Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
746/21.0T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA MELO
Descritores: REPÚDIO DA HERANÇA
CREDORES DO REPUDIANTE
AÇÃO SUB-ROGATÓRIA
EXISTÊNCIA DO CRÉDITO
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2067.º E 610.º, AL.ª A), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Os credores do repudiante através da sub-rogação do credor ao devedor, podem aceitar a herança e fazer-se pagar pelos bens da herança (art. 2067.º do CC).

II – O meio processual para os credores exercerem a faculdade – que não depende de autorização judicial, mas é, necessariamente, de exercício judicial – de aceitar a herança, “em nome” do repudiante, é a ação sub-rogatória.

III – Nem o artigo 2067.º, nem o 606.º e seguintes do CC para o qual remete, exige que o crédito exista à data da escritura de repúdio. Necessário é apenas que esse crédito exista à data do exercício pelo credor da ação sub-rogatória. Se essa tivesse sido a intenção do legislador, não deixaria de o mencionar, como o fez,  relativamente à ação de impugnação pauliana no art.º 610.º, alínea a), 1ª parte, do CC, ainda que também, relativamente a este meio de reação dos credores à perda da garantia patrimonial dos seus créditos, a impugnação não esteja excluída quando o crédito surge posteriormente ao ato que envolve diminuição da garantia patrimonial, exigindo-se apenas nesse caso um plus, relativamente aos casos em que o crédito é anterior ao ato – ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do crédito do credor (art.º 610.º, alínea a) do CC).


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Relatora: Helena Melo
1.º Adjunto: José Avelino Gonçalves
2.º Adjunto: Arlindo Oliveira


Processo 746/21.0T8GRD.C1

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

            O Estado Português, representado pelo Ministério Público, instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra (1.º) AA, (2.ª) BB, (3.º) CC (4.ª) DD, (5.ª) EE (6.ª) FF menor (nascida no dia .../.../2003 e que no decurso dos autos atingiu a maioridade), e (7.ª) GG, solteira menor (nascida no dia .../.../2006),  estas (6ª e 7ª) representadas pela sua mãe, HHpedindo ao tribunal que: a) Seja declarada a Fazenda Nacional a aceitante da herança aberta por óbito de II, ocorrido a 13 de novembro de 1997, por sub-rogação do herdeiro repudiante AA; b) Sejam os réus condenados a reconhecer que AA deve à Fazenda Nacional o montante total de 2.525.452,96€; c) Sejam os réus condenados a reconhecer a Fazenda Nacional como aceitante da herança aberta por óbito de II, por sub-rogação do herdeiro repudiante AA e o direito do Estado a receber aquela quantia pelo quinhão hereditário do 1.º Réu; d) Caso a herança seja, entretanto, partilhada, sejam os réus condenados a pagar as quantias devidas à Fazenda Nacional, no montante total de 2.525.452,96€, acrescidos de juros de mora à taxa legal, na proporção do quinhão hereditário do herdeiro repudiante AA.

Para tanto, alegou, em síntese, que deu entrada no Tribunal ..., no dia 05/02/2020, o processo de inventário n.º ...0..., onde é requerida a partilha dos bens que integram a herança aberta por óbito de II, ocorrido a 13/11/1997, sendo interessados na partilha os 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º e 7.º réus, sendo estas últimas (6.ª e 7.ª rés) por direito de representação do seu pai, porquanto este, o aqui 1.º réu, repudiou aquela herança, por escritura de 23/10/2012.

O Ministério Público foi citado naquela ação no dia 09/12/2020, tendo sido nessa altura que o Estado teve conhecimento daquele repúdio, que nunca foi anteriormente comunicado à Fazenda Nacional.

Mais invocou que  o réu AA é devedor ao Estado/Fazenda Nacional do montante total de 2.525.452,96€, sendo 2.181.664,36€ reportado a capital (IRS, Coimas, IMI, IUC, IRC, IVA, taxas de portagens e custas judiciais, vencidos entre os anos de 2013 e 2020), 317.713,50€ referente a juros de mora e 26.075,10€ reportado a custas nos processos fiscais – sendo a quantia de 5.360,98€ relativa a processos de execução fiscal em que o 1.º réu figura como devedor principal e o remanescente reportado a montantes em que o 1.º réu é executado em virtude de reversão.

E, finalmente, que o 1.º réu não possui bens móveis ou imóveis ou outros rendimentos penhoráveis, para além de um veículo automóvel com a matrícula ..-FA-.., sobre o qual já incidem duas penhoras, uma a favor da Banco 1... e outra a favor da Autoridade Tributária, não tendo no seu património bens suficientes para satisfazer o crédito da Fazenda Nacional.

 JJ, CC, DD e marido,  EE e marido, FF e GG, apresentaram contestação conjunta. Admitiram a instauração do inventário, nos termos aí documentados, alegaram que KK (casado no regime da separação de bens com a ré EE) é parte ilegítima e que desconhecem a data em que o Ministério Público foi citado ou teve conhecimento dos factos, até porque os cartórios notariais estão obrigados a comunicar à Fazenda Nacional todos os atos notariais, tendo sido comunicado à Fazenda Nacional, pelo cartório notarial em que foi efetuado o repúdio da herança, no dia 05/11/2012, o repúdio à herança efetuado pelo réu AA, tendo, assim, caducado o direito de sub-rogação.

Alegaram, por outro lado, que na data da escritura de repúdio da herança o réu AA não era devedor de qualquer quantia à Fazenda Nacional, tendo esta entidade, em datas posteriores a 2012, penhorado bens ao Réu, que vendeu através de leilão eletrónico e que o serviço de Finanças ... também tinha conhecimento que o Réu AA havia repudiado a herança do pai e que, por força de tal repúdio, a parte que cabia àquele se encontrava registada em nome das beneficiárias do repúdio,  FF e GG.

Mais invocaram que os bens que integram a herança aberta por óbito de II encontram-se todos eles descritos e nos mesmos inscrito o direito repudiado a favor das referidas FF e GG,  inscrição esta feita através das Ap. ...63 de 2012/11/09, cujo acesso é público  e que a herança aberta por óbito de II, no âmbito de vários contratos de arrendamento celebrados levou ao conhecimento da Fazenda Nacional/Serviço de Finanças quem eram os titulares dos bens para efeitos de imposto de selo.

Também o réu AA contestou, pugnando pela improcedência da ação, reiterando os fundamentos da oposição aduzidos pelos demais réus, designadamente a exceção de caducidade e invocado que na data do repúdio, apenas era  devedor à Fazenda Nacional da quantia de 105,12€, tendo património suficiente para solver o montante em dívida,  (v.g. um veículo automóvel de marca ..., com a matrícula ..-FA-.., no valor de 15.000,00€, livre de ónus e encargos, o seu salário e o saldo das suas contas bancárias), só podendo a sub-rogação ser exercida relativamente a direitos que o credor que pretende exercer tal direito já tenha à data do repúdio, não podendo ser, assim, exercida sobre o direito de crédito invocado, constituído posteriormente.

