira. Se a decisão é a conclusão de um raciocínio, a fundamentação são as premissas de que ela emerge.

            No que toca à fundamentação jurídica, ela contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada.

            No actual quadro constitucional, em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório. (ver acórdãos do STJ, de 2.3.2011, processo 161/05.2TBPRD.P1.S1 e da Relação de Coimbra, de 17.4.2012, processo 1483/09.9TBTMR.C1, em www.dgsi.pt; ainda L.Freitas, M.Machado, R.Pinto, C.P.C. Anotado, vol.2º, 2ª edição, C.Editora, pág.661.)

            Confrontando este normativo com a sentença proferida, conferimos que esta não padece do vício invocado, sendo acessível ao seu destinatário a perceção das razões de facto e de direito da mesma.

            Também ao nível da decisão sobre a matéria de facto, aquela que realmente preocupa a Recorrente, é compreensível a motivação da Julgadora. Tanto assim é que a Recorrente não tem qualquer dificuldade em questionar (ver infra) a opção pelos factos provados e não provados.

            A Julgadora não se limita à mera exposição das provas, percebendo-se porque se motivou pela fixação dos factos supra referidos.

            Em conclusão, a sentença recorrida não é nula por falta de fundamentação.

            E, de qualquer maneira, impor-se-ia sempre o previsto no art.665º do Código de Processo Civil.


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A reapreciação dos factos.

A Recorrente defende que está provada a diminuição do gozo do locado, apela à prova de que a Autora disse prescindir das rendas em dívida e entende que não está provada uma confissão de não pagamento de rendas anteriores a maio de 2012.

Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil).

Quanto às infiltrações e humidades com reflexo no gozo do locado:

Comecemos por dizer que esta questão está desde logo prejudicada pela falta de alegação do aviso dos vícios à senhoria. Falta que está acompanhada da prova efetiva de que não denunciou os problemas, como resulta das declarações de parte.

Conforme decorre do art.1038º, h), do Código Civil, é obrigação do locatário avisar imediatamente o locador sempre que tenha conhecimento de vícios no locado.

            “O aviso a que se refere a alínea h) tem importância quanto aos vícios da coisa ou do direito, em consequência do disposto na al. d) do art.1033º.Se o aviso não for feito imediatamente, o locatário não pode aproveitar-se do disposto no art.1032º, quanto ao não cumprimento do contrato, por parte do locador.” (P. Lima, A. Varela, Código Civil Anotado, volume II, 1986, página 395.)

            Ou seja, não avisando, o locatário não pode depois invocar o incumprimento do locador, quanto ao vício respectivo.

Sendo assim, mesmo que se provem os referidos vícios, a sua existência é inconsequente, não podendo a locatária excecionar o incumprimento e pedir, por isso, a redução da renda como o faz.

De qualquer maneira, relativamente à prova invocada:

As fotos não são prova plena, pois a Autora, ao contrário do que defende a Recorrente, não as reconhece como representativas do alegado.

A Recorrente alega que a casa esteve em condições até inícios de 2016.

A mesma confirma que não denunciou os problemas que apareceram depois.

A Autora alega desconhecer porque nada lhe foi comunicado.

Ora, é com as fotos juntas em contestação que a Autora é confrontada com o problema, quando já antes, em 26.08.2016, com a citação, está consumada a resolução por falta de pagamento de rendas.

A casa é antiga (cfr. declarações da locatária recorrente).

Neste contexto, as fotos não estão reconhecidas e não são prova plena das humidades. Muito menos ainda prova de que a humidade atinja todas as divisões da casa e que tal facto diminui o gozo do locado, como alegado.

As declarações da parte (locatária) referem as humidades mas não são claras e explícitas quanto à diminuição do gozo do locado. Estas declarações, atentos à sua clara parcialidade e motivação, são no caso insuficientes para a prova de que a humidade atinja todas as divisões da casa e que tal facto diminui o gozo do locado, pois não estão apoiadas em qualquer elemento externo à Ré. Não tendo o facto sido sindicado pelo locador, em tempo adequado, não estando referenciado noutro suporte probatório, as declarações são para nós, no caso, prova débil, não atendível.

Pelo exposto, consideramos não provado que o locado apresente humidades em todas as divisões e que ocorra por isso diminuição do gozo daquele.

Depois, a Recorrente defende que a Autora a convenceu de que não pretendia o pagamento das rendas.

