Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
493/08.8TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
INTERRUPÇÃO
PROVA PERICIAL
DANO BIOLÓGICO
DANOS PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 04/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA E JUÍZOS CRIMINAIS DE COIMBRA – 3º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 328º E 163º CPP; 563º E 564º CC
Sumário: 1.- O disposto no nº 6 do artº 328º CPP não tem aplicação no caso da leitura da sentença ocorrer depois de ultrapassados trinta dias sobre o encerramento da audiência.

2.- O juízo científico inerente à prova pericial está subtraído à livre apreciação do julgador relativamente ao juízo científico inerente à descrição daquilo que foi objecto de análise pelo perito e ao juízo técnico desenvolvido a partir dessa análise científica, que o juiz não tem.

3.- A afectação da pessoa do ponto de vista funcional, designado por dano biológico/ funcional, determina consequências negativas a nível da sua actividade geral, justificando a indemnização no âmbito do dano patrimonial, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial.

Decisão Texto Integral:
I.
Depois de realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida a sentença, na qual o tribunal decidiu:
a) Absolver a arguida da prática do contra-ordenação p. e p. pelos arts. 25 n.s 1 al. c) e d) e n.º 2, conjugado com o art.º 101º 1, 2, 3 e 5 do Cód. Estrada.
b) Condenar a arguida MR... pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensas à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148º, nº 1 do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à razão diária de €:12,00 (doze euros), o que perfaz o montante de €:720,00 e fixando a prisão subsidiária em 40 dias.
d) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização cível formulado pela demandante civil SF… contra a W...-Companhia de Seguros, S A e, em consequência, condenar a demandada a pagar à demandante o montante de €:30660,25 a título de indemnização pelos danos patrimoniais, quantia acrescida de juros de mora contados desde a data da notificação da demandada para contestar e até efectivo e integral pagamento, à taxa legal prevista para os juros civis pelas Portarias que os regulam e que sucessivamente forem entrando em vigor e ainda o montante de €:5000,00, a título de danos patrimoniais sofridos.
e) Absolver a demandada do pedido em tudo quanto excede a presente condenação.
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Inconformados com a sentença, dela recorrem: a demandada civil e a arguida.
A assistente, por sua vez, interpôs recurso subordinado.
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A demandada civil formula as seguintes CONCLUSÕES:
1. A Douta Sentença enferma de um erro notório na apreciação da prova, conforme o disposto no nº 2, alínea c) do artigo 410° do Código de Processo Penal e viola o disposto nos artigos 562°,563°,564°, n.º2 e 566°, n.º 2 todos do Código Civil;
2. O Relatório Pericial de fls. 159 e ss, bem como os respectivos esclarecimentos prestados pelos Senhores Peritos Médicos, consubstancia um parecer de especialistas;
3. Esse parecer especializado, no confronto com o depoimento de duas testemunhas familiares directos e próximos da Demandante sobre a mesma matéria, tem naturalmente um valor probatório superior;
4. Sem prejuízo do princípio da livre apreciação da prova, o Relatório Pericial de fls. 159 e ss. Impunha ao MM.o Juiz do Tribunal "a quo" decisão diferente sobre o Ponto 26 do elenco dos Factos Provados;
5. Face à prova pericial produzida nos autos, o MM.o Juiz do Tribunal "a quo" não poderia ter considerado provado que a Demandante irá necessitar de uma empregada doméstica até ao fim da vida;
6. A Demandante não se encontra numa situação de necessidade de ajuda de terceira pessoa;
7. O MM.o Juiz do Tribunal "a quo" apenas poderia ter considerado provado que a Demandante pode desempenhar a sua actividade doméstica, embora tal desempenho implique a realização de esforços acrescidos;
8. Uma das principais conclusões do Relatório Pericial é a de que a incapacidade permanente geral atribuída à Demandante é compatível com o desempenho da sua actividade doméstica, embora implique a realização de esforços acrescidos;
9. A Demandante não está impossibilitada de exercer as actividades que exercia antes da verificação do acidente dos presentes autos;
10. A Demandante não ficou afectada na sua capacidade de ganho;
11. A valoração dos esforços acrescidos, ainda para mais traduzindo-se em dores lombares, apenas pode ser efectuada no plano dos danos de natureza não patrimonial;
12. A condenação da Apelante a pagar à Demandante uma empregada doméstica até ao fim da vida desta representa um dano não ressarcível perante o quadro fáctico apurado e a sua atribuição consubstancia um verdadeiro enriquecimento sem causa;
13. Não foi realizada qualquer prova acerca do nexo de causalidade entre a contratação da empregada doméstica e o acidente dos autos;
14. O MM.o Juiz do Tribunal "a quo" atribuiu as indemnizações pela ajuda de terceira pessoa até ao fim da vida e pela perda de rendimento futuro por inteiro, não introduzindo qualquerfactor de correcção.
Nestes termos deve ser concedido provimento ao recurso, alterando-se, em conformidade, a sentença recorrida.
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Por sua vez a arguida formula como CONCLUSÕES:
1 - O Tribunal a quo ao decidir a proceder à leitura de sentença para além do prazo de 30 dias, violou o disposto no artigo 328º, n.º 6 do C.P.P.
2 – Tal violação implica a ineficácia de toda a prova testemunhal produzida durante a audiência de discussão e julgamento.
3 - Desta feita, devera ser anulada a douta sentença a quo, pois que esta viola o princípio da continuidade e consequentemente o princípio da i mediação.
4 - Colocando-se assim em causa toda a prova produzida, por ineficácia desta.
3 - Ao agendar a leitura da sentença para o dia 15 de Setembro de 2010, quando a última e diligência agendada tinha tido lugar no dia 10 de Setembro de 2010.
6 - Decorreram assim 36 dias entre as duas datas, logo foi ultrapassado o prazo de 30 dias imposto pela lei.
7 – “Nos termos do artigo 328º, nº 6, do Código de Processo Penal, o adiamento da audiência de julgamento por prazo superior a 30 dias implica a perda de eficácia da prova produzida com sujeição ao princípio da imediação" (Ac. do STJ n.º 11/2008, Diário da República, 1ª série, nº 239, de 11 de Dezembro de 2008, pag. 8706).
8 - O Tribunal a quo como decidiu violou o disposto no artigo 410°, nº 2, alínea c) do CPP, por erro notório na apreciação da prova.
9 – Assim, não foi devidamente atendida a contradição e dúvidas dos depoimentos prestados e ainda a contradição desses depoimentos com as fotografias existentes nos autos.
10 - Na pena aplicada existe a violação da ponderação dos pressupostos estabelecidos no artigo 71º do Código Penal, pois que não foram devidamente ponderadas todas as atenuantes que supra se referem.
11 - “Quanto ao concurso de circunstâncias modificativas atenuantes deve continuar-se a seguir o sistema de acumulação, tradicional no nosso direito, somando-se o efeito atenuante até onde este for consentido pelos limites das penas"
11 - Tanto mais que estamos perante uma situação de negligência, logo com uma ponderação de culpa bem diversa do dolo.
13 - A arguida não tem antecedentes criminais.
14 - A arguida encontra-se social, profissional e familiarmente inserida.
15 - E ainda porque dos relatos dos factos, feitos pelas testemunhas XZ... e FM..., sempre há que não esquecer que são familiares muito próximos da queixosa.
16. Pelo que os seus depoimentos estão condicionados por factores emocionais que têm também que ser atendidos e não foram.
17. Perante a prova produzida só pode aceitar-se que o tribunal a quo aplicasse uma pena substancialmente menor, dado que a aplicada resulta em metade da moldura penal.
18. Estamos perante uma situação de negligência.
19. Devem assim:
a) Anular-se o acórdão recorrido, por violação do disposto no artigo 328º, n.º6 do CPP;
Caso assim não se entenda e sem prescindir:
b) Deve o acórdão recorrido ser revogado, revogando-se a pana aplicada, substituindo-a por outra substancialmente mais reduzida.
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Por último, a assistente, recorrente subordinada, formula as seguintes CONCLUSÕES:
I - Em conformidade com o disposto no art°. 496° do Código Civil, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito.
II - Atentos os factos dados como provados, supra mencionados, a recorrente subordinada sofreu e sofrerá dores até ao fim da sua vida biológica o que, tomando em consideração a sua idade e a idade média de mortalidade das mulheres, permite concluir que o valor arbitrado de 5.000,00 € é manifestamente insuficiente para compensar a recorrente desse dano material.
III - A compensação devida à recorrente não se limita ao seu padecimento; por causa do acidente a recorrente ficou definitivamente portadora de uma incapacidade de três pontos, carecendo a execução de qualquer actividade de esforços acrescidos, facto que a obriga à contratação de uma empregada doméstica (vulgo "mulher-a-dias") e a ter deixado de prestar as actividades de limpeza num apartamento.
IV - As sequelas descritas e suas consequências conferem um handicap, um desvalor à recorrente, uma desvalorização da sua integridade física que certamente se repercutem na sua sensibilidade e estima, traduzindo-se numa diminuição somático­psíquica, com degradação do padrão e qualidade de vida da recorrente subordinada.
V - Deverá, assim, fixar-se a quantia de 20.000,OO€ a título de danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, a contar da prolação da sentença recorrida.
VI - Decidindo como decidiu violou o Tribunal a quo o comando do art°. 496° do Código Civil.
Termos em que, Deve ser concedido provimento ao recurso.
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A assistente/demandante respondeu ao recurso interposto pela W..., Seguros sustentando a sua improcedência.
Respondeu o MºPº ao recurso interposto pela arguida, sustentando a sua total improcedência.
Corridos vistos, cumpre decidir.

