Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
322-C/2002.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
CADUCIDADE
Data do Acordão: 04/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL – 3.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 610.º, 611.º E 612.º DO CC
Sumário: 1. A impugnação pauliana depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) a existência de determinado crédito; b) que tal crédito seja anterior ao acto ou, sendo posterior, que o acto tenha sido realizado dolosamente visando impedir a satisfação do direito do credor; c) resultar do acto a impossibilidade do credor obter a satisfação plena do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade; d) tratando-se de acto oneroso, que tenha havido má-fé, tanto da parte do devedor como do terceiro, entendendo-se por má-fé a consciência do prejuízo que o acto cause ao credor.

2. Provados os requisitos da impugnação pauliana, a invocação da caducidade do direito/acção pauliana, apenas na instância recursiva, não obsta à sua procedência.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

A... e esposa B..., residentes na Rua ..., ..., Pombal – por apenso à execução em que é exequente C..., residente na Rua ..., ..., ..., ..., Ourém, e em que é executado D..., residente em ..., ..., Pombal – instauraram os presentes embargos de terceiro, alegando, em síntese, que tiveram conhecimento que no processo principal se procedeu a penhora de dois prédios urbanos (os descritos na CRP de Pombal sob os n.° x ... e a y ...) que pertencem ao embargante marido, por lhe haverem sido doados pelo executado D ... (com a obrigação dos embargantes cuidarem do doador até ao fim dos seus dias) em 12/08/2004.

Recebidos os embargos e determinada a suspensão da execução quanto a tais prédios urbanos, apenas o exequente/embargado C ... contestou.

Alegou, em resumo, que o executado, em conluio com o embargante, pretendeu apenas com a escritura de doação retirar ficticiamente os bens da esfera patrimonial do executado a fim de impedir que os mesmos respondessem por um crédito anterior do exequente[1].

Acrescentou que o executado sempre se manteve na posse dos prédios, continuando a cultivá-los, a benfeitorizá-los e a viver neles.

E concluiu que o negócio foi simulado e, como tal, nulo; e que “deve ser considerada ineficaz a doação em relação ao embargado”.

Os embargantes responderam, mantendo o alegado na petição inicial; e negando qualquer, conluio, simulação e/ou conhecimento das dívidas do executado/doador.

Foi proferido despacho saneador – que declarou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa, instruído o processo e realizada a audiência, após o que a Exma. Juíza proferiu sentença, julgando procedentes os presentes embargos de terceiro, com o consequente levantamento da penhora sobre os dois prédios urbanos em causa.

Inconformado com tal decisão, interpôs o exequente/embargado C ... recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que – declarando ineficaz o negócio de doação em relação ao credor/embargado – julgue os embargos totalmente improcedentes.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“ (…)

1. Foi alegado (artº. 4º da contestação) e está provado (al. J dos Factos Assentes) que o Recorrente é credor do doador, tendo este sido aliás condenado por douta sentença, conforme resulta dos autos principais (acção 322/2002 – Tribunal Judicial de Pombal), na quantia de 14.963,94 €, acrescida de juros legais a partir da citação nessa acção, cuja ocorreu como se pode ver dos autos principais, antes da apresentação da contestação dos aí RR., que deu entrada em juízo em 13/5/2002.

2. Isto é, à data da doação, o crédito do recorrente já existia – era, pois, anterior ao acto (artº. 610, nº 1 do C.C.).

3. Resultou do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito, como se encontra provado pela resposta dada ao quesito 13 da B.I.:

“A doação não só diminuiu como subtraiu a garantia patrimonial do crédito do embargado” (artº. 610, nº 2, do C.C.).

4. Aliás, no seu depoimento de parte – reduzido a escrito – o doador refere, relativamente ao quesito 13, que não tem quaisquer bens em seu nome.

