Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
370/08.2TACVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
ÓRGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
Data do Acordão: 03/30/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 129º E 356º, N.º 7, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Pressupostos do direito ao silêncio são a existência de um inquérito e a condição de arguido. A partir da aquisição dessa qualidade, este assume um estatuto próprio, com direitos e deveres e, entre aqueles, o direito de não se auto-incriminar. Daí que as suas declarações só possam ser recolhidas e valoradas nos precisos termos legais, não detendo validade probatória as “conversas informais”.
Em fase anterior, não há ainda inquérito instaurado, não existem ainda arguidos constituídos. As informações que forem então recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo.
Situação assaz diversa se verifica em relação às “conversas informais” ocorridas no decurso do inquérito, quando há arguido constituído, e se pretende com as mesmas suprir o silêncio daquele por depoimentos de agentes de polícia.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, após julgamento em processo comum, perante tribunal singular, os arguidos TC... e CG..., devidamente identificados nos autos, foram condenados nos seguintes termos:

- O arguido TC..., pela prática de um crime de casamento de conveniência, p. e p. pelo artigo 186.º, da Lei n.º 23/2007, de 04-07, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, declarada suspensa na sua execução por igual período;

- A arguida CG..., também pela prática do mesmo crime, na pena de 2 (dois) anos de prisão, declarada suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, suspensão essa condicionada à frequência de um “regime de prova”, nos termos do disposto nos artigo 53.º e 54.º do Código Penal, no âmbito do qual, mediante sujeição a um plano de reinserção social, aquela seja levada a interiorizar o sentimento de responsabilidade social, naquele plano se devendo incluir necessariamente a obrigatoriedade de a arguida desenvolver uma qualquer actividade ocupacional ou formativa que venha a ser determinada e indicada pela DGRS.


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2. Imediatamente após a leitura da sentença, na acta de fls. 340, o julgador de 1.ª instância determinou a extracção de certidão das declarações prestadas pela testemunha MN..., Inspector do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, do processado a fls. 22 a 37 e da decisão final, e a sua entrega ao Ministério Público, para os fins tidos por convenientes, por lhe parecer indiciada uma forma de autoria mediata ou de co-autoria do Dr. X ... (Advogado, neste processo, da ora recorrente), na prática do crime pelo qual os arguidos foram julgados e condenados em 1.ª instância, acima indicado.

Pronunciando-se sobre requerimento da arguida, no sentido de a emissão e remessa da certidão ao Ministério Público ficar condicionada ao trânsito em julgado da sentença, o Sr. Juiz indeferiu tal pretensão, nos termos do despacho exarado a fls. 350/351.


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3. Inconformado, o arguido interpôs recurso quer da sentença quer dos dois despachos supra referidos, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª - A recorrente nunca foi constituída arguida.

2.ª - Foi deduzida acusação a fls. 260, não tendo sido notificada da mesma.

No caso concreto não ocorreu nenhuma notificação edital, logo após a dedução da acusação e a frustração da notificação pessoal.

3.ª - A recorrente é notificada da audiência de julgamento e do prazo para oferecer a sua contestação, por via postal simples, considerando-se que havia sido a mesma a indicar nos autos tal residência para onde a designação da data de julgamento foi remetida (art. 283.º, n.º 6, do CPP), o que na verdade não aconteceu em nenhum momento, pelo que é nula tal notificação postal simples.

4.ª - O investigado assume a qualidade de arguido logo que contra ele seja deduzida acusação ou requerida instrução - n.º 1 do art. 57.º do CPP, desde que devidamente notificado.

Mandam as regras da boa hermenêutica que apenas se convoque a regra do art. 57.º do CPP quando se verifique uma situação de impossibilidade de notificação do denunciado/investigado para interrogatório.

No caso dos autos a recorrente não foi ouvida em inquérito, o que não seria muito difícil no caso dos autos de se efectuar, visto que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras tem a arguida perfeitamente referenciada e identificada.

Assim, estamos face a uma nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alíneas c) e d) do CPP.

Caso entendam V.Exas., como vem alguma jurisprudência entendendo, que estamos face a uma nulidade dependente de arguição, nos termos do art. 120.°. n.°1, al. d), do CPP, a recorrente invoca-a, desde já, a falta de ser interrogada como arguida não constando dos autos que fosse impossível a sua notificação. A recorrente está a tempo de arguir tal nulidade, pois nunca foi notificada nos termos e para os efeitos do art. l20.°, n.° 3, al. c), do CPP.

5.ª - Foram omitidas fases processuais à recorrente, das quais poderia “lançar mão”, tais como a abertura da instrução e o, eventual, recurso da decisão instrutória.

A recorrente não foi notificada da acusação, excepto quando lhe foi lida em audiência de julgamento, pelo que não foi notificada do saneamento do processo (art. 311.° do CPP) nem do direito a oferecer a sua defesa (art. 315.°, do C.P.P.), violando-se o princípio do contraditório (art. 32.°, n.° 5, da CRP).

Além disso, foram violadas todas as garantias de defesa que a Constituição da República proclama e o processo criminal tem o dever de assegurar - artigo 32.°, n.° l, CRP.

Inconstitucionalidades que se arguem expressamente para os devidos e legais efeitos.

Além disso, tais faltas de notificação da acusação e correspondentes actos processuais constituem uma nulidade insanável prevista no artigo 119.°, alínea d), do CPP.

6.ª - As nulidades supra expostas são de conhecimento oficioso, o que se requer que V.Exas apreciem.

Tomando-se em consideração os efeitos da declaração de nulidade (art. 122.° do CPP), todos os actos que se seguiram à acusação do M.° P.° findo o inquérito são inválidos, pelo que terá de se reenviar o processo para a fase de inquérito notificando-se a arguida para, querendo, requerer a abertura da instrução seguindo-se os ulteriores termos até final, cumprindo-se assim o preceituado no art. 29.°, n.° 6, da CRP.

7.ª - A recorrente impugna a matéria de facto dada como provada constantes dos n.ºs 5 a 8 e 11 a 14 da douta sentença recorrida, os quais deveriam ter sido considerados não provados.

Tais factos foram considerados provados, tomando em consideração o depoimento do inspector do SEF, MN..., o qual no âmbito do processo administrativo de concessão da autorização de residência, tendo por base o casamento entre a recorrente e o arguido, TC…, terá nessa sede falado com o TC...e este ter-lhe-á explicado os termos do acordo e objectivos gizados com o casamento dos autos, e ainda os termos em que as suas vidas decorreram.

Porém, o inspector do SEF não se trata de uma qualquer testemunha, na verdade trata-se de um elemento de um órgão de polícia criminal, o qual tem competência para a investigação do tipo de crime em que a recorrente foi condenada.

O inspector do SEF não depõe nos autos “despido” de tal característica e qualidade.

As conversas tidas pelo inspector do SEF (agente policial) com o arguido TC..., numa fase em que este não era ainda arguido nem existia processo crime a correr contra ele têm de se considerar conversas informais.

As chamadas “conversas informais” dos arguidos com os agentes policiais, que, em rigor processual, não existem antes de serem constituídos arguidos, não podem ser valorizadas em sede probatória, com excepção da actividade investigatória que realizem, tais como buscas e apreensões, ainda que levadas a cabo com a colaboração ou informação de suspeitos.

Implicando a sua valoração, como meio de prova, violação, nomeadamente, do disposto nos artigos 125.°, 128.°, 129.° do CPP.

8.ª -  Sempre que surja fundada suspeita de que a fonte de informação possa coincidir com o arguido de um crime, o órgão de polícia criminal suspende de imediato o pedido de informações, e constitui-o arguido, sob pena de tais informações não poderem ser usadas contra ele.