O tribunal proferiu despacho pré-saneador, tendo feito um convite ao Ministério Público e outro aos réus, tendo, ainda, concedido ao Ministério Público, por razões de gestão processual, celeridade e economia processual, a oportunidade de, querendo, se pronunciar relativamente às exceções deduzidas pelos réus nas contestações.

O Ministério Público e os réus, com exceção do réu AA, aceitaram o convite que lhe foi dirigido, tendo o Ministério Público se pronunciado relativamente às exceções deduzidas pelos réus na contestação e, em particular, no que concerne à exceção de caducidade, reiterando que a administração tributária apenas tomou conhecimento do repúdio da herança na sequência da citação do Ministério Público, efetuada a 09/12/2020, no âmbito do processo de inventário n.º ...0..., onde se requereu a partilha dos bens que integram a herança aberta por óbito de II, ocorrido a 13 de Novembro de 1997, não tendo as demais comunicações/informações a virtualidade de dar conhecimento à A.  do repúdio efetuado.

O tribunal dispensou a realização da audiência prévia das partes, tendo proferido despacho saneador, onde verificou a regularidade da instância (assentando que ré FF, na data que a ação foi instaurada, era já maior de idade, encontrando-se a sua capacidade judiciária, legitimidade e representação processual assegurada, por ter constituído mandatário forense e contestado a ação); que a ré GG, sendo menor de idade, não tendo capacidade judiciária, encontra-se devidamente representada em juízo pela sua progenitora, HH, já que o seu progenitor figura como parte na ação; e que os cônjuges das herdeiras demandadas, não são partes, considerando, nessa medida, a contestação apresentada pelos mesmos sem efeito, considerando como partes legítimas os réus herdeiros, tal como identificados no formulário da petição inicial, após o que definiu o objeto do litígio e fixou os temas da prova.

            Foi realizada a audiência final e após foi proferida sentença que com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, o tribunal julga a ação totalmente procedente, e em consequência:

a) declara a Fazenda Nacional a aceitante da herança aberta por óbito de II, ocorrido a 13 de novembro de 1997, por sub-rogação do herdeiro repudiante AA;

b) condena os réus a reconhecerem que AA deve à Fazenda Nacional o montante total de 2.525.452,96€;

c) condena os réus a reconhecerem a Fazenda Nacional como aceitante da herança aberta por óbito de II, por sub-rogação do herdeiro repudiante AA e o direito do Estado a receber aquela quantia pelo quinhão hereditário do 1.º Réu; e

d) caso a herança seja, entretanto, partilhada, condena os réus a pagarem as quantias devidas à Fazenda Nacional, no montante total de 2.525.452,96€, acrescidos de juros de mora à taxa legal, até ao valor do quinhão hereditário do herdeiro repudiante AA.”

Os RR. não se conformaram e interpuseram dois recursos.

Os RR. BB, CC, DD e EE, FF, GG concluíram as suas alegações do seguinte modo:

A. A Fazenda Nacional não é detentora de personalidade jurídica nem sequer de personalidade ou capacidade judiciaria;

B. O titular de personalidade quer jurídica quer judiciária para o efeito é o Estado Português e não a Fazenda Nacional;

C. Pelo que os pedidos formulados a favor da Fazenda Nacional, bem como a decisão que julgando os mesmos procedentes, condenou os RR., carecem de suporte legal e vão ao arrepio das normas jurídicas e dos mais elementares princípios do direito;

D. A escritura de repúdio da herança outorgada pelo herdeiro repudiante LL, foi celebrada em 23 de Outubro de 2012, ou seja, cerca de 9 anos antes da apresentação em tribunal da presente ação;

E. Tal escritura foi comunicada à Fazenda Nacional pelo Cartório Notarial que a realizou;

F. O referido repudio foi levado a registo, constando, desde então, das descrições e inscrições dos prédios da herança aberta por óbito de II;

G. Encontrando-se todos os prédios que constituem a herança aberta por óbito de II descritos, tendo em todos eles sido inscrito o direito repudiado a favor das filhas do repudiante;

H. Mais concretamente o repudio foi inscrito a favor das filhas do repudiante em todos os prédios que integram a herança, em 9 de Novembro de 2012, através da Ap. ...63 de 2012/11/09;

I. Encontrando-se a respetiva escritura de repudio e demais documentos, disponíveis e acessíveis publicamente e como tal acessíveis também à Fazenda Nacional, na respectiva

Conservatória do Registo Predial, enquanto documentos instrutórios do ato registado;

J. O registo é publico, sendo uma das suas funções publicitar os prédios registados, sua titularidade, seus ónus e encargos e tudo o mais que se reporte aos prédios a que respeitam;

K. Não existe qualquer disposição legal que obrigue o repudiante ou quem, por força do repudio, venha a ocupar a sua posição, a comunicar à Fazenda Nacional o repudio efetuado e formalizado;

L. Aliás tal, significaria um ónus indevido imposto ao cidadão e um beneficio igualmente desproporcional e indevido da Fazenda Nacional se comparado com qualquer outro credor do repudiante;

M. Tais prédios foram objeto de contratos de arrendamento tendo, na respetiva participação para efeitos de Imposto de selo, apresentada junto da entidade tributária, sido

identificados os titulares do direito repudiado pelo herdeiro LL, bem como os respetivos números de identificação fiscal;

N. Tendo sido levado, pela referida herança, ao conhecimento da Fazenda Nacional/Serviço de Finanças, quem eram os titulares dos bens;

O. A ação instaurada pelo MP deu entrada em Juízo em 26 de Maio de 2021, ou seja cerca de 9 anos após a escritura de repudio e da sua publicitação através do competente registo esta efetivada em 9 de Novembro de 2012;

P. Pelo que havia já decorrido, há muitos anos, o prazo legalmente previsto para o credor poder sub-rogar-se ao repudiante e aceitar a herança em seu lugar;

Q. Acresce ainda que se encontra provado que o repudiante à data do repudio não era devedor de qualquer quantia à Fazenda Nacional;

R. E que as dividas fiscais daquele só surgiram, por efeito de reversão fiscal, mais de três anos após o repúdio;

S. Pelo que, ao tempo do repudio, a fazenda Nacional não era credora do repudiante porquanto este nada lhe devia;

T. A qualidade ou condição de credor, para efeitos de sub-rogação, tem que ser aferida ao momento da pratica do ato impugnado ou seja, no caso, ao momento da outorga da escritura de repudio;

