Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
882/09.0TBPMS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: ESCRITA COMERCIAL
EXAME
SEGREDO DA ESCRITURAÇÃO COMERCIAL
Data do Acordão: 03/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS 41º, 42º E 43º DO CÓDIGO COMERCIAL
Sumário: I – Porque qualquer uma das partes em litígio tem interesse ou responsabilidade nas questões que se suscitam e estão controvertidas no âmbito de uma acção judicial em que são partes e que, como tal, estão inseridas no objecto do litígio que entre elas se desenvolve, não poderá deixar de ser admissível, à luz do disposto no art. 43º do Código Comercial, o exame à escrita comercial de qualquer uma delas com vista ao apuramento de determinados factos que são necessários à apreciação e decisão daquelas questões.

II – O segredo da escrituração comercial – que apenas vigora em plenitude para o efeito de obstar à sua devassa com o único objectivo de verificar se o comerciante arruma ou não devidamente os seus livros (cfr. art. 41º) – manifesta-se sobretudo nas restrições colocadas à exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro (que apenas é admitida nas situações previstas no art. 42º) e nas restrições colocadas ao exame da escrituração de pessoas estranhas às acções judiciais onde são ordenados (exames que, em conformidade com o disposto no art. 43º, apenas serão admissíveis quando essas pessoas tenham interesse ou responsabilidade na questão); tal segredo não obsta, porém, à realização de exames ordenados no âmbito de uma acção judicial relativamente à escrituração comercial de qualquer uma das partes, na medida em que estas terão sempre interesse ou responsabilidade na questão que nela se discute e que reclama a realização do exame.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Na acção, com processo ordinário, em que é Autora A... – Produtos para a Indústria, Ldª e em que são Réus, B... e C...– Administração de Bens, S.A., veio a primeira requerer a realização de perícia à escrita da 2ª Ré e das sociedades D... e E..., Ldª, administradas e participadas pelo gerente da 2ª Ré.

A 2ª Ré apresentou requerimento, dizendo que tal perícia deveria ser liminarmente indeferida, por ser impertinente e dilatória e por não preencher os requisitos legalmente exigidos para a sua realização.

Na sequência desses requerimentos e no que toca à referida perícia, foi proferido despacho – em 02/05/2011 – com o seguinte teor:

Por se não afigurar impertinente ou dilatória, nos termos do art.º 577 e 578, nº 1, do CPC, admito a prova pericial e colegial requerida pela autora.

Notifique a parte contrária para se pronunciar, querendo, sobre o objecto da perícia, nos termos e para os efeitos do art.º 578º, nº 1 do CPC”.

Inconformada com esse despacho, a Ré, C... – Administração de Bens, S.A., veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

A) A perícia requerida à escrita da ora Recorrente, bem como das sociedades E... Lda e F... Lda não preenche os requisitos legalmente exigidos para a sua realização, designadamente os constantes dos artigos 43º do Código Comercial, desde logo porque inexiste qualquer interesse da ora recorrente, a quem pertencem os documentos, na prova dos factos vertidos nos citados artigos da Base Instrutória.

B) Subsistem outros meios de prova dos factos constantes dos quesitos relativamente aos quais foi requerida a perícia à escrita da recorrente, menos gravosos e que evitam a devassa da vida privada da recorrente.

C) Alguns dos factos quesitados, relativamente aos quais foi requerida prova pericial, não possuem qualquer relação com a recorrente, nem nos mesmos foi esta interveniente, pelo que também neste particular aspecto é a citada prova pericial impertinente e injustificada.

D) O artigo 342º, nº l do C. Civil consigna que «Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.»

E) «A escrituração mercantil é secreta por natureza, cedendo esta regra apenas nos casos taxativamente previstos na lei».

F) Com este segredo procura-se proteger «a privacidade do comerciante de afastar os seus bens da cobiça alheia e de evitar que a sua actividade seja afectada por informações sobre a sua situação e as perspectivas do negócio» (L. Brito Correia, Direito Comercial, I, p. 309).