Assim, as conversas informais mantidas pelos órgãos de polícia criminal com arguidos e suspeitos - as quais, em rigor - são processualmente inexistentes e incognoscíveis.

9.ª - Tendo-se o arguido e a recorrente remetido ao silêncio na audiência de julgamento, não pode ser valorada a confissão do crime feita perante um órgão de polícia criminal, com base na qual foi por esta polícia efectuada a participação crime pelo SEF (fls.4), e que participou activamente no inquérito (fls.130 a 161, 174, 178, entre outras, que os deu como agentes daquele crime, ser valorada através de conversas informais só podem ter valor probatório se transpostas para o processo em forma de auto e com respeito pelas regras legais de recolha de prova. O uso de conversas informais não documentadas e fora de qualquer controlo traduzir-se-ia em fraude à lei.

10.ª - Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, designadamente o questionário a que o juiz “a quo” se refere.

11.ª - Após a análise das passagens dos depoimentos das testemunhas, infra e supra transcritos, chega-se à conclusão que os factos provados dos n.°s 5 a 8 e

- Da testemunha KK…, gravado em CD, em 11/10/2010, desde 12.32.15 a 12.45.50, conforme acta da audiência, do qual se destacam as seguintes passagens:

Advogado, doravante designado de A- A senhora conheceu este Sr. TC... por intermédio de quem?

Testemunha doravante designada de T- Foi a CG… .

A - Foi-lhe apresentado como?

T - Como marido dela.

A - Foi ao casamento?

T - Eu tive na festa de casamento

A - Pareceu-lhe que eram marido e mulher?

T - Parecia, que eu saiba eram marido e mulher, namoraram e casaram.

A - Estava só a senhora na festa ou havia mais pessoas?

T - Havia mais pessoas.

A - Sabe o motivo pelo que saiu de casa? (o arguido)

T - Porque foi viver com outra pessoa.

A - É portuguesa?

T - Não, brasileira.

- E analisando o depoimento do inspector MN..., gravado em CD, no dia 11/10/2010, desde 10.53.26 a 11.07.58:

T - Foi feita inquirição e o cidadão português acabou por reconhecer que nunca tinha vivido em conjunto com a cidadã brasileira, que a realização do casamento foi por forma a ela conseguir legalizar-se, obteve a informação num escritório de um advogado em X....

M.P. - Qual advogado?

T - Dr. X ... foi o que declarou.

E que de facto (ele arguido) sabia que ela estava em situação irregular e que lhe terá oferecido uma compensação monetária que diz não recebeu. Foi ouvida a cidadã brasileira e negou tais elementos.

T - Todo este historial, as tentativas de a cidadã se tentar legalizar, ser identificada ter um processo expulsão, interpõe providência cautelar.

A - E na sequência disto tudo?

T - Aparece um matrimónio com cidadão português e o pedido de cartão.

A - Face a toda esta actividade da senhora a única forma de se legalizar em Portugal só esse casamento é essa a dúvida que lhes assaltou?

T - Sim.

A - Diz que fez visita à Rua … e visitou a mãe do arguido?

T - Não visitei a mãe.

A - O local?

T - O nosso interesse era perceber se era visita habitual, se residia ou não residia.

A - Em que altura foi isso; foi logo a seguir a solicitar o cartão de residência?

T - Não sei precisar.

 A - Mas não foi antes?

T - Não.

A - Terá sido em Outubro 2007, que terá apresentado no SEF para a concessão do cartão, terá sido depois essa data?

T- Sim

T - O que tenho ideia é que ele ter-se-á com a arguida e a descrição que faz é que contraiu matrimónio por uma quantia monetária, uma contrapartida financeira.

J - O que levou a desistir?

T - Porque não tinha capacidade e conhecimentos de facto para responder ás perguntas.

J - Qual foi a atitude da arguida perante o questionário, não foi atitude de irreverência? Que já vi caracteriza a arguida até mesmo na postura da arguida, já vi tem dificuldade em encarar o tribunal de frente, verificamos que a arguida olha para o lado, mesmo na leitura de acusação, verificamos que olha para o lado....Irreverência por natureza?

T- Não

J - Incapacidade de responder a perguntas?

T- sim.

Nestes termos, requer a V.Exas. se dignem considerar procedente e provado o presente recurso, e em consequência: declarar nulo e inconstitucional todo o processado, reenviando-se o processo ao Ministério Público para que a recorrente seja notificada para abrir a instrução, após ter sido constituída arguida e lhe terem sido tomadas declarações; e ainda ordenar e dar sem efeito a extracção da certidão para efeitos de processo crime junto do M.P. e/ou qualquer processo que entretanto tenha início com base na aludida certidão. Caso assim não entendam V.Exas., devem revogar a douta sentença e absolver a arguida. Subsidiariamente, caso se mantenha a douta sentença recorrida ser a pena da arguida especialmente atenuada.


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4. Na sua resposta, o Ministério Público junto do tribunal de 1.ª instância pugnou pela improcedência do recurso.

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5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, em parecer a fls. 421/425, manifestou-se no mesmo sentido.

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6. Cumprido o art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, apenas a recorrente respondeu aquele parecer, reiterando os fundamentos exarados nas conclusões da motivação do recurso. 

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7. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação:

1. Questão prévia:

No ponto de vista do Ministério Público, as conclusões da motivação do recurso não respeitam a disciplina do artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, porquanto a transcrição de parte dos depoimentos das testemunhas KK… e MN... não espelham o resumo das razões do pedido da recorrente. Mais do que isso, as conclusões feitas pela recorrente não traduzem todos os fundamentos plasmados na motivação e, consequentemente, acabam por não conter as razões de parte do pedido feito, mais concretamente, no pedido de que a pena da arguida seja especialmente atenuada.

Na verdade, segundo se acrescenta, não obstante estarem enunciadas no corpo da motivação os fundamentos daquele pedido, os memos não constam das conclusões e logo não pode o recurso também recair sobre eles. 
De acordo com a previsão dos arts. 411.º, n.º 3 e 414.º, n.º 2, o requerimento de recurso é sempre motivado, sob pena de ser rejeitado.
A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1).
Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar (artigo 412.º, n.º 3):
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas citadas als. a) e b) são feitas por referência ao consignado na acta de julgamento, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º - que dispõe: «quando houver lugar a gravação magnetofónica ou audiovisual, deve ser consignado na acta o início e o termo da gravação de cada declaração» -, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412.º, n.º 4).
Se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir totalmente ou parcialmente as indicações supra referidas, é dirigido convite ao recorrente no sentido de apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada (art. 417.º, n.º 3).
A motivação integra:
- A enunciação especificada dos fundamentos do recurso, com indicação dos pontos de divergência e das razões de facto e de direito pelas quais o recorrente entende que a decisão impugnada não se deve manter;
- As conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido mais extensamente formuladas nos fundamentos do recurso[1].
Foi finalidade do legislador criar um conjunto de regras de natureza prática que permitam, uma vez observadas pelos recorrentes, colocar perante o tribunal ad quem, de forma clara, as razões de facto e de direito que os levam a discordar e a impugnar as decisões recorridas, de molde a que o tribunal possa apreciá-las com rigor, nem mais nem menos do que é pedido (salvo obviamente a margem de actuação oficiosa).
A formulação de conclusões, com observância dos requisitos exigidos pelo art. 412.º do CPP, insere-se no mesmo propósito, com o desiderato de ser apresentado um quadro sintético, um resumo das questões a conhecer pelo tribunal para que se recorre.
Analisada a petição recursória, vê-se que o arguido nela observou, de forma suficientemente compreensível, os ditames da lei, deixando claro, nas conclusões, as concretas questões que pretende ver apreciadas por este Tribunal da Relação.
Embora a recorrente, sem necessidade, reproduza, nas conclusões, as partes já transcritas, na motivação, dos depoimentos das testemunhas acima identificadas e restrinja naquelas a medida da pena à figura da atenuação especial, são estas questões, a par de outras também suscitadas, que fixam o objecto do recurso, como é entendimento pacífico da jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores e decorre do disposto no citado n.º 1 do artigo 412.º do CPP.  
Assim, a designada “questão prévia” mais não é do que uma concretização do Ministério Público sobre as concretas questões delimitativas do recurso.