U. A Fazenda Nacional, só mais de três anos após aquela data se tornou credora do repudiante;

V. Pelo que não sendo o Estado Português/Fazenda Nacional, credor do repudiante no momento da outorga da escritura de repudio, não pode sub-rogar-se àquele e aceitar a herança em seu lugar;

W. A permitir-se e validar-se tal entendimento ou seja, a entender-se que credores futuros, que ao tempo da pratica do ato posto em causa, neste caso o repudio da herança, ainda não eram detentores de qualquer crédito sobre o repudiante, permitindo-lhes sub-rogarem-se àquele por força e com o fundamento num crédito que não existia, estar-se-ia a por em causa a segurança do comercio jurídico, porquanto qualquer negocio valido e eficaz, poderia vir a ser posto em causa, no futuro, com base em factos que não existiam na data da sua celebração;

X. Além de que tal entendimento contraria as normas jurídicas e os mais elementares princípios da boa fé e do estado de direito;

Y. Não podendo, também por tal facto, proceder o peticionado pelo MP;

Z. A sentença recorrida, entre outras disposições legais, viola os artigos, 11 e seguintes, 139 e seguintes e 607 e seguintes do Código do Processo Civil, 66 e seguintes, 606 e seguintes e 2062 e seguintes do Código Civil e 1, 5, 7, 91 e 104 do Código do registo Predial.

Nestes termos deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências, como é de JUSTIÇA.

O R. AA concluiu as suas alegações do seguinte modo:

I. O Ministério Público, em representação do Estado português/Fazenda Nacional, instaurou a presente ação, onde peticionou, a demais, que fosse declarada a Fazenda Nacional a aceitante da herança aberta por óbito de II, ocorrido a 13 de Novembro de 1997, por sub-rogação do herdeiro repudiante AA.

II. Os pedidos vieram a ser julgados procedentes, com a consequente condenação dos RR. no reconhecimento da Fazenda Nacional como aceitante da herança aberta por óbito de II, por sub-rogação do herdeiro AA.

III. Sucede que, dos elementos constantes nos autos, nomeadamente a prova documental apresentada e toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, designadamente das declarações do R./Recorrente, bem como da inquirição das testemunhas, não resultam as conclusões retiradas pelo tribunal a quo para proferir a decisão de que aqui se recorre.

IV. Houve uma errada qualificação, quer nos factos dados como “provados”, quer nos factos dados como “não provados”, que teve como consequência uma errada subsunção daqueles factos a uma concreta norma jurídica.

V. Foram dados como provados os seguintes factos, os quais se impugnam expressamente:

4. O Ministério Público foi citado para aquela ação a 09/12/2020.

5. Apenas naquela data o Estado teve conhecimento daquele repúdio, que nunca foi anteriormente comunicado à Fazenda Nacional.

VI. Foram dados como não provados:

1. A Exma. Senhora Notária MM, com Cartório na Avenida ..., Loja ... na ..., no dia 05/11/2012, deu conhecimento/comunicou à Fazenda Nacional daquele repúdio, através do respetivo modelo 11;

2. O Réu aqui contestante, por intermédio da Sra. Dra. MM, deu conhecimento à Fazenda Nacional, no dia 05.11.2012, do repúdio da herança mencionada no ponto antecedente, através da entrega do correspondente modelo 11;

3. A Fazenda Nacional/Estado Português teve conhecimento do repúdio naquele mesmo dia 05.11.2012;

VII. O Tribunal fundamentou a sua convicção, quanto a esta matéria, na seguinte fundamentação que se transcreve:

“O teor do doc. 2 junto com a contestação (de fls. 157 v.º a 158.º v.º), que documenta os termos em que o cartório notarial comunicou o repúdio ao serviço de finanças, através do mencionado modelo 11, verificando-se, por um lado, que foi feita uma menção a um NIF que não corresponde ao do repudiante e, por outro lado, que a informação detalhada (fls. 158.º) não permite extrair qualquer conclusão relativamente ao ato notarial – donde não se poder concluir que o serviço de finanças tinha conhecimento do repúdio desde novembro de 2012.”

VIII. O R., ora Recorrente não pode concordar com as respostas dadas à matéria de facto acima descritas, nem com a respetiva fundamentação apresentada.

IX. Da prova produzida, nomeadamente da declaração emitida pelo Cartório Notarial de fls 157 e 158 vº não impugnada, deve dar-se como provado deve dar-se como provado que:

“O modelo 11, referente aos atos praticados no Cartório de MM durante o mês de outubro de 2012 foi submetida no dia 05/11/2012, nomeadamente a escritura de Repúdio de Herança, outorgada no dia vinte e três de Outubro de dois mil e doze, exarada no livro de notas para escrituras 3-C, a folhas 102 e seguintes”.

X. Dar como provado que só em 2020 o repúdio foi comunicado à AT (cfr. Ponto 5 dos Factos Provados constantes na Sentença) é contrariar o documento de fls. 157 e ss, bem como os depoimentos de parte de DD e da testemunha MM.

XI. Invoca a sentença recorrida o depoimento da testemunha NN e o teor do doc. 2 para sustentar que houve na comunicação da notária um erro ao identificar o NIF do Réu/Recorrente.

XII. O que, salvo o devido respeito, apenas confirma que houve a comunicação do acto notarial de repúdio, razão porque não há duvidas que ato notarial de repúdio foi comunicado e esse facto deve ser dado como provado.

XIII. Assim, não pode dar-se como provado que “5 – … que nunca foi anteriormente comunicado à fazenda Nacional “ o repúdio.

XIV. Face à relevância formal do documento 2 com a contestação de fls 157 vº e 158 vº, entende-se que deve desconsiderar-se toda a prova testemunhal que contrarie o documento emitido pela Cartório Notarial.

XV. O repúdio foi comunicado pelo Cartório Notarial onde foi outorgada a Escritura de Repúdio, como aliás, confirmado pela testemunha MM, notária de profissão (mais precisamente, cfr. consta do depoimento gravado na aplicação informática disponível no Tribunal, min. 06:51- 07:01, o qual se transcreve:

Advogado: A Senhora Doutora confirma a sua declaração de que comunicou ao fisco este repúdio num dos dias subsequentes à escritura?

(06:51- 07:01)

MM: No mês seguinte..(07:01 – 07:04)

Procuradora do MP: Este preenchimento do modelo 11 que já disse que é feito online, é acompanhado pela cópia da escritura? (07:11 – 07:15)

MM: Não é acompanhado da cópia da escritura mas há um resumo do ato que é feito; repúdio do ato tal, efetuado por óbito de tal, em tantos de tal… (07:15 – 07:28).

