Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
94/10.0TACNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 10/27/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS ALÍNEAS A) E D) DO N.º 1 DO ARTIGO 98.º DO DECRETO-LEI N.º 555/99, DE 16 DE DEZEMBRO, COM A REDACÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI N.º 60/2007, DE 4 DE SETEMBRO, 58.º N.º 1, AL. B) E 64º DO RGCOC
Sumário: 1.No processo contra-ordenacional a fundamentação da decisão administrativa pode ser feita por remissão para os meios de prova constantes do auto de notícia; importa é que tal remissão permita que o destinatário fique ciente de quais são esses meios de prova que suportam os factos.
2.Sempre que o arguido requeira no recurso de impugnação a realização de produção de prova, com apresentação, designadamente, de rol de testemunhas, o princípio do contraditório e o direito ao recurso impõem ao juiz a realização da audiência de julgamen
3 Tendo o agente obtido licença municipal para a edificação em prédio rústico de um telheiro com 24 m2, destinado exclusivamente a arrumos e anexos, comete as contra -ordenação p.e.p. pelas alíneas a) e d) do artigo 98º do DL 555/99 de 16/12 se utiliza a referida construção, cuja área edificada totaliza cerca de 55 m2, para o alojamento de um animal de raça equídea
Decisão Texto Integral: Relatório

A Câmara Municipal de Cantanhede, em face do auto de notícia n.º 032/2009, instaurou o processo de contra-ordenação n.º 90/2009 contra F, residente…, Cantanhede, imputando-lhe a prática das contra-ordenações, p. e p. pelas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 98.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com a redacção introduzida pela Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro.
Organizado o respectivo processo veio, no final, o arguido F a ser condenado, por decisão da autoridade administrativa, de 14 de Dezembro de 2009, na coima de € 250,00 pela prática da contra-ordenação, p. e p. pela alínea a), n.º 1 do artigo 98.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com a redacção introduzida pela Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro, e na coima de € 250,00 pela prática da contra-ordenação p. e p. pela alínea d), n.º 1, do artigo 98.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com a redacção introduzida pela Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro e, em cúmulo, na coima única de € 500,00, bem como na sanção acessória prevista nos artigos 98.º, n.º 1, al. d), e 99.º, n.º 1, al. a), do citado diploma legal, que se consubstanciou em retirar, no prazo de 10 dias, o animal do arrumo.

Inconformado parcialmente com a decisão administrativa, o arguido interpôs recurso de impugnação judicial para o Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede, impugnando as sanções aplicadas pelo alojamento de um animal de raça equídea num arrumo/telheiro sem o respectivo licenciamento administrativo e autorização de utilização.

Admitido o recurso foi designada data para audiência de julgamento e, realizada a mesma, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 31 de Maio de 2010, decidiu julgar improcedente o recurso de impugnação judicial interposto pelo arguido F e, em consequência, manter na íntegra a decisão administrativa impugnada.

Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido F, para o Tribunal da Relação de Coimbra, concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1) A decisão administrativa é Nula, pois, além de não identificar os “factos” em que se baseia, não indica também as provas obtidas, nas quais se fundamenta, tudo em flagrante violação do disposto no art.58.º n.º 1, al. b) do Regime Geral das Contra- Ordenações e Coimas, não podendo a decisão judicial decorrente da respectiva impugnação suprir, nem sanar tal Nulidade.
2) A decisão de recebimento do recurso pelo Tribunal a quo e de marcação de julgamento confere à actuação recorrente (uso pontual dos anexos como abrigo do cavalo) um carácter legal e não sancionável, designadamente nos termos em que o fez a decisão administrativa recorrida.
3) Face à matéria de facto julgada provada nos autos, apenas se pode concluir que “no dia 19 de Maio de 2009, o recorrente utilizava a referida construção, cuja área edificada totalizava cerca de 55 m2 para o alojamento de um animal de raça equídea”, não se provando que tal utilização era constante.
4) Ainda face à matéria de facto julgada provada nos autos, não se pode concluir que os anexos estejam a ser utilizados com carácter de permanência com abrigo do cavalo, como o fizeram a decisão administrativa e a decisão judicial ora em recurso.