5. Conforme dispõe o nº 1 do artº. 612 do C.C., se o acto fôr gratuito (como é o caso – veja-se a declaração negocial do doador e a aceitação do donatário constante da escritura junta aos autos), a impugnação procede, ainda que um e outro (devedor e terceiro) tenham agido de boa-fé.

6. Não restam dúvidas, pois, que se encontram verificados todos os factos necessários à procedência do segundo pedido do R.:

“Ser considerada ineficaz a doação em relação ao embargado (ora recorrente).

7. Ao não se pronunciar sobre tal pedido, verifica-se omissão de pronúncia.

8. O que é caso de nulidade da sentença – artº. 668, nº 1, al. d) do C.P.C..

9. Porém, como dos autos consta toda a factualidade necessária para a decisão de mérito, o douto Tribunal ad quem deve, anulando a douta sentença, proferir decisão de mérito declarando o acto (doação) ineficaz em relação ao credor, ora recorrente.

10. A douta sentença violou, entre outras, as seguintes disposições legais (art. 610 e 612 do C.C. e 668, nº 1, al. d) do C.P.C.). (…)”

Os embargantes responderam, sustentando, em síntese, a sentença recorrida não violou quaisquer normas adjectivas ou substantivas, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.

Terminaram a sua alegação com as seguintes conclusões.

B) A matéria de facto dada como provada não permitiria outro desfecho que não fosse a procedência dos embargos de terceiro deduzidos pelos ora recorridos;

C) De todo o modo e sem prescindir, à data da apresentação da contestação aos embargos, já havia decorrido prazo muito superior a cinco anos;

D) Tendo, assim, a essa data, já caducado o direito de impugnação pauliana da doação efectuada aos ora recorridos;
Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – Fundamentação de Facto

Resultaram provados os factos seguintes:

1) No dia 12 de Agosto de 2004, no Cartório Notarial de Ansião, foi outorgada escritura pública de doação, lavrada de folhas 47 a folhas 48 verso do Livro 262–D, tendo sido doador o ora requerido, D ..., à altura já viúvo, e donatário o ora requerente, A ..., no estado de casado com a requerente B ... (Al. A);

2) Nessa escritura de doação, o identificado D ... declarou doar ao A ..., entre outros, os seguintes bens imóveis urbanos, ambos situados na freguesia de ..., concelho de Pombal;

“A” – Casa de habitação com trinta metros quadrados, dependência e logradouro com trinta e seis metros quadrados, a confrontar do norte e do nascente com caminho, do sul com ... e do poente com ..., sita nos ..., inscrita na matriz predial urbana respectiva sob o artigo nº w ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o nº y .../freguesia de ..., aí inscrito a favor do doador e sua falecida mulher pela inscrição G2.

 “B” – Casa de habitação, com a superfície coberta de cento e dezassete metros quadrados, uma dependência com a superfície coberta de dezasseis metros quadrados e logradouro com a superfície descoberta de setenta metros quadrados, a confrontar do norte com caminho, do sul e do nascente com o próprio e do poente com ..., sita nos ..., inscrita na matriz predial urbana respectiva sob o artigo nº z ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o nº x .../freguesia de ... e aí inscrito a favor do doador e da sua falecida mulher pela inscrição G2 (Al. B);

3) O doador declarou fazer essa doação por conta da quota disponível (Al. C);

4) O ora requerente, embargante, aceitou a doação (Al. D);

5) À data da doação o doador, D ..., era viúvo e não tinha filhos (Al. E);

6) O doador, D ..., e sua mulher – a falecida E... – por si e antepossiodores (F... e marido G... , a quem os havia adquirido por compra), durante mais de 30, 40, 50 e mais anos que andaram na posse desses prédios urbanos, neles pernoitando, tomando as refeições, recebendo amigos, familiares e o correio, criando e educando os filhos, efectuando as necessárias reparações ou melhoramentos, substituindo portas, janelas, telhas, criando animais domésticos, cultivando hortícolas e árvores de fruto no espaço envolvente aos prédios, colhendo os frutos do que cultivavam, pagando as contribuições ao Estado se e quando devidas (Al. F);