XVI. Face ao depoimento da Sra. Notária, depôs de forma isenta e imparcial,

deve dar-se como provado que:

Em 05.11.2012 foi comunicado um resumo do ato notarial, no qual constam todos os elementos essenciais tais como o ato efetuado (repúdio de herança), a data do acto (23.12.2012), a identificação do outorgante e do de cujus

XVII. Um eventual erro do NIF seria sempre detetável pela AT, dado que tinha todos os elementos essenciais do negócio para o identificar em todos os seus efeitos fiscais.

XVIII. Acresce que o repúdio encontra-se registado na CRPredial, através das APs ...63 de 2012/11/09, inscrições de FF e GG.

XIX. Encontram-se demonstrados por certidão predial, a qual faz prova plena dos factos nela constantes, nos termos do art. 371.º do Código Civil, os seguintes factos que devem ser dados como provados por relevantes para a decisão de direito:

“- Através da AP ...63 de 2012/11//09 foi inscrito a favor de FF, GG e (…) em comum e sem determinação de parte ou direito, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária por óbito de II

, NIF ... os prédios descritos sobre os n.º 205 da freguesia ..., 319-N da freguesia ..., 755-C da freguesia ..., 2077-G da freguesia ... da freguesia ....”

 “Através da apresentação ... de 09.11.2006, foi inscrito a favor de AA, casado com HH e (…) em comum e sem determinação de parte ou direito, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária por óbito de II, NIF ... o prédio descrito sobre o n. 1733 da freguesia .... “

“Através da AP ...62 de 09.11.2012, procedeu-se à atualização da apresentação ... de 09.11.2006, na sequência de repúdio da herança, tendo ficado mencionado no registo o seguinte: “Atualização da inscrição na sequencia de repúdio da herança ” e, por via dessa atualização, substituído o AA por FF e GG “

XX. Tal facto resulta quer da prova documental junta aos autos (doc. 4 junto com a contestação) bem como da prova testemunhal produzida, nomeadamente das declarações de parte de DD, contabilista certificada de profissão, que com o seu depoimento esclarece:

(cfr. gravação áudio 00:01:25 – 00:07:27)

Advogado: A senhora teve conhecimento de uma escritura por óbito do seu pai, efetivada pelo seu irmão? (00:01:11)

DD: Sim, tive. O meu irmão disse-me que tinha repudiado e acompanhei a minha mãe quando fez a habilitação complementar. (00:01:11- 00:01:16).

XXI. Esclarece ainda:

Advogado: E posteriormente, sabe se terá havido algum outro documento/contrato apresentado nas finanças que incidisse sobre os bens da herança repudiada e onde tivesse indicação diversa da do seu irmão?

DD: Sim, porque houve diversos contratos de arrendamento da herança e foram entregues vários contratos, inicialmente eram depositados em papel nas finanças, e depois em 2015passou a entrega eletrónica, onde era obrigatória preencher a identificação do herdeiro, onde estavam identificadas as minhas sobrinhas. (00:03:44)

Advogado: Essa submissão foi a Senhora que fez?

DD: Sim, até porque foram emitidas as guias de imposto de selo e cada um recebeu a sua na morada fiscal.

Advogado: Portanto, a autoridade tributária emitiu inclusive a guia de imposto de selo já para a pessoa que é herdeira? (04:31 - 04:38)

DD: Sim.

XXII. Dando-se como provado tais factos, presumem-se que eles são públicos e do conhecimento da AT desde a data da inscrição nos termos do disposto, nos termos do disposto no art. 1.º e 91.º do Cód. Reg. Predial, passando o ónus da prova a ser da AT no sentido de deles não ter tido conhecimento.

XXIII. O R./Recorrente repudiou a herança por escritura de 23.10.2012, outorgada no Cartório Notarial ..., sito na ..., conforme documento de fls. – facto 3 dado como provado – a qual foi comunicada à Fazenda Nacional através do respetivo Modelon11.

XXIV. Não obstante ter havido um erro por parte da Notária quanto ao NIF indicado, a verdade é que, como resulta da matéria de facto que sustentamos, nomeadamente os depoimentos da Notária e das declarações de parte de DD, foi efetivamente comunicado ao Estado o ato de repúdio, como todos os seus elementos essenciais, nomeadamente a identificação dos intervenientes e a sua qualidade e o ato jurídico celebrado (o repúdio, com a devida identificação do de cujus).

XXV. Nestas circunstâncias, devem ser considerados provado que o ato de repúdio foi devidamente comunicado, alterando-se a matéria de facto.

XXVI. Assim, o ponto 5 dos Factos Provados não poderia ter esta redação:

Apenas naquela data o Estado teve conhecimento daquele repúdio, que nunca foi anteriormente comunicado à Fazenda Nacional.”, antes lhe devendo ser dada a seguinte redação:

O Estado teve conhecimento do repúdio a 05.11.2012, através da comunicação efetuada por intermédio da Sr.ª Dr.ª MM, com a entrega do correspondente modelo 11.”

XXVII. Nos termos do artigo 2067.º do Código Civil, que determina que os credores do repudiante podem aceitar a herança em nome dele, nos termos dos artigos 606.º e seguintes (n.º 1), competia à A./Recorrida, alegar e demonstrar que, à data do conhecimento do repúdio, existiam dívidas do repudiante que só poderiam ser satisfeitas mediante a propositura da ação sub-rogatória.

XXVIII. Constituem pressupostos necessários para o exercício da sub-rogação, cfr. referido no Acórdão de 21-05-2019, proferido pelo Tribunal Relação de Coimbra: “1) que o sub-rogante seja credor do repudiante da herança;2) que o património do devedor renunciante seja insuficiente para satisfazer o direito do credor; 3) que a sub-rogação seja essencial à satisfação ou garantia do direito do credor.”.

XXIX. A sub-rogação reporta-se a um negócio jurídico que, no caso concreto, ocorreu em 2012 e, nessa data o Estado não tinha qualquer crédito que justificasse a subrrogação nesse negócio.

XXX. Competia assim ao Estado demonstrar a existência de créditos à data do repúdio. No entanto, O próprio Estado alega e reconhece que à data do repúdio (2012) não tinha qualquer crédito sobre o R./Recorrente, vindo sustentar na sua petição inicial a sua legitimidade invocando créditos posteriores.

XXXI. Foi facto foi dado como provado, cfr. ponto 22 dos Factos provados constantes na sentença:

“ 22. À data da escritura de Repúdio e como resulta do alegado em 7 da petição inicial, não era o Réu AA devedor de qualquer quantia à Fazenda Nacional.”

