Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2275/10.8TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ENTREGA JUDICIAL DE BENS
Data do Acordão: 05/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.305, 306, 307, 313, 387 CPC, DL Nº 149/95 DE 24/6, DL Nº 30/2008 DE 25/2
Sumário: I. Nos processos – incluindo os procedimentos cautelares - referentes a contratos de locação financeira, o valor é o equivalente ao da soma das prestações em dívida até ao fim do contrato acrescido dos juros moratórios vencidos” (art. 307/2 do CPC).

II. O procedimento cautelar especificado de entrega judicial do bem locado financeiramente não pode ser recusado com base no fundamento do art. 387/2 do CPC.

III. A antecipação do juízo sobre a causa principal (previsto no art. 21º/7 do Dec. Lei 149/95, na redacção actual) tem um objecto diverso do objecto próprio do procedimento cautelar.

Decisão Texto Integral:               Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

              O Banco (…) SA, requereu, em 29/07/2010, a presente providência contra F (…) – Sociedade Unipessoal Lda, com sede em Viseu, e J (…) , residente em (…), pedindo que:

              - seja ordenada a entrega ao requerente do equipamento identificado no requerimento e, ainda, que seja autorizado a, após a referida entrega, poder imediatamente dispor do equipamento em causa;

              - a condenação dos requeridos, solidariamente entre si, a pagarem-lhe 8.152,44€ + 10.722,19€, a que acrescem 394,20€ de juros vencidos até 28/07/2010, os juros que à taxa de 6,66% se venceram desde então sobre 8.152,44€ até integral pagamento e os juros que, à taxa legal de 4%, se vencerem desde a citação até integral pagamento sobre 10.722,19€.

              No cabeçalho do requerimento dizia que requeria também decisão antecipando o juízo sobre a causa principal, nos termos do art. 21º do Decreto-Lei 149/95, de 24/07, com  alterações nele introduzidas pelo Dec.-Lei 30/2008, de 25/02, e é a esta parte que se refere a parte do pedido que se refere à condenação solidária dos requeridos.

              Fundamenta estes pedidos num contrato de locação financeira cujas rendas 36 a 49 não foram pagas. Dizia que o valor do equipamento era de 95.247,17€.

              Os requeridos apresentaram oposição, em que impugnam, quando dizem que: o requerente não invoca quaisquer factos justificativos do fundado receio de perda das garantias patrimoniais do seu crédito; nem justifica qual o dano provável ou perigo iminente de insatisfação do seu di-reito. E excepcionam enquanto dizem que os requeridos sempre demons-traram intenções sérias para com a requerente de solver a divida, tendo, aliás, entrado em contacto com a requerente expondo a sua situação econó-mica deficitária; propostas que não foram objecto de merecimento pela requerente, que as recusou sistematicamente, não olhando às condições económicas deficitárias da requerida e às suas intenções sérias de solver a divida; a requerida continua a utilizar o equipamento locado na sua activi-dade profissional, daí retirando os rendimentos indispensáveis ao exercício da sua actividade; caso a entrega do equipamento ocorra, nos termos pedidos pela requerente, a requerida ficará privada da sua única fonte de rendimento, o que implicará necessariamente o fim do exercício da sua actividade.

              Os requeridos impugnaram ainda o valor que o requerente atri-buiu à providência (de 114.516,02€), o que fizeram para os efeitos do disposto no art. 314º do CPC. Dizem que o valor da mesma deve ser apenas de 18.874,63€ (valor em dívida), acrescido dos juros vencidos no montante de 394,20€, por ser esse o prejuízo que a requerente pretende evitar.

              Concluem no sentido de ser indeferida a providência por inobser-vância dos pressupostos legais que justificam o seu decretamento ou, subsi-diariamente, ser recusada a providência, porquanto o prejuízo para a reque-rida com o seu decretamento e consequente entrega do equipamento (quase pago), excederá consideravelmente o dano que com ela a requerente preten-de evitar e que, aliás, se encontra sempre salvaguardado.

              No dia 22/11/2010 foi então proferida sentença em que se decidiu:

              Quanto ao valor da providência:
         “Estamos perante um procedimento cautelar com vista à entrega judicial de bem locado e cancelamento de registo.
         O valor que deve ser atribuído a este procedimento cautelar é o resultante da regra geral estabelecida no art. 305º/1 do CPC, ou seja, o representativo da utilidade económica imediata do pedido formulado, que corresponderá ao valor real da coisa locada.
         A ser assim atendendo ao valor da coisa locada fixa-se a este procedimento o valor de 95.247,17€.
         Valor deste incidente: a diferença entre o valor indicado na p.i. e o ora fixado.
         Custas a pagar pelo requerente e requeridos na proporção do decaimento (atendendo às respectivas versões).”

              Quanto à providência propriamente dita,
         decidiu-se pela sua improcedência, absolvendo-se os requeri-dos.

              Quanto ao pedido de decisão antecipando o juízo sobre a causa principal,
         decidiu-se verificar-se a excepção dilatória de falta de instru-mentalidade, indeferindo-se liminarmente o pedido de antecipação do juízo sobre a causa principal.

