Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1217/10.5TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
SERVIDÃO APARENTE
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 06/25/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 303º E 1292º DO C.C.
Sumário: I – Implicando a servidão predial uma relação de dependência entre dois prédios (serviente e dominante) e sendo a servidão inerente aos prédios a que pertence (activa e passivamente) e dos quais, por regra, não pode ser separada, a sua constituição e existência pressupõe a efectiva determinação dos prédios (dois ou mais) entre os quais se estabelece aquela relação, tal como pressupõe a determinação da posição que cada um deles ocupa (dominante ou serviente), sob pena de ficarmos perante um direito indeterminado e sem qualquer conteúdo que possa ser efectivamente exercido.

II – Como decorre do disposto nos arts. 303º e 1292º do C.C., a usucapião não pode ser apreciada e declarada oficiosamente pelo Tribunal, já que, para ser eficaz, terá que ser invocada pela pessoa a quem aproveita.

III – Apenas as servidões aparentes podem ser adquiridas por usucapião, como tal se considerando aquelas cujo exercício é denunciado e evidenciado por sinais que, sendo visíveis e permanentes, revelam, por si mesmos, a existência, o exercício e a natureza da servidão.

IV – A mera existência de uma faixa de terreno em areia – relativamente à qual não se demonstrou que estivesse, de algum modo, diferenciada do terreno adjacente ou que tivesse qualquer outro sinal ou característica que evidenciasse uma qualquer passagem que por ali fosse efectuada – não correspondente a um sinal revelador de uma servidão de passagem.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... e B... , com residência em Portugal, na (...), nºs 15 a 19, (...)/ (...), Figueira da Foz, intentaram a presente acção, com processo ordinário, contra:

1º - C... e marido D..., residentes na Rua (...), nºs 19 – 21, (...), I..., na Figueira da Foz;

2º - E... e marido F... , residentes na Rua (...), nº 23, (...), I..., na Figueira da Foz;

3º - G... e marido H... , residentes na Rua (...), nº 29, (...), I..., na Figueira da Foz;

4º - Junta de Freguesia de I..., representada pelo seu Presidente, com sede na Rua de I..., nº 56, (...), Figueira da Foz.

Alegam, em suma, que são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo provisório (...), descrito na respectiva Conservatória sob o nº (...) da freguesia de I..., Figueira da Foz e de um lote de terreno, denominado lote “AN” inscrito na matriz sob o artigo (...), descrito na respectiva Conservatória sob o nº (...), da freguesia de I..., sendo que tais prédios vieram à sua posse e titularidade por força de contratos de compra e venda celebrados com as anteriores proprietárias que já se encontravam na posse dos prédios há mais de 40 anos; no referido lote “AN”, os Autores projectaram a construção de um edifício, tendo submetido o projecto à Câmara Municipal da Figueira da Foz, sendo certo, porém, que os Réus começaram a tentar ocupar o terreno, ficcionando a existência de um caminho e abrindo duas portas e uma varanda sem parapeito que deitam directamente para o terreno dos Autores.

Com esses fundamentos e alegando ainda que, dada a actuação dos Réus estão impedidos de construir e usufruir do seu terreno, o que lhes causa prejuízos que ainda não estão integralmente determinados, concluem pedindo que os Réus sejam condenados: a reconhecer que os Autores são donos e legítimos possuidores dos referidos prédios; a cessarem toda e qualquer violação do direito de propriedade dos Autores, tapando as aberturas citadas e o terraço que deita sobre o seu prédio; a não ocuparem, nem transitarem pelo prédio dos Autores ou, por qualquer outra forma, dificultarem e/ou restringirem o exercício do seu direito de propriedade e, solidariamente, a indemnizarem os Autores pelos danos a liquidar em execução de sentença, acrescidos de juros moratórios até integral pagamento.

A Ré, Junta de Freguesia, contestou, invocando a sua ilegitimidade e a incompetência do Tribunal em razão da matéria.

E, impugnando os factos alegados, conclui pela improcedência da acção.

Os demais Réus contestaram, invocando a ilegitimidade dos Réus, G... e marido, H... e, reconhecendo o direito de propriedade dos Autores relativamente aos identificados prédios, alegam que, há mais de 40 anos, existe entre esses dois prédios um caminho público, com cerca de 17 metros de comprimento e 1,70 metros de largura, que sempre foi utilizado pelos Réus e anteriores proprietários para aceder ao logradouro das suas habitações.

Concluem pela improcedência da acção e pedem, em reconvenção, que os Autores sejam condenados a reconhecer que os seus prédios confrontam com um caminho público que deu e dá acesso aos prédios dos Autores e dos Réus, com cerca de 17 metros de comprimento e 1,70 metros de largura até à estrada (hoje (...)) e, caso assim não seja considerado, deve ser declarado como uma serventia de passagem sobre o prédio dos Autores identificado na alínea B) do art. 1º da petição, a favor do prédio dos Réus.

Os Autores replicaram, sustentando a improcedência das excepções invocadas e, impugnando os factos alegados pelos Réus, concluem pela improcedência da reconvenção, pedindo ainda que os Réus sejam condenados, como litigantes de má fé, em multa e indemnização a seu favor.

Admitida a reconvenção, foi proferido despacho saneador, onde se julgaram improcedentes as excepções invocadas.

Foi efectuada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu nos seguintes termos:

Termos em que julgo parcialmente provada e procedente a presente acção e absolvo a Ré Junta de Freguesia de I... de todos os pedidos dos Autores.

Condeno os Réus C... e marido D..., E... e F..., G... e marido H..., a reconhecer que os Autores são donos e legítimos possuidores dos prédios urbanos referidos supra sob as als. A) e C), mas com as restrições abaixo referidas.

Condeno os Réus C... e marido D..., E... e F..., G... e marido H..., a cessar a violação do direito de propriedade dos Autores sobre tais prédios, não os ocupando os ditos Réus com estacionamento de automóveis ou depósitos de objectos, nem transitando sobre eles, salvo pelo leito da servidão de passagem abaixo referida.

Condeno os Réus C... e marido D..., a substituir o gradeamento visível nas fotografias de fls. 151 e 152, posteriormente ocultado por uma placa metálica amovível, por um parapeito em alvenaria com altura não inferior a metro e meio, a contar do respectivo piso, no prédio que lhes pertence.

Condeno o Réu F... a substituir o gradeamento visível nas fotografias de fls. 150 e 151, por um parapeito em alvenaria com altura não inferior a metro e meio, a contar do respectivo piso, no prédio que lhe pertence após partilha na  sequência do seu divórcio da Ré E... e absolvo esta Ré relativamente a esse pedido, por já não ser dona do prédio.

Absolvo os Réus pessoas singulares dos demais pedidos dos Autores.

Custas da acção a meias pelos Autores e por todos os Réus pessoas singulares.

Julgo parcialmente provada e procedente a reconvenção, absolvendo os Autores/reconvindos do pedido principal dos Réus/reconvintes de condenação no reconhecimento de que os prédios referidos supra sob as als. A) e C) confrontam com um caminho público situado entre eles, tal como absolvo os Autores/reconvindos do pedido de declaração da constituição de uma servidão de passagem sobre o prédio C).

Declaro estar constituída por usucapião uma servidão de passagem sobre o prédio A) pertencente aos autores/reconvindos, A... e esposa B... a favor dos prédios dos Réus pessoas singulares, C... e marido D..., sendo a casa destes sita na Rua (...), nºs 19-21, freguesia de I..., deste concelho e comarca da Figueira da Foz; F..., divorciado, sendo a casa deste sita na Rua (...), nº 23, freguesia de I..., deste concelho e comarca da Figueira da Foz; G... e marido H..., sendo a casa destes sita na Rua (...), nº 29, freguesia de I..., deste concelho e comarca da Figueira da Foz.

Mais declaro que essa servidão de passagem tem cerca de 17 m de comprimento, por 1,70 m de largura, indo desde as portas das traseiras dos prédios dos Réus, visíveis nas fotografias de fls. 151, até à hoje denominada (...) e vice-versa.