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II.
1. Sem prejuízo dos casos em que resulte da lei o dever de conhecimento oficioso de determinadas questões, o âmbito do recurso é definido pelas respectivas conclusões – cfr., designadamente, Germano Marques as Silva, Curso de processo Penal, 2ª ed., III, 335; Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74; Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196. Conclusões que têm como finalidade sintetizar com rigor, a pretensão do recorrente e as razões em que repousa, assim, habilitar o tribunal de recurso a apreciá-las com exactidão.
Além da questão da perda de eficácia da prova suscitada pela arguida, os recursos interpostos envolvem matéria de facto e de direito.
Na apreciação começa-se pela questão prévia, conhecendo-se das restantes questões depois de vista a decisão do tribunal recorrido em matéria de facto.

2. Questão prévia / perda de eficácia da prova - questão suscitada no recurso da arguida:
Alega a recorrente que, procedendo o tribunal recorrido à leitura de sentença para além do prazo de 30 dias sobre o termo da produção da prova, violou o disposto no artigo 328º, n.º 6 do C.P.P., o que implica a ineficácia de toda a prova testemunhal produzida durante a audiência de discussão e julgamento.
Postula ao art. 328º, n.º6: O adiamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, perde eficácia a produção de prova já realizada.
O aludido preceito visa assegurar os princípios da concentração e da continuidade da audiência, a fim de que os sujeitos processuais e o tribunal não percam o contacto (a audiência obedece, acima de tudo, aos princípios da oralidade e imediação com os meios de prova, mesmo quando existe gravação) com o material que vai sendo produzido/discutido, no encadeamento com o restante material probatório produzido antes e depois.
E não, depois de encerrada a fase da produção/discussão da prova, colocar o tribunal sob pressão na fase de recolhimento para deliberar e decidir, em consciência, face ao material previamente discutido.
Com efeito, “A audiência é contínua, decorrendo sem qualquer interrupção ou adiamento até ao seu encerramento” – art. 328º, n.º1, do CPP.
No pressuposto de que “Se a audiência não puder ser concluída no dia em que se tiver iniciado, é interrompida, para continuar no dia útil imediatamente anterior” – n.º2, 2ª parte do mesmo artigo 328º.
Resulta claramente da letra do n.º6 do art. 328º que tal preceito se reporta à fase da “produção da prova”.
Ora, a fase da produção da prova encerra “findas as alegações” quando “o presidente pergunta ao arguido se tem mais alguma coisa a alegar em sua defesa, ouvindo-o em tudo o que declarar a bem dela” – cfr. art. 361º, n.º1 do CPP.
Com efeito, postula o n.º2 do artigo 361º: Em seguida o presidente declara encerrada a discussão (…) e o tribunal retira-se para deliberar.
Distinguindo assim (e trata-se de realidades distintas) entre a fase de produção/discussão de provas, subordinada ao princípio da concentração, e a fase de recolha do tribunal para deliberar, decidir e lavrar da sentença.
Entre cada acto de produção e/ou discussão da prova não podem, por efeito do disposto no art. 328ç, decorrer mais de 30 dias. Mas tal princípio não tem aplicação, nem pela letra da lei nem pelo seu espírito, na fase em que o tribunal reúne para deliberar, decidir, lavrar a sentença e proceder á sua leitura – fase posterior ao encerramento da discussão.
A própria lei distingue (e trata-se de realidades diferentes) entre a fase de discussão e a fase de deliberação e subsequente lavrar da sentença – cfr. claramente o art. 361º, n.º2 do CPP.
Aliás processos há em que não é possível o tribunal deliberar e decidir todas as questões e lavrar a decisão, com todas as formalidades de lei, no prazo de 30 dias. Sabendo-se que no nosso sistema, para além da actividade de apreciação e decisão os juízes são os escriturários da sentença.
Ao contrário do que sucede com a continuação da produção/discussão da prova, em que é sempre possível, ao menos em abstracto, sempre continuá-la no dia seguinte.
O Acórdão do STJ n.º 11/208, DR IS de 11.12.2008, invocado na motivação do recurso decidiu que o disposto no art. 328º n.º 6 tem aplicação mesmo no caso de a audiência ter sido documentada (prova gravada). E não, como pressupõe o recorrente, que tal dispositivo se aplica no caso de o prazo entre o terminus da produção da prova e a prolação/leitura da sentença exceder os 30 dias.
No sentido de que o preceito não tem aplicação na fase da deliberação e outorga da sentença, – cfr., entre outros: Ac. STJ de 22.04.1999, proc. 1356/98-3ª, SASTJ n.º30, p. 78; Ac. STJ de 14.10.1999, proc.964/99-5ª, SASTJ n.º 36, 65; Ac.STJ de 30.10.2001, proc.2630/2001-3ª, SASTJ n.º54, p.96; Ac. RL de 11.07.2006, CJ, tomo 3/2006, p. 153; Ac. RP de 20.10.2004, CJ, tomo 4/2004, p, 222; Ac. RE de 22.02 de 2005, CJ 2005, tomo 2, p.261; Ac. RG de 27.02.2006, CJ, tomo I/2006, p. 296.
Não ocorre, pois, a invocada perda de eficácia da produção da prova, porquanto, entre as várias sessões de produção de prova não decorreram mais de 30 dias.
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A apreciação das restantes questões obriga a recapitular a matéria de facto provada.
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3. O tribunal recorrido dirimiu da seguinte forma a matéria de facto:

