Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
24623/15.4YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: SENTENÇA
FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTO DE FACTO
FACTOS ADMITIDOS POR ACORDO
FACTOS PROVADOS
PROVA DOCUMENTAL
Data do Acordão: 12/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - CINFÃES - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 46.º, 574.º E 607.º/4/2.ª PARTE DO CPC
Sumário: 1 - Embora o processo chegue hoje em dia à audiência final sem um prévio despacho a dizer o que se considera já provado, tal não significa que, em termos factuais, tudo esteja “em aberto” e que tudo seja passível/carente de prova em audiência final.

2 - Do “jogo” dos articulados – das posições que uma parte tomou (cfr. art. 46.º e 574.º do CPC) em relação aos factos constitutivos da causa de pedir alegados pela parte contrária – e dos documentos juntos (autênticos e/ou particulares cuja assinatura não é impugnada) resultam (podem resultar) logo provados diversos factos.

3 - Alegando o autor que vendeu quatro determinados e concretos bens ao réu e confirmando este a totalidade da aquisição (e o preço), não se pode, na sentença, dar como provado que um dos bens foi doado e que o outro não estava incluído no preço.

4 - Antes da “livre apreciação” com que, segundo a lei, o tribunal avalia certos meios de prova (designadamente, a prova testemunhal), há que tomar em consideração que a lei fixa/tarifa a avaliação que o tribunal deve conceder aos factos que estão admitidos por acordo ou aos factos provados por documento (cfr art. 607.º/4/2.ª parte do CPC).

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A... , com residência em (...) , Cinfães, intentou requerimento de injunção contra B... e esposa C... , com residência na Rua (...) , Fornelos, pedindo que fosse conferida força executiva a requerimento destinado a exigir o pagamento da quantia de € 5.909,82, sendo € 3.990,39 de capital, € 1.817,43 de juros de mora e € 102,00 de taxa de justiça.

Alegou que, em 18/09/2003, vendeu aos requeridos, para o comércio deles, máquinas de serração (mais exactamente, uma serra de fitas, um charriot, um cabo de electricidade e um limador), pelo preço de € 6.733,77; preço de que os requeridos apenas “liquidaram” o montante de € 2.743,38, não tendo procedido ao pagamento dos restantes € 3.990,39, apesar de várias interpelações nesse sentido.

Notificados os requeridos, deduziram oposição, em que, em termos factuais, confirmaram a aquisição (da serra de fitas, do charriot, do cabo de electricidade e do limador), embora efectuada apenas pelo requerido marido, pelo referido preço de € 6.733,77, aquisição que não se destinava ao comércio do requerido marido e cujo pagamento da totalidade do preço excepcionaram, uma vez que, conforme o combinado com o requerente/vendedor, o requerido marido entregou, por conta do preço (além dos € 2.743,38 referidos no requerimento, entregues directamente ao requerente), a quantia de € 3.950,00 (€ 2.750,00 por cheque e € 1.200,00 em dinheiro) a D... ; não obstante (este pagamento), invocaram a prescrição presuntiva e a prescrição dos juros de mora[1].

Concluíram pela total improcedência da acção.

O requerente respondeu, mantendo o antes alegado, impugnando as excepções invocadas e concluindo como no requerimento inicial.

Foi proferido despacho saneador – em que se relegou para final o conhecimento das excepções suscitadas e se julgou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e, designada e realizada a audiência, a Exma. Juíza proferiu sentença, em que, após julgar improcedente a excepção da prescrição presuntiva, concluiu do seguinte modo:

“ (…) pelos fundamentos expostos, decide-se julgar a acção parcialmente procedente, e, em consequência,:

a) Condenar os Requeridos no pagamento da quantia de €240,39 (duzentos e quarenta euros e trinta e nove cêntimos) acrescida de juros legais, contados desde 23.02.2010 até efetivo e integral pagamento.

b) Absolver os Requeridos no demais peticionado. (…)”

Inconformado com tal decisão, interpôs a A./requerente recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que, alterando a decisão de facto, julgue a acção totalmente procedente; terminou a sua alegação com conclusões que, pela sua extensão, aqui não reproduzimos.

Os RR./requeridos responderam, sustentando, em síntese, que não violou a decisão de facto e a sentença recorrida quaisquer normas, adjectivas ou substantivas, pelo que deve ser mantida a sentença nos seus precisos termos.

