Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
109/17.1YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
NOTÁRIO
RECURSO
Data do Acordão: 06/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA - TRIBUNAL DA RELAÇÃO - SECÇÃO CENTRAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: DECLARADA IMCOMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
Legislação Nacional:
ART.76 Nº2 RJPI ( LEI Nº23/2013 DE 5/3), ARTS.67, 68, 96, 97 CPC
Sumário: No processo de inventário, é da competência do tribunal de 1ª instância o recurso das decisões do Notário.
Decisão Texto Integral:




I – Relatório

1. Corre Inventário, para partilha de herança, em Cartório Notarial de Leiria, que envolve os interessados A (…) e P (…). Este reclamou da relação de bens.   

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O Sr. Notário proferiu decisão em que deu procedência parcial à mesma.

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2. O interessado P (…) interpôs recurso, pedindo a revogação parcial do decidido, recurso que dirigiu ao Juízo Cível da Comarca de Leiria. 

3. A interessada A (…) contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido, peça processual essa que dirigiu ao indicado Tribunal.

4. O Sr. Notário admitiu o recurso, a remeter para a Relação de Coimbra.

5. Afigurando-se que o recurso não podia ser admitido, nos termos em que o foi, para esta Relação, determinou-se a audição das partes. Só o interessado P (…)  respondeu, defendendo que o recurso sobe imediata e autonomamente.

 

II – Factos Provados

Os factos a considerar são os que emanam do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Incompetência do tribunal da Relação em razão da hierarquia.

2. A norma a considerar, e que foi invocada pelo Sr. Notário, é a prevista no art. 76º, n.º 2, do RJPI (Lei 23/2013, de 5.3) de acordo com o qual:
Salvo nos casos em que cabe recurso de apelação nos termos do Código de Processo Civil, as decisões interlocutórias proferidas no âmbito dos mesmos processos devem ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da decisão de partilha.”.
Não podemos, porém, olvidar o disposto nos arts. 67º e 68º, do NCPC, normas sobre competência em razão da hierarquia, estipulando aquele que:
Compete aos tribunais de 1.ª instância o conhecimento dos recursos das decisões dos notários, dos conservadores do registo e de outros que, nos termos da lei, para eles devam ser interpostos.”. Enquanto o segundo atribui competência à Relação para conhecer dos recursos que por lei sejam da sua competência e dos recursos interpostos de decisões proferidas pelos tribunais de 1ª instância.    
Desde logo, entendemos que resulta das disposições ora transcritas que das decisões proferidas por notário cabe recurso para o tribunal da 1ª instância que for o territorialmente competente, ao passo que o recurso da sentença homologatória da partilha, porque proferido pelo juiz desse tribunal de 1ª instância, é que é dirigido ao tribunal da Relação territorialmente competente, como determina expressamente o art. 66º, nº 3, do RJPI, uma vez que vem interposto de decisão judicial e não do notário.
Nesta linha interpretativa vai Augusto Lopes Cardoso, em Partilhas Judiciais, 6ª edição, 2015, págs. 82/85, que a dado passo escreve o seguinte:
“Dir-se-á, pois, que – muito mais do que um paralelismo excessivo com o Contencioso Administrativo, a despeito da natureza jurídica dos actos decisórios do Notário – deve ser aqui aplicado o regime subsidiário dos recursos civis (ex vi do cit. Art. 82.º do RJPI) vale dizer que a discordância da decisão notarial interlocutória deve manifestar-se através dum requerimento de impugnação para o Juiz dirigido ao Notário (CPCiv., art. 637.º-1).
Do exposto deve deduzir-se que, não estando previsto que a impugnação das «decisões interlocutórias» que não são autónomas suspendam o andamento do processo de inventário, também não se justifica que subam imediatamente ao Juiz do processo, pelo que, preparada a impugnação com a respectiva alegação, aquela irá aguardar o momento em que o processo seja remetido a Tribunal para a prolação da decisão homologatória da partilha.”.
Também Tomé D´Almeida Ramião, em O Novo Regime do Processo de Inventário, 2ª Ed., 2014, págs. 198/199, defende que o art. 76º, nº 2 do RJPI, se refere às decisões judiciais, decorrendo do artigo 644.º, n.º 2, do NCPC, que o recurso de apelação tem por objecto uma decisão proferida por um tribunal de 1ª instância, concluindo que “Não é admissível uma espécie de recurso “per saltum” para o Tribunal da Relação de uma decisão proferida pelo notário. O recurso para este tribunal superior tem necessariamente de ter por objecto uma decisão jurisdicional.”.