              O requerente interpôs recurso destas três decisões, com o fim de serem revogadas e substituídas por outras que dêem procedência às suas pretensões, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
         1. Ao atribuir à causa o valor apenas de 95.247,67€, em vez de  114.516,02€ conforme o recorrente, requerente em 1ª instância, indicou na petição da providência, e ao condenar consequentemen-te o mesmo em parte das custas relativamente a tal incidente, o Sr. juiz recorrido violou o disposto nos arts 305°/1 e 306º/2, do CPC.
         2. Ao indeferir a providência - que começou até por denomi-nar também como para “cancelamento de registo” - no que respeita à entrega e restituição do veículo dos autos ao recorrente, o Sr. juiz recorrido violou o disposto nos arts 21º, n°s 1, 2, 4, 7 e 8 do Dec-Lei 149/85, com a actual redacção do mesmo.
         3. Ao não ter decidido de conformidade com o disposto no nº. 7 do art. 21 do citado Decreto-Lei, com a actual redacção do mesmo, isto é ao não antecipar o juízo sobre a causa principal, o Sr. juiz recorrido violou o dito preceito.
         […]                              

               Os requeridos não contra-alegaram.

                                                                 *

              Questões que importa decidir: se o valor da providência é o que lhe foi dado pela decisão recorrida, ou seja, o do equipamento cuja entrega se pretende; se a providência podia ter sido recusada com o fundamento com que o foi; se o pedido de decisão sobre a antecipação do juízo sobre a causa principal podia ter sido indeferido liminarmente; no caso de não o poder ter sido, fica por saber se pode ser decidido desde já e, nesse caso, em que sentido.

                                                                 *  

              São os seguintes os factos dados como provados e que não são postos em causa pelo recurso:
         1. A pedido e solicitação da S (…) Lda, o requerente – no exercício da sua actividade de locação financeira – adquiriu o veículo agrícola da marca Valtra, modelo, 6850 Hitech Tractor, com a matrícula ..., que por contrato nº ..., constante de título particular, datado de 03/08/2007, entregou à dita S (…)em regime de locação financeira mobiliária, nos termos constantes do contrato, e que, por contrato de cessão de posição contratual, datado de 28/05/2007, foi cedido, com assentimento do requerente, com efeitos a partir de 28/05/2007, à requerida.
         2. Nos termos do referido contrato era de 49 o número total de rendas a pagar pelo locatário ao requerente, sendo a primeira renda do montante de 32.747,17€ e as restantes no montante de 1.358,74€ cada, incluindo o IVA à taxa então em vigor e o prémio de seguro de vida e as despesas de cobrança por transferência bancária, e sendo de 9.525,97€ o preço [residual, ou seja, o preço] pelo qual o locatário tinha o direito de o adquirir ao requerente no final do prazo do contrato, cumprido integralmente que fosse o mesmo [corrigiu-se o lapso de escrita, pois que onde está 1.358,74€, estava escrito 1.378,74€, como o tinha escrito o requerente, em evidente desacordo com o documento respectivo].
         3. Era mensal a periodicidade das rendas, com vencimento aos dias 20 de cada mês.
         4. Mais acordaram que o incumprimento do contrato implicava a resolução do mesmo.
         5. De harmonia com o acordado entre as partes, a importância de cada uma das rendas, e o valor do prémio de seguro, deveriam ser pagos pelo locatário ao requerente por transferência para conta bancária do requerente.
         6. No caso de resolução bem como no caso de termo do dito contrato a requerida tinha que imediatamente restituir ao requeren-te o equipamento, suportando os riscos e custos inerentes à sua restituição e as consequências da não utilização normal e prudente do mesmo, e o requerente teria ainda sempre o direito a fazer suas as rendas vencidas e pagas, a receber do locatário o montante das rendas vencidas e não pagas até à data da resolução do contrato, acrescido dos respectivos juros moratórios à taxa moratória acorda-da, ou seja à data à taxa de – porque indexada – 6,66% (4,66% + 2%) e a haver, ainda, da locatária o correspondente à obrigação desta de “pagar 20% do total das rendas  vincendas, à data da resolução, acrescido do valor residual.” [alterou-se a redacção da parte em itálico para a pôr de acordo com o art. 11/4c) do contrato celebrado entre as partes e que tinha sido mal citado pelo requerente].
         7. Aquando da celebração do contrato de cessão de posição contratual o locatário deu instruções para o pagamento das rendas e do prémio de seguro serem feitos por meio de transferência de conta bancária da requerida para conta bancária do requerente .
         8. Após a celebração do contrato, o locatário recebeu o equi-pamento que, nos termos do contrato, o requerente, a solicitação do mesmo, adquiriu.
         9. O requerente procedeu ao registo na Conservatória do Registo Automóvel do contrato de locação financeira mobiliária e da cessão de posição contratual.
         10. A requerida – o locatário ao presente - não pagou ao  requerente as rendas 36ª a 43ª (que se venceram nos dias 20 dos meses de Julho de 2009 a Fevereiro de 2010), nem qualquer das demais rendas acordadas.
         11. Nos termos e condições gerais do contrato o facto refe-rido em 10 implicou a resolução do mesmo, nos precisos termos acordados e constantes do contrato - , como o requerente fez saber à requerida, por carta registada expedida com aviso de recepção, dirigida à sede da mesma - carta datada de 01/03/2010 -, conce-dendo-lhe um novo prazo adicional de 10 dias para o cumprimento, continuando porém a requerida em situação de incumprimento [cortou-se a parte final – que dizia: “que assim se tem de haver como incumprimento definitivo” - por ser conclusão de direito].
         11-A. O contrato podia ser resolvido se a mora no pagamento de uma renda fosse superior a 60 dias e este incumprimento temporário tornava-se definitivo se, após o envio por carta registada com a/r para o domicílio do locatário, intimando-o ao cumprimento em prazo razoável que foi logo fixado em 10 dias, o locatário não precludisse o direito à resolução do contrato por parte do locador, procedendo ao pagamento do montante em dívida, acrescido de 50% (art. 11 do contrato em causa) [acrescentou-se este facto, provado também pelo documento, não impugnado pelos requeridos, ao abrigo dos arts. 659/3 e 713/2, ambos do CPC, para que as referências constantes do ponto 11 possam ser entendidas].
         12. O requerido, sócio gerente da requerida, constituiu-se como fiador e principal pagador da requerida com referência a todas as obrigações por ela assumidas no contrato, - após a cessão referida.
         [cortou-se o facto 13, ao abrigo do art. 646/4 do CPC, por ser conclusão de direito: respeitava ao cálculo daquilo que estava em dívida, tendo em conta as normas legais e contratuais invocadas]
         14. O valor do equipamento é de 95.247,17€.
         15. O equipamento não foi restituído ao requerente.
         16. O requerente procedeu já ao cancelamento do registo oportunamente feito da locação financeira feita e da cessão de posição contratual com referência ao equipamento.
         17. Os requeridos sempre demonstraram intenções para com a requerente, de solver a divida, tendo aliás, entrado em contacto com a requerente expondo a sua situação económica deficitária e propondo acordo que passaria por um aumento do numero de rendas.
         18. Propostas que não foram objecto de merecimento pelo requerente, que as recusou.
         19. A requerida continua a utilizar o equipamento locado na sua actividade profissional.
         20. Daí retirando os rendimentos indispensáveis ao exercício da sua actividade.
         21. Caso a entrega do equipamento ocorra, nos termos pedi-dos pelo requerente, a requerida ficará privada da sua única fonte de rendimento, o que implicará necessariamente o fim do exercício da sua actividade, tendo não só de proceder ao despedimento dos trabalhadores afectos ao exercício da sua actividade, bem como deixará de poder pagar aos fornecedores, entre outros tantos prejuízos.