7) Tudo à vista da generalidade das pessoas moradoras no lugar de ... e lugares vizinhos dos prédios (Al. G);

8) Tudo sempre de forma contínua, sem qualquer interrupção ou intervalo, à luz do dia, dia após dia, sempre que necessário e sempre sem qualquer espécie de violência, quer em relação às coisas quer em relação às pessoas, sem oposição de ninguém, convictos que, praticando aqueles e outros actos materiais exerciam um direito próprio pleno e singular – o direito de propriedade (Al. H);

9) Cientes de que com aquela prática não lesavam direitos ou interesses de outrem desde o seu início e no decurso da posse (Al. I);

10) O executado e sua então mulher foram demandados nos autos de acção ordinária nº 322/2002 (processo principal) como réus, vindo aí a ser condenados a pagar ao autor a quantia de € 14.963,94, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação (Al. J);

11) A doação foi efectuada a A ... com a obrigação de este e a sua esposa cuidarem dele, doador, até ao fim dos seus dias (Resp. ao quesito 1º);

12) Prestando-lhe todos os cuidados de que a sua idade carece, designadamente confeccionando-lhe as refeições, efectuar a limpeza da casa, comprar-lhe o vestuário, lavar e passajar as roupas, levá-lo aos médicos e hospitais se e quando necessário, adquirir-lhe os medicamentos, fazer-lhe companhia, tratá-lo como se à família pertencesse (Resp. ao quesito 2º);

13) Após a escritura de doação referida em A) e B), os ora requerentes continuaram a praticar sobre os prédios identificados em B) os mesmos actos referidos em F) com as características referidas em G), H) e I) (Resp. ao quesito 3º);

14) No dia 4 de Novembro de 2010 os requerentes tiveram conhecimento de que os prédios identificados em B) tinham sido nomeados à penhora no âmbito do processo de execução (Resp. ao quesito 4º);

15) Nesse dia, o requerido D ... entregou à ora requerente mulher, B ..., uma carta registada com A/R, que havia recebido do carteiro momentos antes, com remetente de: “Conceição Santos – Agente de Execução” (Resp. ao quesito 5º);

16) Foi a requerente quem abriu a carta e se deparou com a nota de citação do requerido, requerimento executivo e demais documentação a ele enviada (Resp. ao quesito 6º);

17) Após posterior consulta na Conservatória do Registo Predial de Pombal tomaram conhecimento de que sobre ambos os prédios recaía penhora para garantia do pagamento de alegada dívida do requerido para com o 1º requerido no âmbito da presente execução (Resp. ao quesito 7º);

18) O executado continuou a viver nos prédios urbanos (Resp. ao quesito 11º);

19) A doação não só diminuiu como subtraiu a garantia patrimonial do crédito do embargado (Resp. ao quesito 13º).


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III – Fundamentação de Direito

Pretende-se com os presentes autos – tratando-se, como é o caso, duns embargos de terceiro – o levantamento das penhoras efectuadas no processo (execução) principal.

Para o que se invocou que os dois prédios ali penhorados foram (pelo executado) anteriormente transmitidos, por doação, ao embargante; ou seja, invocou-se que a propriedade sobre os 2 prédios foi, por contrato de doação, anteriormente adquirida pelo embargante/apelado, pelo que, passando tais prédios a pertencer-lhe, deixaram de poder responder pelo cumprimento das obrigações do executado/embargado D ....

Foi pois sobre este contrato/negócio de doação que o exequente/embargado/apelante fez incidir a sua oposição; lançando mão, na qualidade de credor do executado D ..., de 2 meios de conservação patrimonial: a declaração de nulidade (cfr. 605.º do CC) de tal doação, com fundamento em simulação, e a impugnação pauliana (cfr. 610.º do CC).