A Recorrente invoca as declarações da Autora.

Conferindo os articulados e estas declarações, o que resulta é que a Autora estaria até disposta a esquecer as rendas em atraso se a Recorrente desocupasse o locado na altura, proximamente, concretamente em janeiro de 2016.

A condição não se verificou, mantendo a Recorrente a ocupação e a falta de pagamento das rendas.

A atitude da Autora foi uma forma de não perder ainda mais, de aliciar a Recorrente a sair, nada mais do que isso.

Retirar da atitude da locadora um convencimento de que não seriam mais cobradas as rendas, antigas ou recentes, mesmo que a locatária continuasse a ocupar o locado, é interpretação oportunística da Recorrente.

Pelo exposto, consideramos não provado que a Autora disse à Ré não pretender o pagamento das rendas e que tal afirmação criou nesta a convicção de que a Autora nunca exigiria as rendas.

Por fim, a Recorrente defende que não está provado que a mesma tenha confessado estar em dívida com as rendas anteriores a maio de 2012.

Comecemos por dizer que este facto é irrelevante para a questão da prescrição, como veremos infra.

A Recorrente invoca o doc. 20 da contestação e as declarações de parte.

Se compreendemos a referência ao documento, então já em maio de 2012 a Recorrente reconhecia perante a Autora não poder pagar.

A Recorrente reconhece que deixou de pagar e escreveu aquela carta à Autora.

A mesma declara em Tribunal que só pagou regularmente nos “primeiros tempos” e que já não paga há cerca de 5 anos.

A mesma reconhece a reunião de 2015.

Tendo pago as rendas por depósito, as únicas rendas documentadas são as assentes na matéria de facto. A prova do pagamento cabia-lhe a si.

Tudo isto é condizente com a afirmação da Autora de que a Recorrente deixou de pagar completamente no final de 2011, sem prejuízo do pagamento de agosto de 2012.

Neste contexto, não vemos o que se deva alterar na matéria provada.

Pelo exposto, julgamos improcedente toda a impugnação e decidimos manter a decisão da matéria de facto.


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As consequências da reapreciação da matéria de facto, no que respeita à diminuição do gozo da coisa locada, ao abuso do direito às rendas e à prescrição.

Ficou por demonstrar uma diminuição do gozo da coisa locada.

Mesmo que demonstrada, ela não podia agora ser invocada contra a locadora.

Se a locatária não avisa imediatamente a locadora dos vícios da coisa, ela não pode aproveitar-se do disposto nos arts.1032º e 1036º do Código Civil.

            Não avisando, a locatária não pode invocar o incumprimento da locadora, quanto ao vício respetivo, assim como justificar uma pretensa urgência na obra.

Ficando por demonstrar uma diminuição do gozo da coisa locada, e em que termos, não há qualquer fundamento para uma redução da contraprestação a cargo da locatária (art.1040º do Código Civil).


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            O abuso do direito.

            Esta invocação dependia da prova da específica declaração da Autora, que foi afastada com o sentido dado pela Recorrente.

No abuso do direito estamos perante posições jurídicas contrárias aos valores estruturantes do sistema jurídico.

            É um limite indeterminado ao comportamento jurídico, que passa pelos conceitos de fim, de bons costumes e de boa fé (art.334º do Código Civil).

            Trata-se de um conceito indeterminado, que carece de um processo de concretização para melhor aplicar a justiça ao caso concreto.

Há, assim, necessidade de surpreender grupos típicos de comportamentos abusivos frente a "um universo informe de comportamentos inadmissíveis" - M. Cordeiro, Boa Fé, 1997, página 719.

            Têm sido considerados grupos típicos: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegalidades formais, a suppressio e a surrectio, o tu quoque e finalmente o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

A locução venire contra factum proprium exprime a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assuma comportamentos contraditórios.

Parte-se de uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objetivamente considerada, é de molde a criar noutrem uma situação objetiva de confiança, ou seja, a convicção de que aquele sujeito jurídico se comportará, no futuro, coerentemente com aquela conduta. É necessário que, com base na situação de confiança criada, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe resultarão danos se a sua confiança legítima vier a sair frustrada.
Como refere Menezes Cordeiro (Da Boa Fé no Direito Civil”, Teses, Almedina, 2007, página 745), o abuso de direito nesta modalidade postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si mas diferidas no tempo. A primeira – o factum proprium – é contrariada pela segunda – o venire. Só se considera como “venire contra factum proprium” a contradição direta entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento da mesma pessoa.