G) A Autora não invocou nem demonstrou - como lhe incumbia (v. art. 342º do C. Civil; cfr. arts. 265º/1 e 577º/1 do CPC) - qual o "interesse ou responsabilidade" da ora 2ª Ré e quais os concretos pontos da sua escrituração mercantil que estariam relacionados com a questão ou questões que pretenderá esclarecer através da perícia (v. art. 43º do C. Comercial))

H) Consequentemente, estaremos perante uma situação que cai na previsão do art. 42º do Cód. Comercial, ou seja, perante um exame de toda a escrita da Ré, com vista à determinação do estado geral do negócio (ver Pinto Furtado, "Disposições Gerais do código Comercial", pág. 115).

I) Um tal exame não encontra cabimento no disposto no art. 43° do Cód. Comercial,

J) Pelo que deverá ser indeferida a requerida perícia à escrita da recorrente e sociedades E... Lda e F... Lda, com o que se fará a costumada JUSTIÇA!

 

A Autora/Apelada apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1 - O douto Despacho recorrido admite liminarmente a prova pericial requerida por considerar que esta não é impertinente ou dilatória, determinando a notificação dos Réus nos termos do art. 578º, nº 1 do C.P.C. para se pronunciar quanto ao objecto da mesma.

2 - A douta decisão recorrida foi, pois, proferida no uso legal de um poder discricionário que assenta num mero juízo liminar de pertinência face aos elementos constantes dos Autos, não tendo ainda sido proferido o Despacho que efectivamente ordene a realização da perícia requerida, nomeadamente nos termos do art. 578º, nº 2 do C.P.C.

3 - Assim, a referida decisão não admite recurso conforme resulta expresso do art. 679º do C.P.C., impondo-se o indeferimento do requerimento de interposição de Recurso aqui em causa e rejeição deste por inadmissibilidade legal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 679º e 685º-C, nº 2, a), ambos do C.P.C.

4 - Subsidiariamente, e quanto ao objecto do recurso interposto que todos os factos que constituem o objecto da perícia requerida pela A. constam como controvertidos na Douta Base Instrutória e foram por aquela alegados.

5 - Por seu lado, nos termos do disposto no art. 519º, nº 1 do C.P.C. é manifesto que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.

6 - Não se podendo concluir, como pretende a recorrente, que pelo facto de a perícia poder revelar factos desfavoráveis ao interesse da contraparte, a mesma seja inadmissível.

7 - Com efeito, a prova pericial requerida é legalmente admissível, afigurando-se o meio de prova mais adequado e proporcional à demonstração dos factos controvertidos que constituem o respectivo objecto, sendo manifesto que os meios probatórios sugeridos pela recorrente não contém a discriminação necessária para apreciação e conclusão acerca das matérias em causa.

8 - Nomeadamente, por estar em causa a demonstração de diversos pagamentos alegadamente ocorridos entre o 1º e a 2ª Ré e as sociedades D... , Lda. e E... , Lda., das quais é gerente o Sr. G..., Administrador da recorrente, pagamentos que a A. invoca e a 2ª Ré impugna e outros que a 2ª Ré diz terem ocorrido e a A. rejeita e para os quais são absolutamente insuficientes os documentos juntos aos Autos pela Ré.

9 - Factos que se revelam imprescindíveis para prova da simulação do negócio de compra e venda cuja nulidade foi invocada pela A. que constitui causa de pedir dos presentes Autos.

10 - Acresce que atenta a qualidade das partes e o facto de só as sobreditas sociedades estarem obrigadas a possuir contabilidade organizada, apenas a perícia requerida poderá seguramente dar resposta aos quesitos em causa.

11 - Ademais, as questões de facto que se pretendem ver esclarecidas através da perícia requerida encontram-se enunciadas, estando perfeitamente delimitadas pela Base Instrutória, não estando, pois, em causa uma invasão ilimitada às escritas a examinar, devendo os Srs. Peritos solicitar os elementos contabilísticos que entenderem por pertinentes e adequados para retirarem as suas conclusões técnicas e responderem aos quesitos.

12 - Mais, o princípio do apuramento da verdade material não pode ser postergado por qualquer interesse - ainda que tutelado num plano diverso - de uma parte à reserva de dados ou documentos que possua, pelo que a eventual reserva à publicidade da escrituração comercial deverá ceder perante o dever de prestar informação à Justiça, relativamente a questões concretas, objecto de dissídio que aquela compete dirimir, nos termos dos arts. 265º, nº 3; 519º e 519-A, todos do C.P.C., como aliás, tem sido entendimento pacífico na doutrina e a jurisprudência.