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2. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme ficou dito, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

No caso sub judice, o recurso da arguida CG... está circunscrito às seguintes questões:

A) Por a arguida não ter sido ouvida, nessa qualidade, no decurso do inquérito, verifica-se a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alíneas c) e d), do Código de Processo Penal?

B) Ou, pelo menos, a nulidade do artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do mesmo diploma legal?

C) A omissão de notificação à arguida da acusação pública constitui nulidade (insanável) do artigo 119.º, alínea d), ainda do mesmo Código?

D) Esta situação é também violadora dos normativos constitucionais dos artigos 32.º, n.º 1 e 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa?

E) Por ter sido feito via postal simples, padece de nulidade o acto de notificação à arguida do despacho que designou dia para a audiência de julgamento?

F) Tomando-se em consideração os efeitos da declaração de nulidade (art. 122.º do CPP), todos os actos que se seguiram à acusação do M.º P.º são inválidos, situação que implica o reenvio do processo para a fase de inquérito, devendo notificar-se a arguida para, querendo, requerer a abertura da instrução, seguindo-se, depois, os ulteriores termos até final?

G) Invalidade das declarações prestadas, em audiência de julgamento, pela testemunha MN..., Inspector no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), por consubstanciarem “conversa informal” entre aquele e o arguido TC...;

H) Não tem validade probatória o questionário de fls. 29/32, referido na motivação da sentença recorrida, por se tratar de prova não produzida em julgamento?

I) Alterabilidade da matéria de facto;

J) Atenuação especial da pena;

L) Revogação dos despachos que determinaram a extracção e envio ao M.º P.º da certidão acima referenciada.


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3. Na sentença, foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1. A arguida CG...de nacionalidade brasileira entrou em território nacional no dia 28 de Março de 2006.

2. No dia 1 de Março de 2007, na sequência de uma acção policial realizada pela Polícia Judiciária, a arguida é detida no estabelecimento comercial denominado …, em ..., conhecido por ser um bar de alterne, uma vez que se encontrava em território nacional ilegalmente, por não possuir qualquer visto de entrada válido ou autorização de residência em território nacional legalmente emitida.

3. Tendo sido sujeita a 1.º interrogatório judicial de arguida detida foi-lhe aplicada a medida de coacção de apresentações semanais no SEF de X....

4. Na sequência do processo de expulsão foi, no dia 10 de Abril de 2007, proferida decisão de expulsão da arguida para o Brasil e interdição de entrada em território nacional pelo período de 5 anos, decisão que lhe foi notificada no dia 1 de Maio de 2007.

5. Perante tal decisão a arguida que entretanto havia conhecido o arguido TC..., em data não concretamente determinada, propõe-lhe que se casassem para que dessa forma pudesse obter autorização de residência em Portugal, obstando assim à decisão de expulsão do país já proferida contra si.

6. E propõe-lhe ainda, como contrapartida, a entrega de 1500 €.

7. O arguido TC..., querendo auxiliar a arguida, aceita casar-se com esta, não aceitando, no entanto, o pagamento dos 1500 € proposto, nunca tendo tido, qualquer dos arguidos, qualquer intenção de constituir família e passar a viver como cônjuges.

8. Entretanto e dada a aceitação do arguido TC..., a arguida CG...interpõe uma providência cautelar de suspensão da eficácia da decisão de expulsão, indicando ser noiva de um cidadão português com o qual pretendia casar.

9. A providência cautelar vem a ser julgada improcedente no dia 14 de Junho de 2007 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de X....

10. Nessa sequência, os arguidos contraem matrimónio entre si no dia 10 Setembro de 2007, pelas 15 horas, na Conservatória do Registo Civil de X....

11. Porém, na sequência de tal casamento nunca os arguidos mantiveram qualquer relacionamento como marido e mulher se tratassem, fazendo vidas completamente separadas, vivendo a arguida na Rua …, e o arguido juntamente com a sua mãe no …, Fundão.

12. No dia 12 de Outubro de 2007 a arguida apresentou no SEF de X... a concessão de cartão de residência pelo facto de ter contraído casamento com um cidadão português, juntando a tal requerimento certidão do assento de casamento celebrado entre os arguidos apenas com esse mesmo fim.

13. Os arguidos actuaram de forma livre, deliberada e conscientemente, tendo contraído casamento entre si com o propósito único da arguida obter autorização de residência em Portugal.

14. Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas por lei.

15. Desde o dia 28.04.2009 que a arguida está divorciada do arguido.

16. Nenhum deles tem antecedentes criminais averbados nos seus CRC´s.


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4. Não havendo factualidade não provada a considerar, relativamente à motivação da decisão de facto, ficou consignado:

O Tribunal formou a sua convicção acerca da matéria de facto vertida nos pontos 1 a 4 e 8 a 10 e 12, com base na abundante prova documental junta a fls. 5 a 8, 30 a 34, 186 a 188 e no CRC de fls. 196.

De longe a questão mais controversa será a da sustentação da prova vertida nos pontos 5 a 7, 11, 13 e 14.

E desde já diremos que, tendo-se os arguidos remetidos ao silêncio, o Tribunal firmou a sua convicção acerca daquele factos com base nas declarações do Sr. Inspector MN... e na conversa que manteve com o arguido TC... muito antes de ser constituir arguido nestes autos, no âmbito do processo administrativo que o SEF conduziu na Delegação de X... com vista à apreciação liminar da legalidade e autenticidade dos fundamentos invocados pela arguida CG... aquando do requerimento da sua autorização de residência em território nacional por, entretanto, ter contraído matrimónio com um cidadão nacional.

Com efeito, nessa sede aquele TC... explicou ao Inspector do SEF os termos do acordo gizado com a requerente da autorização e os objectivos tidos em vista por ela com aquele casamento e os termos em que as suas vidas decorreram.

É verdade que o arguido TC...em sede de julgamento se remeteu ao silêncio, Porém, nesse mesmo julgamento foi aquele, juntamente com a sua co-arguida, confrontado com o depoimento do inspector do SEF, foi-lhes dada a possibilidade de o contradizerem, e nada disseram.

Questão que se coloca é a de saber se estas declarações prestadas pelo TC...perante o SEF numa altura em que ainda não era arguido no processo constitui depoimento indirecto que impeça a sua valoração.

Dispõe o art. 129.º do C.P.P., cuja epígrafe é “depoimento indirecto”:

«1 - Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.

2 - O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha.

3 - Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos».

Dada a evidente subjectividade de um tal depoimento e o perigo que o mesmo comporta, pois pode limitar-se a relatar uma versão do depoente a coberto de estar a relatar declarações de terceiro que não pode ser contraditado, estes depoimentos só podem ser valorados nos estritos limites permitidos na norma.

E quando é que a norma o permite?

O depoimento indirecto só vale relativamente ao que se ouviu dizer a outra potencial testemunha; depois este depoimento só é permitido quando a inquirição de quem disse não for possível por força das circunstâncias referidas na norma.

Dito de outro modo, o depoimento indirecto não é admissível, e portanto não pode ser valorado, se o depoimento da testemunha originária, apesar de ser possível, não tiver sido realizado, isto é, quando a testemunha originária não depôs porque não foi chamada a tribunal ou porque se recusou a depor. «Este instrumento contraria o princípio constitucional da imediação da prova ínsito na ideia de um Estado de Direito … e só se justifica com vista a preservar a prova testemunhal em face da ocorrência de circunstâncias extraordinárias.…Por isso a norma do art. 129.º tem natureza excepcional»[2].