Recorreu a título principal à simulação (e consequente nulidade) e só depois e subsidiariamente à impugnação pauliana; tenha sido esta ou não a exacta ordem por que o fez, deve ser esta a ordem a considerar, uma vez que a simulação, a existir, “destrói” o negócio e prejudica a solução a que se possa chegar em “sede” de impugnação pauliana, que, é pacífico, é um meio de conservação patrimonial que não coloca em crise a validade do acto impugnado[2].
Vem isto a propósito do embargado/apelante dizer, na sua alegação recursiva, que a sentença recorrida não se pronunciou sobre o pedido em que requeria que fosse “considerada ineficaz a doação em relação ao embargado (ora recorrente)”; enfermando por isso a sentença da nulidade do art. 668.º/1/d) do CPC.
Tem “em substância” razão o embargado/apelante; ou seja, sem prejuízo de não haver um pedido por si formulado[3], estamos claramente perante uma questão por si suscitada/invocada, tendo em vista obstar ao levantamento das penhoras[4], e, por conseguinte, julgada improcedente, como foi o caso, a questão consistente na nulidade da doação (por simulação), teria a sentença recorrida que passar a apreciar e que se pronunciar sobre a questão respeitante à impugnação pauliana.
Assim, tendo a sentença recorrida omitido de todo tal apreciação e pronúncia, padece da referida nulidade; cumprindo-nos pois, substituindo-nos ao tribunal recorrido, conhecer da questão ali omitida, que compreende e preenche a totalidade do objecto da presente apelação.
Vejamos:
Não faz parte do objecto do recurso a questão da nulidade, por simulação, da doação.
Em face das respostas negativas dadas aos quesitos 8.º a 12.º, nada ficou provado com relevo factual para tal questão; não se deu como provado algum dos 3 elementos que integram o conceito civilista de simulação [a) - intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração; b) - acordo entre declarante e declaratário; c) - intuito de enganar terceiros]; enfim, não se provou que tenha havido simulação, que, sendo absoluta, produziria a nulidade (art. 240.º do CC) do negócio simulado (sem que, em simultâneo, houvesse negócio dissimulado a apreciar e reconhecer).
Daí que o embargante/apelante se haja conformado com a sentença recorrida – em que apenas se diz que “dos factos provados não resultam quaisquer elementos para que o Tribunal possa considerar que a doação feita por D ... ao embargante possa ser considerada simulada” – quanto à improcedência da questão da nulidade, por simulação, da doação.

Efectuado o “ponto de situação” – mantendo-se a validade da doação – há pois que passar à apreciação e conhecimento da impugnação pauliana – objecto da presente apelação – que, insiste-se, é um meio de conservação patrimonial que não coloca em crise a validade do acto impugnado.

Com a impugnação pauliana não aspira o credor a que o tribunal declare/considere inválido (nulo ou anulável) um qualquer acto patrimonial praticado por um seu devedor em seu prejuízo; apenas pretendendo que o acto seja ineficaz[5] em relação a si (art. 616º do CC - ineficácia relativa), podendo executar o bem no património do obrigado à restituição.
Dito de outro modo “(...) a impugnação pauliana é um meio de reacção contra actos positivos do devedor – designadamente contra actos de alienação – que não enfermam de qualquer vício interno (são actos válidos), mas que causam prejuízo aos credores.
(…) tem por finalidade a indemnização do credor impugnante à custa dos bens ou valores adquiridos pelos terceiros, não podendo tais bens ser atingidos senão na medida do necessário ao ressarcimento do prejuízo sofrido pelo credor (…) [6],[7].

Isto dito, vejamos se o embargado/apelante provou os requisitos da impugnação pauliana.

Para a procedência de tal meio de conservação patrimonial, exige a lei a verificação simultânea de vários requisitos (arts. 610º, 611º e 612º, todos do CC), a saber:

-A existência de determinado crédito;

-Que tal crédito seja anterior ao acto ou, sendo posterior, que tenha sido o acto realizado dolosamente visando impedir a satisfação do direito do credor.