13 - In casu, é manifesto que, atento o objecto do processo e da prova pericial requerida, quer a recorrente quer as sociedades E... , Lda. e D... , Lda. têm responsabilidade e interesse nas questões que se pretendem ver esclarecidas, já que estas lhes dizem directamente respeito, inexistindo violação de quaisquer disposições ou formalidades legais.

14 - Assim, o Douto Despacho recorrido não merece qualquer censura, sendo a requerida prova pericial pertinente, proporcional face aos factos que se propõe provar, sendo assim admissível nos termos requeridos e de acordo com o disposto nos arts. 513º e 568º e segs. do C.P.C., devendo o aludido Despacho manter-se in tatum.

Assim, conclui, deve o presente Recurso ser rejeitado por inadmissibilidade legal nos termos das disposições conjugadas dos arts. 679º e 685º-C, nº 2, a), ambos do C.P.C., ou caso assim não se entenda, deve o recurso ser a final julgado improcedente por não provado, conforme resulta das contra-alegações supra, mantendo-se o Despacho recorrido in tatum.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se estão ou não reunidos os pressupostos legais para que possa ser ordenada a realização de exame/perícia à escrituração comercial da Ré/Apelante.


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III.

Apreciemos, pois, a questão suscitada no recurso.

A matéria referente à escrituração mercantil, no que refere às situações e condições em que a mesma pode ser exibida judicialmente e em que pode ser objecto de prova pericial, encontra-se regulada nos arts. 41º a 44º do Código Comercial, sendo para nós indiscutível que tais disposições não foram revogadas pelo art. 519º do C.P.C., conforme, aliás, se decidiu no Acórdão do STJ de 22/04/1997[1], que, uniformizando jurisprudência nesse sentido, enunciou que “O artigo 43.º do Código Comercial não foi revogado pelo artigo 519.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961, na versão de 1967, de modo que só poderá proceder-se a exame dos livros e documentos dos comerciantes quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida”.

O art. 41º do Código Comercial estabelece – como resulta da respectiva epígrafe – o princípio do segredo da escrituração mercantil que, todavia, apenas vale em plenitude nos limites que aí se encontram previstos, obstando a que tal escrituração seja examinada com o único objectivo de verificar se o comerciante arruma ou não devidamente os seus livros de escrituração mercantil. Já no que toca à utilização dessa escrituração como meio probatório – quer por via da sua exibição, quer por via do seu exame – aquele princípio não tem aplicação absoluta, embora se manifeste nas restrições que são colocadas pelos arts. 42º e 43º, já que, como decorre destas normas, a exibição ou exame dessa escrituração apenas é admissível nos casos que aí se encontram previstos.

Analisemos, pois, as situações em que pode ter lugar o exame a tal escrituração, já que é essa a questão que se coloca nos presentes autos.

A esse propósito, dispõe o art. 43º do Código Comercial que, fora dos casos previstos no número anterior (casos que aqui não ocorrem), “…só poderá proceder-se a exame nos livros e documentos dos comerciantes, a instâncias da parte, ou de ofício, quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida”.

 Embora se insurja contra o despacho que ordenou a perícia à sua escrita e à escrita de mais duas sociedades – sustentando que tais perícias não são admissíveis por não respeitarem os critérios legais – a verdade é que a Apelante, ao longo das suas alegações, não se pronuncia, em concreto, sobre as perícias ordenadas às demais sociedades (referindo apenas as razões e argumentos pelos quais considera não ser admissível a perícia à sua própria escrita) e não suscita, a esse propósito, qualquer questão. E, em rigor, nem sequer teria legitimidade para o efeito, já que, em princípio, pertencerá às sociedades visadas com essa perícia o direito de reagir contra tal diligência, já que serão elas – e não a aqui Apelante – as titulares dos interesses que são protegidos pelas restrições legais a que tais perícias estão sujeitas.

Assim sendo, iremos apenas analisar a admissibilidade da perícia à escrita da Apelante.

Invocando o carácter secreto da escrita comercial, a Apelante insurge-se contra a decisão que admitiu a referida perícia, sustentando a sua inadmissibilidade legal com base em três argumentos:

- a perícia não pode ter por objecto toda a escrituração mercantil da Apelante, como foi requerido pela Autora, já que esta não especificou os livros a examinar e respectivos anos comerciais e, portanto, estamos perante um exame a toda a escrita que apenas seria admissível nas situações previstas no art. 42º;

- é a Autora que tem o ónus de provar os factos que a perícia visa demonstrar, não tendo a Apelante qualquer interesse na sua demonstração;

- a Autora dispõe de outros meios para fazer a demonstração da matéria em causa, não se justificando a devassa da escrita comercial da Apelante.

É verdade que a exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro – envolvendo o exame completo de toda a escrituração – só pode ter lugar nas situações previstas no citado art. 42º e é verdade que tais situações não ocorrem no caso sub júdice. Mas, salvo o devido respeito, o que está em causa nos autos não é a exibição total e por inteiro da escrituração da Apelante, mas sim um exame restrito aos livros e lançamentos que serão relevantes para a prova dos factos sobre os quais irá incidir a perícia e que será admissível nas situações previstas no art. 43º. De facto, e ao contrário do que pretende a Apelante, a mera circunstância de a Autora não ter especificado os concretos livros ou a parte concreta da escrita a examinar não permite afirmar que o exame irá incidir sobre toda a escrita; o exame irá incidir, naturalmente, sobre a parte da escrita que será relevante para a prova dos factos que são objecto da perícia, sendo que a delimitação desse objecto irá definir, naturalmente (desde logo, em termos temporais), a parte da escrita que irá e poderá ser objecto do exame.

Como se refere no Acórdão do STJ de 15/06/1993[2], “a parte que requer exame por apresentação não está obrigada a «indicar especificadamente o assento ou assentos que deverão ser examinados», bastando que defina «o assunto concreto sobre que os lançamentos hão-se versar», e designe estes, com maior ou menor precisão, por referência «à época provável da operação a que respeitam ou do seu registo, da conta a que pertencem os assentos, etc.»”  

Ora, o objecto da perícia que é proposto pela Autora contém a indicação das operações e datas da sua realização que permitirão definir e delimitar qual a parte da escrita a examinar por conter elementos relevantes para a sua demonstração. Não pretendemos com isto afirmar que todo o objecto da perícia proposta pela Autora esteja assim elaborado de modo a permitir a efectiva delimitação dos livros a examinar, mas essa questão já não se prende com a admissibilidade da perícia em termos gerais, mas sim com a sua extensão e a efectiva determinação do seu objecto (importando notar que o despacho recorrido não definiu ainda, em definitivo, o objecto da perícia). O que importa, para já, é que, pelo menos em parte, o objecto da perícia que é proposto pela Autora delimita as operações relevantes e a época em que foram realizadas, o que permitirá, naturalmente, restringir o exame a uma determinada parte da escrita da Apelante (sem necessidade, portanto, de a examinar por inteiro) e, portanto, nada obsta, em termos gerais, à admissibilidade da perícia, podendo apenas suceder que o objecto proposto deva ser restringido por conter algumas questões que possam, eventualmente, implicar uma análise de toda a escrita, por não estarem devidamente individualizadas as operações a analisar e a data da sua realização (sendo certo, porém, que esta questão não se coloca, por ora, já que o despacho recorrido ainda não fixou o objecto da perícia).

Rebatido o primeiro argumento invocado pela Apelante, analisemos o segundo.

Como já se referiu, o exame à escrita comercial é admissível quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida, considerando a Apelante que tal situação não se verifica na medida em que não tem qualquer interesse na demonstração dos factos que a perícia visa demonstrar, já que é a Autora que tem o ónus de os provar.

Ou seja, na perspectiva da Apelante e ao que parece, o exame só seria admissível para fazer prova de factos que lhe sejam favoráveis e que tem o ónus de provar, já que, como é evidente, não tem qualquer interesse em ver demonstrados os factos que lhe são desfavoráveis e que oportunamente impugnou.

É claro, porém, que não pudemos sufragar um tal entendimento, sendo certo que nada encontramos no texto e espírito da lei que aponte para uma leitura tão redutora.