A) Factos provados:
Da acusação pública:
1- No dia … 2007, pelas 18H15M, na Rua …, sita em ..., a arguida conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula … no sentido ascendente. *
2- Junto ao acesso à maternidade ..., sita à direita, atento o sentido da arguida, a via no local é de traçado recto, com muita visibilidade, existindo uma faixa de rodagem atento o sentido de marcha da arguida e uma faixa de rodagem em sentido contrário, o piso é asfalto e em bom estado de conservação e o tempo e piso estavam secos. *
3- Não existe no local qualquer passagem assinalada e específica para travessia de pessoas a pé, vulgo passadeira de peões, sendo que apenas existe uma passagem deste tipo, assinalada no solo, a 62,50m atento o sentido ascendente levado pela arguida. *
4- A arguida seguia numa rua do centro da cidade com muito trânsito de pessoas a pé e viaturas, ladeada por vários prédios de habitação e junto ao acesso à supra referida maternidade, imprimindo à viatura por si conduzida uma velocidade concretamente não apurada mas certamente não superior a 50 km/h. *
5- Na ocasião, a ofendida SF… seguia acompanhada do filho, nora e netas, seguindo a pé no passeio sito à direita da via atento o sentido ascendente seguido pela arguida. *
6- A ofendida e a família colocaram-se no passeio fazendo menção de atravessar a via a pé, da direita para a esquerda, tudo atento o sentido da arguida, esperando, como lhes competia, que o pudessem fazer em segurança. *
7- Apercebendo-se desta intenção, um veículo que seguia na Rua em sentido ascendente, parou para dar passagem à ofendida e acompanhantes. *
8- A ofendida e os seus filhos, nora e netas iniciaram a travessia, da direita para a esquerda, atento o sentido ascendente, tendo a ofendida ficado ligeiramente para trás. *
9- No local, entre a faixa ascendente e a descendente, existe uma zona de zebra.
10- O veículo que parara seguiu a sua marcha logo que a ofendida e a família passaram à sua frente. *
11- A arguida conduzia “encadeada” pelo sol e, por isso, não viu a ofendida, que se encontrava parada na zona da zebra, tendo prosseguido a sua marcha e tendo embatido com o espelho retrovisor esquerdo do veículo no corpo da ofendida, projectando-a para o solo. *
12- DO embate e queda que se seguiram resultaram para a ofendida dores, bem como as lesões examinadas e descritas no auto de exame médico de fls. 24 a 26, 40 a 41, todos cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, lesões estas que determinaram a esta ofendida e para a sua cura um período de 54 dias de doença, todos com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional. *
13- Ao agir do modo descrito, a arguida sabia que um condutor médio e prudente, estando encadeado e impossibilitado de ver a estrada à sua frente, circulava a uma velocidade praticamente nula ou teria parado o veículo. *
14- Com a sua conduta a arguida revelou falta de cuidado para com os demais utentes daquela via, nomeadamente para com a ofendida, cuidado esse que era capaz de adoptar e que devia ter, para evitar um resultado que devia e podia ter previsto, mas que não previu, dando assim causa ao acidente, de que resultaram as lesões atrás descritas. *
15- A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. *
Do pedido de indemnização civil, e para além dos factos supra descritos, resultou provado que:
16- À data do acidente, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo … encontrava-se transferida para a W...-Companhia de Seguros, S A, através da apólice n.º … .
17- O veículo ... era propriedade de RR....
18- Em virtude do embate, a ofendida perdeu a consciência.
19- A ofendida foi transportada para as urgências dos H.U.C. pelo INEM e aí foi assistida e radiografada, apresentando traumatismo na região lombar e regressou ao domicílio.
20- Passados dois dias a ofendida recorreu à médica de família por ter dores e foi sete vezes ao centro de Saúde por queixas álgicas.
21 – A ofendida contratou uma empregada para a auxiliar durante os 54 dias de incapacidade, que trabalhava 2 horas por dia e a lavava, vestia e tratava da casa e a quem pagava €:5/hora.
22 -Em virtude do acidente, a ofendida gastou €:84,66 em medicamentos.
23- A ofendida gastou €:15,36 na certidão do auto de ocorrência.
24- Em virtude do acidente, a ofendida gastou €:30,00 em transportes para consultas, fisioterapia, medicina legal, PSP e Diap.
25- Antes do acidente, a ofendida sofria de problemas degenerativos da coluna mas tratava da vida doméstica e da mãe e do marido, que estavam dela dependentes.
26- Actualmente e em virtude do acidente, a ofendida não pode realizar as actividades domésticas como até então o fez porque sofre de dores e recorre a uma empregada doméstica duas vezes por semana, 3 horas ao dia, a quem paga €:5,00/hora, o que irá suceder até ao final da vida.
27- Em virtude do embate, a ofendida viu agravada a sua sintomatologia dolorosa.
28- A ofendida era uma pessoa alegre e positiva, que enfrentava as doenças do marido e da mãe com coragem e espírito de entrega.
29- A ofendida trabalhava na limpeza de um apartamento de estudantes sito na R ... e recebia €:20,00 por mês.
30- Em virtude do embate, a ofendida sujeitou-se a tratamentos de fisioterapia de 27/11 a 13/12 de 2007 sem conseguir alívio para as dores e teve de os suspender porque aumentava as dores que sentia.
31- Em virtude do referido e para além do período de incapacidade parcial temporária, em que a ofendida sofreu um quantum doloris de grau 2 numa escala até 7, a ofendida sofreu dores.
32- Em virtude do referido, a ofendida recorreu às consultas da fisiatra LL… e gastou €:110,00.
33- Em virtude do referido, a ofendida gastou €:20,23 em consultas e fisioterapia no centro de Medicina Física e Reabilitação do C… .
34- A ofendida sofreu uma incapacidade temporária geral de 8 dias, uma incapacidade temporária geral parcial de 46 dias e uma incapacidade temporária profissional total de 54 dias e de uma incapacidade permanente geral de 3 pontos.
Circunstâncias pessoais da arguida:
35- Após o acidente a arguida interessou-se pelo estado de saúde da ofendida, tendo telefonado para casa desta algumas vezes.
36- A arguida é professora do 1º ciclo e ganha cerca de €:2000,00 por mês, em termos líquidos.
O marido é funcionário da CP e ganha cerca de €:1300,00 por mês.
Têm 2 filhos que se encontram a estudar e que deles dependem economicamente.
Vivem em casa própria.
37- A arguida não tem antecedentes criminais.
Do Registo Individual do Condutor da arguida nada consta.

Factos não provados:
a. A arguida devido ao modo distraído como seguia não se apercebeu das razoes da paragem do veículo à sua frente tendo por isso guinado para a esquerda, contornando-o, a fim de prosseguir o seu caminho e fê-lo precisamente quando a ofendida estava a atravessar a via a pé, já a chegar ao meio da via, de tal modo que veio a embater com o espelho retrovisor esquerdo do veículo por si conduzido na ofendida.
b. A arguida conduzia por conta e sob direcção efectiva do proprietário do veículo.
c. Em virtude do referido, a ofendida carece de tratamentos de fisioterapia.
d. Em virtude do embate, a ofendida perdeu a esperança no futuro e está desanimada.
e. Em virtude do embate a ofendida terá de tomar diariamente, até ao fim da sua vida, medicamentos que lhe aliviem as dores que sente permanentemente, sendo certo que toma diariamente Tramal, Lyrica, Diazepam e Adalgur, o que lhe acarreta uma despesa mensal média de €:15,00.


Motivação:
No que respeita à matéria de facto provada referente às circunstâncias de tempo, modo e lugar do acidente e configuração e dimensões da via, fundou o Tribunal a sua convicção em diversos elementos probatórios, devidamente conjugados, concretamente e desde logo no auto de notícia junto aos autos a fls. 7 e 8, no croquis de fls. 9, nas fotografias de fls. 12 e 13 e em vários testemunhos prestados em audiência de julgamento.
Assim, desde logo foi valorado o depoimento da arguida, que foi sereno e coerente. Contou que subia a Rua ... no dia dos autos, que era um sábado à tarde e que à sua frente não seguia nenhum veículo, nem viu nenhum veículo parado. A determinada altura, foi encadeada pelo sol mas, não obstante, continuou a circular, não tendo detido a marcha do veículo nem reduzido a sua velocidade para uma velocidade quase nula. Seguia a menos de 60 Km/h, encostada à zebra existente no meio da faixa. A determinada altura ficou ainda mais encadeada e embateu na ofendida, que estava do lado esquerdo do veículo, tendo esta cambaleado e caído no chão. Não viu a ofendida antes de nela embater.
O Tribunal valorou ainda o depoimento da assistente, que trouxe a juízo uma versão do sucedido compatível com aquela que a arguida sustentou. Relatou que descia a pé a Rua ..., juntamente com o filho, a nora e os netos, vindos da Maternidade e dirigindo-se todos para o veículo do filho, que estava estacionado do lado contrário da Rua. Porque queriam atravessar a rua, pararam na beira do passeio e um veículo deteve-se. A nora e as netas atravessaram a rua a correr e ela e o filho atravessaram mais devagar, de mãos dadas, indo o filho à frente, a puxá-la. A determinada altura, foi embatida por um veículo e caiu. Acrescentou que tem a sensação de que o veículo que entretanto parara seguiu a sua marcha antes dela ter sido embatida.
A testemunha XZ…, filho da ofendida, contou também ele que o acidente ocorreu quando ele e a mãe se encontravam na “zebra” que existe no meio da estrada. A mãe foi projectada e caiu na faixa de rodagem de sentido contrário. O veículo da arguida não vinha depressa e parou cerca de3 ou 4 metros após o embate.
A testemunha FM..., nora da assistente à data dos factos, tinha já atravessado a rua com as filhas quando ouviu a ofendida gritar e a viu cair, no meio da rua, no espinhado. A arguida saiu imediatamente do carro e disse que estava encadeada pelo sol e que por isso não viu a ofendida. O veículo da arguida circulava devagar.
Foi pois correlacionando todos estes meios probatórios com recurso às regras da experiência e do normal acontecer, que o Tribunal concluiu no sentido dado como provado.
Relativamente à velocidade do veículo, não foi possível apurar a mesma, mas considerando que as testemunhas inquiridas referiram que a arguida não circulava depressa e que a arguida declarou também ela que seguia a uma velocidade não superior a 60 km/h e considerando ainda a dinâmica do acidente, as consequências que para ele advieram para a ofendida e as regras da experiência e do normal acontecer, há que concluir que o veículo da arguida não seguia a uma velocidade superior a 50 km/h.
Relativamente ao contrato de seguro, valorou-se o teor do documento de fls. 132 e, quanto à propriedade do veículo, o teor do auto de notícia.
No que concerne às lesões sofridas pela assistente e às consequências que destas lesões advieram para a assistente, foi valorado o teor dos exames médico-legais de fls. 24 a 26, 40 e 41 e de fls. 159 e ss., para além dos esclarecimentos prestados pelos Srs. peritos e que constam de fls. 186 e das regras da experiência e do normal acontecer.
Valorou-se ainda o depoimento das testemunhas XZ... e FM…, que relataram credivelmente, embora com a emotividade própria de quem tem uma relação afectiva estreita com a assistente, que esta sofreu dores e deixou de conseguir fazer sozinha as tarefas domésticas. Passou a ser ajudada por uma empregada doméstica 2 vezes por semana, 3 horas de cada vez. A ofendida fez fisioterapia durante um mês e meio e deslocou-se às consultas, ou de táxi, ou no veículo do filho.
Sabem que a assistente anda abatida e desanimada e que toma medicamentos para não sentir dores. A testemunha FM...sabe ainda que a ofendida deixou de trabalhar como empregada de limpeza e que ganhava €:20,00 por mês.
Relativamente aos gastos suportados pela ofendida em consequência do acidente, foram ainda valorados, para além dos supra referidos depoimentos, os documentos de fls. 72 e ss.
Acresce que as testemunhas HJ… e BC..., vizinhos da assistente, sabem dizer que esta deixou de fazer trabalhos de limpezas e que anda mais abatida.
A testemunha ST…, que é a empregada de limpeza da assistente, declarou credivelmente que trabalha em casa desta 2 vezes por semana, durante 3 horas por dia Quanto aos antecedentes criminais e rodoviários da arguida, foi ponderado o teor do CRC e do RIC juntos aos autos e, quanto às suas condições pessoais e familiares, as declarações por ela prestadas.
No que respeita aos factos não provados, tal deve-se à ausência de prova dos mesmos ou à produção de prova em sentido contrário.