É, portanto, uma norma excepcional, excepcionalidade que deriva, logo, do texto do art. 128.º do C.P.P., que diz, no seu n.º 1, que «a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo …». A regra é, pois, que o limite do depoimento da testemunha é aquilo que ela viu e/ou ouviu.

O que a lei pretende com a proibição do depoimento indirecto é que não acolham como prova depoimentos que se limitam a reproduzir o que se ouvir dizer.

Para que um tal depoimento seja valorado é essencial que seja confirmado pela pessoa que disse, confirmação que tem em vista a própria validade e eficácia do depoimento, já que o mérito de uma testemunha tem muito a ver com a razão de ciência da própria testemunha[3] (excepção feita aos casos de impossibilidade superveniente de inquirição da pessoa indicada).

Nesta matéria bem sabemos que jurisprudência existe quem entende que as declarações de uma testemunha relatando conversa mantida com o arguido constituem depoimento indirecto, portanto proibido, a menos que o arguido corrobore tais declarações.

Salvaguardando o devido respeito por tal posição, temos uma opinião diferente: considerando que o depoimento indirecto é uma comunicação, com função informativa, de um facto de que o sujeito teve conhecimento por um terceiro[4], parece-nos razoavelmente claro que não constitui depoimento indirecto - portanto não enquadrável no art. 129.º do C.P.P. e, portanto, não constituindo prova proibida -, o depoimento de uma testemunha que relata o que ouviu o arguido dizer, isto mesmo que o arguido não preste declarações na audiência, no exercício do seu direito ao silêncio.

Para além disso, estando o arguido presente na audiência - quando o estiver -, pode sempre contraditar um tal depoimento[5].

Citando o acórdão desta relação proferido em 4-7-2007, no processo n.º 0647256[6], diremos que «o depoimento de uma testemunha que relata a conversa que manteve com a arguida não deriva de conhecimento indirecto, mas de conhecimento directo, pelo que não pode ser considerado depoimento indirecto.

Daí que se considere resultar do art. 129.º, n.º 1, em conjugação com o art. 128.º do Código Processo Penal, que o depoimento de uma testemunha que em audiência relata factos que a arguida lhe confessou, não é um depoimento indirecto, pois versa sobre factos de que directamente teve conhecimento na conversa que estabeleceu com a arguida».

A compatibilidade desta norma com os princípios constitucionais do art. 32.º da Constituição já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, que decidiu no seu acórdão n.º 440/99, de 8/9, que a disciplina do art. 129.º, nº 1, do C.P.P., não viola nem o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o princípio da imediação, nem a regra do contraditório, porque ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor. E, desse modo, garante a imediação e possibilita a “cross-examination”. Se a inquirição destas pessoas não for possível é razoável e proporcionada a limitação introduzida à proibição do depoimento indirecto, tanto mais que este depoimento é apreciado pelo tribunal, segundo as regras da experiência e o princípio da livre convicção do art. 127.º.

Porém, no caso, o arguido TC...e a sua co-arguida estavam presentes na audiência, foram confrontados com as declarações do inspector do SEF e nada quiseram dizer.

Posto isto, parece-nos valida a valoração do referido depoimento e que essa valoração não viola o disposto no artigo 129.º do C.P.P., (cfr. a propósito o Ac. TRP de 05.05.2010, proferido no Processo com o n.º 00043936, tendo como relatora a Sr.ª Juíza Desembargadora Dr. Olga Maurício, acessível em www.dgsi.pt/jtrp).

Diga-se, por fim, que este depoimento da testemunha Inspector MN... em nada foi infirmado pelas declarações da testemunha arrolada pela arguida, bastando ouvir a confusão do seu depoimento para perceber que aquela não está a falar verdade, tal é a falta de lógica na sucessão dos acontecimentos e a inverosimilhança da toda a sua participação na história que rodeou o casamento dos aqui arguidos.

Por fim, quanto à arguida, assumiu ainda relevância o depoimento daquele inspector do SEF na parte em que se referiu que aquela, em sede administrativa, foi colocada perante o questionário constante de fls. 29 a 32, destinado precisamente avaliar o grau de intimidade e de vivência em comum que marcava o casamento dos aqui arguidos, e que ela não o concluiu, como foi exarado na parte final do mesmo, em virtude de não ter encontrado resposta para as questões triviais que ali se colocavam, revelando assim que o dito casamento tinha sido uma fachada montada com o objectivo determinado: a legalização da arguida em território nacional.


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5. Actos processuais relevantes ao conhecimento das nulidades e inconstitucionalidades suscitadas pela arguida/recorrente:

A) Os presentes autos tiveram o seu início com cópia de parte do processado nos autos do processo 66/08.5TBCVL que correu termos no 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, tendo por base uma comunicação do SEF, acompanhada de diversos documentos (nomeadamente, pedido de autorização de residência formulado, pela arguida, em 12-10-2007; assento do casamento celebrado, em 10-09-2007, na Conservatória do Registo Civil de X..., pelos arguidos, um com o outro; questionário elaborado pelo SEF à arguida, em 07-12-2007; autos de declarações de ambos os arguidos no âmbito do processo administrativo elaborado pelo SEF, n.º 793/2007/RES/AR/250, datados de 4 e 7 de Janeiro de 2008; cópia da petição da acção de divórcio proposta, no Tribunal Judicial da Covilhã, pela ora arguido CG... contra o ora arguido; despacho de indeferimento, proferido em 15-02-2007, do pedido, pela arguida, de emissão de cartão de residência familiar de cidadã da União nacional de Estado Terceiro; cópia da petição de recurso hierárquico desse despacho, apresentado, pela arguida, em 13-03-2008), por existirem indícios da existência de um casamento de conveniência, cujo único objectivo seria permitir a regularização documental da cidadã estrangeira, agora arguida, CG...;

B) Excepcionada a incompetência territorial dos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal da Covilhã, foram os autos remetidos aos Serviços do Ministério Público no Tribunal Judicial de Castelo Branco;

C) Por despacho de 02-06-2008, foi deprecada à Comarca da Covilhã a constituição e interrogatório como arguida de CG...;

D) Já no âmbito da carta precatória, foi expedida notificação postal para a morada então constante dos autos (Rua …), visando a comparência de CG... no dia 08-07-2008, a fim de ser constituída arguida e interrogada nessa qualidade;

E) No entanto, a arguida não compareceu, razão por que foi solicitada notificação da arguida à PSP da Covilhã, a qual, em resposta, informou que a mesma não residia na morada em questão há cerca de 4 meses;

F) No Tribunal de Castelo Branco, por despacho do Ministério Público de 24-06-2009, foi pedida ao SEF informação acerca do processo de expulsão da denunciada, bem como se esta ainda se encontrava então em território nacional e, na afirmativa, qual a sua actual morada;

G) O SEF prestou a seguinte informação: «Sobre a última morada conhecida, consultado o registo informático, consta (na manifestação de interesse no n.º 2 do art. 88.º da Lei 23/2007, apresentada pela visada aos 22-04-2009, de que lhe foi dado parecer negativo aos 22-06-2009), a Rua …»;

H) No domínio de nova deprecada, desta vez remetida ao Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, a PSP elaborou certidão negativa do seguinte teor: «Não notifiquei a pessoa a que se refere o presente mandado de comparência em virtude de não ter sido possível apurar onde fica o lote 7 ; no entanto desloquei-me à rua mencionada onde existe o lote A7, mas a visada não reside no mesmo - informação dos moradores»;

I) Feitas estas diligências, infrutíferas, tendentes à constituição e interrogatório de CG... como arguida, foi deduzida, 10 de Abril de 2010, acusação contra aquela e o arguido TC...;