Com efeito, a afirmação – que emerge das alegações da Apelante – de que o interesse a que alude o citado art. 43º, enquanto elemento legitimador do exame, corresponde ao interesse em provar um determinado facto (interesse que pertence a quem tem o respectivo ónus de prova), equivaleria a dizer que o exame só poderia ser ordenado a pedido da pessoa a quem pertencesse a escrita a examinar e apenas para prova de factos que lhe são favoráveis. Mas a verdade é que tal limitação não decorre do texto legal, resultando, aliás, do disposto no art. 44º do C.Comercial, que a escrita comercial pode fazer prova contra o seu titular.

Na verdade, o que se determina no citado art. 43º é que o exame será admissível quando a pessoa a quem pertença a escrita tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida. Ou seja, o que releva, para efeitos de admissibilidade do exame, não é o interesse concreto de uma das partes na efectiva demonstração dos factos para prova dos quais foi requerido ou ordenado (interesse que pertenceria a quem tem o ónus de os provar e a quem deles poderia beneficiar), mas sim o interesse na resolução da questão que depende do apuramento desses factos e o que releva para aquele efeito não é apenas o interesse que o titular da escrita possa ter, mas também a sua responsabilidade na questão em que tal apresentação é exigida.

Ora, sendo certo que qualquer uma das partes em litígio tem interesse ou responsabilidade nas questões que se suscitam e estão controvertidas no âmbito de uma acção judicial em que são partes e que, como tal, estão inseridas no objecto do litígio que entre elas se desenvolve, parece claro que não poderá deixar de ser admissível, à luz do disposto no citado art. 43º, o exame à escrita comercial de qualquer uma das partes com vista ao apuramento de determinados factos que são necessários à apreciação e decisão daquelas questões que, naturalmente, são do interesse ou responsabilidade de ambas as partes envolvidas.

Aquela exigência legal reporta-se, essencialmente, aos casos em que o exame incide sobre a escrita comercial de alguém que não é parte na causa, onde, efectivamente, terá que ser analisada em concreto a questão de saber se essa pessoa – apesar de estranha à causa – tem ou não algum interesse ou responsabilidade na questão que determina a realização do exame, já que, relativamente às partes na acção onde essa questão está controvertida, não será possível afirmar a ausência de interesse ou responsabilidade nessa questão.

Neste sentido, pode ver-se, aliás, o Acórdão do STJ de 21/04/2003[3], onde se afirma que “…essa exigência somente se justifica no caso de a escrita pertencer a terceiro, uma vez que, sendo os livros e documentos de qualquer das partes no processo, não faz sentido referir tal pressuposto, em virtude da sua existência ser inerente à própria qualidade de parte na acção”, bem como o Acórdão da Relação do Porto de 14/06/2002[4], em cujo sumário se diz que “para poder ser realizado o exame por apresentação previsto no artigo 43 do Código Comercial basta que a pessoa a quem pertencem os livros seja parte na causa; tendo esta qualidade naturalmente que terá "interesse" e "responsabilidade" na causa”.

Assim, independentemente da questão de saber a quem pertence o ónus de prova e independentemente da questão de saber se os factos sobre os quais incide a perícia são ou não favoráveis à Ré/Apelante (circunstâncias que são irrelevantes para aferir a admissibilidade do exame à escrita), a verdade é que a Ré/Apelante é parte na causa onde se colocam as questões a propósito das quais se requer o exame à sua escrita comercial e, na qualidade de parte, tem indiscutível interesse ou responsabilidade nessas questões.

Consequentemente, estão verificados os pressupostos legais dos quais depende a admissibilidade do exame à sua escrita comercial, em conformidade com o disposto no citado art. 43º.

Considera ainda a Apelante que a Autora dispõe de outros meios para fazer a demonstração da matéria de causa, não se justificando, por isso, a devassa da sua escrita comercial.

Desconhecemos se a Autora dispõe ou não de outros meios para fazer a demonstração da matéria em causa e desconhecemos se os meios probatórios que, eventualmente, estejam ao seu alcance seriam bastantes para fundamentar a convicção do julgador relativamente aos factos que a Autora pretende demonstrar, mas, como parece evidente, as partes têm o direito de se socorrer de todos os meios probatórios disponíveis e admissíveis com o objectivo de fornecer ao julgador elementos suficientemente credíveis para a formação da sua convicção.