-Resultar do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;

-Tratando-se de acto oneroso, que tenha havido má-fé, tanto da parte do devedor como do terceiro, entendendo-se por má-fé a consciência do prejuízo que o acto cause ao credor.

O que significa, revertendo ao caso presente, sendo o acto alvo da impugnação pauliana uma doação, que não tem que verificar-se este último requisito: ter havido má fé.

Trata-se de questão – que tem a ver com a natureza onerosa ou gratuita do acto impugnado – em que convém que nos detenhamos; tendo em vista explicar a dispensabilidade, no caso, do requisito da má fé do art. 612.º do C. Civil.

Vejamos:

Define-se como oneroso o contrato em que a atribuição patrimonial efectuada por cada um dos contraentes tem por correspectivo, compensação ou equivalente uma atribuição da mesma natureza proveniente do outro; e como gratuito o contrato em que, segundo a comum intenção dos contraentes, um deles proporciona uma vantagem patrimonial ao outro, sem qualquer correspectivo ou contraprestação.

Daí o dizer-se que a distinção dos negócios jurídicos em onerosos e gratuitos tem como critério o conteúdo e finalidade do negócio[8].

Existe pois um acto oneroso sempre que uma pessoa visa conseguir uma vantagem suportando um sacrifício que esteja numa relação de estrita causalidade com a vantagem que se quer obter; a onerosidade exige duas atribuições patrimoniais em relação de causalidade; e existe na medida em que as partes estão de acordo em considerar as duas prestações ligadas reciprocamente pelo vínculo da causalidade jurídica[9].

Inversamente, um acto é a título gratuito quando seja realizado com uma particular intenção ou causa que é a de proporcionar uma vantagem à outra parte.

Isto exposto, importa admitir que há situações em que a distinção – que parece não poder suscitar dificuldades – se apresenta de modo menos nítido; quando se está perante negócios cujos efeitos atingem distintamente o património de mais de 2 sujeitos – os chamados negócios com dupla atribuição patrimonial ou negócios “bidireccionais” – a distinção adquire alguma dificuldade, uma vez que tais negócios são susceptíveis de revestir a natureza gratuita ou onerosa consoante a perspectiva pela qual são apreciados[10].

Não é, porém, o caso da doação, apontada como o negócio modelo dos actos gratuitos, cujos requisitos de acordo com o art. 940.º do CC são justamente: a) a disposição gratuita de certos bens ou direitos ou a assunção duma dívida em benefício do donatário; b) a diminuição do património do doador; c) e o espírito de liberalidade.

Sem prejuízo, também se reconhece, de algumas formas de doação – como é o caso das denominadas doações mistas, das doações remuneratórias e das doações com cláusula modal – poderem porventura suscitar dúvidas sobre a sua natureza gratuita.

Vem isto a propósito, como é evidente, do embargante/apelado ter alegado factos – terem-lhe os bens sido doados pelo executado D ... com a obrigação de cuidar do doador até ao fim dos seus dias – configuradores duma cláusula modal, da doação lhe ter sido feita com encargos (cfr. art. 963.º do CC).

Sucede, porém, é onde pretendemos chegar, que as cláusulas modais não transformam as doações em contratos onerosos.

Apesar do donatário assumir a obrigação de efectuar determinada prestação, esta não se encontra numa relação de correspectividade com a atribuição patrimonial do doador, sendo antes uma mera limitação de origem do objecto da doação. Esta atribuição meramente consumptiva, ou a latere, do donatário não é, pois, suficiente para excluir a natureza gratuita deste tipo de doações[11].

Aliás, o art. 963.º/1 do CC, ao afirmar explicitamente que as doações podem ser oneradas por encargos, indica e exprime exactamente que a atribuição não deixa de ter carácter de liberalidade pelo facto de o donatário assumir o encargo de certa prestação, a qual funciona como simples limitação ou restrição à prestação do disponente e não como o seu correspectivo[12].