XXXII. Ora, na data do ato de repúdio (23.10.2012), tal como consta dos factos provados, o Recorrente não era devedor de qualquer quantia à Fazenda Nacional, pelo que à data do repúdio e da sua comunicação (05.11.2012) a Fazenda Nacional não era credora do R./Recorrente.

XXXIII. A inexistência de qualquer direito ou crédito sobre o Recorrente à data dos factos implica, necessariamente, a ilegitimidade do A, que deveria ter sido apreciada e declarada pelo tribunal a quo.

XXXIV. Não pode o Estado, nesta data, sub-rogar-se na posição do herdeiro repudiante invocando direitos ou créditos que só vieram a existir anos mais tarde.

XXXV. A ação instaurada pelo Ministério Público deu entrada em Maio de 2021, cerca de 9 anos após a escritura de repúdio e da sua publicitação através do competente registo efetivado em Novembro de 2012, pelo que, no momento da instauração da ação pela A./Recorrida, há muito que o seu direito tinha caducado.

XXXVI. Nos termos gerais do Código Civil, o ato de repúdio de herança está sujeito à forma exigida para a alienação da herança, determinando o artigo 2126.º, por sua vez, que a alienação de herança ou de quinhão hereditário será feita por escritura pública, se existirem bens cuja alienação deva ser feita por essa forma (n.º 1) e que, fora do caso previsto no número anterior, a alienação deve constar de documento

particular (n.º 2).

XXXVII. O R./Recorrente outorgou o repúdio da herança por escritura pública, cumprindo todos os requisitos de forma legalmente previstos.

XXXVIII. O Cartório Notarial onde foi outorgada a Escritura de Repúdio comunicou o ato em 05.11.2012, através da entrega do modelo 11 à DGCI.

XXXIX. O referido repúdio foi levado a registo, constando desde então das descrições e inscrições dos prédios da herança aberta por óbito de II, de tal forma que em todos esses prédios foi inscrito o direito repudiado a favor das filhas do repudiante (cfr. AP ...63 de 2012/11/06/09).

XL. Nos termos do artigo 1.º do Cód Reg. Predial, o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário, determinando o artigo 91.º que as inscrições visam definir a situação jurídica dos prédios, mediante extrato dos factos a eles referentes.

XLI. A escritura de repúdio e demais documentos encontram-se disponíveis e acessíveis publicamente na respetiva Conservatória do Registo Predial (cfr. art. 104.º do Cód. Reg. Predial), pelo que, nos termos do artigo 7.º do Código do Reg. Predial presume-se a existência do direito inscrito e que o mesmo pertence ao titular inscrito nos termos em que o registo o define.

XLII. Acresce que a herança aberta por óbito de II foi objeto de vários contratos de arrendamento que foram celebrados e comunicados ao Serviço de Finanças (cfr. doc. n.º 5 junto com a contestação). Sendo que nesses eram titulares dos bens, para efeitos de imposto de selo, FF e GG, facto que além de

estar provado por prova documental é ainda confirmado pelas declarações de DD.

XLIII. Pelo que sempre seria de concluir que o Estado Português teve conhecimento do ato de repúdio a 05.11.2012.

XLIV. Daqui resulta que não se encontram cumpridos os requisitos da legitimidade e da tempestividade do direito que a Fazenda Nacional pretende exercer, motivo pela qual devia a ação improceder.

XLV. A sentença recorrida viola assim o disposto no artigo 607.º e seguintes do Código de Processo Civil, bem como o disposto nos artigos 11.º e seguintes, também do Código de Processo Civil, e ainda o disposto no artigo 2067.º do Código Civil e o disposto nos artigos 1.º, 5.º, 7.º, 91.º e 104.º do Código de Registo Predial, pelo que deve ser revogada e substituída por outra.

Nestes termos, deve ser admitido o julgado procedente, por provado, o presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências.

O A. contra-alegou, tendo respondido a ambos os recursos, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

(…).

II – Objeto do recurso

De acordo com as conclusões formuladas pelos apelantes, as quais delimitam o objeto do recurso, as questões a conhecer são as seguintes:

Do recurso dos RR. BB e outros:

            . decidir se o A. carece de personalidade e capacidade judiciárias;

            . se à data da interposição da ação pelo Ministério Público já tinha decorrido o prazo legal para o A. se sub-rogar;

            . se constitui pressuposto da sub-rogação que o sub-rogado fosse devedor do A., à data da escritura de repúdio;

            . Do recurso do Réu AA:

            . se os factos dados como provados nos pontos 4 e 5 e dados como não provados nos pontos 1, 3 e 4 foram incorretamente julgados;

            . se devem ser aditados novos factos à matéria de facto provada;

            . se à data da instauração da ação pelo A. já tinha caducado o seu direito;

            . se o R. é parte ilegítima porque não era devedor do Estado à data da escritura de repúdio.

III – Fundamentação

Na primeira instância foram julgados provados e não provados:

Factos Provados:

1. No dia 5 de fevereiro de 2020 deu entrada no Tribunal Judicial ... o processo de inventário n.º ...0..., onde se requereu a partilha dos bens que integram a herança aberta por óbito de II, ocorrido a 13 de novembro de 1997;

2. Indicando-se como interessados na partilha os 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º e 7.º réus, sendo estas últimas (6.º e 7.º rés) por direito de representação do seu pai, o aqui 1.º réu, que repudiou àquela herança por escritura de 23/10/2012;

3. No dia 23 de outubro de 2012, no Cartório Notarial ..., sito na ..., o 1.º réu AA declarou repudiar a herança aberta por óbito de II, seu pai;

4. O Ministério Público foi citado para aquela ação a 09/12/2020;

5. Apenas naquela data o Estado teve conhecimento daquele repúdio, que nunca foi anteriormente comunicado à Fazenda Nacional;