                                                                  I

                                    Quanto ao valor do procedimento

              Diz o requerente/recorrente:
         “[…] é expresso o art. 305º/1 do CPC ao estabelecer que “a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido”.
         E qual foi o pedido?
         O pedido foi para a restituição do veículo, cujo valor é de 95.247.17€, mais a condenação dos recorridos no valor das impor-tâncias vencidas, nos termos do contrato dos autos até à data da propositura da acção, ou seja de 18.874,63€, mais 394,20€, ou seja um total de 19.268,83€.
         Na presente providência cumularam-se dois pedidos, o da restituição do veiculo e o de pagamento das ditas importâncias.
         Ora é expresso o art. 306º/2 do CPC ao estabelecer que:
“Cumulando-se na mesma acção vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles; mas quando, como acessório de pedido principal, se pedirem juros
de rendas e rendimentos já vencidos e os que se vencerem durante a pendência da causa, na fixação do valor atenta-se somente aos interesses já vencidos”.
         Ora os interesses já vencidos à data da propositura da acção são os tais 19.268,83€.
         Logo o Sr. juiz a quo errou ao fixar à causa o valor apenas de 95.247,17€, quando o valor da mesma deve ser fixado no indicado na petição da presente providência, ou seja em 114.516,02€, o somatório do valor do bem locado com os interesses vencidos à data da propositura do acção.
         Violou, pois, o Sr. juiz a quo na decisão ora cm causa., o disposto nos artigos 305°/1 e 306°/2, do CPC.”

              O recorrente não tem razão (para além de que cita erradamente a norma do art. 306/2 do CPC – ao escrever ‘juros de rendas’ em vez de ‘juros, rendas’), tal como a não tem a decisão recorrida, nem os requeridos.

              Lembram Lebre de Freitas/João Redinha/Rui Pinto, CPC anotado, vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, Junho de 2008, pág. 588, desde logo que
         “Há, porém, que ter em conta que o pedido se funda sempre na causa de pedir […], que o explica e delimita. Dela não abstrai o critério da utilidade económica do pedido, pelo que este não é considerado abstractamente, mas sim em confronto com a causa de pedir, para o apuramento do valor da causa; assim, por exemplo, a acção em que se formula o pedido de entrega de um prédio a título de arrendamento (ou da sua devolução por via da extinção deste) não tem o mesmo valor que aquela em que o mesmo prédio seja pedido com base em título de propriedade […]” [o sublinhado foi feito por este acórdão do TRC].

              Esta explicação destes autores logo salienta o erro da posição do requerente: ao pretender que o valor do equipamento sirva para determinar o valor da providência, está a querer aplicar a regra especial do art. 311/1 do CPC, ao mesmo tempo que invoca, em contradição com isso, as regras gerais dos arts. 305 e 306 do CPC.

              Isto posto, diga-se que as partes e a decisão recorrida esquecem a regra especial do art. 307/2 do CPC (acrescentada pelo Dec.-Lei 34/2008, de 26/02):
         “Nos processos referentes a contratos de locação financeira, o valor é o equivalente ao da soma das prestações em dívida até ao fim do contrato acrescido dos juros moratórios vencidos”.

              Havendo esta regra especial, não há razões para aplicar as regras gerais dos arts. 305 e 306 do CPC.

              É certo que ainda se poderiam invocar as regras especiais do art. 313/3 do CPC mas, primeiro, a providência em causa não está aí incluída.

               Segundo, a regra do nº. 1 do art. 313 do CPC diz:
         “O valor dos incidentes é o da causa a que respeitam, salvo se o incidente tiver realmente valor diverso do da causa, porque neste caso o valor é determinado em conformidade dos artigos anterio-res”.

              Ora, como lembram os autores citados acima, agora na nota 2 ao art. 313, pág. 601:
         “O incidente tem valor diverso do da causa se a utilidade económica que visa realizar não coincidir com a da acção […] Este mesmo tratamento têm, em todos os casos, os procedimentos […] cautelares […]”.

               Pelo que, havendo a regra especial do art. 307/2, o resultado é sempre o mesmo: ou porque o procedimento tem o valor da causa a que respeita e o valor da causa é determinado pelo art. 307/2; ou o procedimento teria valor diverso da causa e teria que ser à mesma determinado pela regra do art. 307/2, por força da parte final do art. 313/1, todos do CPC.

              Ora, da regra do art. 307/2 do CPC resulta que o valor desta providência é apenas igual ao valor da soma das prestações em dívida até ao fim do contrato, acrescido dos juros moratórios vencidos, ou seja: 18.452,66€ [= 8 x 1.358,74€ (que dá 10.869,92€ e não 8.152,44€ como diz o requerente) + 394,20€ + 6 (prestações vincendas sem IVA) de 1.198,09€].

                                                                 II

                                            Quanto ao procedimento

              Depois de ter analisado todos os pressupostos necessários à proce-dência do procedimento pedido, e de ter concluído pela sua verificação, a decisão recorrida disse:
         “A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribu-nal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar”.
         Exige-se, assim, que haja adequação da requerida providência à prevenção da lesão, respeitando-se a regra da proporcionalidade entre o dano resultante do decretamento da providência e o dano a evitar, de modo a obstar a decisões certas ou formalmente correctas mas injustas pela gravidade das consequências do deferimento da providência.
         Deve, assim, o juiz colocar na balança dos interesses, a par dos prejuízos que o requerente pretende evitar, também aqueles que, porventura, a decisão possa determinar na esfera jurídica do requerido.
         Quer isto dizer que se torna necessário averiguar se a situação de conflito emerge de direitos iguais ou da mesma espécie ou se, ao invés, esses direitos são desiguais e de espécie diferente. Caso em que a colisão de direitos tem de ser resolvida à luz dos princípios gerais do direito substantivo, onde rege o estabelecido no art. 335º do CC.”

              E, depois de dizer que o valor do bem locado é de 95.247,17€ e que só estão em dívida 8.152,44€ [o que esquece as rendas vincendas e, para além disso, corresponde a um lapso de contas que parte do erro requerente, como já se viu…] e juros, e de transcrever os factos 17 a 21 (que tinham sido alegados e provados pelos requeridos), concluiu:
         “Desta factualidade retira-se, sem dúvida que, o dano que do decretamento da providência resulta para o direito dos requeridos, excede o prejuízo que com ela se pretende evitar, pois, o dano causado prende-se com o encerramento do local de trabalho e de rendimento de pessoas, com as consequências que daí advêm (com o desemprego) em sede pessoal, profissional e familiar.”

                                                                 *

              O diploma regulador do contrato de locação financeira (leasing), que é o Dec. Lei 149/95, de 24/06, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei 30/2008, de 25/02, prevê, no seu art. 21º, a providência cautelar de entrega judicial do bem locado, com as seguintes normas com interesse para o caso:
         1. Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação  financeira, a efectuar por via electrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente.
         2. Com o requerimento o locador oferecerá prova sumária dos registos previstos no numero anterior, excepto a do pedido de cance-lamento do registo, ficando o tribunal obrigado à consulta do registe a efectuar sempre que as condições técnicas o permitam, por via electró-nica.
         […]
         4. O tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.° 1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada.
         […]
         6. Decretada a providência e independentemente da interposição de recurso pelo locatário, o locador pode dispor do bem, nos termos previstos no art. 7º.
         […]
         8. São subsidiariamente aplicáveis a esta providência as disposições gerais sobre providências cautelares, previstas no CPC, em tudo o que não estiver especialmente regulado no presente diploma.

              Como diz a própria sentença recorrida, se se concluir, indicia-riamente, pela […] verificação daqueles requisitos [do nº. 1 do art. 21: i) cessação do contrato ii) não restituição do bem], nada mais se exige para que o tribunal decrete a providência.