J) A notificação da acusação à arguida não se concretizou, por a mesma, segundo informação da Comando Metropolitano da PSP - Lisboa, não residir na Rua …, ...;

L) Remetidos os autos para julgamento, o Sr. Juiz do 1.º Juízo de Castelo Branco, em despacho datado de 01-06-2010, saneou o processo e designou data para realização da audiência. Afinal, deixou consignado: «Proceda-se às legais notificações, sendo os arguidos nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 113.º, n.º 1, alínea c), 313.º, n.ºs 2 e 3 e 315.º, todos do CPP, sendo que, quanto à arguida CG…, deverá ser, previamente solicitada ao SEF, Delegação de X..., informação acerca do seu possível paradeiro»;

K) Todavia, a Secção procedeu de imediato (02-06-2010) à notificação da arguida, via postal simples com prova de depósito, para a morada referida na alínea J), cuja carta foi depositada em receptáculo postal;

M) Sem que mais nenhum acto processual haja sido, entretanto, praticado, a arguida juntou aos autos, em 19 de Agosto de 2010, procuração forense;

N) Perante a referida procuração, o Sr. Juiz deu como cessada a intervenção da defesa oficiosa que havia sido nomeada à arguida (despacho de 03-09-2010);

O) Após, em 11-10-2010 e 20-10-2010 tiveram lugar as duas sessões de julgamento, com a presença da arguida e do seu Advogado, a que se seguiu, em 03-11-2010, a leitura da sentença.


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6. Os despachos recorridos são do seguinte teor:

6.1. Despacho datado de 03-11-2010, proferido na acta de julgamento de fls. 340/341:

«No decurso do depoimento do Inspector MN..., que como vimos foi determinante para a fundamentação de uma grande parte da actividade criminosa aqui apreciada, aquela testemunha disse que, em sede administartiva o arguido TC... lhe tinha relatado que o plano com vista à legalização da arguida CG... através do casamento por conveniência que esta celebrou com aquele, teria sido gizado no escritório do Sr. Dr. X ..., advogado da aqui arguida.

Sendo matéria à qual não podemos ficar indiferentes por força do disposto no art. 242.º, n.º 1, al. b), do C.P.Penal, determino que seja extraída cópia das declarações e remetidas ao Ministério público juntamente com a certidão de fls. 22 a 37 e da sentença agora proferida, para os fins tido por convenientes, uma vez que nos parece poder estar indicada uma forma de autoria mediata ou de co-autoria do referido causídico na prática do crime pelos quais os arguidos aqui foram julgados e condenados .

Notifique».

6.2. Despacho datado de fls. 17-11-2010 (fls. 350/351 dos autos), proferido em função do requerimento da arguida, de 08-11-2010 (fls. 347), no sentido da emissão e remessa da certidão ao M.º P.º ficarem condicionadas ao trânsito em julgado da sentença:

«Fls. 347 - A ordem para extracção da certidão e remessa da mesma ao Ministério Público assenta no disposto no artigo 242.º, n.° 1, al. b) do C.P.P e no depoimento prestado em audiência de julgamento por inspector do SEF e por um dos intervenientes no âmbito de um processo dos referidos Serviços de concessão de uma autorização de residência, que posteriormente veio a ser constituído arguido no âmbito deste outro processo.

Posto isto, as razões que determinam a extracção da certidão não dizem respeito, nem ao depoimento da aqui arguida nem a eventual confirmação ou revogação da sentença proferida nestes autos.

O que releva para os efeitos do disposto na al. b) do n.º 1 do artigo 242.º do C.P.P, é a aquisição da “notícia” de que poderá ter sido cometido um crime e na obrigação de comunicação para que essa “notícia” seja investigada por quem de direito.

Assim, entendemos que não existe aqui qualquer verdadeira relação de prejudicialidade entre o recurso que venha a ser interposto da sentença e a ordem de extracção da certidão para remessa ao Ministério Público.

De resto, basta pensar que a referida ordem poderia muito bem ter sido dada pelo próprio Ministério Público ainda na fase de inquérito (e já então haveria matéria para isso) em ordem a instaurar um inquérito crime, independentemente de o respectivo magistrado ter de esperar pelo desfecho deste outro processo.

No caso dos autos, caberá ao Ministério Público a quem vier a ser distribuída a certidão optar pelo caminho a seguir quanto aos ulteriores termos do inquérito que venha a ser instaurado.

De resto, este entendimento é o único apto a acautelar uma eventual prescrição do procedimento criminal pelo crime que possa estar indiciado: a autoria mediata de um crime de “casamento por conveniência”, p. e p. pelo artigo 186.º da Lei n.º 23/2007, de 04-07.

Termos em que se indefere o requerimento a que nos reportamos.

A certidão deve ser extraída e remetida ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes».


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7. Do mérito do recurso:

7.1. Na exegese da arguida, a circunstância de a arguida não ter sido ouvida, como tal, em inquérito, constitui a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alíneas c) e d), do CPP, ou, pelo menos, a nulidade (dependente de arguição) a que se reporta o artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do mesmo diploma.

Da redacção da conclusão 4.ª parece resultar, antes de mais, a pretensão da recorrente de pôr em causa o seu estatuto de arguida no âmbito dos presentes autos, alegando, para o efeito, o disposto no artigo 57.º do CPP.

Contudo, em contrário da interpretação da recorrente, aquela norma dá cabal resposta à questão, ao dispor, no seu n.º 1, que assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal.

Sendo indiscutível a dedução de acusação contra a recorrente, a mesma assumiu a referida qualidade processual.

Dito isto, dispõe o artigo 272.º, n.º 1, do CPP:

«Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la».

Ora, como decorre sobejamente dos autos, e está expresso nas alíneas D), E) F), G) e H) do n.º 5 do presente acórdão, as diversas diligências efectuadas pelo Ministério Público, tendentes à constituição de arguida da ora recorrente e à sua audição em primeiro interrogatório revelaram-se de todo ineficazes.

Como assim, não se verifica, neste contexto, qualquer um dos vícios (nulidades) invocadas pela arguida.


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7.2. Objecta também a recorrente a verificação da nulidade (insanável) aludida no artigo 119.º, alínea d), do CPP, por não ter sido notificada da acusação pública.

Na conclusão n.º 3, correlacionada com a matéria agora em discussão, alude a arguida à omissão de notificação edital do libelo acusatório, ancorando-se, como se recolhe da motivação propriamente dita, na alínea d) do n.º 1 do artigo 113.º, do CPP, donde consta que as notificações se efectuam, para além das modalidades previstas nas alíneas a) a c) do mesmo artigo, mediante «editais e anúncios, nos casos em que a lei expressamente o admitir».

É, no entanto, inquestionável, face ao quadro normativo presentemente em vigor, a impossibilidade legal da notificação da acusação por via edital.

Revelando-se ineficazes os procedimentos de notificação da decisão acusatória ao arguido e demais pessoas referidas no n.º 3 do artigo 277.º do CPP, mediante contacto pessoal, por carta postal registada, ou via postal simples se verificada a excepção descrita na última parte do n.º 6 do referido artigo 283.º, o processo prosseguirá, como expressamente impõe o n.º 5 deste último artigo

Nestes termos, foi eliminada a possibilidade de notificação edital.

Passando à questão nuclear do recurso, como já ficou acima dito, no despacho de recebimento da acusação e designação de data para realização da audiência de julgamento, o Sr. Juiz determinou a notificação dos arguidos, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 113.º, n.º 1, alínea c), 313.º, n.ºs 2 e 3 e 315.º, todos do CPP, sendo que, relativamente à arguida/recorrente deveria ser previamente solicitada ao SEF informação sobre o seu paradeiro.