6. De acordo com a relação de bens apresentada naquele processo de inventário, constituem o acervo patrimonial da herança líquida e indivisa aberta por óbito de II (cfr. doc. 1):

o a. Um prédio urbano, sito em ..., ..., ..., composto de edifício de cave, ..., 1.º, 2.º andares e arrecadação destinada a comércio, piscina e logradouro, inscrito na respetiva matriz urbana da União de Freguesias ..., ... e ... sob o artigo ...45, descrito na Conservatória do Registo Predial se ... sob a descrição n.º ...09, da freguesia ..., com o valor tributário de €239.450,90;

o b. Um prédio urbano, composto por fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao ... andar poente, com acesso pela Avenida ..., destinado a serviços, o qual faz parte do prédio urbano sito na Avenida ... – Av. ..., em ..., e inscrito na respetiva matriz urbana da União de Freguesias ..., ... e ... sob o artigo ...11 “C”, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição n.º ...17... da freguesia ..., com o valor patrimonial de €20.890,29;

o c. Um prédio urbano, composto por fração autónoma, designado pela letra ..., correspondente ao ... andar retaguarda, destinado a habitação e um espaço de estacionamento de uma viatura, na cave designada pela mesma letra, o qual faz parte do prédio urbano sito em “..., “...” – Rua ..., em ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana da União de Freguesias ..., ... e ... sob o artigo ...71 /P”, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição n.º ...30... da freguesia ..., com o valor patrimonial de € 32.145,05;

o d. Um Prédio urbano, composto por fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao ..., entrada B, destinado a habitação, o qual faz parte do prédio urbano, sito em ..., na Rua ..., ..., e inscrito na respetiva matriz urbana da freguesia ... e ... sob o artigo ...39 “N”, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição n.º ...11... da freguesia ..., com o valor patrimonial de €68.218,15;

o e. Um prédio urbano, composto por fração autónoma designada pela letra ..., correspondente à sala n.º ...8, localizada no ... andar, no lado norte, sendo a 2.ªa a contar de nascente, com sanitário assinalado com o n.º 18 destinado a serviços, o qual faz parte do prédio urbano, sito em ... (...), gaveto da Rua ..., 149ª e 149 B e Rua ... e inscrito na respetiva matriz urbana da União de freguesias ... (..., ..., Almedina e ...) sob o artigo 3516 “...”, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição n.º ...19..., freguesia ... (...), com o valor patrimonial de €26.303,20;

o f. Um prédio urbano, composto por fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao ... andar destinado a habitação, o qual faz parte do prédio urbano sito em ... – Rua ..., e inscrito na respetiva matriz urbana da União de freguesias ..., ..., ... e ... sob o artigo ...85 “G”, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição n.º ...27... freguesia ..., com o valor patrimonial de €69.659,45;

7. O 1.º réu, AA, é devedor ao Estado/Fazenda Nacional, do montante total de 2.525.452,96€ (dois milhões, quinhentos e vinte e cinco mil, quatrocentos e cinquenta e dois euros e noventa e seis cêntimos), sendo 2.181.664,36€ reportado a capital (IRS, Coimas, IMI, IUC, IRC, IVA, taxas de portagens e custas judiciais, vencidos entre os anos de 2013 e 2020), 317.713,50€ referente a juros de mora e 26.075,10€ reportado a custas nos processos fiscais;

8. Da quantia total devida, 5.360,98€ reportam-se a processos de execução fiscal em que o 1.º réu figura como devedor principal, sendo o remanescente reportado a montantes em que o 1.º réu é executado em virtude de reversão;

9. O 1.º réu desenvolveu a sua atividade profissional no ramo da construção civil, tendo desempenhado as funções de sócio e gerente das empresas “V..., Lda”, “H..., Unipessoal, Lda” e “S..., SA” e C... SA”;

10. A empresa “H..., Unipessoal, Lda”, foi declarada insolvente por sentença proferida a 12-05-2016, no âmbito do processo n.º 70/16...., do Juízo Local ... – J...;

11. A empresa “S..., SA” foi declarada insolvente por sentença proferida a 25-05-2017, no âmbito do processo n.º 80/17...., do Juízo Local ... – J...;

12. 12) A empresa “V..., Lda” foi declarada insolvente por sentença de 28 de janeiro de 2016, proferida no âmbito do processo n.º 311/14...., da Instância Local ... – J...;

13. No âmbito deste processo, foi proferida sentença, transitada em julgado a 31-10- 2017, que qualificou aquela insolvência como culposa e declarou afetado pela qualificação de insolvência o 1.º réu, decretando a sua inibição para administrar património de terceiros, inibição para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, tudo pelo período de cinco anos; foi ainda condenado a indemnizar os seus credores no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do seu património;

14. Atualmente, o 1.º réu mantém-se como vogal do conselho de administração da empresa C... SA e constituiu a empresa O..., Unipessoal, Lda., da qual é único sócio e gerente, a 8 de maio de 2019;

15. Em abril de 2021 o 1.º réu auferiu 438,81€ (quatrocentos e trinta e oito euros e oitenta e um cêntimos);

16. O 1.º réu não possui bens móveis ou imóveis ou outros rendimentos, para além de um veículo automóvel com a matrícula ..-FA-.., sobre o qual incidem duas penhoras, uma a favor da Banco 1... e outra a favor da Autoridade Tributária;

17. O 1.º não constituiu qualquer garantia para o pagamento das dívidas à Fazenda Nacional referidas 7), nem efetuou qualquer acordo para o seu pagamento prestacional;

18. O 1.º réu não tem no seu património bens suficientes para satisfazer o crédito da Fazenda Nacional;

19. O primeiro réu AA é o contribuinte n.º ...;

20. Encontram-se os Cartórios Notariais obrigados a comunicar à Fazenda Nacional todos os atos que praticam, no exercício das suas funções, através do respetivo modelo 11;

21. A Exma. Senhora Notária MM, com Cartório na Avenida ..., Loja ... na ..., local onde foi outorgada a Escritura de Repúdio a que se faz referência nos autos, no dia 05/11/2012, através do respetivo modelo 11, deu conhecimento/comunicou à Fazenda que no dia 23/10/2012 o contribuinte n.º ... outorgou no seu Cartório uma escritura de repúdio, sem que tivesse efetuado qualquer descrição ou súmula do concreto ato notarial;

22. À data da Escritura de Repúdio e como resulta do alegado em 7 da petição inicial, não era o Réu AA devedor de qualquer quantia à Fazenda Nacional;

23. A Fazenda Nacional, em datas posteriores a 2012, penhorou bens ao réu, que vendeu através de leilão eletrónico;

24. Os bens que integram a herança aberta por óbito de II encontram-se todos eles descritos e nos mesmos inscrito o direito repudiado a favor das referidas FF e GG, inscrição esta feita através das AP....63 de 2012/11/09;

25. A herança aberta por óbito de II, no âmbito de vários contratos de arrendamento celebrados, levou ao conhecimento da Fazenda Nacional/Serviço de Finanças quem eram os titulares dos bens para efeitos de imposto de selo;

26. As dívidas fiscais de maior vulto apenas tiveram origem mais de três anos decorrido o repúdio, em consequência da reversão fiscal.

Factos não provados.