              A lei não exige, pois, o fundado receio de perda das garantias patrimoniais do crédito ou o perigo iminente de insatisfação do seu direito, e por isso o requerente não os tinha que invocar ao contrário do que pretendem os requeridos.

              Neste sentido, vejam-se, de forma directa ou indirecta, os acs. do TRL de 08/06/2010 (22722/09.0T2SNT.L1-7); do TRC de 07/09/2010 (269/08.2TBSAT-A.C1); do TRC de 15/09/2009 (76/09.5TVPRT.C1); do TRL de 13/07/2010 (879/10.8TBMTJ.L1-8); e do TRC de 19/10/2010, na nota 18 (358/10.3T2ILH.C1 - todos estas referências são à base de dados do ITIJ).

              Rui Pinto, A questão de mérito na tutela Cautelar, Coimbra Editora, 2009, págs. 134, 141 e 142, fala deste regime como de uma previsão de perigo presumido, em que se utiliza a técnica da sumariedade imediata por simples relevância legal de um tipo de direito e diz, na nota 574:
         não é fundada em periculum concreto (RL 23/04/1996, RL 11/07/1996; contra: RL 26/09/1996) mas numa efectiva e corrente violação do direito, resultante do contrato estar “findo por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra” e “o locatário não proceder à restituição do bem locado”, requisitos cuja “probabilidade séria da verificação” deve ser demonstrada, segundo o nº. 4 do dito art. 21. A lei qualifica-a como providência cautelar e sujeita-a ao respectivo regime do CPC – cf. nº. 8 do mesmo artigo 21”.

               E mais à frente (págs. 593 a 595):
         “[…] o requerente est[á] dispensado da dupla tarefa de alegação e prova do periculum, ao abrigo […] do art. 21 do Dec. Lei 149/95, de 24/06. […] nestes casos, no dizer do ac. do TRP de 26/11/1992, o elemento de facto futuro da causa de pedir é presumido “juris et de jure e, portanto, inilidível pela parte contrária […]”

              Como aqueles requisitos (cessação do contrato, não restituição do bem) estavam mais que indiciados (foram admitidos por acordo…), a providência devia ter sido deferida.

                                                                 III

                                         Da recusa do procedimento

              A sentença, para concluir o contrário, invoca o disposto no art. 387/2 do CPC, embora sem o dizer expressamente. Mas é o que resulta da transcrição do conteúdo de tal normativo:
         “A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribu-nal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.”

               Ora, esta norma do art. 387/2 do CPC, prevista para o procedimen-to cautelar comum, não é aplicável aos procedimentos cautelares especifica-dos, por força do art. 392/1 do CPC. Neste sentido, veja-se Lebre de Freitas e outros, obra citada, vol. 2º, Agosto de 2008, 2ª edição, págs. 39, 68-69, § final da anotação 3 do art. 387 do CPC. No mesmo sentido, veja-se Rui Pin-to, obra citada, pág. 647 (“embora ela seja repescada em sede específica” de outra providências especificadas, que não é o caso da que está em causa nos autos).

               Não é aplicável legalmente, nem faria sentido que o fosse (como também não faz sentido recusar outros procedimentos com tal fundamento, como expli-cam Lebre de Freitas e outros, na passagem acabada de citar), vistos os únicos requi-sitos que estão em causa neste procedimento (onde, repete-se, não tem de ser alegado ou provado qualquer perigo em concreto – veja-se ainda Rui Pinto, obra citada, 1º§ da pág. 594).

               E daí que nem seria de aplicar tal fundamento de recusa do procedimento, mesmo que em abstracto pudesse ser aplicado: a ponderação que se pressupõe na norma em causa é perante uma situação de perigo analisada perante os juízos indiciários pressupostos num procedimento cautelar: havendo o perigo de uma má decisão, potenciada pela natureza sumária do juízo inerente a qualquer procedimento cautelar, e de essa decisão causar um prejuízo grave a um interesse – necessariamente legítimo - do requerido, a lei impõe o indeferimento da providência, no caso de esse prejuízo para o interesse do requerido ser consideravelmente superior ao do que o requerente pretende(rá) evitar.

              Ora, por um lado, não tendo sido contestados os factos constitutivos do direito invocado pelo requerente, sabe-se desde logo que não há perigo nenhum de uma errada decisão de deferimento da providência, pois que o direito do requerente existe inequivo-camente. Por outro, sabe-se já, também, que o interesse do requerido não é legítimo: pretende continuar a utilizar o bem que não é dele, depois de resolvido eficazmente o contrato que lhe daria título para o fazer.  Sem esse contrato, a utilização de um bem de outrem, para evitar dificuldades económicas próprias ou de terceiros, traduzir-se-ia na expropriação de um particular por outro, sem indemnização. Ou seja, numa violação daquele direito de propriedade, constitucionalmente protegido.