5) Apesar de a questão ter sido expressamente enunciada, a douta decisão recorrida não refere (como o não tinha feito anteriormente a decisão administrativa) Qual a Disposição Legal Que Impõe a Necessidade Licenciamento para, em casos, como o dos autos, em que uma construção licenciada como armazéns/anexos é, também utilizada para abrigo, provisório ou não, de um cavalo.
Nestes termos e esperando para o mais o douto e sempre necessário suprimento deste Venerando Tribunal da Relação ad quem, se pede e espera seja dado provimento ao presente recurso e, em consequência sejam revogadas as sanções impugnadas (aplicadas ao ora recorrente por eventual alojamento de animal de raça equídea sem o respectivo licenciamento administrativo e autorização de utilização) quer a pecuniária, quer a acessória, ordenando consequentemente o arquivamento dos presentes autos, com o que se fará elementar, integral e sã Justiça.

O Ministério Público na Comarca de Cantanhede respondeu ao recurso interposto pelo arguido pugnando pelo seu não provimento e manutenção da decisão recorrida.

O Ex.mo Procurador-geral-adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto apurada e respectiva motivação cosntante da sentença recorrida é a seguinte:
Factos Provados
1.º Pela licença n.º 198/1993, de 16 de Março, emitida pela Câmara Municipal de Cantanhede, foi autorizada ao recorrente F a edificação de um telheiro com 24 m2 no prédio rústico denominado de Carriço, sito…. Freguesia… concelho de Cantanhede, que confronta a norte com A, a sul com L a nascente com serventia (actual Rua de …) e a poente com caminho.
2.º Este prédio pertence ao recorrente F.
3.º A edificação autorizada nos termos referidos em 1.º destinava-se exclusivamente a arrumos e anexos.
4.º No dia 19 de Maio de 2009, o recorrente utilizava a referida construção, cuja área edificada totalizava cerca de 55 m2, para o alojamento de um animal de raça equídea, sem a respectiva autorização de utilização.
Factos não provados
1.º O recorrente desenvolve naquele prédio actividades agrícolas de cultivo de hortícolas, vinhas e de árvores de fruto.
2.º Onde também deambulam, livremente, animais domésticos, concretamente, um cão, vários gansos, patos e galinhas.
3.º Esses animais abrigam-se nos anexos, instintivamente, em situações de intempérie rigorosa.
4.º Só em momentos em que tem pessoal a trabalhar no prédio é que o recorrente, provisoriamente, fecha os animais nos anexos/arrumos.
Motivação
O Tribunal formou a sua convicção na análise crítica de toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, com recurso a juízos de experiência comum e aos documentos constantes dos autos, nomeadamente às fotografias do prédio rústico e dos respectivos anexos/arrumos, que fazem fls. 43 e 67, e à planta de localização do prédio rústico de fls. 66.
Para dar como provado os factos assentes sob os pontos 1.º, 3.º e 4.º - na parte “área edificada totalizava cerca de 55m2” -, o Tribunal alicerçou a sua convicção no teor da decisão da autoridade administrativa constante dos autos, que, exclusivamente quanto a estes pontos, foi aceite pelo recorrente.
A prova do remanescente do ponto 4.º da matéria de facto assente, o Tribunal alicerçou-se nos depoimentos das testemunhas E e FG ambos fiscais municipais em exercício de funções na Câmara Municipal de Cantanhede, que, tendo presidido ao acto de fiscalização que deu origem aos autos de contra-ordenação, demonstraram amplo conhecimento sobre os factos subjacentes ao objecto dos presentes autos. Ambas as testemunhas, de forma credível, isenta e consentânea, relataram ao Tribunal que, aquando da visita fiscalizadora, para além da inexistência de licenciamento para a totalidade da construção edificada no prédio do recorrente, verificaram que o mesmo alojava um cavalo num dos compartimentos dessa edificação, referindo, peremptoriamente, que, nesse momento, o dito animal aí se encontrava fechado, tendo sido, posteriormente, solto pelo recorrente. Pese embora com algumas imprecisões, próprias do desfasamento temporal que medeia entre a apreensão dos factos e o seu relato ao Tribunal, ambas as testemunhas afiançaram que, dentro desse compartimento, existiam excrementos do animal e palha.