O despacho é sugestivo dos desígnios do Sr. Juiz, no sentido da determinação do paradeiro, então desconhecido, da arguida para que, uma vez apurado, fosse recolhido TIR, de modo a possibilitar a notificação da mesma nos termos e para o fim determinado (notificação do despacho, acompanhado de cópia da acusação, e da faculdade de a arguida apresentar contestação e rol de testemunhas), em consonância com o disposto no artigo 196.º do CPP.

Sucede que a secção omitiu o teor do despacho, tendo remetido postal simples com prova de depósito e para a morada onde, na fase de inquérito, estava comprovado a arguida não residir.

Sendo assim, acompanhamos o Ministério Público em 1.ª instância quando refere estarmos perante patente falta de notificação.

Todavia, sem que mais nenhum acto processual haja sido, entretanto, praticado, a arguida juntou aos autos, em 19 de Agosto de 2010, procuração forense e, após, em Outubro de 2010, realizou-se o julgamento, com a presença da arguida e do seu Advogado.

Perante estes dados, há que ver, então, se se verifica a nulidade (insanável), arguida pela recorrente, prevista na alínea d) do CPP.

O artigo 118.º do CPP estabelece que «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei» (n.º 1); quando assim não suceder, o acto ilegal é irregular (n.º 2). A norma enuncia o princípio da tipicidade ou da legalidade, pelo qual só algumas das violações das normas processuais é que têm como consequência a nulidade do respectivo acto.

Dentro das nulidades, o CPP distingue as nulidades insanáveis (ou absolutas), a que se refere o artigo 119.º e as nulidades dependentes de arguição (ou nulidades relativas), a que se reportam os artigos 120.º e 121.º. O artigo 122.º regula, por sua vez, os efeitos de declaração de nulidade e o artigo 123.º estabelece o regime das irregularidades.

As nulidades insanáveis são as elencadas nas seis alíneas do artigo 119.º do CPP e ainda as que forem, como tal, identificadas em outras disposições do Código.

Quanto às restantes nulidades, previstas no n.º 1 do artigo 120.º, ficam sanadas se os interessados renunciarem expressamente à sua arguição, tiverem aceite expressamente os efeitos do acto ou se tiverem prevalecido de faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia. Também não é possível conhecer oficiosamente das nulidades ditas relativas, que funcionam apenas ope exceptionis, decorrendo de tal estrutura funcional que o acto processual é originariamente válido, assim se mantendo se e enquanto a pessoa interessada o não invalidar, exercitando o seu direito de arguição, dentro do prazo legalmente fixado.

O n.º 1 do artigo 123.º prevê, por seu lado, um regime de invalidades residuais ou secundárias, na terminologia de João Conde Correia, sujeitas a, por ele assim designadas, causas de sanação fulminantes, em termos que não deixam qualquer margem de arbítrio ao julgador, nem desculpas aos sujeitos processuais para o não cumprimento do ónus da sua impugnação atempada.[7]

Se não forem arguidas nos termos previstos na referida norma, o acto produzirá todos os efeitos jurídicos como se fosse perfeito.

Procurou-se assim, como refere o mesmo autor, conciliar as vantagens, em termos de segurança jurídica e economia, dos sistemas taxativos, com a necessidade de não deixar (fora dos casos excepcionais de inexistência) que esta taxividade impeça, com violação da justiça processual e de direitos dos sujeitos processuais, em particular dos arguidos, o reconhecimento da ilegalidade de actos processuais nos casos em que a lei não lhes confere expressamente a potencialidade geradora de invalidade, com a consequente inviabilidade de anulação de tais actos e seus efeitos[8].

Não obstante, as irregularidades podem ser reparadas oficiosamente, quando puderem afectar o valor do acto praticado.

Se assim suceder, a irregularidade poderá ser reparada a todo o tempo em que dela se tome conhecimento. Isto significa que, ainda antes da arguição e mesmo que a irregularidade não seja arguida, pode oficiosamente ser reparada ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente para aquele acto, enquanto mantiver o domínio dessa fase do processo[9].

Volvendo ao caso dos autos, a arguida, não obstante não notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 313.º, n.º 2, juntou procuração forense aos autos e esteve presente nas duas sessões de julgamento, a qual decorreu sempre com a sua presença.

Assim, a arguida teve necessariamente conhecimento da data designada para a realização da audiência de julgamento.

É certo que não foi formalmente notificada do despacho que designou data para julgamento, acompanhado de cópia da acusação.

Afigura-se-nos, no entanto, que essa omissão consubstancia tão só uma irregularidade, porquanto não se integra em nenhum dos casos de invalidade previstos quer em qualquer uma das alíneas do artigo 119.º, quer no artigo 120.º, do CPP, nem está cominada como nulidade em qualquer outra disposição legal da lei adjectiva penal.

Reportando-nos à concreta nulidade alegada pela arguida, a da alínea d) do artigo 119.º, ela contempla a falta de instrução quando esta seja obrigatória, isto é, quando já foi requerida por quem tem legitimidade para tanto e no prazo legal[10], o que no caso em análise não sucede.

Assim sendo, sobre a arguida impendia o ónus de arguir a irregularidade verificada, quanto muito, dentro dos três dias subsequentes à realização da 1.ª sessão de julgamento.

Se tivesse procedido deste modo, a arguição envolveria a invalidade da notificação do despacho que designou dia para a audiência e de todos os actos posteriores.

Com a repetição da referida notificação poderia então a arguida requerer, no prazo processual previsto, a abertura da instrução e oferecer, em momento processual adequado, contestação e as provas que tivesse por adequadas à sua defesa.

Nada tendo feito no referido sentido, a irregularidade ficou inexoravelmente sanada, pelo que dela o tribunal dela já não pode conhecer.

Falta ainda dizer que o descrito circunstancialismo não potencia a aplicação do artigo 123.º, n.º 2, do CPP.

Na verdade, no referido quadro, a validade e eficácia intrínseca e extrínseca da audiência, enquanto acto processual, permanece intocável.

Porém, mesmo a atender-se, por hipótese, que a irregularidade em causa era susceptível de afectar a validade do acto (audiência de julgamento), sempre caberia dizer que o referido vício só poderia ser oficiosamente reparado enquanto estivesse em curso a diligência processual em que o acto foi praticado e nunca numa fase posterior, mormente em fase de conhecimento de recurso[11].


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Nos termos do disposto no artigo 32.º da Constituição, «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa» (n.º 1), estabelecendo o n.º 5 do preceito que «o processo penal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório».

A norma do n.º 1 do artigo 32.º, enquanto «cláusula geral» que permita identificar outras possíveis concretizações judiciais do princípio da defesa não referenciadas no preceito, não pode deixar de configurar o processo criminal como um due process of law que considere ilegítimas quer normas processuais quer procedimentos decorrentes das mesmas que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido[12].

A propósito do princípio do contraditório, escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira[13]  que o mesmo implica: (a) o dever de «o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão”, (b) o “direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo”; (c) o “direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo».

Como se tem enfatizado na doutrina e na jurisprudência, o direito a ser ouvido, enquanto direito a dispor de oportunidade processual efectiva de discutir e tomar posição sobre quaisquer decisões, particularmente as tomadas pelo arguido, traduz um dos aspectos fundamentais do direito de defesa.

No plano da prova, o contraditório representa, em termos subjectivos, o direito de o arguido contraditar todos os elementos carreados pela acusação.

À parcialidade objectiva do acusador, opõe-se a parcialidade objectiva do arguido, num diálogo que se desenvolve sob o controlo do juiz.