              No sentido da utilização destes factores – quando seja de fazer o juízo de proporcionalidade - vejam-se as passagens citadas por Rui Pinto, obra citada, págs. 237 a 240, quanto está a fazer a descrição do entendimento genérico deste juízo:
         A jurisprudência irlandesa entende que “o tribunal, deve, em função da demonstração dos requisitos respectivos e do grau de convencimento obtido sobre eles, proceder a uma balance of convenience” […] “Idênticamente, nos EU, em razão do elevado risco de erro por parte de um tribunal que decidir com base em informação incompleta, opera um balancing the harships e defenses”. “ […p]ara as doutrinas francesa e alemã, a formação de um juízo de proporcionalidade […] deve ter em conta a intensidade de vários factores referentes ao litígio […e] a intensidade e presença desses factores dependerão por completo da intensidade do fumus […], a saber: a aparência do direito do requerente sobre o direito do requerido, incluindo a grande possibilidade de procedência futura da acção principal; a verosimilhança do perigo; a intensidade do perigo[os sublinhados são colocados neste ac. do TRC].

              Note-se que apesar de se estarem a citar passagens da obra de Rui Pinto, o que antecede não têm bem a ver com a posição por ele assumida, já que para este autor a proporcionalidade tem mais a ver com a “natureza constitutiva ou ingerente da situação jurídica acautelante, cumulada com a sua provisoriedade intrínseca”, ou seja, perante o facto de “estarmos perante uma acção constitutiva cujos efeitos podem ser significativamente exigentes mas que, apesar disso assenta, no plano material, sobre uma causa de pedir com uma dimensão futura que a torna probatória e materialmente instável, e no plano normativo sobre uma estatuição variável” (págs. 649 e 650), pelo que a visão dominante que associa “o juízo de proporcionalidade apenas e somente à própria provisoriedade da tutela cautelar e ao carácter sumário da respectiva cognição” (pág. 648), não seria correcta, como também resultaria do facto de “um tal juízo de proporcionalidade não constituir, em regra, condição ou limite à concessão de tutela antecipada” (ex: injunção, revelia, execução provisória…) “em que os fenómenos da summaria cognitio, da provisoriedade  e da ausência do contraditório são correntes” (pág. 648).

              Mas aceitando a construção deste autor, a verdade é, por um lado, no caso dos autos o direito do requerente, por não ter sido contestado, não se pode dizer estar assente numa dimensão futura instável, e o direito da requerida à utilização do equipamento manifestamente não existe (por a falta de contestação também apontar para a validade da revogação do contrato), pelo que, no caso, não se poderia falar de colisão de direitos, sendo que, para este autor, decretar uma cautela acaba por ser resolver uma colisão de direitos (págs. 652/653).

              Pelo que, conclui-se, o procedimento não podia ter sido declarado improcedente com este fundamento.

                                                                 *

                                                                IV

              Quanto à decisão de antecipação do juízo da causa principal

              Diz o nº. 7 do art. 21 do Dec. Lei 149/95 na redacção actual:
         “Decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, excepto quando não te-nham sido trazidos ao procedimento nos termos do n° 2, os elementos necessários a resolução definitiva do caso”.

              A decisão recorrida entendeu que, perante a improcedência do procedimento, não havia qualquer relação de instrumentalidade entre a providência e acção principal pelo que considerou verificar-se a excepção dilatória respectiva, indeferindo liminarmente o pedido de antecipação do juízo sobre a causa principal.

              Afastada a razão de ser do indeferimento liminar – pois que afinal o procedimento vai ser deferido -, há que dar seguimento ao pedido do reque-rente, de antecipação do juízo.

              Tem-se visto defender, no entanto, que esta antecipação do juízo sobre a causa principal só diz respeito ao preciso objecto do procedimento cautelar. Ora, este objecto é só a entrega do bem locado, não a condenação solidária dos requeridos (um deles como fiador) no pagamento das rendas vencidas e percentagem das rendas vincendas e do valor residual e juros vencidos e vincendos.

              No fundo considera-se que o juízo e actividade sumária de um procedimento cautelar, para um simples pedido de entrega de uma coisa, não é, nem pode substituir um juízo de mais larga indagação, e com mais garantias processuais, de um objecto diverso.

   Neste sentido da inadmissibilidade da decisão definitiva ir para além da condenação definitiva na entrega do objecto locado, vejam-se os seguintes dois acórdãos dos tribunais das Relações (o STJ, dada a natureza deste processo não tem tido ocasião de se pronunciar):

Do TRC de 30/06/2009 (51/09.0TBALB-A.C1):
         1. Na redacção dada pelo DL 30/2008 de 25/02 ao nº 7 do art. 21 do DL 149/95, com a decisão da providência cautelar de entrega do bem locado fica definitivamente resolvida a questão da restituição do bem com base na resolução, dispensando-se o locador de propor a acção principal destinada à declaração do direito de entrega do bem locado, meramente acautelado. 2. Verdadeiramente aquele procedimento deixou de ter a natureza de uma providência cautelar. Passou a constituir um procedimento abreviado ou simplificado de condenação definitiva do locatário a entregar a coisa locada ao respectivo locador. 3. Por conseguinte, a acção que o legislador de 2008 procurou eliminar foi apenas aquela que visa o reconhecimento do direito do locador à entrega do bem locado (com a correspondente condenação do locatário), seja quando esse direito se funda em resolução já comunicada, ou no mero decurso do prazo do contrato (sem que, entretanto, o locatário tenha exercido a opção de compra). Não foi, pois, seguramente, outra qualquer acção, nomeadamente a relativa à condenação do locatário na satisfação das quantias devidas por força do contrato, ou do seu eventual incumprimento).