O tribunal, com relevo para a decisão da causa e respeitando o ónus de alegação e prova que impende sobre as partes (o que torna irrelevante a matéria de impugnação alegada, bem como a materialidade conclusiva e/ou de direito), julga não provados quaisquer outros factos, nomeadamente que:

1. A Exma. Senhora Notária MM, com Cartório na Avenida ..., Loja ... na ..., no dia 05/11/2012, deu conhecimento/comunicou à Fazenda Nacional daquele repúdio, através do respetivo modelo 11;

2. O serviço de Finanças ... também tinha conhecimento que o Réu AA havia repudiado a herança do pai e que por força de tal repúdio, a parte que cabia àquele se encontrava registada em nome das beneficiárias do repúdio FF e GG;

3. O Réu aqui contestante, por intermédio da Sra. Dra. MM, deu conhecimento à Fazenda Nacional, no dia 05.11.2012, do repúdio da herança mencionado no ponto antecedente, através da entrega do correspondente modelo 11;

4. A Fazenda Nacional / Estado Português teve conhecimento do repúdio naquele mesmo dia 05.11.2012;

5. Tendo conhecimento dos bens que integravam o acervo hereditário de II, a Fazenda Nacional pode constatar, relativamente aos bens imóveis e móveis sujeitos a registo, a inscrição do repúdio do R., a favor das filhas dele;

6. À data do repúdio, ou seja, 05.11.2012, o contestante apenas era devedor à Fazenda Nacional da quantia de € 105,12;

7. O veículo automóvel de marca ..., com a matrícula ..-FA-.., encontrava-se livre de ónus e encargos e tinha o valor de € 15.000,00;

8. O R. contestante era assalariado;

9. O R. contestante tinha contas bancárias com saldo suficiente para proceder ao pagamento da dívida. *

Da alegada falta de personalidade e capacidade judiciária

            Vieram os apelantes BB e outros invocar a falta de personalidade da Fazenda Nacional para ser sujeito de direitos, pois que quem é detentor de personalidade e capacidade judiciária é o Estado Português.

O apelado veio responder, defendendo que está vedado aos RR. suscitar em recurso a questão que suscitaram, devendo tê-la arguido na contestação, sob pena de preclusão. Ainda que assim não se entenda, não lhes assiste razão. A Fazenda Nacional é um conceito que se aplica de modo geral às receitas e despesas do Estado, bem como ao respetivo aparelho administrativo, não designando qualquer órgão ou serviço concreto que não dispõe de personalidade e capacidade judiciária, incumbindo a sua representação em juízo ao Ministério Público, nos termos do artº 24º, nº 1 do CPC e artigos 4º, nº 1, alínea b) e 9º, nº 1, alínea a) do Estatuto do Ministério Público.

           

            Vejamos:       

O processo  é um encadeado de atos que obedece a um especial formalismo e há momentos adequados para suscitar certas questões. Associados ao princípio da concentração da defesa na oposição e como sua consequência vigoram os princípios da eventualidade e da preclusão. Do princípio da preclusão resulta que todos os meios de defesa não invocados pelo réu na oposição ficam prejudicados, não podendo ser alegados mais tarde. O princípio da eventualidade significa que, dado o risco de preclusão, o réu  há-de dispor todos os seus argumentos de maneira a que cada um deles seja atendido no caso (ou na eventualidade) de qualquer dos anteriores improceder (cfr. defendem Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anotado, vol I, Almedina, 2018, em anotação ao artº 573º do CPC, p. 645, mas que tem aqui aplicação).

            O ónus de contestar inclui, assim, quer o de impugnar, quer o de excecionar com a dedução de todas as exceções que, não sendo de conhecimento oficioso, o réu tenha contra a pretensão do autor (cfr. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 1996, p. 145).

            O princípio da eventualidade ou da preclusão radica em razões de lealdade na condução da lide, de segurança e de certeza jurídica.

            Também o autor está sujeito ao  princípio da preclusão. As partes têm o dever de concentrar os fundamentos nos articulados principais. Os fundamentos da ação e da defesa devem ser invocados, respetiva e simultaneamente, na petição e na contestação, se bem que em planos não necessariamente ao mesmo nível (a título principal e/ou subsidiário ou eventual). Nas palavras de Manuel Andrade, os fundamentos da ação ou da defesa devem “ser formulados todos de uma vez num certo momento a parte terá de deduzir uns a título principal e outros in eventual – a título subsidiário - para a hipótese de não serem atendidos os formulados em primeira linha. O princípio traduz-se, portanto, essencialmente, na preclusão das deduções das partes” (cfr. Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 380, apud Ac. do STJ de 29.01.2014, proc. 5509/10).

Os factos integradores da causa de pedir e da exceção devem ser alegados, em primeira mão e em primeira linha, nos articulados e nos articulados principais e não nos respetivos aperfeiçoamentos, correções ou aditamentos, porquanto estes são complementos daqueles (cfr. se defende no Ac. do STJ de 29.01.2014, proc. 5509/10).

A responsabilidade das partes verifica-se, assim, em diversos momentos: no momento da alegação, no momento da impugnação e no momento da prova. A verdade é que são as partes os sujeitos da relação material controvertida que é apreciada nos autos e, por isso, são elas que, melhor do que ninguém, estarão em condições de trazer o material fáctico a juízo.

            No entanto, a preclusão aplica-se às exceções que não sejam de conhecimento oficioso, o que não é o caso da falta de personalidade e capacidade judiciárias (artº 577º, c e 578º, do CPC). Assim poderá a parte, ainda que não o tenha feito anteriormente, suscitar no recurso uma questão de conhecimento oficioso, a qual será conhecida, apenas se constarem nos autos matéria de facto  que permita o seu conhecimento e desde que a questão não tenha ainda sido conhecida por decisão transitada em julgado.

            Sobre a declaração genérica de que as partes são dotadas de personalidade, capacidade judiciária não se forma caso julgado. De qualquer modo, sempre a decisão  proferida no despacho saneador que  julgou que as partes tinham personalidade e capacidade judiciárias  não transitaria em julgado, pois dela  não há recurso autónomo,   não estando, por isso, o Tribunal da Relação,  em sede do  recurso de apelação, impedido de reapreciar esta questão (artº 644º, nº 3 do CPC).

A questão suscitada pelos recorrentes tem por base a circunstância da petição inicial se referir ao A. com uma dupla designação Estado/Fazenda Nacional.

Os apelantes não põem em causa que o Estado – pessoa coletiva pública -  tem personalidade e capacidade jurídicas e consequentemente tem personalidade judiciária (artº 11º, nº 1 do CPC) e detém capacidade judiciária (artº 15º do CPC).

Na petição inicial, a referência ao A. aparece feita indistintamente, tanto por referência ao Estado (artº 5º), como à Fazenda Nacional (artigos 5º, 17º, 18º e  20º), empregando-se por vezes as duas expressões no mesmo artigo, como se verifica no artigo 5º, mas não surge como correspondendo a dois autores distintos, fazendo-se, como se mencionou,  indistintamente a referência ora ao Estado, ora à Fazenda Nacional.