O Tribunal considerou ainda o depoimento prestado pelo Dr. I veterinário em exercícios de funções na Câmara Municipal de Cantanhede, que, em 2003/2004, integrou, como técnico da edilidade, uma vistoria conjunta com a Delegada de Saúde de Cantanhede com vista a aferir da salubridade do local para o alojamento do referido equídeo. A testemunha, de forma escorreita e imparcial, foi categórica ao referir que, nessa data, verificou que no prédio do recorrente havia uma edificação própria para o abrigo e pernoite do animal, que, pela exibição das fotografias constantes dos autos e acima identificadas, confirmou ser um dos compartimentos dos anexos/arrumos aqui em discussão. Salientou ainda que, no interior da edificação, existiam vestígios evidentes de que o animal era ali alojado pelo recorrente, como sejam excrementos e alimento para o animal.
O Tribunal não considerou os depoimentos das testemunhas M, D. MC e J, por se terem revelado parciais e tendenciosos, eventualmente em virtude da amizade que os liga ao recorrente. Na verdade, as testemunhas M e MC foram até irrazoáveis ao afirmar que o cavalo, mesmo no rigor do Inverno, ficava desprotegido, à mercê das mais rigorosas intempéries, não merecendo, por isso, qualquer credibilidade do Tribunal. Ao invés, as restantes duas testemunhas, afiançando que o cavalo se encontrava sempre em liberdade pelo prédio do recorrente, admitiram que, em situações isoladas, o cavalo se abriga no referido anexo.
Quanto à matéria de facto dada como não provada, o Tribunal concluiu que, da discussão da causa, a mesma não resultou demonstrada, por contradição directa com motivação dos factos que foram julgados assentes ou por não ter sido feita prova nesse sentido.
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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente arguido as questões a decidir são as seguintes:
- se a decisão administrativa é nula, por violação do disposto no art.58.º n.º 1, al. b) do RGCOC, uma vez que não identifica os “factos” em que se baseia, nem indica as provas obtidas nas quais se fundamenta, e a decisão judicial decorrente da respectiva impugnação não pode suprir, nem sanar, tal nulidade;
- se a decisão de recebimento do recurso pelo Tribunal a quo e de marcação de julgamento confere à actuação do recorrente (uso pontual dos anexos como abrigo do cavalo) um carácter legal e não sancionável, designadamente nos termos em que o fez a decisão administrativa recorrida;
- se em face à matéria de facto julgada provada nos autos, apenas se pode concluir que “no dia 19 de Maio de 2009, o recorrente utilizava a referida construção, cuja área edificada totalizava cerca de 55 m2 para o alojamento de um animal de raça equídea” e, não se provando que tal utilização era constante e que os anexos estejam a ser utilizados com carácter de permanência com abrigo do cavalo, como o fizeram a decisão administrativa e a decisão judicial ora em recurso, deve esta ser revogada e o arguido absolvido;
- se a douta decisão recorrida não refere (como o não tinha feito anteriormente a decisão administrativa) qual a disposição legal que impõe a necessidade licenciamento para, em casos, como o dos autos, uma construção licenciada como armazéns/anexos é, também utilizada para abrigo, provisório ou não, de um cavalo, apesar de a questão ter sido expressamente enunciada.
Passemos ao conhecimento da primeira questão.
A introdução do Direito de Mera Ordenação Social no sistema jurídico português, através do DL n.º 239/79, de 24 de Julho - posteriormente substituído pelo DL n.º 433/82, de 27 de Setembro -, tem subjacentes preocupações de natureza politico-criminal que se centralizam na afirmação de que aquele novo ramo do sistema sancionatório público « estaria vocacionado para dar atenção a certas áreas de intervenção de que, nomeadamente pela sua componente social », o Estado « se não podia alhear, como a tutela do ambiente, aspectos diversos da economia nacional ou uma intervenção preventiva na área dos direitos dos consumidores.».
Tratar-se-iam de áreas « carentes de tutela jurídica de carácter sancionatório e finalidades preventivas nas quais, de acordo com as valorações então dominantes, não se justificava uma resposta penal, já então orientada para uma intervenção de ultima ratio, conforme apontava o disposto no artigo 18.º, n.º2, da Constituição de 1976.» – cfr. Dr. Costa Pinto, “ O Ilícito de Mera Ordenação Social e a Erosão do Princípio da Subsidariedade da Intervenção Penal”, Direito Penal Económico e Europeu – Textos Doutrinários, Vol. I, Coimbra Editora, 1998, pág.19 e ss.
A autonomia do Direito de Mera Ordenação Social face ao Direito Penal vai-se materializar em soluções de natureza substantiva e processual diversas das vigentes para este direito. Contudo, o Direito de Mera Ordenação Social manteve desde sempre profundas ligações ao direito penal e ao direito processual penal, demonstradas em múltiplas soluções normativas comuns.
Pese embora o reforço de aproximação do Direito de Mera Ordenação Social ao Direito Penal e Direito Processual Penal que se faz sentir com as sucessivas alterações ao RGCOC aprovados pelo DL n.º 433/82, e a que não serão alheias as elevadas coimas e sanções acessórias previstas no direito contra-ordenacional, as linhas de estrutura do processo de contra-ordenação subsistem.
O art.58.º do RGCOC, a que alude o recorrente, estabelece os requisitos a que deve obedecer a decisão administrativa condenatória.
Nos termos do art.58.º do RGCOC, a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias, deve conter: a identificação dos arguidos; a identificação dos factos imputados com indicação das provas obtidas; a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; a coima e as sanções acessórias; a informação de que a condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59.º e que em caso de impugnação judicial o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham mediante simples despacho; e, ainda, a ordem de pagamento da coima no prazo máximo de dez dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão e a indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.
Emergindo o dever de fundamentação directamente do art.205.º da CRP, como parte integrante do próprio conceito de Estado de Direito democrático, o direito a conhecer as razões do sancionamento é comum quer ao processo criminal quer ao processo de contra-ordenação.
O que temos como pacífico é que na decisão administrativa não são necessárias as mesmas exigências de fundamentação que o art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal estabelece para a sentença penal condenatória – cfr. neste sentido, entre outros, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 50/2003, 62/2003, 469/2003 e 492/2003, in www.tribunalconstitucional.pt.
Como escreveram, os hoje Conselheiros, António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, a fase administrativa do processo de contra-ordenação tem como características a celeridade e simplicidade processual e daí que o dever de fundamentação tenha uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal. « O que de qualquer forma deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e direito que levaram à sua condenação, possibilitando ao arguido um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, e já em sede de impugnação judicial permitir ao tribunal conhecer o processo lógico de formação da decisão administrativa. Tal percepção poderá resultar do teor da própria decisão ou da remissão por esta elaborada.» - cfr. Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2.ª edição , pág. 159 e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4 de Junho de 2003, CJ, n.º 167, pág.40.
No presente caso, o arguido F. alega que ao invocar, no recurso de impugnação judicial, a nulidade da decisão administrativa, não o fez por uma questão de inteligibilidade da decisão, mas para realçar que esta se baseava em conceitos conclusivos (“ alojamento de animal de raça equídea”), sem apontar os factos que permitissem tal conclusão. Ainda, assim, a sentença recorrida constatou a falta de identificação de factos imputados ao arguido pela decisão administrativa – ao mencionar “ a simplicidade da descrição da matéria de facto imputada ao arguido” - , mas não a valorizou, e notou a falta de indicação das provas fundamentadoras da mesma decisão – ao mencionar que “ aquela decisão administrativa não surpreende pelo rigor técnico” , mas relevou-a, concluindo “ que a remissão genérica para o auto de notícia é suficiente”.
Vejamos.
Antes de entrar no conhecimento das questões impõe-se realçar que o Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista, já que apenas conhece da matéria de direito ( art75.º, n.º 1 do RGCOC), sem prejuízo do conhecimento dos vícios do art.410.º, n.º2 do C.P.P., aplicável ao processo de contra-ordenação por força do disposto no art.41.º, n.º 1 do RGCOC.
Retomando ao caso concreto, diremos que resulta da decisão administrativa que o arguido F. possuindo uma determinada licença para edificar num prédio um telheiro com 24 m2, destinado a arrumos, no dia 19 de Maio de 2009, tinha edificada uma área de construção de cerca de 55 m2, e que utilizava esta para “alojamento de um animal de raça equídea,” sem o respectivo licenciamento administrativo e autorização de utilização.
Mais se refere na decisão administrativa que os factos foram verificados por um fiscal municipal do Serviço de Fiscalização do Município de Cantanhede, acompanhado de uma testemunha, “ ambos identificados no auto de notícia”, sendo as provas obtidas as constantes do auto de notícia, onde se anexa uma planta de localização e fotografias de um cavalo num espaço.