              E do TRL de 28/09/2010 (10096/09.4TBCSC-A.L1-7):
         A possibilidade de, decretada a providência cautelar, ser antecipado o juízo sobre a causa principal, respeita apenas àquilo que na providência se apreciou e julgou provisoriamente, ou seja, a imediata entrega do bem ao requerente, não podendo o tribunal emitir decisão sobre a indemnização pretendida.

              O acórdão de 04/02/2010, nº. 62/2010, do Tribunal Constitucional, parece pressupor esta mesma posição, mas note-se que, no caso, apenas se tinha feito um pedido genérico de apreciação da causa principal:
         Este acórdão faz referência, como aquelas decisões judiciais já citadas, que: “[d]e acordo com a mens legislatoris expressa no exórdio do diploma que consagrou esta medida processual (Dec.-Lei n.º 30/2008, de 25/02) “[e]vita-se assim a existência de duas acções judiciais — uma providência cautelar e um acção principal — que, materialmente, têm o mesmo objecto: a entrega do bem locado”.

              Em sentido contrário, conhece-se uma decisão, individual, do TRL, de 07/07/2009 (5174/08.0TBVFX.L1-7 - sempre da base de dados do ITIJ):
         1. No procedimento cautelar para entrega do locado, no âmbito do regime do contrato de locação financeira, o juiz pode decidir a causa principal logo no referido procedimento, nos termos do nº 7 do art. 21º do Dec.-Lei 149/95, de 24/06, na redacção dada pelo Dec.-Lei 30/2008, de 25/02.
         2. Porém, como pode não coincidir o objecto do procedimen-to cautelar com o objecto da acção, o julgamento antecipado terá de inscrever-se na esfera desse procedimento.
         3. Tal não obstará a que o julgamento antecipado alcance a indemnização moratória pelo atraso na restituição do locado, mormente quando se trate de indemnização a forfait, que é, de algum modo, acessória ou complementar da obrigação principal de restituição, até porque nada mais haveria a discutir na acção principal.

              Outras decisões dos tribunais das relações por uma ou outra razão não tomam posição sobre a questão, como se vê do que se segue:

              No caso do TRL de 20/05/2010 (5046/09.0TBOER.L1-6):
         determinou-se, revogando decisão em sentido contrário, que fosse feita a antecipação do juízo, mas só estava em causa a conde-nação em definitivo da requerida na restituição do veículo locado.

              No ac. do TRP de 08/11/2010 (4456/10.5TBVNG-A.P1)
         também se determinou que o juiz recorrido procedesse à ante-cipação do juízo, o que o tribunal recorrido tinha indeferido por não saber o que é que o requerente queria na acção principal, já que o requerente se tinha limitado a pedir a antecipação do juízo… O ac. do TRP não respondeu à questão.

              No TRG de 30/07/2010 (4055/09.4TBBCL.G1)
         também só se punha a questão da condenação definitiva na entrega.

               Entretanto, um estudo de Paula Costa e Silva, de 03/01/2009, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 69, vol. III/IV, distribuído em Dez 2010, a propósito de idêntico regime do art. 16 do Regime Processual Experimental, depois de perguntar:
         Pressuporá esta regra uma identidade objectiva entre a providência e a causa principal hipotética?

               veio defender, que:
         Se é evidente que é mais fácil de configurar a aplicação deste novo regime em hipóteses em que se verifique uma identidade objectiva entre a providência e o processo principal, esta identidade não tem de estar presente para que o art. 16 do seja aplicado. Ele não a impõe, nem implicitamente a requer. O que é necessário é que na providência tenham sido alegados todos os factos que concorrem para a substanciação daquele que seria o pedido a deduzir na causa principal e que, apesar de não deduzido, é identificado na petição do procedimento cautelar.

               E exemplifica:
         Pense-se, por exemplo, no requerimento de um arresto. Sendo alegada a existência de um direito a uma prestação, sendo identificado o dever de prestar, não obstante a parte não requerer a condenação da contraparte na realização dessa prestação – o que ela pede é o decretamento de um arresto, demonstrando os respectivos pressupostos – poderá alegar todos os factos necessários à substanciação de um pedido de condenação no cumprimento. Neste caso, não obstante não existir uma identidade objectiva entre a providência e aquela que poderia vir a ser a acção principal, tem plena aplicação a solução contida no art. 16. Neste caso, ouvidas as partes, pode o juiz ir além do decretamento da providência; pode condenar o requerido a cumprir.” (págs. 916 a 919).

               Note-se que o art. 16 do RPE, com a epígrafe de ‘Decisão da causa principal’, e inserido no capítulo IV com a epígrafe de Procedimentos cautelares e processos especiais, tem, no que importa, o mesmo teor do art. 21º/7 do Dec. Lei 149/95 na redacção actual:
         Quando tenham sido trazidos ao procedimento cautelar os elementos necessários à resolução definitiva do caso, o tribunal pode, ouvidas as partes, antecipar o juízo sobre a causa principal.