O princípio traduz-se, assim, na estruturação da audiência e de outros actos instrutórios que a lei determinará, como uma discussão entre a acusação e a defesa, em que se procura também realizar a igualdade de armas entre os sujeitos do processo, cada um apresentando os seus argumentos e as suas provas, submetendo uns e outros ao controlo as razões e as provas apresentadas pelos outros sujeitos, assim participando activamente na formação da decisão que vier a ser tomada pelo juiz[14].

No caso dos autos, o direito de defesa e o direito ao contraditório que naquele se tem de considerar incluído, está, no caso, garantido pela cominação legal de uma irregularidade, cujo prazo de exercício durou tanto tempo quanto tempo durou a própria audiência de julgamento. Assim, a arguida, devidamente representada pelo defensor, pôde, naquela audiência e até ao seu termo, arguir a irregularidade, o que implicaria, se aquela, como se nos afigura, tivesse sido praticada, o direito de ver reconhecida a invalidade dos actos praticados após a prolação do despacho que designou data para julgamento.

Com efeito, como se diz no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 429/95, já invocado e que de muito perto, na vertente relevante, vimos seguindo, no processo penal existem outros valores relevantes para além do direito de defesa à obtenção de uma sentença absolutória:

- dever de diligência do arguido - e, muito em especial, do defensor que necessariamente o deve assistir no decurso do processo - que obviamente deverão reagir de imediato contra as nulidades (supríveis) ou irregularidades que tenham como verificadas, na perspectiva da defesa, não podendo escudar-se na sua própria negligência no acompanhamento das diligências da audiência para intempestivamente (na fase de recurso) virem reclamar o cumprimento da lei;

- dever de boa fé processual, que naturalmente impedirá que possam - arguido e defensor - ser tentados a aproveitar-se de alguma omissão ou irregularidade cometida ao longo do processo, guardando-a como um «trunfo» para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado.

Em síntese conclusiva: no caso em apreciação, permitida à recorrente a arguição da irregularidade dentro de um prazo razoável para poder dar plena exequibilidade ao seu direito de defesa, traduzido, nomeadamente, na faculdade de requerer a instrução e oferecer contestação e prova, não se verifica um encurtamento intolerável do seu direito de defesa da arguida. Verdadeiramente, nem sequer se poderá falar de qualquer «encurtamento», porquanto o direito de contraditório apenas necessitava para ser plenamente assegurado, com já ficou dito, da dedução pela arguida da irregularidade praticada.

Nestes termos, temos para nós que não se mostram violados nem o princípio das garantias de defesa da arguida nem o princípio do contraditório.


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7.3. Não se verificando as nulidades que a recorrente põe em destaque no recurso, carece de fundamento legal a solicitada aplicabilidade do artigo 122.º do CPP e, em consequência, o reclamado reenvio do processo para a fase de inquérito e a pretendida notificação da arguida para, querendo, requerer a abertura da instrução, com o prosseguimento ulterior dos autos.

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7.4. Invalidade da prova produzida em audiência e alterabilidade da matéria de facto dada como provada:

Segundo a recorrente, o tribunal de 1.ª instância, ao dar como provados os pontos 5 a 8 e 11 a 14 incorreu em erro de julgamento, evidenciado pelos depoimentos prestados em audiência de julgamento pelas testemunhas KK… e MN....

Além disso, adianta, o juízo de convicção e valoração do julgador de 1.ª instância, no sentido de dar como provados os referidos pontos de facto, assenta em “conversa informal” tida pela testemunha MN... com o arguido TC..., razão por que o depoimento desta testemunha, ao violar, nomeadamente, o disposto nos artigos 125.º, 128.º e 129.º, do CPP, não pode constituir prova válida.

Como válido não pode ser, ainda na perspectiva do recorrente, o questionário elaborado pelo SEF, constante dos autos (cfr. fls. 29/33), referido na motivação da decisão de facto da sentença recorrida, visto o disposto no artigo 355.º, n.º 1, do CPP.

Explicitada a base impugnatória do recorrente e respectivos fundamentos, cumpre analisar, antes de mais, a prova produzida oralmente em audiência de discussão e julgamento, circunscrita aos depoimentos das testemunhas acima identificadas, porquanto ambos os arguidos recusaram prestar declarações.

A testemunha MN..., Inspector Adjunto do SEF deu a conhecer, no fundamental, de forma objectiva, isenta e credível, os seguintes dados de facto:

-  Logo no início, levantaram-se dúvidas relativamente ao matrimónio contraído pelos arguidos, um com o outro, porquanto já era conhecido o historial da arguida em território nacional, em situação de permanência irregular. Nomeadamente, a arguida já tinha sido identificada pela sua ligação a actividades nocturnas, em “bares de alterne”, sem vínculo laboral. A arguida fora notificada da decisão de expulsão e da consequente medida de interdição de entrada em Portugal, tendo também sido advertida para abandonar o nosso país. A mesma chegou a interpor uma providência cautelar da decisão de expulsão do SEF, a qual foi indeferida;

- Após a realização do casamento, no exercício das suas competências, procedeu a diversas diligências no sentido de determinar se os arguidos viviam conjuntamente ou se o casamento tinha sido apenas um meio de a arguida adquirir, por essa via, um cartão de residência que lhe permitisse, ao fim de três anos, solicitar a aquisição da nacionalidade portuguesa; 

- Verificou, então, através das referidas diligências, que os arguidos nunca tinham vivido em comum. A arguida morava na Rua …, ..., enquanto o arguido residia em local diverso;

- Quando ouvido, no âmbito do processo administrativo que correu termos no SEF (Delegação de X...), o arguido reconheceu que nunca tinha mantido vida em comum com a arguida; que esta lhe tinha proposto a realização do casamento, mediante a contrapartida de € 1500,00, que o arguido não quis receber, por forma a obter sua legalização em Portugal.

Por sua vez, a testemunha KK… acentuou que:

- Na qualidade de amiga da arguida foi convidada por esta, três/quatro meses antes, para a cerimónia de casamento, realizado, segundo supõe, na ..., em local de que não se recorda;

- Não obstante se ter dirigido, na manhã do casamento, de Lisboa à ..., não assistiu à cerimónia, devido a afazeres profissionais. Esteve presente, isso sim, no jantar comemorativo que se efectuou na zona de Lisboa, no próprio dia do casamento, localidade para onde a testemunha, conjuntamente com os arguidos, se deslocaram.

As declarações da arguida geram evidentes perplexidades. Por um lado, sendo convidada, como amiga, da arguida, para o casamento, foi incapaz de concretizar o local da cerimónia. Por outro lado, estando na cidade da ..., não logrou concretizar devidamente as razões que a impediram de comparecer ao referido acto.

O depoimento revela-se, assim, inconcludente e inverosímil e, por isso, destituído de credibilidade.


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À luz da posição vertida no recurso, as declarações da testemunha MN... não podem assumir nenhuma relevância probatória, por provirem de “conversa informal” entre aquele e o arguido TC....

É questão que passamos a analisar.

Tem merecido acesa discussão jurisprudencial a problemática relativa ao alcance do testemunho de “ouvir dizer” consagrado no artigo 129.º do Código de Processo Penal. Afigura-se-nos, no entanto, na concreta situação evidenciada nos autos, por um lado, que os órgãos de polícia criminal não estão impedidos de depor em audiência de discussão e julgamento sobre factos por eles apurados e constatados no decurso de uma investigação e, por outro, que são irrelevantes as provas decorrentes das designadas “conversas informais” mantidas entre os agentes policiais e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe.

Com a proibição das referidas “conversas informais” pretendeu o legislador impedir a supressão do direito ao silêncio do arguido, silêncio esse que seria ilegitimamente contornado através de “depoimento de ouvir dizer” das testemunhas, mas não os depoimentos de autoridades que relataram o conteúdo de diligências de investigação.

Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido. A partir da aquisição dessa qualidade, aquele assume um estatuto próprio, com direitos e deveres, entre os quais, o de não se auto-incriminar. Daí que as suas declarações só possam ser recolhidas e valoradas nos precisos termos legais, não detendo validade probatória as “conversas informais”.

Em fase anterior, não há ainda inquérito instaurado, não existem ainda arguidos constituídos. As informações que forem então recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo.

Situação assaz diversa se verifica em relação às “conversas informais” ocorridas no decurso do inquérito, quando há arguido constituído, e se pretende com as mesmas suprir o silêncio daquele por depoimentos de agentes de polícia[15].

Volvendo ao caso dos autos, as afirmações da testemunha MN... reportam-se a diligências recolhidas na fase de processo administrativo que correu termos no SEF - tendo em vista a apreciação liminar da legalidade e autenticidade dos fundamentos alegados pela arguida aquando do requerimento destinado à obtenção de autorização de residência em território nacional - ou seja, em fase autónoma e anterior à instauração do inquérito no âmbito do presente processo. Por conseguinte, o declarado pela testemunha, que lhe fora revelado pelo arguido TC..., no decurso do dito processo administrativo, não configura “conversa informal”.

Deste modo, não se mostram violadas as normas em que se baseia a tese argumentativa do recorrente, ou seja, os artigos 125.º, 128.º e 129.º, todos do CPP.


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Versando sobre a “proibição de valoração de provas”, diz-nos o art. 355.º, n.º 1, do CPP, que «não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência».
Contudo, como expressamente prescreve o n.º 2 do mesmo artigo, «ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência seja permitida, nos termos dos artigos seguintes».
Assim, de acordo com a jurisprudência quase unânime do STJ, que trilhou a orientação de Maia Gonçalves[16], «valem em julgamento, independentemente da sua leitura em audiência, as provas contidas em actos processuais cuja leitura é permitida», nos termos dos artigos 356.º e 357.º do CPP.
Ora, precisamente, «é permitida a leitura em audiência de autos...de instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas» [art. 356.º, n.º 1, al. a)].
Decorre da conjugação das referidas normas que é permitida, mas não obrigatória, a leitura em audiência de julgamento dos documentos existentes no processo, independentemente dessa leitura, podendo o meio de prova em causa ser objecto de livre apreciação pelo tribunal, sem que resulte ofendida a proibição legal prevista no art. 355.º do CPP[17].
Este entendimento não obsta a que os sujeitos processuais participem na produção da prova, contribuindo para esclarecer todos os elementos necessários à descoberta da verdade material. Porém, estando em causa documentos que existem no processo desde o inquérito, tiveram os arguido todas as possibilidades de os questionar, podendo ter solicitado, na própria audiência de julgamento, a sua reapreciação individualizada, tendente ao esclarecimento de qualquer ponto relevante para a sua defesa, pedindo, inclusive, a leitura do dito documento.
Pelo exposto, não violou o tribunal a quo a norma do art. 355.º, n.º 1, do CPP.
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Em função de todo o exposto, nenhuma alteração há que fazer à factualidade constante da sentença recorrida, rectius, quanto aos pontos da matéria de facto impugnados pelo recorrente no recurso interposto nos presentes autos, os quais se encontram devidamente ponderados e avaliados pelo julgador do tribunal de 1.ª instância.

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7.5. Resulta dos fundamentos do recurso, supra reproduzidos, que a pretensão da recorrente, de ser absolvida do crime de casamento de conveniência, p. e p. pelo artigo 186.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2007, de 04-07, assenta apenas na sugerida, e não aceite, alteração da matéria de facto provada.

Pelo que, mantendo-se os pressupostos de facto que determinaram a condenação da arguida, é chegado o momento de nos pronunciarmos sobre a pretendida atenuação especial da pena.
Tendo presente o disposto no artigo 72.º do Código Penal, não se justifica de todo em todo a dita atenuação porquanto, do acervo factológico provado, não sobressaem elementos que, pelo seu carácter excepcional, minorem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa da arguida ou a necessidade da pena, em termos tais que se revele inadequada a pena concreta dentro da moldura normal do crime de casamento por conveniência.

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7.6. No campo das hipóteses, o objecto do recurso, com predominância para as questões relativas às nulidades suscitadas pela arguida, podem assumir contornos de prejudicialidade em relação à validade dos actos processuais praticados a partir da acusação pública.

Nestes termos, sem necessidade de maiores considerações, a certidão a que se reportam os despachos recorridos, de fls. 341 e 350/351, apenas deveria ter sido extraída e entregue ao Ministério Público após o trânsito em julgado da sentença recorrida.

Contudo, como já foi passada e entregue, apenas deverá ser tida em conta, após o referido trânsito, em função do conteúdo decisório que se vier a revelar definitivo.

Procede, assim, nesta parte, o recurso.

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III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam os Juízes da 5.ª Secção deste Tribunal da Relação em:
A) Julgar improcedente o recurso, relativamente às questões relativas à sentença recorrida, mantendo-se, na íntegra, o que naquela foi decidido;
B) Revogar o despacho supra referido, de fls. 350/351 e, em consequência, determinar que a certidão já passada e entregue ao Ministério Público apenas seja tida em conta após o trânsito da sentença, em função do conteúdo decisório que se vier a revelar definitivo.
Custas pela arguida, com 4 UC´s de taxa de justiça (arts. 513.º e 514.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal, 82.º, n.º 1 e 87.º, n.ºs 1, al. b), e 3, estes do Código das Custas Judiciais).
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Alberto Mira (Relator)
Elisa Sales


[1] Simas Santos/Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, II Volume, 2000, Editora Rei dos Livros, pág. 801.
[2] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 1.ª ed., pág. 349.
[3] Simas Santos-Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, vol. I, pág. 713.
[4] Acórdão da Relação de Lisboa de 11-10-2006, processo 5998/2006.
[5] Neste sentido citam-se, a título meramente exemplificativo e para além do já citado, os acórdãos da Relação do Porto de 4-11-2009, proferido no processo 91/04.5GBPRD, de e25-6-2008, processo 0742789, de 27-2-2008, processo 0810050 e de 9-2-2005, processo 0445066.
[6] Relator Dr. António Gama.
[7] Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1999, pág. 174.
[8] Obra citada.
[9] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 2.ª edição, Editorial Verbo, 1999, pág. 85.
[10] Cfr., v.g., Acórdãos do STJ 13-04-2009, processo n.º 7/07PJAMD-B.S1, publicado no sítio www.dgsi.pt., e de 02-02-1994, in BMJ n.º 434/423, citado por Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Portuguesa, pág. 310. 
[11] Cfr, neste sentido, Gil Moreira dos Santos, in Noções de Processo Penal, 2.ª edição, pág. 217-218, citado no Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 5/2002, de 27-06-2002 (proc. n.º 2979/2001 - 3.ª Secção), publicado no DR, 1.ª série-A, de 17-07-2002.
[12] Neste sentido, Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.ºs 337/86 e 61/88, citados no Ac. do mesmo Tribunal n.º 376/06, de 31-05-2006, in www.tribunalconstitucional.
[13] In Constituição da República Portuguesa Anotada, volume 1, 2007, pág. 522.
[14] Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 429/95, citado no já referido Ac. 376/06.
[15] Cfr. Acs. do STJ de 15-02-2007 (proc. n.º 06P4593), que seguimos de muito perto, e 03-03-2010 (proc. n.º 886/07.8PSLSB.L1.S1), ambos publicados em www.dgsi.pt.
[16] Código de Processo Penal Anotado, 7.ª Edição, pág. 521.
[17] Em casos que com o dos autos apresentam evidente similitude, cfr., a título meramente exemplificativo, os Acs. do STJ de 23-02-2005, CJ/STJ, XIII, tomo I, pág. 50, e de 31-05-2006, proc. n.º 06P1412, in www.dgsi.pt.