Da interpretação que fazemos da petição inicial, interpretação que não é afastada pela posição assumida pelo apelado nas contra-alegações,  tendo em conta o articulado inicial e  considerando ainda a referência às normais processuais que atribuem ao Ministério Público poderes para instaurar a presente ação, indicadas na mesma peça processual, enquanto representante do Estado (artº 2º e 4º, nº 1 do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei 68/2019, de 27 de agosto) é que não há dois AA. : O Estado e a Fazenda Nacional, mas apenas um A., o Estado Português, dotado de personalidade e capacidade judiciária e devidamente representado pelo Ministério Público, surgindo, certamente  a referência à Fazenda Nacional  em virtude da natureza tributária dos créditos de que o A. é titular , mas não como outro A., em coligação com o Estado, pelo que não se coloca a questão da sua falta de personalidade e capacidade judiciárias. Quem é parte e é o credor  é o Estado, devendo entender-se a referência à Fazenda Nacional, de acordo com a petição inicial,  como também uma denominação do Estado.

A denominação de Fazenda Nacional não se deve confundir com a denominação de Fazenda Pública, entidade à qual incumbe representar a Administração Tributária, onde se inclui a Autoridade Tributária, nas ações que correm termos no processo judicial tributário e de execução fiscal ( cfr. artºs 54º ETAF, aprovado pela Lei 13/2002, de 19/2  e artº 15º, nº 1, alínea a) do CPPT, aprovado pelo DL 433/99, de 29/10).

           

            Improcede assim a arguida exceção.

           

            Da impugnação da matéria de facto

            (…).

           

Da alegada caducidade do direito do credor

            Todos os apelantes defendem que o direito de sub-rogação não foi exercido em tempo.

            Dispõe o nº 2 do artº 2067º o CC que a aceitação da herança pelos credores do repudiante em seu nome, deve efetuar-se no prazo de seis meses, a contar do conhecimento do repúdio.

            Ora, tendo se mantido inalterado o ponto 5 dos factos provados, onde foi considerado provado que apenas na data de 09.12.2020 o Estado teve conhecimento do repúdio, que nunca foi anteriormente comunicado, e tendo a presente ação sido instaurada em 26.05.2021, é manifesto que a ação sub-rogatória foi interposta no prazo de 6 meses, improcedendo a exceção.

            Da necessidade dos créditos existirem já à data da escritura de repúdio

            Defendem também todos os apelantes que para que o credor se possa sub-rogar nos direitos do repudiante, o direito de crédito tinha de ter surgido em data anterior à data da escritura de repúdio, o que não se verifica no caso.

O apelado entende que a lei não exige a anterioridade do crédito, considerando-se o momento para aferir da verificação dos requisitos para a procedência da sub-rogação,  o da instauração da ação e não qualquer outro momento prévio, designadamente o momento em que o repúdio foi realizado.

Sob a epígrafe “Sub-rogação dos credores”, dispõe o art. 2067º do CC que:

1. Os credores do repudiante podem aceitar a herança em nome dele, nos termos dos artigos 606.º e seguintes.

2. A aceitação deve efetuar-se no prazo de seis meses, a contar do conhecimento do repúdio.

3. Pagos os credores do repudiante, o remanescente da herança não aproveita a este, mas aos herdeiros imediatos.

E o art. 606º (“Direitos sujeitos à sub-rogação”) do CC, para o qual remete o nº 1 do artº 2067º do CC estatui:

1. Sempre que o devedor o não faça, tem o credor a faculdade de exercer, contra terceiro, os direitos de conteúdo patrimonial que competem àquele, exceto se, por sua própria natureza ou disposição da lei, só puderem ser exercidos pelo respetivo titular.

2. A sub-rogação, porém, só é permitida quando seja essencial à satisfação ou garantia do direito do credor.

Pelo repúdio o chamado responde negativamente ao chamamento sucessório (artº 2062º do CC), retroagindo, tal como a aceitação, ao momento da abertura da sucessão, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia, salvo para efeitos de representação (art. 2062º do CC), determinando o nº 2 do art. 2032º do CC que, nesse caso, serão chamados os sucessíveis subsequentes.

Os credores do repudiante através da sub-rogação do credor ao devedor, podem aceitar a herança e fazer-se  pagar pelos bens da herança (art. 2067º do CC). A lei não só qualifica esta situação como uma modalidade de sub-rogação dos credores, como também remete expressamente para os termos dos arts. 606º e ss. do CC, que regulam em geral esta situação.

O meio processual para os credores exercerem a faculdade – que não depende de autorização judicial, mas é, necessariamente, de exercício judicial – de aceitar a herança, “em nome” do repudiante, é a ação sub-rogatória (cfr. se defende no Ac. do TRG de 27.01.2022, proc. 3921/20.0T8BRG.G1).

Nem o artigo 2067º, nem o 606º e seguintes do CC para o qual remete, exige que o crédito exista à data da escritura de repúdio. Necessário é apenas que esse crédito exista à data do exercício pelo credor da ação sub-rogatória. Se essa tivesse sido a intenção do legislador, não deixaria de o mencionar, como o fez,  relativamente à ação de impugnação pauliana no artº 610º, alínea a), 1ª parte, do CC, ainda que também, relativamente a este meio de reação dos credores à perda da garantia patrimonial dos seus créditos, a impugnação não esteja excluída quando o crédito surge posteriormente ao ato que envolve diminuição da garantia patrimonial, exigindo-se apenas um plus, relativamente aos casos em que o crédito é anterior ao ato – ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do crédito do credor (artº 610º, alínea a) do CC).

E bem se compreende que assim seja. A ação de sub-rogação pretende proteger o credor de perder a garantia do seu crédito – o património do devedor. Ora, o conhecimento pela parte obrigada a uma determinada prestação de que não vai conseguir cumprir, surge em regra, salvo o caso de situações inesperadas, antes dos créditos se vencerem, ocorrendo a diminuição do património, por comportamento antecipatório do futuro incumpridor, em momento anterior ao vencimento dos créditos, assim protegendo o património que iria necessariamente ser afetado por ação dos credores.

É também destas situações que se visa proteger o credor, tanto na ação sub rogatória, como na impugnação pauliana.

Consequentemente, sendo incontestável que  o apelante era e é  devedor ao A. à data da entrada da ação, podia o A. exercer o direito de sub-rogação.

           

            Sumário:

(…).

            IV – Decisão

            Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar improcedente a apelações interpostas pelos RR., confirmando a sentença recorrida.

            Custas da apelação dos RR. JJ e outros, pelos apelantes.

Custas da apelação do R. AA, pelo apelante.

            Notifique.

            Coimbra, 14 de março de 2023