Na sentença recorrida, refere-se, por sua vez, que da descrição dos factos provados na decisão administrativa consta o núcleo essencial que permite a contextualização de tempo, modo e lugar que fundamentou a aplicação ao recorrente da contra-ordenação e que “ não obstante a simplicidade da descrição da matéria de facto imputada ao arguido, a verdade é que a mesma é perfeitamente inteligível ”, e “ sempre o recorrente demonstrou ter perfeito e pleno conhecimento dos descrição da matéria de facto imputada ao arguido e das normas legais em que foram enquadrados.”.
Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo ao mencionar, na sentença recorrida, que reveste simplicidade a descrição da matéria de facto imputada ao arguido, não está a reconhecer que existe falta de identificação dos factos imputados ao arguido, mas apenas que essa matéria não é complexa, mas simples, e que o recorrente bem percebeu, perante o processado que juntou aos autos, quais os factos que lhe são imputados.
No recurso interposto para o Tribunal da Relação o arguido defende que arguiu a nulidade da decisão administrativa no recurso de impugnação judicial, não por uma questão de inteligibilidade da decisão, mas para realçar que esta se baseava em conceitos conclusivos (“ alojamento de animal de raça equídea”), sem apontar os factos que permitissem tal conclusão, e que seriam, por exemplo, a existência no local de uma manjedoura e de um bebedouro.
Retomando ao caso concreto, cremos ser perfeitamente perceptível, em linguagem corrente, e para um declaratário normal, que a construção onde se aloja um animal de raça equídea, é o estábulo onde permanece um cavalo.
O recorrente percebeu perfeitamente os concretos factos que lhe eram imputados, tanto assim que no recurso de impugnação judicial mencionou que, « Na verdade, como o ora requerente esclareceu também desde logo nos autos, não estava, nem está, a utilizar a construção em causa como alojamento ( estábulo) de animal de raça equídea.», mas que « mantém no referido prédio rústico alguns animais domésticos ( galos, galinhas, gansos, patos cão e cavalo) que deambulam livremente pelo prédio e que, naturalmente, se abrigam, todos eles ( por si, instintivamente), em situações de intempérie rigorosa.» - pontos 7 e 9.
Ainda assim, e perante a impugnação da factualidade constante da decisão administrativa, o Tribunal a quo conheceu dela e concluiu que, efectivamente , o arguido utilizava a construção para alojamento de um animal de raça equídea, como resultava da decisão administrativa. Fundamentou a matéria de facto da sentença, essencialmente no depoimento das testemunhas E e Francisco CG, ambos fiscais municipais em exercício de funções na Câmara Municipal de Cantanhede - que verificaram que o arguido alojava um cavalo num dos compartimentos dessa edificação, referindo, peremptoriamente, que aquando da fiscalização o dito animal aí se encontrava fechado, tendo sido, posteriormente, solto pelo recorrente, afiançando que, dentro desse compartimento, existiam excrementos do animal e palha - e na testemunha Dr. IC, veterinário em exercícios de funções na Câmara Municipal de Cantanhede - que, em 2003/2004, integrou, como técnico da edilidade, uma vistoria conjunta com a Delegada de Saúde de Cantanhede com vista a aferir da salubridade do local para o alojamento do referido equídeo e foi categórica ao referir que, nessa data, verificou que no prédio do recorrente havia uma edificação própria para o abrigo e pernoite do animal, que, pela exibição das fotografias constantes dos autos e acima identificadas, confirmou ser um dos compartimentos dos anexos/arrumos aqui em discussão, salientando ainda que, no interior da edificação, existiam vestígios evidentes de que o animal era ali alojado pelo recorrente, como sejam excrementos e alimento para o animal.
Quanto ao reconhecimento, na sentença recorrida, da falta de indicação das provas fundamentadoras da decisão administrativa, cremos, ao contrário do defendido pelo recorrente F, que ele não se verifica.
Mencionar que a “ decisão administrativa não surpreende pelo rigor técnico” , mas “ que a remissão genérica para o auto de notícia é suficiente”, é concluir que não existe falta de indicação das provas.