               No sentido da aproximação dos regimes (do art. 21º/7 do Dec.-Lei 149/95 na redacção actual, e do art. 16 do RPE), veja-se Rui Pinto Duarte, O con-trato de locação financeira – uma síntese, publicado sob http://www.fd.unl.pt/ docentes_docs/ma/rpd_MA_12557.pdf).

               Falando de aproveitamento da providência cautelar, nos seus ele-mentos, para a abertura de uma acção de tutela plena/antecipatória e de convolação da tutela cautelar em verdadeira tutela antecipatória, a propósito do RPE, veja-se Rui Pinto, obra citada, 303/304, nota 1491, concluindo que o meio do art. 16 do RPE é de pura tutela antecipatória, com o aprovei-tamento possível do objecto cautelar que possa ser aproveitado. E diz que isto é possível porque materialmente há um concurso entre a pretensão deduzida cautelarmente e a pretensão deduzida na tutela plena antecipatória […]. E mais à frente (págs. 324 e 555), fala na possibilidade de convolação do processo cautelar em processo final – possivelmente sumário em termos de cognição – ao abrigo do art. 16 do RPE. Também não parece pressupor, pois, a identidade de objecto.

               Também Remédio Marques, A acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, Setembro de 2007, págs. 132 a 135, não  pressupõe a identidade do objecto, ao referir que:
         “permite-se, nestes casos, a antecipação, no processo caute-lar, do juízo sobre o mérito da causa principal (já proposta ou a propor), contanto que o autor tenha alegado a causa de pedir do direito que pretende ver acautelado na acção principal […]”.
                                         *

               Isto salvaguardada a prudência de que fala Remédio Marques e também o princípio do processo equitativo, mas aqui tendo em conta que este não tem um conteúdo rígido, como explica Paula Costa e Silva, no estudo citado, pág. 919. O que concretiza:
         “para que seja possível ao juiz pronunciar-se sobre o objecto da hipotética causa principal subsequente, é necessário que sobre os factos que integram a causa de pedir desta acção haja sido feita prova em sentido estrito, ou seja, que sobre os factos daquele que seria o objecto de uma causa principal, relativamente à qual a providência haveria de ter sido meramente instrumental, tenha o juiz logrado, com a prova que foi produzida, atingir uma certeza” (págs. 918 e 919).

                                                                 *

              Quanto à referência legal ao mesmo objecto, que consta do exórdio do Dec. Lei de 2008, é elemento com reduzido valor, tanto mais que idêntica referência não é feita no Dec. Lei que criou o RPE, cujo artigo 16 tem, como se viu, idêntico teor. 

              Aliás, como o demonstra em abstracto Rui Pinto (por exemplo, págs. 507 –: “o objecto da tutela cautelar não é uma parte do objecto da acção principal é outro objecto – 521, nota 2282, 523 –: “permanência da diferença de objectos entre providência cautelar e acção principal…”, 664; - da obra citada), o objecto do processo cautelar não é o mesmo da acção da causa principal.

              Considera-se assim que não há razões para a interpretação restritiva que os dois referidos acórdãos do TRC e do TRL fizeram do dever previsto no art. 21º/7 do Dec. Lei 149/95, na redacção de 2008, não devendo, por isso, ser exigida a identidade do objecto do procedimento e da causa principal.

              Pelo que há que dar seguimento à questão da antecipação do juízo sobre a causa principal, determinando-se a audição das partes sobre a questão e não, como quer o requerente, antecipar-se, já, o juízo sobre a causa principal.

                                                      *

               Sumário:

               I. Nos processos – incluindo os procedimentos cautelares - referentes a contratos de locação financeira, o valor é o equivalente ao da soma das prestações em dívida até ao fim do contrato acrescido dos juros moratórios vencidos” (art. 307/2 do CPC).

              II. O procedimento cautelar especificado de entrega judicial do bem locado financeiramente não pode ser recusado com base no fundamento do art. 387/2 do CPC.

              III. A antecipação do juízo sobre a causa principal (previsto no art. 21º/7 do Dec. Lei 149/95, na redacção actual) pode ter [melhor: tem] um objecto diverso do objecto próprio da procedimento cautelar.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se procedente o recurso quanto ao valor da cau-sa, embora com outros fundamentos, revogando-se o despacho judicial que o fixou em 95.247,17€, substituindo-o por este que fixa ao procedimento cautelar o valor de 18.452,66€.

              Julga-se procedente o recurso quanto à decisão de improcedência do procedimento, condenando a requerida a entregar ao requerente o tractor agrícola com a matrícula ..., podendo este, após a entrega imediatamente dispor do equipamento em causa.

              Julga-se parcialmente procedente o recurso quanto ao indeferimen-to liminar da antecipação do juízo sobre a causa principal, determinando-se que se dê seguimento ao mesmo, mandando-se ouvir as partes sobre a causa principal.

              Custas do incidente do valor da causa pelo requerente.

              Custas do procedimento pela requerida.

              Custas do recurso em 2/6 pela requerida, 1/6 pelos requeridos e 3/6 pelo requerente.


Pedro Martins ( Relator )
Virgílio Mateus
António Carvalho Martins