O que – sendo assim, sendo uma doação, mesmo que com cláusula modal, ainda e sempre um contrato gratuito – nos dispensa de aprofundar e solucionar a questão de saber se a cláusula modal invocada é válida e, em caso afirmativo, se foi devidamente dada como provada.

Diremos tão só, enunciando a questão, que a cláusula modal alegada/invocada pelo embargante não consta do conteúdo da escritura/documento que solenizou a doação; o que nos remete – remeteria, se a solução da questão fosse juridicamente relevante[13] – para o art. 221.º/1 do C. Civil, em que se dispõe que “ as estipulações verbais acessórias anteriores ao documento legalmente exigido para a declaração negocial, ou contemporâneas dele, são nulas, salvo quando a razão determinante da forma lhes não seja aplicável e se prove que correspondem à vontade do autor da declaração”; isto é, em 1.º lugar, para a regra que consiste em a exigência da forma legal (enquanto modo de exteriorizar declarações de vontade) abranger, além das cláusulas essenciais do negócio jurídico, as estipulações acessórias, típicas ou atípicas, sejam anteriores ou contemporâneas da conclusão de negócio[14], e, em 2.º lugar, para as restrições a tal regra, contidas no mesmo art. 221.º/1 do C. Civil, segundo as quais é admissível a validade de estipulações verbais anteriores ao documento exigido para a declaração negocial ou contemporâneas dele, desde que se verifiquem, cumulativamente, os requisitos aí referidos[15]. O que, num último momento – considerando-se admissível a possibilidade/validade de cláusulas modais não formalizadas – nos remete/remeteria para o disposto no art. 394.º do C.C., que declara inadmissível a prova por testemunhas se tiver por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos ou particulares[16].

Percurso jurídico este despiciendo, uma vez que, repete-se, fosse qual fosse a conclusão – sobre a validade e prova da verbal cláusula modal – sempre estaríamos perante um acto gratuito; sendo isto que importa reter, uma que é só por si suficiente para se poder afirmar, como se antecipou, que, no caso, a procedência da impugnação pauliana dispensa a verificação do requisito da má fé do art. 612.º do C. Civil.

Dispensa que se compreende – isto é, compreende-se que a boa fé das partes, nos actos gratuitos, não obste ao funcionamento da impugnação pauliana – uma vez que os interesses do credor devem sobrepor-se às expectativas do terceiro que enriqueceu gratuitamente (ou à custa duma contrapartida desprezível).

O que significa, olhando/apreciando os factos provados, que ficaram demonstrados todos requisitos que, para o caso, a lei exige para a procedência/funcionamento da impugnação pauliana.

Ao ficar provado (na alínea J dos factos assentes) que “o executado e sua então mulher foram demandados nos autos de acção ordinária nº 322/2002 (processo principal) como réus, vindo aí a ser condenados a pagar ao autor a quantia de € 14.963,94, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação”, logo ficaram provado os dois primeiros requisitos supra referidos, isto é, quer a existência do crédito, quer a sua anterioridade em relação ao acto impugnado; efectivamente, sendo os juros desde a citação (sendo a acção de 2002), significa que o crédito do aqui embargado/apelante foi constituído em data anterior a 12/08/2004, data do acto impugnado.

Por outro lado, ao ter ficado provado (pela resposta ao quesito 13.º) que “a doação não só diminuiu como subtraiu a garantia patrimonial do crédito do embargado”, ficou provado o requisito referido em 3.º lugar, ou seja, que da doação resultou a impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade.

Aliás, importa acrescentar e observar ainda o seguinte:

De acordo com o art. 611º do CC, o ónus probatório colocado a cargo do apelante/embargado esgotava-se na prova do montante da dívida do embargado/executado; ónus que “por definição” estava no caso ab initio cumprido, uma vez que era justamente a sentença que reconhecia tal dívida que o apelante/embargante estava a executar.

Dito doutro modo, era ao embargante/apelado, interessado na “manutenção” do acto impugnado, que incumbia a prova do embargado/executado possuir bens penhoráveis de igual ou maior valor que a dívida para com o apelante/embargado.