E bem, pois, no processo contra-ordenacional é admissível que a fundamentação da decisão administrativa se faça por remissão para os meios de prova constantes do auto de notícia, desde que a mesma permita que o destinatário fique ciente de quais são esses meios de prova que suportam os factos, permitindo a sua impugnação judicial – cfr. entre outros, os acórdãos da Relação de Coimbra, de 29-3-2001 ( CJ, ano XXVI, 2.º, pág. 59) e de Évora, de 14-1-2003 ( CJ, ano XXVIII, 1.º, pág. 258).
O art.125.º, n.º1 do Código de Procedimento Administrativo estabelece que na decisão administrativa « a fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituirão neste caso parte integrante do respectivo acto.». E o Tribunal Constitucional vem aceitando a aplicabilidade deste art.125.º do C.P.A. à fundamentação da decisão administrativa em processo contra-ordenacional.
No caso, ao mencionar-se na decisão administrativa que os factos foram verificados por um fiscal municipal do Serviço de Fiscalização do Município de Cantanhede, acompanhado de uma testemunha, “ ambos identificados no auto de notícia”, e sendo as provas obtidas as constantes do auto de notícia, onde se anexa uma planta de localização e fotografias de um cavalo num espaço, entendemos que foram indicadas as provas obtidas que permitem compreender o processo lógico de formação da decisão administrativa, possibilitando ao condenado F um juízo de oportunidade sobre a conveniência da interposição da impugnação judicial e defesa dos seus direitos.
Deste modo, concluímos que a decisão administrativa não padece de nulidade por violação do disposto no art.58.º n.º 1, al. b) do RGCOC, improcedendo esta questão.
Passemos à segunda questão.
O arguido defende que a decisão de recebimento do recurso pelo Tribunal a quo e de marcação de julgamento confere à actuação do recorrente (uso pontual dos anexos como abrigo do cavalo) um carácter legal e não sancionável, designadamente nos termos em que o fez a decisão administrativa recorrida.
Vejamos.
Já atrás se deixou escrito que o art.58.º do RGCOC, estatui que a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias, deve conter a informação de que em caso de impugnação judicial o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham mediante simples despacho.
Interposto recurso de impugnação judicial os autos são remetidos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como acusação ( art.62.º, n.º 1 do RGCOC).
O juiz, por despacho, rejeitará o recurso feito fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma ( art.63.º, n.º1 do RGCOC).
Nos termos do art. 64.º do RGCOC, admitido o recurso, o juiz decidirá mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho ( n.º1). O juiz decide por despacho quando não considere necessário a audiência de julgamento e o arguido e o Ministério Público não se oponham ( n.º 2) , e, através do despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou alterar a condenação ( n.º 3 ).
O juiz deve decidir por despacho, essencialmente, sempre que haja excepções dilatórias ou peremptórias que extingam a responsabilidade do arguido, quando a questão é apenas de direito ou quando o processo fornece todos os elementos de facto necessários à decisão.
Sempre que o arguido requeira no recurso de impugnação a realização de produção de prova, com apresentação, designadamente, de rol de testemunhas, o princípio do contraditório e o direito ao recurso impõem ao juiz a designação de audiência de julgamento.
No recurso de impugnação judicial o recorrente F alegou expressamente que não estava a utilizar a construção em causa como estábulo do cavalo e que apenas instintivamente alguns animais domésticos, entre eles o cavalo, ali se abrigam.
Com o recurso arrolou diversas testemunhas e se o fez é porque entende que devem ser ouvidas, o que só poderia ser efectuado em audiência de julgamento.
A questão tal como está enunciada não permite uma clara percepção de quais são as premissas que sustentam a conclusão do recorrente, mas temos como certo que com o recebimento do recurso e a marcação da audiência o juiz apenas sujeitou ao contraditório a versão dos factos trazida pelo arguido, não tomando qualquer decisão sobre se a actuação do recorrente relativa a um alegado uso pontual dos anexos como abrigo do cavalo tinha , ou não, um carácter legal e não sancionável.
A questão seguinte a conhecer é se em face à matéria de facto julgada provada nos autos, apenas se pode concluir que “no dia 19 de Maio de 2009, o recorrente utilizava a referida construção, cuja área edificada totalizava cerca de 55 m2 para o alojamento de um animal de raça equídea” e, não se provando que tal utilização era constante e que os anexos estejam a ser utilizados com carácter de permanência com abrigo do cavalo, como o fizeram a decisão administrativa e a decisão judicial ora em recurso, deve esta ser revogada e o arguido absolvido.