Mas a contradição a atender está limitada à proteção da confiança: um comportamento não pode ser contraditado quando tenha suscitado a confiança dos sujeitos envolvidos.

O princípio da confiança exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas, numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura.

No caso nada legitima que a Recorrente acreditasse poder continuar a ocupar o locado com perdão do pagamento das rendas em atraso.

Como vimos, a Autora estaria até disposta a esquecer as rendas em atraso se a Recorrente desocupasse o locado na altura da conversa respetiva, concretamente em janeiro de 2016.

Se a atitude da Recorrente rejeita essa hipótese, continuando a ocupar o locado, só pode voltar a valer o disposto no contrato.

Não há qualquer abuso do direito às rendas por parte da Autora.


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Quanto à prescrição:

Nos termos do disposto na al. b) do artº 310º do Código Civil, prescrevem no prazo de 5 anos as rendas e os alugueres devidos pelo locatário.

No caso, há rendas devidas desde dezembro de 2011 – ver ainda condenação.

A Recorrente foi citada em agosto de 2016.

Assim, a renda mais antiga, concretamente fixada, só prescrevia em dezembro de 2016, muito depois da citação.

De qualquer maneira, a Autora fez interpelações à Recorrente para pagamento das rendas.
Esta, em 2012, reconhece à Autora não poder pagar.

Em 2015, através de advogado, a Autora reclama o pagamento das rendas em atraso. A Recorrente reconhece a falta e pede um prazo para desocupar o locado.

Neste contexto, o prazo de prescrição interrompeu-se também antes de decorridos os 5 anos, nos termos dos arts. 323º (interpelação do credor) e 325º (reconhecimento do devedor) do Código Civil.

Pelo exposto, improcede a excepção.


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               O prazo para a entrega do locado.

Conforme o invocado art.1087º do Código Civil, a desocupação do locado, nos termos do artigo 1081.º (efeitos da cessação do contrato), é exigível após o decurso de um mês a contar da resolução se outro prazo não for judicialmente fixado ou acordado pelas partes.

Não foi fixado judicialmente um prazo, assim como não há um acordo após a resolução do contrato.

Esta resolução ocorre com a ação, declaração que chega à Recorrente em agosto de 2016. (No caso da resolução por falta de pagamento de rendas, a mesma opera por comunicação à contraparte – art. 1084º, nº 2, do Código Civil.)

A resolução está conferida como válida.

Neste contexto, decorridos mais de 2 anos sobre a resolução do contrato, não se justifica qualquer outro diferimento para a desocupação.

Esta concreta interpretação não é inconstitucional.

Mais: a Recorrente continua a ocupar o locado sem pagar rendas há mais de 7 anos.

Não cabe à locadora suportar (todos) os custos sociais da posição da locatária.

A insuficiência económica da Recorrente justificará, ou não, o pedido de habitação feito junto da Câmara Municipal de (...) ou de outra entidade pública, mas não justifica o encargo particular da locadora.

“Os direitos constitucionalmente consagrados não são direitos inteiramente absolutos, vivendo por si e para si como se fossem únicos. Há outros direitos constitucionalmente assegurados e é no confronto entre todos que tem que definir-se, em concreto, a medida do absoluto de cada qual e a relativização necessária ao respeito pela dimensão essencial de todos e de cada um.” (Acórdão do S.T.J., de 14.1.2010, no processo 1869/06.0TVPRT.S1, www.stj.pt.)

No caso, entre particulares, o direito à habitação da Recorrente colide com o direito à propriedade da Autora.

A lei procurou equilibrar os dois no regime que vigora e que não é questionado.

No âmbito do regime aplicável, constatamos que a Recorrente violou de forma grosseira o direito da Autora, o que conduziu à cessação do contrato. Desde esta cessação, que opera por comunicação à contraparte, já passaram mais de 2 anos.

É notório que há muito, mesmo considerando apenas a resolução formal do contrato, a Recorrente podia ter preparado a sua saída do locado.

A Recorrente não pode impor a particular que ofendeu no seu direito suportar a demora na decisão de entidade pública, com deveres ao nível da gestão da habitação social.


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Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário.

            Coimbra, 2019-04-02


Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator )

António Carvalho Martins

Carlos Moreira