Prova que logo ficou prejudicada, uma vez que nada o embargante/apelado alegou, na resposta, com tal objectivo.

Enfim, estava provado, desde o termo dos articulados[17], o 3º requisito supra referido, isto é, provado ficou que “resultou do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade”.

Concluindo, o apelante/embargado provou a totalidade dos requisitos da impugnação pauliana.

Não obstando à sua procedência o facto de haver sido invocada mais de 5 anos após a data do acto impugnável (o acto é de 12/08/2004 e a impugnação foi feita na contestação destes autos, em 02/03/2011).

É que – é este o ponto – só agora, na contra alegação recursiva, veio o embargante/apelado invocar a caducidade (cfr. art. 618.º do C. Civil) do direito de impugnação.

Explicitando, a questão coloca-se do seguinte modo:

A caducidade – como resulta do art. 333.º/1 do CC – só “é apreciada oficiosamente pelo tribunal e pode ser alegada em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes”.

O que não é claramente o caso da caducidade da direito/acção pauliana.

“ (…) no domínio dos direitos disponíveis, nada impede a renúncia à caducidade (330.º/1 do C. C.), a qual poderá ocorrer quer antes de se completar o respectivo prazo, quer depois do mesmo ter terminado, podendo essa declaração se renúncia ser expressa ou tácita (217.º/1 do C. C.). Verifica-se uma renúncia tácita, quando os outorgantes do acto impugnado não invocam a caducidade, cujo prazo já se completou, na acção em que é exercida a impugnação pauliana, uma vez que o conhecimento desta não pode ser oficioso (art. 333.º/2 e 303.º do C. C.)[18]

E, evidentemente, invocar a caducidade numa acção, é fazê-lo no estrito cumprimento dos artigos 487.º e 489.º do CPC (ex vi 357.º e 502.º do CPC), isto é, no articulado em que se contesta/responde ao articulado em que foi invocado o direito a que se pretende opor a excepção peremptória de caducidade.

Depois de tal articulado, não sendo, como é o caso, a caducidade de conhecimento oficioso, é a sua invocação extemporânea (como claramente resulta do referido art. 489.º do CPC), ineficaz e improfícua.

Ademais, pode/deve ainda acrescentar-se, efectuar tal invocação apenas na instância recursiva, é colocar o tribunal ad quem perante uma questão nova; e, no direito português, os recursos ordinários são de reponderação, visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento, o que significa que o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados, o memo é dizer, não pode conhecer/julgar questões novas.

Enfim, sobre a caducidade da acção/impugnação pauliana, o mais correcto é até dizer-se que estamos perante uma “questão nova” – uma vez que não é de conhecimento oficioso e não foi antes suscitada – de que não podemos conhecer.


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Em síntese conclusiva final, o apelante/embargado provou a totalidade dos requisitos da impugnação pauliana e nada obsta à sua procedência; por conseguinte, é a doação referida em 1) e 2) dos factos provados ineficaz em relação a si (cfr. art. 616º do CC - ineficácia relativa), podendo o apelante/embargado continuar a executar os dois prédios urbanos penhorados no património do embargante/apelado na medida necessária à satisfação do seu crédito.

O que significa e representa a improcedência dos presentes embargos de terceiro; e, em consequência, a procedência da apelação.


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IV - Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação interposta e, consequentemente, revoga-se a sentença que se substitui pela improcedência dos embargos de terceiro (mantendo-se as penhoras).
Custas, em ambas as instâncias, pelos embargantes/apelados.
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Barateiro Martins (Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos


[1] Além de invocar a ilegitimidade da embargante mulher, excepção julgada improcedente, sem censura, no saneador.