Esclareça-se apenas que dos esclarecimentos prestados pelos Srs peritos médicos resulta que a ofendida não carece de medicação diária nem de fisioterapia.
Por outro lado, o desânimo e tristeza que não se duvida que a arguida sinta não se provou que derivem do acidente e das suas consequências, sendo talvez fruto de um conjunto de circunstâncias.
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4. Invoca a arguida, no recurso interposto, o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410°, nº 2, alínea c) do CPP.
Com o fundamento de que “não foi devidamente atendida a contradição e dúvidas dos depoimentos prestados e ainda a contradição desses depoimentos com as fotografias existentes nos autos”.
Ora, não só a recorrente não identifica pontos concretos da decisão que incorram no apontado vício, como, mais do que isso, não invoca fundamentos capazes de demonstrar que tais contradições sejam susceptíveis de inquinar o depoimento, ou ainda, que inquinem a valoração deles efectuada pela decisão recorrida.
Sendo certo que a decisão recorrida procede, detalhadamente, à análise crítica da prova e encontra-se exaustivamente fundamentada.
De qualquer forma as contradições e dúvidas (que o recorrente não especifica) são ultrapassadas pelo tribunal que realiza o julgamento, com base na apreciação da prova em conformidade com os critérios legais de apreciação vinculada da prova (vg. prova documental e pericial), ou quando não existam critérios de apreciação tarifada, com base na apreciação fundamentada de forma crítica e racional (art. 474º, n.º2 do CPP) em conformidade com o princípio enunciado no art. 127º do CPP.
E nem o recorrente rebate os fundamentos da apreciação efectuada, nem se detecta que a mesma viole o aludido princípio.
Assim, não se verifica o apontado vício
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4. Pena
Alaga a recorrente que “Quanto ao concurso de circunstâncias modificativas atenuantes deve continuar-se a seguir o sistema de acumulação, tradicional no nosso direito, somando-se o efeito atenuante até onde este for consentido pelos limites das penas. Tanto mais que estamos perante uma situação de negligência, logo com uma ponderação de culpa bem diversa do dolo. A arguida não tem antecedentes criminais. A arguida encontra-se social, profissional e familiarmente inserida”.
Ora a mera negligência foi ponderada na sentença recorrida (para definir a própria moldura abstracta da pena). Tal como foi a falta de antecedentes e a integração social, profissional e familiar.
Daí, entre a pena de prisão ou de multa aplicáveis em abstracto, ter aplicado (apenas) a pena de multa.
E, dentro dos limites abstractos desta (até 120 dias) aplicou 60 dias.
Pena perfeitamente módica e proporcionada ao grau de ilicitude e de culpa, à necessidades de protecção do bem jurídico violado e restabelecimento da confiança comunitária na tutela da norma violada.
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5. Invocando também o vício de erro notório na apreciação da prova, alega a recorrente/demandada civil que “O Relatório Pericial de fls. 159 e ss, bem como os respectivos esclarecimentos prestados pelos Senhores Peritos Médicos, consubstancia um parecer de especialistas; Esse parecer especializado, no confronto com o depoimento de duas testemunhas familiares directos e próximos da Demandante sobre a mesma matéria, tem naturalmente um valor probatório superior; Face à prova pericial produzida nos autos, o MM.o Juiz do Tribunal "a quo" não poderia ter considerado provado que a Demandante irá necessitar de uma empregada doméstica até ao fim da vida”.
Não está assim em causa a contratação da empregada doméstica. Mas apenas a relação de causalidade adequada entre as lesões causadas pelo acidente e a necessidade de contratação, vitalícia, da empregada, para substituir a autora nas tarefas que desempenhava.
A este respeito o tribunal recorrido deu como provado:
“26 - Actualmente e em virtude do acidente, a ofendida não pode realizar as actividades domésticas como até então o fez porque sofre de dores e recorre a uma empregada doméstica duas vezes por semana, 3 horas ao dia, a quem paga €: 5,00/hora, o que irá suceder até ao final da vida.”
Por outro lado, para dar provada tal matéria, o tribunal recorrido fundamentou a decisão da seguinte forma:
“(…)no que concerne às lesões sofridas pela assistente e às consequências que destas lesões advieram para a assistente, foi valorado o teor dos exames médico-legais de fls. 24 a 26, 40 e 41 e de fls. 159 e ss., para além dos esclarecimentos prestados pelos Srs. peritos e que constam de fls. 186 e das regras da experiência e do normal acontecer. Valorou-se ainda o depoimento das testemunhas XZ... e FM…, que relataram credivelmente, embora com a emotividade própria de quem tem uma relação afectiva estreita com a assistente, que esta sofreu dores e deixou de conseguir fazer sozinha as tarefas domésticas. Passou a ser ajudada por uma empregada doméstica 2 vezes por semana, 3 horas de cada vez. A ofendida fez fisioterapia durante um mês e meio e deslocou-se às consultas, ou de táxi, ou no veículo do filho”.

Do excerto sublinhado resulta que a causalidade entre as lesões produzidas e a contratação de terceira pessoa foi estabelecida (como não podia deixar de ser, atenta a especificidade da matéria) com base ou fundamento nos exames médico-legais e esclarecimentos complementares, prestados pelos peritos médico-legais.
A referência aos depoimentos das testemunhas não se reporta à causalidade das lesões, mas apenas à “constatação”, pelas referidas testemunhas, de que a assistente recorreu aos serviços de uma empregada doméstica – sem descriminar se tal se refere ao período anterior ou posterior à consolidação das lesões. Não referem que, a partir da consolidação das lesões, estas impedissem a ofendida de realizar as suas tarefas e – por isso, como relação de causalidade adequada – tivesse que recorrer à contratação de terceira pessoa, para mais “até ao final de vida”. Até porque se trata de uma questão para a qual as testemunhas não tinham conhecimento nem dispunha de meios para atestar.

Ora, estando em causa a valoração de prova pericial, como é o caso, esta obedece a critérios legais, vinculados, de valoração.
Com efeito a prova pericial não está sujeita ao critério da “livre apreciação” previsto no art. 127º do CPP. Pelo contrário, nos termos do art. 163º do CPP “O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador”.
Em conformidade com o objecto da prova pericial. Sendo certo que, nos termos do art. 151º do CPP “A prova pericial tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigem especiais conhecimentos técnicos”.
O juízo científico inerente à prova pericial está subtraído à livre apreciação do julgador relativamente ao juízo científico inerente à descrição daquilo que foi objecto de análise pelo perito e ao juízo técnico desenvolvido a partir dessa análise científica, que o juiz não tem.
Como refere Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, p. 209) “… Se os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação do juiz – que contrariando-os pode furtar validade ao parecer -, já o juízo científico ou parecer propriamente dito só é passível de uma crítica igualmente material ou científica. Quer dizer: perante um certo juízo cientificamente provado, de acordo com as exigências legais, o tribunal guarda a sua inteira liberdade no que toca à apreciação da base de facto pressuposta; quando porém, ao juízo científico, a apreciação há-de ser também científica e estará, por conseguinte, subtraída, em princípio, à competência do tribunal”.

No entanto, dos exames médico-legais invocados como suporte da decisão, no segmento em causa, não resulta o aludido nexo de causalidade.
Pelo contrário, a “perícia de avaliação dano corporal em direito civil” (cfr. fls. 159-163) sob o item “discussão”, refere, textualmente: “- O rebate profissional. Neste caso, as sequelas descritas são responsáveis por esforços suplementares no seu desempenho”.
E nas Conclusões: “as sequelas descritas são, em termos de rebate profissional, são responsáveis por esforços suplementares no seu desempenho”.
Acresce que, nos “Esclarecimentos” prestados (a fls. 178, por escrito) pela Chefe de Serviço de Medicina Legal, subscritora da aludida perícia, em resposta ao “Quesito 2” reitera a mesma conclusão precisando: “Isto é, entendemos que era possível à examinada mater a sua actividade doméstica, pese embora, com esforços acrescidos”.