Dispensados os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – “Reapreciação” da decisão de facto

A propósito da elaboração da sentença, diz-se no art. 607.º/4/2.ª parte do CPC, que “ (…) o juiz toma (ainda) em consideração os factos que estão admitidos por acordo (…) ”; em harmonia com o que antes se diz no art. 574.º do CPC sobre o ónus da impugnação, designadamente que “consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito”.

Começamos por aqui (antes de nos debruçarmos sobre o concreto ponto da decisão de facto impugnado pelo A/requerente), uma vez que importa (ao abrigo dos art. 663.º/2 e 607.º do CPC) rectificar o que foi dado como provado noutros pontos de facto da sentença recorrida; rectificação com fundamento em terem sido dados como provados factos (que não são meros factos instrumentais) contrários ao acordo admitido nos articulados (e que em boa verdade e em rigor nem foram alegados por qualquer uma das partes).

Como consta do relatório inicial, o requerente alegou que vendeu uma serra de fitas, um charriot, um cabo de electricidade e um limador pelo preço de € 6.733,77; o que os requeridos aceitaram (confirmaram a aquisição da serra de fitas, do charriot, do cabo de electricidade e do limador pelo referido preço de € 6.733,77), obtemperando apenas e só que o “negócio” foi com o requerido marido.

Assim, em face da “posição definida” que os requeridos tomaram sobre os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo requerente (cfr. 574.º/1 do CPC), não podia a sentença recorrida ter dado como provado que:

“o requerente deu um cabo de electricidade ao requerido marido”

“o valor acordado foi de € 6.733,77, referente à serra de fitas e charriot, e a acrescer a esta quantia o valor de € 500,00 pelo limador”

“o limador custou € 500,00”.

Os processos cheguem hoje em dia à audiência final sem um prévio despacho a dizer o que se considera já provado nos autos[2], porém, tal não significa que, em termos de factos adquiridos, estejamos, no início da audiência, no “ponto zero”, que tudo esteja “em aberto” e que tudo seja passível/carente de prova em audiência final.

Do “jogo” dos articulados – das posições que se tomam (cfr. art. 46.º e 574.º do CPC) em relação a factos alegados pela parte contrária – e dos documentos juntos (autênticos e/ou particulares cuja assinatura não é impugnada) resultam, não raras vezes, logo plenamente provados diversos factos; o que – resultarem plenamente provados tais factos – constitui avaliação fixada/estabelecida pela lei e que foge assim à “livre apreciação” que o tribunal, a partir de outros meios de prova, possa ou não fazer para “chegar” aos mesmos factos.

Em síntese, embora a audiência seja feita sem um prévio e explícito despacho a dizer o que já se considera provado[3], nada impede que uma sua composição virtual esteja mentalmente efectuada; mais, tudo o aconselha, até para que o julgamento possa decorrer com toda a “economia de meios” e para que não se “perca tempo” a produzir prova e a discutir factos que, depois, vendo-se bem, se irá concluir que estavam já antecipadamente provados.

Iremos pois, mais à frente e no lugar próprio, efectuar as devidas rectificações (impostas pelo acordo resultante dos articulados) nos factos provados.

Debrucemo-nos pois, isto dito, sobre o concreto ponto da decisão de facto impugnado pelo A/requerente:

Concreto ponto esse da decisão de facto que está no cerne e que é a solução do presente litígio; mais, em face da subalternidade das outras questões, é mesmo, sem exagero, todo o litígio.

Do “jogo” dos articulados, como começámos por referir, ficou assente que o A/requerente vendeu ao requerido marido coisas móveis pelo preço de € 6.733,77; assim, “confessando” o A/requerente que recebeu apenas parte do preço (€ 2.743,38) e alegando/excepcionando o requerido que pagou a totalidade do preço, a questão – o punctum saliens do litígio – está, como é evidente, na prova de tal pagamento.

Pagamento este que a sentença recorrida – na invocada (pelo requerido) modalidade de prestação feita a terceiro com o consentimento do credor – deu como provado; do que o A/requerente discorda, sustentando que não se podia/pode dar como provado tal pagamento, nisto residindo o objecto da impugnação da decisão de facto.

Que dizer?

Que a razão, salvo o devido respeito, está com o A/requerente.