Custas da reconvenção em partes iguais, por Réus e Autores”.

Inconformados com essa decisão, os Autores vieram interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1ª) A acção deveria ser julgada totalmente procedente e, os RR condenados nos pedidos formulados e deduzidos pelos AA.;

2ª) A contestação / reconvenção deduzida pelos RR reconvintes devia ser julgada, totalmente, improcedente;

3ª) A responsabilidade pelas custas da acção e, da reconvenção deveriam ser imputadas aos RR por terem dado causa à acção e, terem sucumbido à reconvenção;

4ª) Os pontos de factos quesitados na BI, sob os pontos: 34; 36; 37; 44; 45; 50; 51; 53; 54; 55; 56; 57; 58 e 59, face aos elementos de provas documentais constantes dos autos do processo administrativo e, aos depoimentos prestados pelas testemunhas: J... e L..., deveriam obter, face à sua força probatória, imparcialidade, idoneidade, credibilidade dos mesmos e, regras da experiência, numa apreciação crítica, analítica e reflexiva, resposta afirmativa ou positiva;

5ª) Os AA. alegaram e demonstraram o direito de propriedade pleno e exclusivo sobre os prédios reinvidicados; como,

6ª) Alegaram e demonstraram actos violadores ao exercício dos seus direitos de uso, fruição e disposição dessas propriedades, por parte dos RR. de forma ilícita, danosa e, culposa aos seus legítimos interesses;

7ª) Os RR deveriam ser julgados responsáveis pela lesão, e pela reparação dos danos causados, ainda que, a liquidar em sede de execução de sentença;

8ª) Os AA ao exercerem a posse e, demais direitos reais de gozo sobre tais prédios, não se poderá considerar de forma censurável ou, a constituir abuso de direito;

9ª) Os RR reconvintes não alegaram, nem invocaram como lhes incumbia e competia, o direito de propriedade sobre as pretensas moradas, onde, vivem, nem identificaram o modo de aquisição, titulo, posse, características ou animus, com vista, o reconhecimento de direito real de gozo, ou seja, a aquisição da propriedade respectiva sobre tais moradas;

10ª) A habitação por parte dos RR nas casas onde vivem, não significa posse de facto ou de direito da propriedade dos mesmos sobre as mesmas;

11ª) Igualmente, os RR reconvintes não alegaram, nem demonstraram ter título ou posse válida sobre direitos reais, plenos ou limitados, designadamente, de servidão de passagem sobre os prédios reivindicados pelos AA;

12ª) Como não alegaram a existência de actos materiais de posse, com características de forma pública, pacífica, continua, de boa-fé e, em nome próprio e, com a intenção de exercer um direito real de gozo de passagem sobre qualquer prédio dos AA, a favor de prédio certo e, determinado deles RR.;

13ª) Como não alegaram, nem demonstraram, de forma inequívoca, concreta, própria e exclusiva a existência de sinais visíveis e permanentes de supostas passagens;

14ª) Como não alegaram prazo prescrisional para a aquisição originária de pretenso direito de servidão de passagem sobre o(s) prédio(s) dos A;

15ª) Igualmente, tais RR não alegaram, nem invocaram expressa ou implicitamente a aquisição originária de direito real de gozo de servidão de passagem constituída, com base em usucapião;

16ª) Os RR G... e H... não alegaram qualquer abertura, porta mas, existe a varanda / terraço na casa onde habitam, a deita directamente para o prédio dos AA e, deviam ser, também, condenados a cessar a violação de vista com construção de para peito;

17ª) O divórcio e/ou partilha, porventura, ocorrida na pendência da acção, por parte dos RR. E... e F..., ser invocada pelos próprios, não releva para a decisão quanto a responsabilidade pela autoria dos factos e reparação dos danos;

18ª) O Tribunal a quo viola os princípios do dispositivo e da igualdade das partes ao declarar a constituição de servidão de passagem e, a condenar os AA em reconhecimento de servidão de passagem sobre o prédio que, os próprios RR. não peticionaram, sequer nem se verifica o preenchimento dos requisitos substanciais e processuais, para o efeito;

19ª) O Tribunal a quo violou o principio da estabilidade de instância ao não condenar a co.R E... a não substituir a varanda para parapeito;

20ª) O Tribunal a quo errou no julgamento, também, quanto à subsunção dos factos ao direito, ao considerar posse precária como posse em nome próprio e, a verificação de servidão de passagem sobre faixa de terreno, sem sinais visíveis e permanentes decorrentes de posse, uso ou utilização dos RR reconvintes, sem prazo prescrisional estabelecido para a usucapião;

21ª) Por erro de interpretação e, ou aplicação não se mostram concretamente observados os princípios gerais do direito civil e processo civil nem os ditames legais atinentes e aplicáveis;

22ª) Assim foram violados nos termos e ao abrigo do disposto nos arts.: 334º; 342º; 483º; 562º; 564º; 565º; 569º; 1252º; 1253º, al. a) e b); 1263º; 1281º; 1287º; 1302º; 1305º; 1311º; 1313º; 1316º; 1317º; 1543º; 1547º; 1548º do Código Civil e, arts. 264º, nºs. 1 e 2; 446º; 467º, nº. 1, al. d); 501º; 513º; 653º; 661º; 668º, nº. 1 al.c) do CPC.

Deve o recurso merecer provimento, deve a sentença na parte posta em causa ser revogada e, substituída por acórdão, em conformidade com o ora pugnado e sustentado, a julgar a acção, totalmente, procedente e a reconvenção improcedente e, os RR condenados nas custas.

Os Apelados, C... e F..., vieram apresentar contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões colocadas e que importará analisar:

• Impugnação da matéria de facto (saber se existiu erro na apreciação da prova e se, em função disso, importa ou não alterar e em que termos a decisão da matéria de facto);

• Servidão de passagem (saber se estão reunidos os pressupostos para o reconhecimento dessa servidão);

• Portas e varanda para o prédio dos Autores/Apelantes (saber se os Réus estão ou não obrigados a tapar essas aberturas e a colocar gradeamento);

• Partilha subsequente a divórcio, efectuada na pendência da acção e sem que tivesse sido efectuada qualquer habilitação (saber se a adjudicação do prédio a um dos Réus implica ou não a absolvição do outro no que toca às obrigações inerentes ao prédio);

• Indemnização (saber se estão reunidos os pressupostos para que os Réus possam ser condenados a indemnizar os Autores/Apelantes dos eventuais danos que estes tenham sofrido).  


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III.

Decisão da matéria de facto.

Os Apelantes começam por impugnar a decisão da matéria de facto, sustentando que os pontos 34, 36, 37, 44, 45, 50, 51, 53, 54, 55, 56, 57, 58 e 59 da base instrutória foram incorrectamente julgados, já que deveriam ter obtido resposta positiva (provado) e a não a resposta negativa que lhes foi dada.

E para justificar o alegado erro de julgamento, apenas dizem, nas conclusões das suas alegações, que “face aos elementos de provas documentais constantes dos autos do processo administrativo e, aos depoimentos prestados pelas testemunhas: J... e L..., deveriam obter, face à sua força probatória, imparcialidade, idoneidade, credibilidade dos mesmos e, regras da experiência, numa apreciação crítica, analítica e reflexiva, resposta afirmativa ou positiva”. Por outro lado, no corpo das alegações, não adiantam muito mais, afirmando apenas que “dos documentos juntos com a p.i.; concretamente; as cartas, reclamações dos RR e da Ré Junta de Freguesia, dirigidos em concertação e conjugação de propósitos e interesses, o depoimento das testemunhas: Arquitecta L... e J... e, dos próprios documentos administrativos da CMFF; as respostas de tais questões deveriam ser tidas como afirmativas ou positivas de “Provado””.