Assim, resultando a desconformidade do texto da decisão, no confronto com a prova pericial a que ali se faz referência, não consentindo esta tal leitura, existe erro notório de apreciação, impondo-se daí extrair as conclusões conformando a decisão com aquilo que resulta da prova pericial em que se fundamenta.
Aliás, tratando-se, como é o caso, de prova meio de prova constante dos autos (além de sujeito a apreciação vinculada), o tribunal da relação pode modificar a decisão da matéria de facto, nos termos do disposto no art. 431º alínea a) do cpp: “se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base”.

Pelo exposto, altera-se a decisão da matéria de facto neste ponto, dando-se como PROVADO:
As sequelas das lesões sofridas pela ofendida são, em termos de rebate profissional, compatíveis com o manter da sua actividade doméstica ainda que exigindo esforços suplementares no seu desempenho.”
E como NÃO PROVADO:
“A partir da consolidação da lesões a ofendida não pode realizar as actividades domésticas como até então o fez porque sofre de dores e (por isso) recorre a uma empregada doméstica duas vezes por semana, 3 horas ao dia, o que irá suceder até ao final da vida.”
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5. Da modificação da matéria de facto operada DECORRE a necessidade de reequacionar o valor da indemnização – questão suscitada quer no recurso da demandada quer no recurso subordinado interposto pela assistente.
No caso de recurso subordinado interposto pelas partes civis – como é o da assistente – este fica sem efeito (apenas) “se o primeiro recorrente desistir do recurso, este ficar sem efeito ou o tribunal não tomar conhecimento dele” – art. 404º, n.º3 do CPP.
Pelo que, apreciando o tribunal o recurso principal, deve apreciar o recurso subordinado, ainda que tenha julgado o primeiro improcedente. O facto de ser negado provimento ao recurso principal não obsta à apreciação do recurso subordinado – cfr. João de Castro Mendes, Direito processual Civil, Recursos, ed. AAFDL, p. 133.
Constituindo as posições assumidas nos respectivos recursos a face e o verso da mesma questão, serão apreciadas em conjunto.
A avaliação do dano futuro, a partir da consolidação das lesões, é uma operação complexa.
Preceitua o art. 564º do C. Civil:
1. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.
2. Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão posterior.
Assim, são indemnizáveis os danos futuros, desde que previsíveis. E tendo a capacidade de ganho ficado diminuída, não sofre dúvida que existe quebra da capacidade aquisitiva futura.
Por sua vez, nos termos do art. 566º, nº3 do C. Civil, “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados”.
Neste âmbito, tem-se visto sustentar que, sendo a incapacidade apenas para a actividade em geral, podendo o sinistrado continuar a exercer a sua profissão ainda que com esforço e sofrimento acrescidos – como é o caso dos autos - não vê os seus rendimentos do trabalho efectivamente diminuídos e portanto não lhe assiste direito a indemnização alguma pela perda de capacidade para o trabalho.
No entanto, tal entendimento não pode ser perfilhado. Desde logo porque falta sempre demonstrar que, “apesar” de medico - legalmente poder continuar a exercer a actividade ainda que com maior esforço, o sinistrado a virá a exercer efectivamente.
Com efeito, incapacitado para a actividade em geral o lesado vê sempre restringidas a sua capacidade de aquisição, ainda que mais não seja as possibilidades de mudança de emprego e dentro do próprio emprego, as perspectivas de continuidade e/ou progressão no mesmo.
Até porque, devido às sequelas o sinistrado, ainda que possa exercitar a sua profissão vê grandemente condicionadas as suas opções de vida e de emprego. E como se refere no Ac. STJ de 15.12.98, CJ-STJ, 98, III, 155, a indemnização pelo dano futuro de incapacidade permanente não pode deixar de ter em linha de conta a expectativa de progressão na carreira.
O cálculo destes danos é sempre uma operação delicada, uma vez que obriga a ter em conta a situação hipotética em que o lesado estaria se não se tivesse verificado a lesão, o que implica uma previsão pouco segura sobre dados verificáveis no futuro. Por isso que tais danos devem ser calculados com base em critérios de verosimilhança ou de probabilidade, de acordo com o que no caso concreto poderá ou poderia vir a acontecer, seguindo as coisas o seu curso normal e se, mesmo assim, não puder apurar-se o seu valor exacto, deverá o tribunal julgar segundo a equidade – neste sentido v. Vaz Serra, R.L.J. 12º, 329 e 114º, 287 e segs.; Pires de Lima Antunes Varela, C. Civil Anotado, 3ª ed., 549; Dario M. Almeida, Manual.
Para a incapacidade para a actividade profissional, tem-se vindo a entender que deve encontrar-se uma indemnização em dinheiro correspondente a um capital produtor do rendimento deixado de perceber, mas que se mostre esgotado ou extinto no termo da vida activa do beneficiário – critério a aplicar em função do grau de afectação, em concreto, da capacidade aquisitiva.
Ora, se decisão do recurso em matéria de facto, nos termos em que ficaram supra definidos, resulta que fica sem suporte a indemnização pela contratação de uma empregada - por se entender que a autora pode desempenhar a sua actividade, ainda que com maior esforço - certo é, em contrapartida, que esse maior esforço (não ponderado na decisão recorrida, uma vez que atribuiu indemnização pela contratação de outra pessoa para o mesmo efeito) tem que ser compensado noutra perspectiva, enquanto causador de esforço físico suplementar, e sofrimento inerente – na nova perspectiva emergente da decisão de facto.
Não só na vertente do dão NÃO PATRIMONIAL, decorrente do sofrimento causado.
Como ainda na vertente patrimonial ou do chamado DANO BIOLÓGICO/funcional.
Nomenclatura (dano biológico) que mais não é do que uma nova denominação para aquilo que era conhecido como incapacidade permanente geral e, como tal, nada traz de novo.
No caso, embora podendo exercer a profissão (com esforço complementar) não é menos certo que, incapacitada para a actividade em geral, a lesada vê sempre restringida a sua capacidade de aquisição, as possibilidades de mudança de actividade e/ou exercício de actividades secundárias do seu dia a dia, com reflexo palpável na capacidade de ganho, as perspectivas de continuidade e/ou progressão na actividade profissional. Além dos efeitos das sequelas a nível psicológico, com efeitos ponderosos na capacidade de ganho.
Carece assim de fundamento o expendido na conclusão nº11 do recurso da demandada de que “A valoração dos esforços acrescidos (…) apenas pode ser efectuada no plano dos danos de natureza não patrimonial”.
A afectação da pessoa do ponto de vista funcional, agora designado por dano biológico, determina consequências negativas a nível da sua actividade geral, justificando a indemnização no âmbito do dano patrimonial, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial.
Na verdade, a afectação da pessoa do ponto de vista funcional, na envolvência do que vem sendo designado por dano biológico, determinante de consequências negativas a nível da sua actividade geral, justifica a indemnização no âmbito do dano patrimonial, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial - cf., por ex., Ac do STJ de 21/9/94, de 7/10/04, de 13/1/2005, in www dgsi.pt/jstj.
Por isso tem vindo a afirmar-se o dano biológico como dano autónomo dentro do dano patrimonial/capacidade de ganho/aquisição – cfr. Conselheiro Sousa Dinis no estudo publicado na CJ/STJ, 1997, tomo II, pag. 11 e segs., actualizado na CJ/STJ, 2001, Tomo I, p 1 a 12; ÁLVARO DIAS, Dano Corporal - Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, Coimbra - Almedina - 2001, págs. 255 a 265.
Aliás tal resulta agora consagrado, de forma expressa, pela Portaria n.º 377/2008 de 26.05, que estabeleceu as bases mínimas para o “procedimento obrigatório de proposta razoável para a regularização de dano material”.
Sendo certo que a publicação da Portaria constituiu o resultado do trabalho de uma Comissão de que faziam parte, precisamente, Sousa Dinis e Álvaro Dias, supra citados.
Dizendo no respectivo preâmbulo “… em situação de incapacidade permanente parcial o lesado terá direito a indemnização pelo dano biológico, entendido esta como ofensa à integridade física e psíquica”. E definindo no seu anexo IV uma tabela para a quantificação da indemnização correspondente, para o efeito consignado no diploma de apresentação da “proposta razoável”.
Pela natureza e finalidade da Portaria – e porque não alterou o quadro legal em vigor – o critério legal para a indemnização permanece o da equidade.
Constituindo a Portaria um critério auxiliar que deve ser interpretado, todavia, como a plataforma, mínima, para o cálculo da indemnização, atenta a sua finalidade específica – proposta liminar, ainda que “razoável” para a indemnização.
No caso, a autora, para além do esforço adicional que lhe exige o desempenho da sua actividade profissional, a autora é portadora de uma incapacidade permanente geral de 3 pontos – ponto 34 da matéria provada.
Se a demandante não é ressarcida da despesa necessária para a contratação de alguém que a substitua nas suas tarefas, terá que ser ressarcida, materialmente, pelo reflexo na perda de capacidade aquisitiva, decorrente da limitação não só para a sua actividade profissional, como para as múltiplas tarefas do dia a dia, com significado económico
Além da vertente não patrimonial do mesmo dano pelo sofrimento que o esforço adicional que lhe é exigido para desempenhar as suas tarefas não pode deixar de lhe causar.
A autora/recorrente subordinada reclama, neste âmbito, a quantia de € 20.000,00, reportada à data da sentença de 1ª instância, como ressarcimento do dano em questão, na aludida dupla vertente patrimonial e não patrimonial.
Ora, mantendo-se os pressupostos da decisão recorrida, apenas com a rectificação de que o dano não é valorado na perspectiva da contratação de pura pessoa, mas na dupla vertente – patrimonial e não patrimonial – atendendo ao esforço complementar exigido à autora, mormente pela agravação dos problemas degenerativos da coluna de que já era portadora (facto descrito sob o ponto 25 da matéria provada), a que a autora ficou portadora de uma incapacidade permanente geral de 3 pontos (ponto 34 da matéria provada), tendo por referência o critério referido e os demais fundamentos da decisão recorrida quanto a este ponto que não foram rebatidos, entende-se ajustada a quantia reclamada.
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Ainda que não o faça nas conclusões, questiona a demandada na motivação a verba atribuída na sentença recorrida, a título de indemnização pelo trabalho que desempenhava numa residência de estudantes – ponto 34 da matéria de facto provada.
Ora, uma coisa é a autora poder trabalhar, no futuro, ainda que com maior esforço. Outra é manter as horas que perdeu. E não há dúvida da conjugação do ponto 34 da matéria provada com o efeito necessário da cessação da prestação de trabalho por efeito do acidente, a autora deixou de prestar aquelas horas de trabalho na casa de estudantes. Devendo por isso, manter-se a indemnização arbitrada com tal fundamento.
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Em conclusão, o valor da indemnização mantém-se, ainda que com base em fundamentos diversos.


III.
Nos temos e com os fundamentos expostos, decide-se:
- Julgar improcedente o recurso interposto pela arguida; ----
- Julgar procedente o recurso interposto pela demandada civil relativo à matéria de facto, alterando-se nessa parte a decisão recorrida nos termos que ficaram supra definidos, dando-se sem efeito a condenação no pagamento da verba correspondente (€ 20.000,00) relativa à contratação vitalícia de uma empregada; ----
- Julgar procedente o recurso subordinado, condenando-se a demandada a pagar à demandante, como compensação, na dupla vertente de reparação do dano não patrimonial relativo ao sofrimento e do dano biológico correspondente ao esforço adicional exigido à assistente para continuar a exercer a sua actividade, no futuro, a mesma quantia de quantia pedida (€ 20.000,00) acrescida de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos desde a data da sentença do tribunal de 1ª instância até integral e efectivo pagamento. ----
A arguida pagará custas do recurso por si interposto, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.
Custas cíveis dos recursos interpostos pela demandante civil e pela demandada civil na proporção dos respectivos decaimentos.

Belmiro Andrade (Relator)
Abílio Ramalho