Para fundamentar/motivar a prova de tal pagamento, escreveu-se, em termos de análise crítica das provas, na sentença recorrida:

“Acresce que esclareceu [a testemunha D...], corroborando as declarações prestadas pelo Requerido marido, (…) [que] o Requerido marido entregou-lhe o preço de € 3.750,00 com a autorização do Requerente, pois tudo foi combinado entre os três. Mais referiu que deixou claro que não deixaria que levassem as máquinas se o preço não se mostrasse pago.

Assim, o Tribunal ficou plenamente convencido que o Requerido marido pagou a D... o valor de € 3.750,00 com o consentimento do Requerente, convicção esta que resulta da conjugação da prova testemunhal, designadamente nas declarações de D... que corroboram as declarações prestadas pelo Requerido marido.”

É pouco, com todo o respeito, para se dar como provado, quer o pagamento, quer o consentimento do credor para o pagamento (que lhe era devido) ser feito a terceiro.

A testemunha D... , é certo, não é um estranho aos factos; não é alguém que está a ser inserido a receber um pagamento destinado ao A/requerente sem ter qualquer ligação à “história” das maquinas vendidas, porém, a “história” das máquinas vendidas tanto pode ser a que ele contou como a que o A/requerente contou.

Concretizando, as máquinas vendidas terão feito parte da serração de madeiras que a testemunha D... terá tido e ter-lhe-ão sido penhoradas; diz o A/requerente que lhas comprou e que entrou com o dinheiro para levantar a penhora (após o que as vendeu ao requerido), admitindo a testemunha D... que lhas vendeu, mas que não foi o A/requerente que entrou com o dinheiro que permitiu levantar a penhora (pelo que, quando vieram buscar as máquinas, ainda as mesmas estavam por pagar pelo A/requerente).

Tanto pode ser verdade uma coisa como outra, o modo como cada um contou a sua versão também não nos faz inclinar para qualquer uma delas e a ausência de quaisquer documentos (quanto mais não fosse da data em que a dívida exequenda foi paga e a penhora levantada) também não ajuda a ultrapassar a nossa hesitação.

Que, naturalmente, se transmite ao pagamento que, com o consentimento do A/requerente, a testemunha D... disse ter recebido do requerido marido; tanto mais que as indefinições/indecisões sobre o modo e o montante recebido pela testemunha D... adensam a nossa dúvida.

Passaram muitos anos sobre os factos[4], impondo-se ser compreensivo com os inevitáveis lapsos e falhas de memória (em que o requerido diz que pagou € 3.950,00 e que a testemunha se fixe em dizer que recebeu dele € 3.750,00), porém, sem haver clareza sobre o modo como se pagou e recebeu é que é impossível formar uma convicção segura sobre a ocorrência do pagamento, ou seja, dizendo-se que € 2.750,00 foram pagos por cheque, tem que haver a certeza que tal cheque passou pelo sistema bancário (onde foi descontado), o que significa que é insuficiente (para provar tal pagamento) juntar uma cópia da face dum cheque de € 2.750,00 (passado ao portador), tanto mais que a testemunha D... (a quem o cheque terá sido entregue) admite que não depositou tal cheque numa conta sua, dizendo, isso sim, que o “trocou por alguém”.

Enfim, em resumo, uma grande trapalhada, com todo o respeito, na prova produzida sobre o pagamento (a terceiro): a testemunha D... disse, não se contesta, que recebeu € 3.750,00 do requerido marido (a mando do A/requerente), porém, como é evidente, a sua “palavra” é pouco, uma vez que se trata de liquidar/extinguir apenas com “palavras” um crédito alheio[5].

É quanto há a dizer e concluir sobre o recurso de facto, que assim procede.


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III – Fundamentação de Facto

III.A – Factos Provados

1. O Requerente, em 18 de Setembro de 2003, vendeu ao Requerido marido uma serra de fitas, um charriot, um cabo de electricidade e um limador.

2. Material que o Requerente entregou, nessa data, ao Requerido marido.

3. O valor acordado foi de € 6.733,77.

4. O Requerido pagou ao requerente a quantia de € 2.743,38.

5. O Requerente, em data não concretamente apurada, interpelou o Requerido marido solicitando o pagamento da quantia em falta.

6. O Requerido marido comprou os bens referido em 1 para montar uma serração.

7. O Requerido marido explora Café/Restaurante e mercearia.


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III.B – Factos não Provados

Não se provou que:

O requerido marido haja pago a D... o valor de € 3.950,00 ou outro qualquer valor, com ou sem o consentimento do requerente.