Ou seja, sem que identifiquem, sequer, quais os documentos concretos a que se reportam (remetendo para a generalidade dos documentos), os Apelantes não fazem qualquer apreciação crítica dos meios probatórios que invocam e não concretizam, minimamente, as razões pelas quais consideram que esses meios de prova deveriam conduzir a decisão diversa daquela que foi proferida.

Mas, embora se desconheçam as razões e argumentos dos Apelantes (que, como tal, não poderemos apreciar) analisemos, na medida do possível e tendo em atenção as limitações decorrentes da forma como os Apelantes colocaram a questão, a matéria de facto e os elementos probatórios aqui em causa.

Os citados pontos da base instrutória tinham a seguinte redacção:

34.º As acções descritas em 32.º e 33.º foram realizadas com vista à visualização do terreno, desanexando parte do prédio descrito em A. e do prédio descrito em C.?

36.º O qual, se encontrava, em vias de apreciação, para aprovação?

37.º No momento referido em 36.º, sem que nada o fizesse prever, os Autores foram informados que os Réus, em conjugação de propósitos e intuitos, os impediram de usar, fruir e dispor, de forma plena e exclusiva, dos bens imóveis descritos em A. e C.?

44.º No momento em que os Autores levaram a cabo as acções mencionadas em 32.º e 33.º, os Réus C... e marido, D..., E... e marido, F... e a Junta de Freguesia de I..., na pessoa do seu presidente, em conluio e conjugação de esforços, ficcionaram, junto da Câmara Municipal da Figueira da Foz, a existência de um caminho?

45.º O que fizeram com objectivo de inviabilizar e impedir a construção pelos Autores?

50.º Os Réus C... e marido, D..., E... e marido, F... e Junta de Freguesia de I..., na pessoa do seu presidente, alinharam artefactos de cimento no prédio mencionado em C.?

51.º O que fizeram para que tal aparentasse uma delimitação e uma parcela de terreno de outra pessoa que não os Autores?

53.º Em consequência da conduta dos Réus e descrita em 38.º a 52.º, os Autores encontram-se impedidos de edificar no lote de terreno identificado em C.?

54.º …e de usar, fruir e dispor, plena e exclusivamente, do lote de terreno identificado em C), como entendem e querem?

55.º O que lhes causa prejuízos?

56.º Os Réus foram interpelados pelos Autores para cessarem as suas condutas no sentido de impedir o uso, fruição e disposição do lote de terreno descrito em C)?

57.º Os Réus agiram livremente, com a consciência de que, ao praticar os actos referidos em 38.º a 52.º, lesavam o direito de propriedade dos Autores?

58.º...sabendo que tal actuação era contrária à vontade destes?

59.º...e representando que não se encontravam por qualquer modo habilitados a praticá-los?

Esses pontos mereceram – como dissemos – resposta negativa e, na perspectiva dos Apelantes, devem merecer resposta positiva.

O ponto 34º, tal como foi elaborado e ao aludir a uma visualização do terreno, não é sequer compreensível, sendo certo, de qualquer modo, que o que se pretenderia dizer era “com vista à viabilização da edificação no terreno”, já que foi isto que os Autores alegaram.

Tendo em atenção essa precisão, resulta, de facto, dos depoimentos das testemunhas referidas nas alegações que os Autores fecharam a porta e retiraram a calçada (como se refere nas respostas aos pontos 32º e 33º) porque pretendiam desanexar essa parcela do prédio descrito em A) para a anexar ao prédio descrito em C) com vista a viabilizar a edificação que aí pretendiam efectuar. A testemunha, L..., foi a arquitecta contratada pelos Autores para elaborar o projecto do edifício que pretendiam construir no prédio referido em C) e, portanto, terá efectivo conhecimento da intenção de destacar aquela parcela para anexar ao referido lote com vista à implantação da edificação. Essa intenção é igualmente atestada pela testemunha, J..., que, tendo sido contratado pelos Autores para colocar a calçada e, mais tarde, para a retirar, declara que a porta foi fechada e a calçada foi retirada quando os Autores adquiriram o lote ao lado e porque queriam construir aí uma casa para ligar ao prédio que já tinham construído. Porque estas testemunhas nos mereceram credibilidade e sendo certo que, na fundamentação da matéria de facto, nada se diz de concreto com vista a justificar a resposta negativa a este ponto, altera-se a resposta dada que passará a ter a seguinte redacção:

Provado que as acções descritas em 32º e 33º foram realizadas porque os Autores pretendiam destacar uma parte do prédio referido em A) para anexar ao prédio referido em C), onde pretendiam construir um edifício”.

Parece certo, por outro lado, que depois de terem submetido o projecto à Câmara Municipal Figueira da Foz para vedação do terreno e quando este se encontrava em apreciação (embora se desconheça se iria ser aprovado) os Autores foram informados (embora nada permita afirmar que nada o fazia prever) que os Réus, seus vizinhos, se arrogavam o direito de passar na faixa de terreno aqui em questão e que a Junta de Freguesia havia solicitado à Câmara que não concedesse o pedido de licenciamento sem que fossem esclarecidas algumas questões relacionadas com aquela passagem (docs. de fls. 98, 79, 306, 340 e depoimento da testemunha, L...) e, portanto, não encontramos razões para não consignar esse facto na resposta aos pontos 36º, 37º e 44º. Mas já não encontramos razões para considerar como demonstrado que os Réus tivessem actuado em conjugação de esforços e em conluio, ficcionando a existência de um caminho, com o propósito de impedir os Autores de usufruir dos seus prédios e de inviabilizar a construção que estes pretendiam ali efectuar. Com efeito, os elementos probatórios referidos pelos Apelantes não permitem essa conclusão, além de que, estando provado que os Réus usavam a faixa de terreno aqui em causa para aceder aos logradouros das suas habitações (sendo que, nesta parte, os Apelantes não impugnam a decisão de facto), teremos que admitir como provável que os Réus apenas actuaram daquela forma com vista a defender o direito, que, na sua perspectiva, lhes assistia, de continuar a usar aquela faixa de terreno e, não propriamente, com o objectivo de estorvar o direito dos Autores e de impedir a realização de qualquer edificação (desde que esta não afectasse aquela passagem).

Assim, mantendo-se a resposta de “não provado” ao ponto 45º, altera-se a resposta dada aos pontos 36º, 37º e 44º que passarão a ter a seguinte resposta conjunta:

 “Provado que depois de os Autores terem submetido o projecto à Câmara Municipal Figueira da Foz para vedação do terreno e quando este se encontrava em apreciação, os Autores foram informados que os Réus, seus vizinhos, se arrogavam o direito de passar na faixa de terreno aqui em questão e que a Junta de Freguesia havia solicitado à Câmara que não concedesse o pedido de licenciamento sem que fossem esclarecidas algumas questões relacionadas com aquela passagem”.

E, pela razões que já referimos, também não encontramos razões para alterar as respostas dadas aos pontos 57º, 58º e 59º, uma vez que, como referimos, é de admitir que os Réus tivessem actuado daquela forma por considerarem que estavam a exercer um direito, já que, como se provou, utilizavam aquela faixa de terreno para aceder aos logradouros das suas habitações.

Relativamente ao ponto 50º, refere-se na fundamentação da matéria de facto que não se provou que tivessem sido os Réus a alinhar os artefactos das imagens de fls. 151, pois ninguém os viu fazer isso. No entanto, a testemunha, J..., declara ter presenciado esse facto, declarando que tais artefactos foram ali colocados pelo Réu, H..., mas já não resulta do seu depoimento (e também não resulta dos demais elementos probatórios citados pelos Apelantes) que tal tenha sido feito para aparentar uma delimitação e uma parcela de terreno de outra pessoa que não os Autores (tal actuação pode ter sido motivada apenas pela intenção de delimitar a faixa de terreno por onde os Réus se arrogavam o direito de passar).

Assim, mantendo-se a resposta negativa ao ponto 51º, altera-se a resposta dada ao ponto 50º que passará a ter a seguinte redacção:

O Réu, H..., alinhou artefactos de cimento no prédio mencionado em C., conforme constam da fotografia de fls. 151”.

Relativamente aos pontos 53º, 54º e 55º, nada detectamos nos elementos probatórios que são invocados pelos Apelantes que permita uma resposta positiva (sendo certo que, como referimos, os Apelantes não explicam as suas razões ou argumentos para concluir de outro modo). De facto, as condutas dos Réus ali mencionadas nem sequer serão idóneas para determinar a impossibilidade de edificar no lote em questão. Além do mais, os Apelantes não estarão propriamente impedidos de construir no terreno; estarão é impedidos de construir (porque a Câmara Municipal não permite) de modo a inutilizar a passagem que os Réus fazem por aquele local e à qual se arrogam ter direito e sem que esta questão esteja decidida.

Mantém-se, pois, a resposta dada aos citados pontos.

E também não se justifica qualquer alteração na resposta ao ponto 56º. Com efeito, não encontramos nenhum documento que contenha qualquer interpelação que, com tal objectivo, tenha sido dirigida aos Réus e dos depoimentos das testemunhas referidas pelos Apelantes também não resulta que tal interpelação tenha sido efectuada. Apenas a testemunha, J..., alude a esse facto, fazendo-o, porém, de forma muito vaga e sem a credibilidade e a segurança que seriam necessárias para que o facto fosse considerado provado.

 

A matéria de facto provada – após as alterações introduzidas – é a seguinte:

1. Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz, freguesia de I..., sob o n.º (...)/19860623, a favor dos Autores A... e B..., e inscrito na matriz predial urbana n.º (...), o prédio urbano composto de edifício de cave, para garagens e aparcamento automóvel, rés-do-chão para comércio e habitação, primeiro andar para habitação e logradouro, com área total de 370 m2, sito em (...) – I..., (...), concelho da Figueira da Foz, a confrontar a norte com terreno camarário, a sul com (...), a nascente com (...) e a poente com terreno camarário – alínea A) da matéria assente.

2. No dia 25 de Janeiro de 2000, no Segundo Cartório Notarial da Figueira da Foz a cargo do notário (...), N..., declarou, por escrito, perante o notário, vender, pelo preço de cinco milhões de escudos, que declarou ter recebido, o lote de terreno destinado a construção urbana, com área de 370 m2 sito na (...), na freguesia de I..., descrito na conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz sob o n.º (...) da freguesia de I..., correspondente ao prédio urbano descrito em A., livre de ónus e encargos, aos Autores A... e B..., representados por M..., tendo este, como procurador daqueles, declarado aceitar a venda – alínea B) da matéria assente.

3. Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz, freguesia de I..., sob o n.º (...)/19860623, a favor dos Autores A... e B..., e inscrito na matriz predial urbana n.º (...), o lote de terreno destinado a construção urbana, com área total de 133 m2, a confrontar a norte com arruamento, a sul com (...), a nascente com H... e a poente com (...) – alínea C) da matéria assente.

4. No dia 22 de Dezembro de 2008, no Cartório Notarial do concelho de Soure, a cargo da notária C (...), O..., casada com P..., mas dele separada de pessoas e bens, declarou, por escrito, perante a notária, vender em comum, pelo preço de vinte e dois mil e quinhentos escudos, que declarou ter recebido, prédio urbano composto de lote de terreno para construção urbana, com área de 133 m2, denominado lote “AN”, sito na (...), freguesia de I..., concelho da Figueira da Foz, inscrito na matriz sob o artigo (...), com valor patrimonial para efeitos de IMT e Imposto de Selo de €25.220,00, descrito na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz sob o nº (...) da freguesia de I..., aos Autores A... e B..., que declararam aceitar a venda – alínea D) da matéria assente.

5. Os Autores usam, fruem e dispõem dos prédios descritos em A. e C., mantendo-os e conservando-os – resposta ao ponto 1º da base instrutória.

6. Os Autores pagam as taxas e impostos relativos aos prédios descritos em A. e C. – resposta ao ponto 2º da base instrutória.

7. Os Autores ocupam os prédios descritos em A. e C. com os seus bens e demais pertences – resposta ao ponto 3º da base instrutória.

8. Os Autores, por si e por outrem, confeccionam e tomam as refeições no prédio descrito em A. – resposta ao ponto 4º da base instrutória.

9. Nele passando tempo de lazer e recebendo familiares e amigos – resposta ao ponto 5º da base instrutória.

10. Os Autores cedem a terceiros o gozo temporário, mediante retribuição, que recebem, do prédio descrito em A. – resposta ao ponto 6º da base instrutória.

11. No prédio descrito em C., os Autores depositam pedra e outros objectos – resposta ao ponto 7º da base instrutória.

12. Os actos descritos em 1.º a 7.º são levados a cabo pelos Autores à vista da generalidade das pessoas – resposta ao ponto 9º da base instrutória.

13. E continuadamente – resposta ao ponto 10º da base instrutória.

14. Sem violência quanto às pessoas ou às coisas – resposta ao ponto 12º da base instrutória.

15. E na convicção de exercerem um direito próprio sobre os bens descritos em A. e C. – resposta ao ponto 13º da base instrutória.

16. Os Autores são tidos por todos, e em especial, pelos Réus, como únicos titulares do direito de propriedade sobre o prédio descrito em A. – resposta ao ponto 14º da base instrutória.

17. N... viveu ali sozinha vários anos consecutivos e imediatamente antes de 25 de Janeiro de 2000 – resposta ao ponto 15º da base instrutória.

18. Os Autores idealizaram, conceberam, projectaram e construíram o edifício descrito em A. – resposta ao ponto 27º da base instrutória.

19. Recorrendo a técnicos para a elaboração dos projectos de construção, arquitectura e de especialidade – resposta ao ponto 28º da base instrutória.

20. E acordando com terceiras pessoas a construção do edifício referido em A. – resposta ao ponto 29º da base instrutória.

21. Os Autores perspectivaram a construção de um edifício no lote de terreno descrito em C. – resposta ao ponto 30º da base instrutória.

22. Os Autores decidiram fechar uma porta ou abertura que, do logradouro do prédio descrito em A., deitava para o exterior e lado do alçado esquerdo, com cerca de 1 m x 2 m – resposta ao ponto 32º da base instrutória.

23. E retiraram a calçada em pedra, à antiga portuguesa que, anteriormente, haviam mandado executar, de poente a nascente ou vice-versa, com cerca de 17 m de comprimento, por 1,70 m – resposta ao ponto 33º da base instrutória.

24. As acções descritas em 32º e 33º foram realizadas porque os Autores pretendiam destacar uma parte do prédio referido em A) para anexar ao prédio referido em C), onde pretendiam construir um edifício – resposta ao ponto 34º da base instrutória.

25. Os Autores submeteram o projecto à Câmara Municipal Figueira da Foz – resposta ao ponto 35º da base instrutória.

26. Depois de os Autores terem submetido o projecto à Câmara Municipal Figueira da Foz para vedação do terreno e quando este se encontrava em apreciação, os Autores foram informados que os Réus, seus vizinhos, se arrogavam o direito de passar na faixa de terreno aqui em questão e que a Junta de Freguesia havia solicitado à Câmara que não concedesse o pedido de licenciamento sem que fossem esclarecidas algumas questões relacionadas com aquela passagem – resposta aos pontos 36º, 37º e 44º da base instrutória.

27. Os Réus passaram pela faixa de terreno de areia do prédio descrito em A) e tentaram ocupar o prédio descrito em C) com estacionamento de automóveis – resposta ao ponto 38º da base instrutória.

28. Foi aberta uma porta, com cerca de 1 m x 2 m, no logradouro e morada dos Réus C... e D..., por estes – resposta ao ponto 39º da base instrutória.

29. Foi aberta outra porta, com cerca de 1 m x 2 m, no logradouro da residência que veio a ser dos Réus E... e marido, F..., pelo R. H... – resposta ao ponto 40º da base instrutória.