E na verdade é esta a interpretação que fazemos e a conclusão a que também chegamos.

Realmente, lendo todo o diploma em causa, nas suas diferentes normas que tratam do tema dos recursos e da articulação dos Srs. Notários com os Tribunais em geral (cfr. os seus artigos 3º, nº 7, 13º, nº 2, 16º, nos 4 e 5, 57º, nº 4, 66º, nos 1 e 3, 69º, 70º e 76º) nada nos permite concluir que se tenha instituído um regime legal de recursos directo das decisões do Notário para o tribunal da Relação e não, primeiro, para o tribunal da 1ª instância e, daí, depois, para a Relação, dentro das regras normais do NCPC.

Claro que o legislador poderia ter introduzido esse sistema do recurso per saltum, optando, então, por libertar, quase por completo, os tribunais de comarca dos processos de inventário, passando o encargo para os tribunais da Relação. Mas se fosse essa a sua intenção, deveria tê-la formulado expressamente, dado o entorse processual que essa situação constituiria (e parece que também entorse constitucional), o que não fez. 

Ao invés, nem de forma implícita se extrai daquele citado diploma qualquer novidade nos recursos dos senhores Conservadores e Notários – que são interpostos, como é sabido, usualmente, em primeira linha, para os tribunais de comarca, conforme aos respectivos Códigos de Registo. Consequentemente, temos que concluir que os recursos, neste tipo de processo especial (o inventário), continuam a ser interpostos para o tribunal de comarca e não para o tribunal da Relação.

Não podemos, pois, acompanhar a decisão do Sr. Notário de admitir o recurso logo para a Relação, com base no citado art. 76º, nº 2, do RJPI, pois esta não tem essa competência ab initio. Com efeito, tal normativo reporta-se a recursos para a Relação, mas das decisões proferidas pelo juiz de 1ª instância, quer a que homologa a partilha, quer outras, subindo com aquele os recursos das decisões interlocutórias proferidas ao longo do processo (aliás, mesmo que fosse de admitir que as decisões interlocutórias seriam recorríveis logo para a Relação, sem passar primeiro pelo juiz da 1ª instância, então os respectivos recursos só poderiam subir à Relação com o recurso que se interpusesse da decisão homologatória da partilha e não já, como ocorreu).

Já assim era, de resto, no âmbito do anterior Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei 29/2009, de 29.6 (que acabou por não produzir efeitos, conforme decorria dos seus arts. 4º, 8º, nº 2, 18º, 60º, nº1 e 3, 62º, 64º, 72º, nº 1 e 4, e 73º).

É de notar, em abono desta conclusão, que mesmo noutros casos em que a lei passou competências dos tribunais para o Ministério Público e para os Notários e Conservadores, manteve sempre a possibilidade de reapreciação pelos juízes dos tribunais judiciais da 1ª instância e, daí, para a Relação, nos termos gerais. Veja-se, por exemplo, o caso paradigmático do DL 272/2001, de 13.10, seus artigos 3º, nº 6, 4º, nº 6, 8º e 10º, nº 1 (“das decisões do conservador cabe recurso para o tribunal judicial da 1ª instância competente em razão da matéria no âmbito da circunscrição a que pertence a conservatória”).
Impõe-se, por isso, concluir que, além das decisões interlocutórias cuja recorribilidade está expressamente prevista, em que dúvidas não existem que a competência em razão da hierarquia para o conhecimento do recurso delas interposto cabe ao tribunal de 1ª instância, as outras decisões interlocutórias, como a ora em apreço, também seguem, em caso de recurso, a via de conhecimento ab initio pelo tribunal da 1ª instância, conforme citado art. 76º, nº 2, do RJPI, e só depois seguem, eventualmente, em segundo momento para a Relação (vide neste sentido os Acds. da Rel. Coimbra de 9.5.2017, Proc.86/17.9YRCBR e da Rel. Évora de 5.4.2016, Proc.38/16.6YREVR).  
Por tudo isto é de concluir ser este tribunal da Relação incompetente, em razão da hierarquia para conhecer do presente recurso (arts. 96º, a) e 97º do NCPC) cabendo a mesma ao tribunal da comarca de Leiria.

3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) No processo de inventário, é da competência do tribunal de 1ª instância o recurso das decisões do Notário.

IV – Decisão

Pelo exposto, declara-se este tribunal da Relação incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer do presente recurso (cabendo a mesma ao Juízo Cível da Comarca de Leiria, para onde o processo deve ser remetido).

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Sem custas.

Coimbra, 20.6.2017

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias