Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
631/13.9TBGRD-Q.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: INSOLVÊNCIA
VENDA
CREDOR
PROPOSTA DE AQUISIÇÃO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
DESTITUIÇÃO
Data do Acordão: 11/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA - GUARDA - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 56, 164, 165 CIRE
Sumário: 1.- No âmbito da previsão do art.164º do Código da Insolvência, o administrador desta não está obrigado a aceitar a proposta de aquisição do credor com garantia real, mesmo que ela seja, em dado momento, a única e superior ao valor base fixado. Aquele administrador considerará as restantes condições da venda.

2.- A justa causa para a destituição do administrador da insolvência é alguma circunstância ligada à sua capacidade ou a seu comportamento que, pela sua gravidade, inviabilize a manutenção das suas funções.

3.- Prosseguindo as diligências para a venda, em melhores condições, o administrador da insolvência respeita os seus deveres funcionais.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

No decorrer do processo de liquidação da massa insolvente, a credora G (…), S.A., na qualidade de credora garantida, beneficiária de hipotecas sobre os prédios urbanos a que correspondem os artigos matriciais 1415 e 1256, requereu em 24.09.2014 a adjudicação destes, com dispensa do pagamento do preço remanescente a 20%.

A credora pediu ao Sr. Administrador da Insolvência (doravante AI) a adjudicação pelo montante total de € 425.000,00, juntando cheque com o valor da caução de 20% do valor proposto, que foi depositado pelo AI.

Na pendência da referida proposta, em leilão ocorrido a 25.09.2014, aquela credora licitou os bens, oferecendo mais 500€ por cada imóvel, e assinou um “contrato-promessa” relativo aos mesmos, sem que este tenha sido assinado pelo leiloeiro ou pelo Sr. AI.

Alegou a credora que a circunstância de ter licitado no leilão de 25.09.2014 não corresponde a qualquer revogação da proposta anterior de adjudicação, pois uma tal declaração não foi por si expressa nem o seu comportamento corresponde a uma forma tácita de revogação.

O Sr. AI alegou que não se encontra obrigado a aceitar as propostas apresentadas, sempre as podendo recusar. Mais disse que a requerida dispensa do remanescente do preço é prejudicial aos restantes credores graduados antes daquela credora e não acautela as custas do processo e despesas de liquidação; referiu que a credora alterou as condições de aquisição pensadas no leilão; alegou que comunicou a marcação da escritura de venda, com indicação das condições aceites por si, mas a credora não compareceu à escritura; o processo avançou então para novo leilão, tendo sido encontrado interessado naqueles bens, que ofereceu melhores condições.

A credora G (…) também pediu a destituição do Sr. Administrador de Insolvência, alegando, em síntese:

O Sr. AI desrespeitou despachos judiciais, pois não deu sem efeito o leilão quanto aos bens aludidos, tendo o intuito de fazer frustrar as pretensões da proponente.

As pretensões da credora G (…) foram judicialmente indeferidas, em síntese porque foi entendido que o AI tem liberdade de aceitar ou não as propostas apresentadas e porque não existem razões para destituir aquele administrador.


*

            Inconformada, a credora G (…) recorreu e apresentou as seguintes conclusões:

(…)


*

            O Ministério Público contra-alegou, defendendo o bem fundado da decisão recorrida.

*

            As questões a decidir são:

A possibilidade do Administrador de Insolvência não aceitar as propostas de aquisição;

Definir se a licitação posterior da credora sobre os mesmos bens equivale a revogação da proposta formulada anteriormente;

A possibilidade de dispensa do remanescente do preço;

A existência de justa causa de destituição do Sr. AI.


*

            Os factos a considerar são os relatados supra e os seguintes (não destacados em 1ª instância, mas todos documentados):

            O Sr. AI declarou aceitar o preço oferecido no leilão de 25.09.2014, na condição da credora pagar o remanescente do preço na escritura de venda.

            O cheque caução entregue com a proposta de 24.09.2014 foi aceite como sinal do preço declarado a 25.09.2014, com vista à escritura marcada mas não realizada. O Sr. AI iniciou já diligências para a devolução deste valor à credora emitente do cheque.

           

Por requerimento de 20.10.2014, a credora pediu ao tribunal a adjudicação dos referidos bens com base na proposta de 24.09.2014.

O Sr. AI considerou a venda efetuada em leilão sem efeito, tal como advertiu na missiva que marcou a escritura, por não ter a credora aparecido para subscrever a referida escritura, nas comunicadas condições.

Em novo leilão, de 16.01.2015, os bens em questão foram arrematados pelo total de 440 mil euros.

Em 19.12.2014 tinha sido proferido o seguinte despacho: “Deverá o Sr.AI levar em conta, na sua conduta concernente aos procedimentos de liquidação, a pendência desta questão quanto àqueles dois bens.”


*

A primeira questão insere-se no âmbito da previsão do art.º164.º do Código da Insolvência (doravante CIRE).

Este normativo insere-se sistematicamente no capítulo que versa sobre a liquidação da massa insolvente e, sob a epígrafe “Modalidades da alienação”, preceitua no seu n.º3 que “se (…) o credor garantido propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado, o administrador de insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior.”

O seu n.º4 diz-nos que “a proposta prevista no número anterior só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa falida, no valor de 20% do montante da proposta, aplicando-se com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 897.º e 898.º do Código de Processo Civil.”

Ora, como resulta daquele n.º3 (…“se não aceitar a proposta”…), apesar da responsabilidade assinalada ao AI (ver C. Fernandes, J. Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris 2009, página 548), este tem o poder de rejeitar a proposta do credor garantido, mesmo que ela seja de valor superior “ao da alienação projetada ou ao valor base fixado”.

Este poder “insere-se no quadro geral do reforço dos poderes do administrador e satisfaz, de modo significativo, a intenção de desjudicalização do processo”. (ob. cit., pág.546.)

O critério é então do AI, tendo em conta o que entenda ser mais benéfico aos interesses da massa insolvente.

Se assim é, rejeitada a proposta do credor garantido, não faz sentido sequer discutir a possibilidade de dispensa do remanescente do preço e definir se a licitação posterior da credora sobre os mesmos bens equivale a revogação da proposta formulada anteriormente.

De qualquer maneira, apesar do que alega a credora recorrente, e apesar de não existir declaração expressa, sempre a sua conduta consubstancia um comportamento de onde tacitamente se extrai a prevalência da licitação sobre a proposta inicial de adjudicação.

Aceitando a licitação, em certas condições, o Sr. AI marca a escritura de venda mas a credora não aceita subscrever a mesma, naquelas condições.

Por outro lado, a aplicação do art.165º do CIRE pressupõe a aceitação da proposta. Só nesse caso, e como jurisprudência desta Relação (acórdão de 16.04.2013, processo 1642/10, em www.dgsi.pt.), faz sentido a dispensa do remanescente do preço, com as cautelas naquela assinaladas.

            Em conclusão, no âmbito da previsão do art.164º do Código da Insolvência, sem prejuízo da concreta modalidade de venda definida e da conferência da aceitação da proposta, o administrador desta tem o poder de aceitar ou rejeitar propostas de aquisição, podendo prosseguir diligências para encontrar melhores condições de venda.


*

Sobre a existência de justa causa de destituição do Sr. AI.

Preceitua o n.º1 do art.º56.º do CIRE que “o Juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substituí-lo por outro se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, fundadamente considerar existir justa causa.”

A lei não nos fornece o conceito de justa causa.

Este critério tem associada a ideia de violação ou incumprimento grave de algum dever pelo AI no exercício das suas funções.

Seguindo de perto a jurisprudência da Relação de Guimarães (acórdão de 16.04.2009, processo 1109/10, no sítio digital já citado), “ …a justa causa é sempre alguma circunstância ligada à pessoa ou a uma conduta do administrador que, pela sua gravidade inviabilize, em termos de razoabilidade, a manutenção das suas funções. A justa causa terá sempre de ser apreciada em concreto, face à factualidade que se provar, tendo em conta os vários aspectos relacionados com a sua gestão.”

No caso, os despachos judiciais referidos pela credora recorrente apenas enfatizam cautelas a ter pelo AI nos procedimentos de venda.

As observações do tribunal não obstaculizam à venda e não impõem a venda à recorrente.

A posição do tribunal está na sequência do correto entendimento quanto à liberdade de opção do AI, na procura da melhor oferta, no interesse da massa, sem prejuízo das informações a dar aos eventuais interessados.

Prosseguindo as diligências para a venda em melhores condições, o que acabou por conseguir, o administrador da insolvência respeita os seus deveres funcionais.

Não se discute aqui a responsabilidade inerente a qualquer prejuízo da credora, de terceiro ou da massa.

Por fim, tendo depositado o cheque da caução prestada pela credora com garantia real, com ou sem a justificação inerente à sua qualificação como sinal da venda projetada, mas frustrada, mas diligenciando depois pela devolução do valor àquela, o Sr. AI não viola os seus deveres.

Não ocorre, portanto, qualquer incumprimento a despacho judicial e, menos ainda, um incumprimento com a gravidade que justifique a destituição pedida.


*

           

Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pela Recorrente.

            Coimbra, 2015-11-17


 (Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator )

 (António Carvalho Martins)

 (Carlos Moreira)