Ora, o exame à escrita da Apelante é admissível – como vimos – por estarem verificados os pressupostos a que legalmente está condicionado e nada na lei impõe ou sugere que tal exame apenas possa e deva ser efectuado quando não exista outra forma de demonstrar os factos em causa. De facto, o segredo da escrituração comercial – que apenas vigora em plenitude para o efeito de obstar à sua devassa com o único objectivo de verificar se o comerciante arruma ou não devidamente os seus livros (cfr. art. 41º) – não foi erigido pelo legislador como um princípio basilar que apenas deva ceder em casos muito excepcionais. De facto, embora esse princípio se manifeste, de forma inequívoca, no que respeita à exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro (que apenas é admitida nas situações previstas no art. 42º) e no que respeita ao exame da escrituração de pessoas estranhas às acções judiciais onde são ordenados (exames que, em conformidade com o disposto no art. 43º, apenas serão admissíveis quando essas pessoas tenham interesse ou responsabilidade na questão) fazendo ceder, nessa medida, o dever de colaboração a que tais pessoas estariam sujeitas, nos termos do art. 519º do C.P.C., a verdade é que o segredo da escrituração comercial não tem, na prática, qualquer aplicação no que respeita a exames ordenados no âmbito de uma acção judicial relativamente à escrituração de qualquer uma das partes. Neste caso, e porque a existência de interesse ou responsabilidade na questão é inerente à qualidade de parte, o exame à escrituração comercial das partes poderá sempre ter lugar, desde que, naturalmente, seja relevante e tenha a idoneidade necessária para fazer a demonstração dos factos sobre os quais vai incidir e que são necessários à boa decisão da causa.

Afigura-se-nos, pois, em face do exposto, que, para aferir da admissibilidade do exame aqui em causa, é irrelevante a questão de saber se a Autora tem ou não a possibilidade de utilizar outros meios probatórios para fazer a prova dos factos que se propõe demonstrar com a realização do exame à escrita comercial da Ré/Apelante.

A verdade é que o exame em causa, sendo admissível face ao disposto no citado art. 43º, não se mostra impertinente ou dilatório, já que, pelo menos algumas das questões a que se reporta, estarão ou poderão estar reflectidas na contabilidade da Apelante (como acontece com as quantias que, alegadamente, a Apelante terá pago – ou não – ao Réu, José Cortiço e com as quantias que este entregou àquela).

Embora se admita – como alega a Apelante – que o exame em causa não tenha relevância para apurar todas as questões propostas pela Autora, esse facto nunca seria susceptível de determinar a sua não admissão, podendo apenas determinar a redução do respectivo objecto e essa é uma questão que não poderá ser aqui analisada – e que é prematuro analisar – na medida em que o despacho recorrido não fixou o objecto da perícia, limitando-se a admitir esse meio probatório e a ordenar a notificação da parte contrária para se pronunciar sobre o seu objecto.

 

Improcede, pois, o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Porque qualquer uma das partes em litígio tem interesse ou responsabilidade nas questões que se suscitam e estão controvertidas no âmbito de uma acção judicial em que são partes e que, como tal, estão inseridas no objecto do litígio que entre elas se desenvolve, não poderá deixar de ser admissível, à luz do disposto no art. 43º do Código Comercial, o exame à escrita comercial de qualquer uma delas com vista ao apuramento de determinados factos que são necessários à apreciação e decisão daquelas questões.

II – O segredo da escrituração comercial – que apenas vigora em plenitude para o efeito de obstar à sua devassa com o único objectivo de verificar se o comerciante arruma ou não devidamente os seus livros (cfr. art. 41º) – manifesta-se sobretudo nas restrições colocadas à exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro (que apenas é admitida nas situações previstas no art. 42º) e nas restrições colocadas ao exame da escrituração de pessoas estranhas às acções judiciais onde são ordenados (exames que, em conformidade com o disposto no art. 43º, apenas serão admissíveis quando essas pessoas tenham interesse ou responsabilidade na questão); tal segredo não obsta, porém, à realização de exames ordenados no âmbito de uma acção judicial relativamente à escrituração comercial de qualquer uma das partes, na medida em que estas terão sempre interesse ou responsabilidade na questão que nela se discute e que reclama a realização do exame.


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IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Proc. nº 087158, disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] BMJ, 428º, pág. 607.
[3] Proc. nº 003641, disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Com o nº convencional JTRP00033385, disponível em http://www.dgsi.pt.