30. Na varanda/terraço dos Réus E... e marido, F..., foi feito um gradeamento – resposta ao ponto 41º da base instrutória.

31. As portas referidas em 39.º e 40.º deitam, directa e imediatamente, para o prédio mencionado em A. – resposta ao ponto 42º da base instrutória.

32. Sem qualquer afastamento em relação a tal prédio – resposta ao ponto 43º da base instrutória.

33. O Réu H... invectivou contra os trabalhadores contratados pelos Autores para os impedir de vedar o terreno – resposta ao ponto 46º da base instrutória.

34. Lançando no lote de terreno descrito em C. um sofá usado sem qualquer utilidade – resposta ao ponto 47º da base instrutória.

 35. O Réu, H..., alinhou artefactos de cimento no prédio mencionado em C., conforme constam da fotografia de fls. 151 – resposta ao ponto 50º da base instrutória.

36. Existe um contador de energia eléctrica e o n.º 13 com acesso pela faixa de terreno em litígio – resposta ao ponto 52º da base instrutória.

37. As moradas de habitação dos Réus C... e marido, D..., E... e marido, F... e G... e marido, H..., têm comunicação, directa e imediata, com a via pública – resposta ao ponto 60º da base instrutória.

38. Sobre o prédio descrito em A. existe há mais de vinte anos uma faixa de terreno de areia, com cerca de 17 metros de comprimento e 1,70 metros de largura até à estrada – resposta ao ponto 61º da base instrutória.

39. Na faixa de terreno mencionada em 61.º brincavam crianças – resposta ao ponto 64º da base instrutória.

40. A faixa de terreno mencionada em 61.º é visível e está actualmente delimitada no solo na parte que é rodeada pelas construções de autores e réus – resposta ao ponto 66º da base instrutória.

41. A faixa de terreno mencionada em 61.º dá acesso ao logradouro das habitações dos Réus C... e marido D..., E... e marido F... e G... e marido H... – resposta ao ponto 67º da base instrutória.

42. Os Réus C... e marido, D..., E... e marido, F..., e G... e marido, H..., bem como os anteriores proprietários dos bens imóveis referidos em A) e C), utilizam e utilizaram a faixa de terreno mencionada em 61.º – resposta ao ponto 68º da base instrutória.

43. O que fizeram directamente e através de empregados, familiares e amigos – resposta ao ponto 69º da base instrutória.

44. E desde sempre cuidaram da faixa de terreno mencionada em 61.º até à estrada – resposta ao ponto 70º da base instrutória.

45. O que fizeram sem violência contra pessoas ou coisas – resposta ao ponto 71º da base instrutória.

46. Continuadamente – resposta ao ponto 72º da base instrutória.

47. À vista de toda a gente e com conhecimento dos Autores e antepossuidores dos bens imóveis descritos em A. e C. – resposta ao ponto 73º da base instrutória.

48. Sem oposição ou interrupção de quem quer que fosse, nomeadamente dos Autores e antepossuidores dos bens imóveis descritos em A. e C. – resposta ao ponto 74º da base instrutória.

49. Os Autores abriram uma porta de acesso à mesma faixa de terreno – resposta ao ponto 79º da base instrutória.

50. Os Autores construíram uma casa no bem imóvel descrito em A. com acesso à faixa de terreno referida em 61.º – resposta ao ponto 81º da base instrutória.

51. Dela usufruindo e retirando todos os proveitos – resposta ao ponto 82º da base instrutória.

52. Na direcção da faixa de terreno mencionada em 61.º e na parede do prédio referido em A. encontram-se colocados tubos de drenagem que para ali esgotam as águas das chuvas e nas paredes dos Réus C... e marido, D..., E... e marido, F... e G... e marido, H..., há portas abertas para o mesmo – resposta ao ponto 83º da base instrutória.

53. A Câmara Municipal da Figueira da Foz notificou os Autores para “repor a calçada do caminho de servidão de passagem”, tal como consta do ofício da edilidade, dirigido à Ré E..., assinado pelo Sr. Arq. Q..., chefe de Divisão de Licenciamento, com competências subdelegadas – resposta ao ponto 84º da base instrutória.


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IV.

Fixada a matéria de facto, analisemos agora as demais questões colocadas no recurso.

Direito de propriedade dos Autores/Apelantes e servidão de passagem a favor dos prédios dos Réus:

A sentença recorrida reconheceu – e condenou os Réus (com excepção da Junta de Freguesia) a reconhecer – que os Autores são donos e legítimos possuidores dos prédios urbanos referidos sob as alíneas A) e C) da matéria de facto.

Nesse segmento (em que a acção foi julgada procedente) a sentença transitou, já que não foi objecto de recurso.

Sucede que a sentença recorrida, julgando procedente a reconvenção, também reconheceu a existência de uma servidão de passagem, constituída por usucapião, sobre o prédio dos Autores referido em A) e em benefício dos prédios dos Réus, servidão essa que seria exercida através de uma faixa de terreno, com cerca de 17m de comprimento e 1,70m de largura, que vai desde as portas das traseiras dos prédios dos Réus, visíveis nas fotografias de fls. 151, até à Rua (...).

Sustentam, porém, os Apelantes que tal servidão não poderia ter sido reconhecida, porquanto: os Réus não alegaram o direito de propriedade sobre as pretensas moradas; não alegaram a existência de actos materiais de posse, com características de forma pública, pacífica, continua, de boa-fé e, em nome próprio e, com a intenção de exercer um direito real de gozo de passagem sobre qualquer prédio dos AA, a favor de prédio certo e, determinado deles RR.; não alegaram, nem demonstraram, de forma inequívoca, concreta, própria e exclusiva a existência de sinais visíveis e permanentes de supostas passagens; não alegaram prazo prescrisional para a aquisição originária de pretenso direito de servidão de passagem sobre o(s) prédio(s) dos Autores e nem sequer alegaram, nem invocaram expressa ou implicitamente a aquisição originária de direito real de gozo de servidão de passagem constituída, com base em usucapião.

Mais alegam os Apelantes que o Tribunal a quo violou os princípios do dispositivo e da igualdade das partes ao declarar a constituição de servidão de passagem e ao condenar os AA em reconhecimento de servidão de passagem sobre o prédio que os próprios RR. não peticionaram.

E, na nossa perspectiva, a razão está com os Apelantes, já que, perante a matéria de facto provada (e é apenas essa que pode ser considerada para a decisão), não estão reunidos os necessários pressupostos para o reconhecimento daquela servidão de passagem.

Começamos por notar que, apesar de peticionarem, subsidiariamente, que a faixa de terreno em causa fosse declarada como uma serventia de passagem sobre o prédio dos Autores a favor dos seus prédios, os Réus reconvintes estruturam toda a sua contestação com base na alegação de que aquela faixa de terreno correspondia a um caminho público e não invocaram sequer o modo de constituição da servidão cujo reconhecimento acabaram por peticionar ao Tribunal (ainda que subsidiariamente).

    A existência de tal caminho público não foi demonstrada e o que decorre da matéria de facto provada é que aquela faixa de terreno faz parte do prédio dos Autores descrito em A).

E, sendo assim, o direito que, eventualmente, assistisse aos Réus de por ali passar, apenas poderia encontrar o seu fundamento numa servidão de passagem (servidão que a sentença recorrida acabou por reconhecer, mas, a nosso ver, sem fundamento).

Vejamos porquê.

A servidão predial – como dispõe o art. 1543º do Código Civil[1] - é “…o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia”.

Daí decorre, portanto, que a servidão predial implica uma relação de dependência entre dois prédios: o prédio em benefício do qual a servidão se constitui e o prédio que está obrigado a suportar o encargo em que ela se traduz. Assim, porque a servidão predial é inerente aos prédios a que pertence (activa ou passivamente) e dos quais, por regra, não pode ser separada (art. 1545º), a sua constituição e existência pressupõe, necessariamente, a efectiva determinação dos prédios (dois ou mais) entre os quais se estabelece aquela relação, tal como pressupõe a determinação da posição que cada um deles ocupa (dominante ou serviente), sob pena de ficarmos perante um direito indeterminado e sem qualquer conteúdo que possa ser efectivamente exercido. 