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IV – Fundamentação de Direito

Verdadeiramente, pouco ou nada há a dizer que seja “novo” (que não esteja implícito no que antes já foi dito).

Já se disse/explicou que o cerne/solução do litígio estava na prova do pagamento, pelo que, em face da procedência do recurso de facto – ou seja, não se dando como provado o pagamento – há apenas que extrair, em termos estritamente jurídicos, as consequências e repercussões da procedência do recurso de facto.

Assim e em síntese:

Resulta claramente da factualidade provada que A/recorrente e R. marido/recorrido celebraram um contrato de compra e venda (cfr. art. 874.º do C.C.), cujo objecto mediato foram as supra identificadas máquinas.

Contrato de compra e venda que é aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (art. 874.º do C.C.); e que tem como efeitos essenciais, segundo o artigo 879.º do C. C.: “a) a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; b) a obrigação de entregar a coisa; c) a obrigação de pagar o preço.”

Contrato de compra e venda que fica perfeito – e produz o seu efeito real, de transferência do domínio sobre a coisa, do vendedor para o comprador (cfr. 874.º, 879.º/a), 408.º/1 e 1317.º/a) do C.C.) – independentemente da realização dos seus efeitos meramente obrigacionais (obrigação de entrega da coisa e obrigação de pagamento do preço).

Significa isto que, celebrado o contrato, o vendedor é obrigado a entregar a coisa ao comprador (o que já aconteceu) e que este é obrigado a pagar o preço (art. 879º/c) do C. C.), pagamento que se provou o requerido/comprador ter efectuado em parte e que, como facto extintivo que é (cfr. art. 342º/2 do C. C.), lhe pertencia efectuar a prova de ter ocorrido na totalidade, pelo que, é a conclusão final, não estando feito tal prova, a apelação procede[6].


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V - Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, substituindo-se o aí decidido pela condenação dos RR/requeridos a pagar ao A/requerente a quantia de € 3.990,39 acrescida de juros legais, contados desde 23/02/2010 até efectivo e integral pagamento.


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Custas: na 1.ª Instância, por A/requerente e RR/requeridos na proporção de 1/5 e 4/5, respectivamente; nesta instância, por RR/requeridos.

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Coimbra, 16/12/2015

(Barateiro Martins)

(Arlindo Oliveira)

(Emídio Santos)


[1] E também invocaram (não obstante o invocado pagamento da totalidade do preço) que o requerido poderia devolver o limador (“a que foi atribuído o valor de, aproximadamente, € 500,00”), devolução que o requerido alegou está pronto a efectuar e que o requerente recusa.
[2] No caso dos autos – uma AECOP – já era assim antes (doNCPC) e nem sequer um despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova é proferido.
[3] O qual, dantes, também não fazia caso julgado formal.
[4] Desta vez sem qualquer responsabilidade dos tribunais, uma vez que o processo deu entrada em 03/02/2015.

[5] Se o crédito fosse próprio, outro seria, evidentemente, o impacto das suas palavras.

[6] Embora a sentença recorrida não fundamente a condenação da requerida mulher, entendemos que, tendo tal condenação sido proferida e não tendo sido ampliado o âmbito do recurso pelos requeridos (cfr. 636.º do CPC), tal condenação está consolidada nos autos (o mesmo acontecendo – consolidação do decidido – quanto à condenação de ambos os requeridos nos juros, ou seja, quanto à data do termo inicial dos juros).

Efectivamente, a propósito da não fundamentação (e sem entrar profundamente, até por respeito ao caso julgado já formado, na bondade/mérito da condenação da requerida mulher) deu-se como provado que só o requerido comprou, que “o requerido marido explora um Café/Restaurante e mercearia” e que “o requerido marido comprou os bens para montar uma serração”, mas, depois, não se procedeu a qualquer análise jurídica de tais factos, designadamente à luz das presunções conjugadas dos art. 15.º do C. Comercial e 1692, n.º 1, d), do CC (segundo as quais as dívidas dos comerciantes se presumem contraídas no exercício do seu comércio e tais dívidas – no exercício do comércio – se presumem comuns, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum, desde que entre entre os cônjuges não vigore o regime da separação de bens; regime que no caso se ignora).