[2] Com a impugnação pauliana não aspira o credor a que o tribunal declare inválido (nulo ou anulável) um qualquer acto patrimonial praticado por um seu devedor em seu prejuízo; com a impugnação pauliana, apenas pretende o credor que o acto seja ineficaz em relação a si (art. 616º do CC - ineficácia relativa), podendo executar o bem no património do obrigado à restituição. Coloca-se pois a impugnação pauliana, “ab initio”, numa lógica de aceitação da validade do acto impugnado.

Ademais, como se refere no art. 615.º/1 do CC, “não obsta à impugnação a nulidade do acto realizado pelo devedor”.
[3] Nos autos, o único pedido é o formulado pelos embargantes – pedido que, em termos úteis, se traduz no levantamento das penhoras.
[4] Atento o efeito constante do art. 616.º/1 do CC – “julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação ou garantia patrimonial autorizados por lei”.
[5] Antunes Varela, in RLJ, ano 122º, pág. 252 e ss.
[6] M. Henrique Mesquita, in RLJ, ano 128º, pág. 256.
[7] O impugnante “é apenas titular de um direito de crédito - o direito à restituição de determinado valor - perante o terceiro a quem o devedor alienou os bens” - cfr. M. Henrique Mesquita, in RLJ, ano 128º, pág. 255.

[8] Geralmente, a doutrina chama a atenção para o relevo da intenção das partes, a sua vontade ou intento, quando se trata de determinar a natureza onerosa ou gratuita do negócio.

[9] Reciprocidade de prestações que pressupõe apenas um nexo causal entre ambas, não significando a sua equivalência objectiva ou mesmo subjectiva; isto é “o negócio não deixa de ser oneroso se as duas prestações, pelas mais variadas razões, não têm uma valor equivalente, desde que as partes as consideram contrapartida uma da outra” – Cfr. Cura Mariano, Impugnação Pauliana, pág. 210.

[10] Nos negócios chamados multidireccionais – refere Cura Mariano, in obra e local citados – formam-se várias relações jurídicas de diferente sentido, em que alguns sujeitos são comuns, podendo algumas das relações ter natureza gratuita e outras onerosa. Nestas figuras complexas deve atender-se às relações que permitam apurar se o terceiro ou terceiros beneficiados pelo acto de disposição do devedor pagaram ou não alguma contrapartida pelo bem alienado por este. Isso poderá conduzir a que o acto tenha uma natureza simultaneamente gratuita e onerosa, conforme a relação perspectivada.
[11] Cfr. Cura Mariano, Impugnação Pauliana, pág. 219/220.
[12] Antunes Varela – in Ensaio sobre o conceito do modo, pág. 304/8 – diz mesmo que o “modo” é, por conceito, incompatível com a ideia de onerosidade.
[13] Não é juridicamente relevante, insiste-se, porque sempre o acto será considerado gratuito (e é apenas disto – do carácter gratuito ou oneroso do acto, tendo em vista dispensar o requisito da má fé – que ora curamos).

[14] Sendo indiscutível que o modo, encargo ou cláusula modal é uma cláusula acessória típica – cfr. Mota Pinto, Teoria Geral, pág. 579.

[15] E que são: a) que se trate de cláusulas acessórias – isto é, não pode, como é evidente, estar-se perante estipulações essenciais, assim como, não sendo essenciais, não podem as cláusulas que não constem do documento contradizer o próprio conteúdo do documento, mas apenas completá-lo (estando para além do conteúdo); b) que não sejam abrangidas pela razão de ser da exigência da forma/documento; c) que se prove que correspondem à vontade das partes.

[16] O que significa – da coordenação do art. 221.º com o art. 394.º – que as estipulações adicionais/acessórias (no caso, a cláusula modal) não formalizadas, anteriores ou contemporâneas do documento, não abrangidas pela razão determinante da forma, só produzirão efeitos se tiver lugar a confissão ou se forem provados por documento, embora menos solene do que o exigido para o negócio.
[17] O que significa que a impugnação pauliana podia ter sido julgada procedente no “saneador”.
[18] Cfr. Cura Mariano, Impugnação Pauliana, pág. 313/314.