Ora, no caso sub júdice, não existem quaisquer elementos que nos permitam determinar qual seria o prédio (ou prédios) dominante relativamente à pretensa servidão de passagem imposta ao prédio dos Autores supra identificado. Com efeito, a matéria de facto é totalmente omissa a esse respeito e não nos diz quais são os prédios em benefício dos quais essa servidão seria exercida, aludindo apenas às habitações dos Réus, sem que diga, sequer, onde se situam essas habitações e sem que contenha qualquer outro elemento que permita identificar esses prédios com alguma segurança. E, importa notar, nada consta da matéria de facto porque os Réus nada alegaram; não alegaram ser proprietários de qualquer prédio e não identificaram minimamente os prédios que beneficiariam daquela servidão.

Suprindo essa omissão, a sentença recorrida declarou que a servidão em causa era exercida a favor dos prédios sitos na Rua (...), nos nºs 19-21 (prédio dos Réus, C... e marido D...), 23 (prédio do Réu, F...) e 29 (prédio dos Réus, G... e marido H...).

Mas, porque a matéria de facto nada diz a esse respeito, supomos que a sentença recorrida terá assim identificado os prédios dominantes porque serem essas as moradas dos Réus que foram indicadas na petição inicial e na qual os Réus foram citados.

Parece-nos, porém, ser incorrecto esse procedimento, porquanto a decisão apenas se pode basear nos factos que foram alegados e provados e a verdade é que os Réus não alegaram – e por isso não provaram – quais eram os concretos prédios em benefício dos quais seria exercida a servidão.

Refira-se, aliás, que são os próprios Réus a afirmar – na sua contestação – que os Réus, G... e marido H..., não tiram qualquer benefício directo ou indirecto da referida passagem e isso significará que a sua habitação não usufrui, afinal, daquela passagem. E, não resultando da matéria de facto que a habitação desses Réus usufrua (ou possa usufruir) daquela passagem, a verdade é que a matéria de facto não permite determinar, em rigor, quais são os concretos prédios que dela poderiam beneficiar.

Mas esse não é o único obstáculo ao reconhecimento da servidão; há mais.

    

Como decorre do disposto no art. 1547º, nº 1, as servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família.

Os Réus, tendo estruturado e baseado a sua defesa na alegação de que a faixa de terreno aqui em causa era um caminho público, não invocaram, sequer, o modo pelo qual se teria constituído a servidão de passagem, cujo reconhecimento acabaram por peticionar, a título subsidiário.

Mas, perante os factos alegados e provados, apenas poderá ser equacionada a possibilidade de tal servidão ter sido constituída por usucapião.

E, sendo assim, confrontamo-nos, desde logo, com a questão de saber se o Tribunal poderia ou não conhecer da eventual constituição do direito com base na usucapião.

É que, em conformidade com o disposto no art. 303º, aplicável por força do art. 1292º, “o tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público”.

 Ora, em rigor – e como sustentam os Apelantes – os Réus nunca invocaram a usucapião. Como já referimos, os Réus estruturam a sua defesa com base na alegação de que a faixa de terreno era um caminho público e não invocaram a usucapião como forma de constituição de um direito de servidão de passagem que pretendessem ver reconhecido. Embora tenham pedido, a título subsidiário, que aquela faixa fosse declarada como uma serventia de passagem sobre o prédio dos Autores a favor dos seus prédios, não aludiram ao modo de constituição dessa servidão e nunca aludiram ou invocaram a respectiva usucapião.

E, se os Réus não a invocaram, não poderia o Tribunal considerá-la para concluir que os Réus haviam adquirido, por essa via, a referida servidão de passagem.

Admitimos, porém, que não seja líquida e incontroversa tal conclusão, pois que há quem considere que tal invocação pode ser implícita ou tácita e que, como tal, poderá considerar-se invocada a usucapião se os factos a ela conducentes forem articulados pelo interessado[2]

De qualquer forma e independentemente dessa questão, não estão reunidos os pressupostos necessários para que possa ser reconhecida a constituição desse direito, por usucapião.

Como decorre do disposto no art. 1287º, a aquisição de um direito – no caso, o direito de servidão de passagem – por usucapião pressupõe a posse desse direito durante um determinado lapso de tempo, que varia em função das características da posse, sendo certo que, não tendo existido, no caso, justo título ou registo de mera posse, a usucapião só poderia ocorrer ao fim de quinze anos, se estivesse em causa uma posse de boa fé, ou ao fim de vinte anos, caso a posse em questão fosse de má fé. Importa ainda notar que a posse susceptível de conduzir à usucapião terá que ser uma posse pública e pacífica (já que, como dispõe o art. 1297º, se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar desde que cesse a violência e desde que se torne pública).

Ora, ainda que se admitisse que os Réus exerciam sobre a aludida faixa de terreno uma posse, pública e pacífica, correspondente ao direito de servidão de passagem, a verdade é que não resulta da matéria de facto que essa posse tenha sido exercida e mantida pelo tempo necessário à aquisição do direito por usucapião.

De facto, sabemos apenas (resposta ao ponto 61º da base instrutória) que essa faixa de areia existe, sobre o prédio descrito em A), há mais de vinte anos. Mas a mera existência dessa faixa há mais de vinte anos não nos permite concluir e afirmar que os Réus tenham exercido a posse correspondente ao direito de servidão de passagem durante esse mesmo período de vinte anos. A verdade é que não sabemos – não resulta da matéria de facto – há quanto tempo os Réus usam aquela faixa para, através dela, aceder aos logradouros das suas habitações; não sabemos, sequer, há quanto tempo abriram as portas que dão acesso à referida faixa (sendo certo que os seus prédios têm acesso directo à via pública por outro local) e não sabemos como e de que forma seria efectuada essa passagem – se é que era efectuada – antes da abertura dessas portas.

Em suma, não sabemos se os Réus exercem ou não a posse correspondente ao direito de servidão de passagem há tempo bastante para que lhes fosse facultada a aquisição desse direito por usucapião.  

Mas, ainda que os Réus tivessem exercido essa posse pelo tempo necessário para a usucapião, não estariam reunidos os pressupostos necessários para a aquisição do direito por essa via.

É que, como dispõe o art. 1548º, as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião, assim se considerando as servidões que não se revelam por sinais visíveis ou permanentes.

Para que exista uma servidão aparente – susceptível de aquisição por usucapião – é necessário que o seu exercício seja evidenciado e denunciado por quaisquer sinais que, além de visíveis, sejam permanentes. A visibilidade dos sinais destina-se a garantir que a servidão não é exercida clandestinamente – e, portanto, com a ignorância do proprietário – e o seu carácter permanente torna seguro que não se trata de um acto praticado a título precário, mas de um encargo preciso, de carácter estável ou duradouro, como é próprio da servidão[3]. Limitando às servidões aparentes a possibilidade de aquisição por usucapião – excluindo, portanto, as não aparentes – o legislador terá pretendido acautelar e impedir a possibilidade de efectiva constituição desse direito nas situações em que os actos reveladores do seu exercício são equívocos, por serem compatíveis e confundíveis com actos de mera tolerância do proprietário ou por estarem a ser praticados sem o seu conhecimento.

Como refere Gonçalves Rodrigues[4]…as servidões para serem aparentes requerem um sinal exterior, visível e permanente, que por si mesmo indique a existência da servidão, sinal claro, evidente e inequívoco, que sem género algum de dúvida, denuncie que há ali uma servidão em exercício e a natureza desta, sinal, em suma, adequado e próprio para dar a conhecer a ideia que representa”. É nestes casos que se justifica – pelo menos na perspectiva do legislador – que a actuação de facto assim exercida possa vir a facultar a aquisição do direito por usucapião, já que, continuando a citar Gonçalves Rodrigues[5], “se o dono do prédio serviente, não obstante a existência do sinal ou sinais exteriores, visíveis e permanentes, que por si mesmos denunciam a existência da servidão, o seu exercício e a sua natureza, consente ainda no exercício da servidão durante, por exemplo, trinta anos, não era justo que pudesse dizer, ao fim de tal prazo, que se tratou de actos de mera tolerância, duma sua expressão de amabilidade, mas sim, temos que concluir que se tratou da afirmação dum direito do prédio dominante”.

Ora, a verdade é que, no caso sub judice, não se demonstrou – nem tão pouco se alegou – a existência de sinais visíveis e permanentes que revelassem a servidão aqui em causa.

A calçada em pedra, que os Autores haviam colocado naquela faixa de terreno e que, posteriormente, retiraram não constitui um sinal para efeitos da norma citada. Em primeiro lugar, porque não sabemos sequer quando foi colocada (admitindo-se como muito provável que o tenha sido depois de os Autores terem adquirido o prédio, em 2000) e, em segundo lugar, porque a existência daquela calçada não revelaria, de forma inequívoca, a existência da servidão, já que, tendo sido colocada pelos próprios Autores em terreno que pertencia ao seu prédio, terá correspondido apenas ao acto de calcetar o respectivo logradouro para seu uso e comodidade (note-se que nem sequer resulta da matéria de facto que, quando essa calçada foi colocada, já lá existissem as portas ou qualquer outro tipo de abertura que, através dessa calçada, desse acesso aos prédios habitados pelos Réus).

O mesmo acontece com as portas que os Réus abriram para aquela faixa de terreno. De facto, não sabemos – não foi alegado – há quanto ali se encontram e, portanto, não sabemos se elas correspondem a um sinal permanente revelador do exercício de uma servidão de passagem, ou se, ao invés, correspondem apenas a um acto abusivo que foi objecto de imediata oposição por parte do proprietário do terreno.

E, além dessa calçada e dessas portas, nada mais resulta da matéria de facto que, de alguma forma, permitisse concluir pela existência de um qualquer sinal que, sendo visível e permanente, revelasse a existência dessa servidão. Sabemos apenas que era uma faixa de terreno de areia e nada nos permite afirmar que essa faixa estivesse, de algum modo, diferenciada do terreno adjacente, de modo a evidenciar que, por ela, era efectuada passagem de pessoas e/ou veículos.

Assim, não estando demonstrada a aparência da servidão, a mesma não poderia ser adquirida por usucapião.

Concluímos, pois, em face do exposto, não estarem reunidos os pressupostos necessários para o reconhecimento daquela servidão de passagem e, portanto, terá que improceder a reconvenção.

Aberturas (portas) para o prédio dos Autores/Apelantes:

Como resulta da matéria de facto, os Réus C... e D... abriram uma porta no seu logradouro, com cerca de 1 m x 2 m e o Réu H... abriu uma outra porta, com cerca de 1 m x 2 m, no logradouro da residência que veio a ser dos Réus E... e marido, F..., sendo que tais portas deitam, directa e imediatamente, para o prédio mencionado em A., sem qualquer afastamento em relação a este prédio.

Apesar de essas portas se encontrarem em contravenção ao disposto no art. 1360º, nº 1, do C.C., a sentença recorrida não determinou que as mesmas fossem tapadas por serem consequência directa da servidão de passagem que reconheceu existir e por serem necessárias ao exercício dessa servidão.

Todavia, não podendo ser reconhecida a existência da servidão de passagem – como acima referimos – e não tendo sido feita a prova da existência do caminho público que era alegado pelos Réus (antes se demonstrando que a faixa de terreno em questão faz parte do prédio dos Autores), tais portas terão que ser tapadas, por força do disposto na norma citada.

Varanda/terraço da casa dos Réus, G... e H...:

Sustentam os Apelantes que os referidos Réus também deveriam ter sido condenados a substituir o gradeamento visível nas fotografias de fls. 150 e 151 por parapeito em alvenaria, com altura não inferior a 1,5m, porquanto essa varanda/terraço deita directamente para o prédio dos Autores.

Não detectamos, porém, na matéria de facto qualquer referência a essa varanda/terraço; apenas se alude a uma varanda/terraço dos Réus, E... e marido, relativamente à qual a sentença recorrida ordenou que o gradeamento fosse substituído por um parapeito em alvenaria com altura não inferior a 1,5m.

E, se é certo que a matéria de facto não alude a qualquer varanda/terraço dos Réus, G... e H..., a verdade é que os Autores, na petição inicial, também não invocaram a sua existência e nada peticionaram relativamente à mesma. É certo que, sob o nº 4 do pedido formulado, solicitavam os Autores que os Réus fossem condenados a tapar o terraço (escadas), que deitam sobre o seu prédio e não sejam servidos de parapeito. Mas os Autores não identificaram os Réus aos quais se reportava esse pedido e o certo é que não alegaram a existência de qualquer terraço além daquele que pertence aos Réus, E... e marido, e que já foi considerado na sentença recorrida.

Assim, nesta parte, terá que improceder o recurso.

Partilha efectuada na sequência do divórcio dos Réus, E... e marido, e efeitos daí decorrentes para a condenação a proferir na presente acção:

Considerou-se na sentença recorrida que a varanda/terraço da Ré, E... e marido, tem um gradeamento que viola o direito de propriedade dos Autores e que, como tal, terá que ser substituído por um parapeito em alvenaria com altura não inferior a metro e meio.

Todavia, na sentença recorrida, apenas se condenou o Réu F... a substituir o referido gradeamento, sendo que a Ré, E..., foi absolvida desse pedido. Justificou-se essa decisão na circunstância de se encontrar junta aos autos uma escritura de partilha efectuada após o divórcio do referido casal e na qual o referido imóvel havia sido adjudicado ao Réu, F..., mais se referindo que, embora Ré, E..., não perca completamente a legitimidade e o interesse processual na acção, não pode ser condenada a efectuar as obras necessárias à construção de um parapeito por já não ter o domínio do prédio onde a obra deve ser feita.

Os Apelantes insurgem-se contra essa decisão, dizendo que a mesma viola o princípio da estabilidade da instância, além de que o referido divórcio e subsequente partilha correspondem a factos que, não tendo sido oportunamente alegados, não poderiam ser considerados.

Parece-nos que, de facto, não se justifica a absolvição da Ré, E..., relativamente à obrigação em causa.

O divórcio e subsequente partilha dos bens do casal não correspondem a qualquer facto que tenha a virtualidade de extinguir a obrigação de eliminar a situação ilegal (porque violadora do direito dos Autores) em que se encontra a varanda/terraço (onde foi colocado um gradeamento, num momento em que o prédio ainda integrava o património comum do casal).

A partilha dos bens do casal – por via da qual aquele imóvel ficou adjudicado a um dos cônjuges – apenas poderá determinar a transferência dos direitos e obrigações que são inerentes ao referido imóvel e, portanto, aquela partilha apenas terá determinado a transferência para o Réu, F..., da obrigação que também impendia sobre a Ré, E..., de substituir aquele gradeamento por um parapeito.

Mas a transmissão dessa obrigação apenas poderia produzir efeitos na acção se tivesse sido efectuada a necessária habilitação, de forma a que o Réu, F..., fosse, efectivamente, habilitado para ocupar, na acção e no que toca ao pedido correspondente àquela obrigação, o lugar e a posição que era ocupada pela Ré, E....

Sucede que tal habilitação não foi requerida e não era obrigatório que o fosse.

Com efeito, e de acordo com o disposto no art. 271º, nº 1, do C.P.C., no caso de transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo. Significa isto que o transmitente da coisa ou direito, apesar de não ser já o seu titular, continua a ter legitimidade para a acção – enquanto não for substituído pelo adquirente por via do incidente de habilitação – e, portanto, caso ocupe a posição de réu, será ele que terá que ser condenado, ainda que os efeitos dessa condenação se venham a reflectir no adquirente, relativamente ao qual a sentença produzirá efeitos, nos termos do disposto no nº 3 do citado art. 271º.

Assim, ainda que os efeitos dessa condenação venham a afectar apenas o Réu F... – por ser ele quem, tendo a propriedade e a disponibilidade da coisa, terá que fazer a obra em causa – a Ré, E... – não tendo sido substituída por meio de habilitação – terá que ser condenada, juntamente com o seu ex-marido, a satisfazer aquela obrigação, relativamente à qual não ocorreu qualquer facto extintivo.

     

Indemnização:

Sustentam ainda os Apelantes que, tendo ficado provado que os Réus violaram os seus direitos, deveriam os mesmos ser julgados responsáveis pela reparação dos danos causados, ainda que a liquidar em sede de execução de sentença.

O certo, porém, é que não se demonstrou a existência de qualquer prejuízo concreto que os Apelantes tenham sofrido em consequência dos actos praticados pelos Réus, importando notar que os Autores não alegaram, sequer, a existência de qualquer dano concreto.

Refira-se que a condenação na indemnização que, posteriormente, viesse a ser liquidada, pressupunha a efectiva demonstração da obrigação de indemnizar (ainda que não existissem elementos para fixar o seu exacto valor) e esta obrigação pressupunha a efectiva demonstração da existência de danos (ainda que não fosse possível determinar o seu valor).

Ora, o que ocorre, no caso sub judice, não é a mera indeterminação do valor e extensão dos danos; o que acontece é que não ficou demonstrada a existência de qualquer dano que os Autores/Apelantes tenham sofrido e que deva ser reparado pelos Réus e, portanto, não resultando demonstrada a obrigação de indemnizar – porque não foi demonstrado um dos seus pressupostos: o dano – os Réus terão que ser absolvidos desse pedido, nada existindo para liquidar.

No que toca à Ré, Junta de Freguesia:

A Junta de Freguesia foi absolvida de todos os pedidos formulados, com base na seguinte fundamentação: “Não se vislumbra, consequentemente, que a Junta de Freguesia de I... tenha agido conluiada com os demais Réus para prejudicar os Autores, antes se entende que agiu na defesa da legalidade administrativa. Portanto, deve a Junta ser absolvida dos pedidos dos Autores, não se provando se tenha envolvido no litígio quanto à propriedade e posse dos imóveis, nem quanto às restrições à propriedade, que são meras questões de vizinhança desavinda, apenas lhe dizendo directamente respeito o pedido indemnizatório, de que deve ser absolvida”.

Em rigor, este segmento da decisão nem sequer estará incluído no objecto do recurso, porquanto os Apelantes, nas conclusões das suas alegações, não aludem especificamente a esta Ré e à decisão que a absolveu dos pedidos.

De qualquer forma, perante a matéria de facto, consideramos perfeitamente válidas as considerações feitas na sentença recorrida.

De facto, no que toca a esta Ré, apenas decorre da matéria de facto que a mesma teria solicitado à Câmara que não concedesse o pedido de licenciamento sem que fossem esclarecidas algumas questões relacionadas com aquela passagem e este facto é manifestamente insuficiente para fundamentar a sua condenação em qualquer um dos pedidos formulados.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Implicando a servidão predial uma relação de dependência entre dois prédios (serviente e dominante) e sendo a servidão inerente aos prédios a que pertence (activa e passivamente) e dos quais, por regra, não pode ser separada, a sua constituição e existência pressupõe a efectiva determinação dos prédios (dois ou mais) entre os quais se estabelece aquela relação, tal como pressupõe a determinação da posição que cada um deles ocupa (dominante ou serviente), sob pena de ficarmos perante um direito indeterminado e sem qualquer conteúdo que possa ser efectivamente exercido. 

II – Como decorre do disposto nos arts. 303º e 1292º do C.C., a usucapião não pode ser apreciada e declarada oficiosamente pelo Tribunal, já que, para ser eficaz, terá que ser invocada pela pessoa a quem aproveita.

III – Apenas as servidões aparentes podem ser adquiridas por usucapião, como tal se considerando aquelas cujo exercício é denunciado e evidenciado por sinais que, sendo visíveis e permanentes, revelam, por si mesmos, a existência, o exercício e a natureza da servidão.

IV – A mera existência de uma faixa de terreno em areia – relativamente à qual não se demonstrou que estivesse, de algum modo, diferenciada do terreno adjacente ou que tivesse qualquer outro sinal ou característica que evidenciasse uma qualquer passagem que por ali fosse efectuada – não correspondente a um sinal revelador de uma servidão de passagem.


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V.

Pelo exposto, na parcial procedência do presente recurso, revoga-se, em parte, a sentença recorrida e, julgando-se a acção parcialmente procedente e improcedente a reconvenção, decide-se:

♦ Absolver a Ré, Junta de Freguesia de I..., de todos os pedidos formulados pelos Autores (confirmando-se, nesta parte, a sentença recorrida);

♦ Condenar os Réus, C... e marido D..., E... e F..., G... e marido H..., a reconhecer que os Autores são donos e legítimos possuidores dos prédios urbanos referidos supra sob as als. A) e C) (sendo que, nesta parte, a sentença recorrida não foi objecto de recurso);

♦ Condenar os Réus, C... e marido D..., E... e F..., G... e marido H..., a cessar a violação do direito de propriedade dos Autores sobre tais prédios, não os ocupando os ditos Réus com estacionamento de automóveis ou depósitos de objectos, nem transitando sobre eles (nesta parte, a sentença recorrida não foi objecto de recurso);

 ♦ Condenar os Réus, C... e marido D..., a substituir o gradeamento visível nas fotografias de fls. 151 e 152, posteriormente ocultado por uma placa metálica amovível, por um parapeito em alvenaria com altura não inferior a metro e meio, a contar do respectivo piso, no prédio que lhes pertence (nesta parte, a sentença recorrida não foi objecto de recurso);

♦ Condenar os Réus, E... e F... a substituir o gradeamento visível nas fotografias de fls. 150 e 151, por um parapeito em alvenaria com altura não inferior a metro e meio, a contar do respectivo piso, no prédio que lhes pertence (revogando-se a sentença recorrida, na parte em que havia absolvido a Ré, E..., deste pedido);

♦ Condenar os Réus, C... e D..., a tapar a porta que foi aberta no logradouro da sua residência e a que alude a resposta ao ponto 39º da base instrutória (revogando-se, nesta parte, a sentença recorrida, que havia absolvido os Réus deste pedido);

♦ Condenar os Réus, E... e marido, F..., a tapar a porta que foi aberta no logradouro da sua residência e a que alude a resposta ao ponto 40º da base instrutória (revogando-se, nesta parte, a sentença recorrida, que havia absolvido os Réus deste pedido);

♦ No mais – e designadamente, no que respeita ao pedido de indemnização – absolvem-se os Réus do pedido (nesta parte, se confirmando a sentença recorrida);

♦ Absolver os Autores do pedido reconvencional que contra eles foi formulado (revogando-se, nesta parte, a sentença recorrida).

As custas da acção serão suportadas pelos Autores e pelos Réus (pessoas singulares), na proporção de ¼ para os primeiros e ¾ para os segundos.

As custas da reconvenção serão suportadas pelos Réus/Reconvintes.

As custas do presente recurso serão suportadas pelos Apelantes e pelos Apelados na proporção de 1/5 para os primeiros e 4/5 para os segundos.


Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., revista e actualizada (reimpressão), págs. 71 e 72, citando um Acórdão do STJ de 26/11/1980.
[3] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed. revista e actualizada (reimpressão), pág. 630.
[4] Da Servidão Legal de Passagem, Livraria Almedina, 1962, pág. 106.
[5] Ob. e loc. citados.