A decisão desta questão remete-nos para a contra-ordenação imputada ao arguido.
O artigo 98.º, n.º1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com a redacção introduzida pela Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro, estatui que são puníveis como contra-ordenação « a ocupação de edifícios ou suas fracções autónomas sem autorização de utilização ou em desacordo com o uso fixado no respectivo alvará ou na admissão de comunicação prévia, salvo se estes não tiverem sido emitidos no prazo legal por razões exclusivamente imputáveis à câmara municipal;».
Por sua vez o art.4.º, n.º4 do mesmo diploma, na redacção introduzida pela Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro, estatui que « Está sujeita a autorização a utilização dos edifícios ou suas fracções, bem como as alterações da utilização dos mesmos.».
Os factos dados como provados no ponto n.º 4 da sentença recorrida – que no dia 19 de Maio de 2009, o recorrente utilizava a referida construção, cuja área edificada totalizava cerca de 55 m2, para o alojamento de um animal de raça equídea, sem a respectiva autorização de utilização – constavam já dos factos dados como provados na decisão administrativa.
Pese embora esta fosse já a redacção dos factos provados, veio o arguido no recurso de impugnação judicial alegar e juntar prova de que o cavalo, como outros animais domésticos deambulam, livremente, pelo prédio e que se abrigam nos anexos, instintivamente, em situações de intempérie rigorosa e só em momentos em que tem pessoal a trabalhar no prédio é que o recorrente, provisoriamente, fecha os animais nos anexos/arrumos.
Estes factos, que visavam claramente afastar a existência de um estábulo de um cavalo numa construção licenciada para utilização como arrumos, foram dados como não provados - resultando mesmo da fundamentação de facto da decisão recorrida que há muito a construção em causa será o alojamento do animal de raça equídea.
Os factos provados permitem concluir que no dia 19 de Maio de 2009, o arguido tinha em funcionamento na construção, um estábulo para um estábulo para um animal de raça equídea, local para onde tinha autorização de utilização como arrumos.
Tal é suficiente para o preenchimento da imputada contra-ordenação, pelo que improcede também esta questão.
Por fim, alega o recorrente que a douta decisão recorrida não refere (como o não tinha feito anteriormente a decisão administrativa) qual a disposição legal que impõe a necessidade licenciamento para, em casos, como o dos autos, uma construção licenciada como armazéns/anexos é, também utilizada para abrigo, provisório ou não, de um cavalo, apesar de a questão ter sido expressamente enunciada.
Sobre esta questão, e acompanhando a douta sentença recorrida, diremos que « o que está aqui em causa não é a obrigatoriedade de licenciamento do referido espaço de arrumos como se de um estábulo se tratasse, mas sim a desconformidade existente entre o uso previsto aquando do licenciamento daquela edificação e a utilização que, efectivamente, o recorrente lhe deu.».
É por esta desconformidade que o arguido é sancionado. Se o arguido não quiser ser sancionado pela utilização da construção como estábulo terá de obter uma licença de utilização correspondente a essa utilização.
Tendo o arguido F juntado aos autos o requerimento de folhas 75, imediatamente antes de ser proferida a decisão administrativa condenatória, em que diz que « tenho em curso o processo de “Autorização de utilização”, após o devido licenciamento de legalização de construção existente, …», não se percebe como vem o recorrente alegar nas conclusões do presente recurso que não foi referida qual a disposição legal que impõe a necessidade licenciamento para, em casos, como o dos autos, uma construção licenciada como armazéns/anexos é, também utilizada para abrigo, provisório ou não, de um cavalo.
Sendo o arguido sancionado pela desconformidade existente entre o uso previsto aquando do licenciamento da edificação e a utilização que, efectivamente, o recorrente lhe deu, não existe nenhuma omissão de pronúncia, e menos ainda relevante, sobre o direito que determinou a condenação do arguido nas sanções que lhe foram aplicadas.
Improcede, assim, o recurso.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido F e manter a douta sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando em 5 Ucs a taxa de justiça.

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ORLANDO GONÇALVES (RELATOR)
ALICE SANTOS