Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3120/10.0T2OVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INTERPELAÇÃO
DEVEDOR
DISPENSA
JUROS DE MORA
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GR. INST. CÍVEL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 805º, Nº 2, AL. A) DO C.CIVIL; 2º, Nº 2 DO DL Nº 62/2013, DE 10 DE MAIO.
Sumário: I – A dispensa de interpelação do devedor prevista no artigo 805º, nº 2, alínea a) do CC, pressupõe que a obrigação tenha efectivamente, de antemão, um prazo certo, correspondendo este à fixação de um lapso de tempo calendarizável, em termos de tornar inequívoco ao devedor o momento exacto (o dia) em que deve cumprir.

II – Não corresponde à fixação de um prazo certo, não dispensando a interpelação, a referência a um evento ou acontecimento, determinável mas não determinado (do tipo: pagar no final de todos os trabalhos), quando a este evento se não siga a efectiva fixação de um prazo passível de determinação pelo calendário.

III – Num contrato de empreitada em que o dono da obra assuma a posição de consumidor (e o empreiteiro seja uma empresa), não tem aplicação à mora daquele a chamada taxa de juros comercial, face à exclusão resultante do artigo 2º, nº 2 do DL nº 62/2013, de 10 de Maio, que transpôs para o direito interno a Directiva 2011/7/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de Fevereiro de 2011.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

1. Em 28/09/2010, M… (A., Reconvinda e aqui Apelada) demandou a sociedade J…, Lda. (R., Reconvinte e Apelante no presente recurso) pedindo a condenação desta no pagamento de uma indemnização no valor de €6.500,00 respeitante uma alegada prestação deficiente da R. (rectius, a realização de uma obra com defeitos) quanto à colocação, em Dezembro de 2007, da cobertura de uma piscina encomendada pelo marido da A., entretanto falecido[1], à R.

            1.1. Contestou a R. impugnando e deduzindo reconvenção, referindo-se o pedido reconvencional – e só uma particular incidência deste está em causa no presente recurso – à parte do preço da empreitada ainda em dívida pela A./Reconvinda (€30.500,00, acrescidos de juros de mora à taxa de 8% contados desde 01/01/2010)[2].

            1.2. Foi esta reconvenção admitida e, posteriormente, a acção julgada pela Sentença de fls. 159/171 – refere-se o recurso a um elemento muito particular dela, expresso no trecho de fls. 170/171, relativo ao momento da contagem dos juros de mora no quadro da procedência do pedido reconvencional. Com efeito, julgou essa Sentença improcedente o pedido da A., dele absolvendo a R. – decisão que transitou em julgado nesta acção –, mas parcialmente procedente a reconvenção (o pagamento do preço da empreitada em falta), condenando a A. e as Intervenientes a pagarem solidariamente à R./Reconvinte “[…] €30.500,00, com juros de mora à taxa legal comercial, desde 14/03/2012” (que corresponde à data da citação das intervenientes para a reconvenção).

            1.3. Inconformada com esta fixação do momento da contagem dos juros – e, consequentemente, com o valor destes assim alcançado –, recorreu a Reconvinte, concluindo o seguinte a rematar a motivação dessa impugnação:
“[…]
A) Nos termos do disposto nos artigos 774º, 804º e 806º do CC (…) ‘se a obrigação tiver por objecto certa quantia em dinheiro, deve a prestação ser efectuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento’ (…), considerando-se o devedor constituído em mora (…) ‘quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido’ (…), sendo que (…) ‘a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor’ (…) e (…) ‘na obrigação pecuniária a indemnização corresponde ao juros a contar do dia da constituição em mora’.
B) Nos termos do disposto no art. 805º, nº 2, al. a) do CC, (…) ‘há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação se a obrigação tiver prazo certo” (…) e tem sido defendido pela nossa doutrina e jurisprudência que quando o facto em que consiste o termo incerto é do conhecimento do devedor ou pessoalmente lhe respeita, é desnecessária a interpelação (veja-se, entre outros, P. Jorge, “Obrigações”, pág. 293).
C) No caso dos autos encontra-se provado que entre a aqui apelante e o marido da apelada M…, foi em 12.07.2007 celebrado um contrato de empreitada mediante o qual aquela se comprometeu a realizar para este determinada obra na sua casa (uma piscina e respectivos acessórios), pelo preço de € 50.000,00, acrescido do IVA à taxa em vigor, a ser pago em duas prestações, cada uma no valor de metade do referido preço, sendo a primeira a ser paga logo concluída a betonagem da piscina e a segunda no final de todos os trabalhos.
D) Mais ficou provado que a referida obra foi executada na casa da A. e do seu falecido marido L…, para benefício de ambos e com o consentimento daquela, tendo ficado concluída e lhes sido entregue pela empreiteira, aqui recorrente, em Outubro de 2007.
E) Ficou ainda provado que até ao presente daquele preço contratado falta pagar €30.500,00.
F) Em face destes factos é inequívoco que bem sabe o devedor o momento em que a obra que contratou ficou concluída (Outubro do ano de 2007), seja porque ela então lhe foi efectivamente entregue, seja porque ela se realizou na sua própria casa, seja porque em finais desse mesmo ano de 2007 prometeu pagar à recorrente a totalidade do valor em dívida, tendo-o feito, porém, apenas parcialmente, como também se vê dos factos provados.
G) Assim, entende a recorrente que o devedor se constituiu em mora, independentemente de interpelação, em Outubro de 2007, data a partir da qual seriam, nos termos da lei, devidos juros de mora, seja porque a obrigação por si assumida tem prazo certo, seja porque, mesmo que se entenda que o termo é incerto, ele é do conhecimento pessoal do devedor, tornando-se desnecessária a sua interpelação para pagar.
H) E a tal também não obsta o facto de o pedido ter sido deduzido em reconvenção uma vez que tendo tal pedido reconvencional sido admitido não está a reconvinte inibida de nele reclamar, para além do crédito que se julga titular, os correspondentes de juros de mora, não merecendo tratamento jurídico diferente os direitos reclamados por via de ação judicial dos reclamados por via de reconvenção, como parece sugerir a douta Sentença recorrida.
I) Sucede porém que nos autos a recorrente reclama o pagamento dos juros de mora a partir de 01.01.2010 (cfr. pedido que formula na sua reconvenção) alegando para tanto que aceitou um pedido de prorrogação de pagamento do montante em dívida que no ano de 2009 que lhe terá sido apresentado pelo marido da ora recorrida (veja-se nºs 54 e 55 da reconvenção). Porém, não obstante não ter logrado provar tais factos, o certo é que em face do pedido que formula nos autos e o disposto no nº 1, do artº 609º do (novo) CPC – que impede a condenação em quantia superior à pedida - deve a douta Sentença condenar as AA. reconvindas no pagamento dos juros de mora desde aquela data de 01.01.2010.
J) Ao não decidir desta forma, entende a ora apelante que o Mmo. Julgador fez errada interpretação jurídica dos factos, violando a douta Sentença recorrida o disposto nas citadas disposições legais.
[…]
[D]eve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a douta Sentença recorrida na parte em que condena as AA. reconvindas a pagar à R. reconvinte, aqui apelante, juros de mora à taxa legal comercial desde 14.03.2012, substituindo-se a mesma por outra que, mantendo a condenação das apeladas no pagamento à apelante da quantia de €30.500,00, as condene também no pagamento dos juros de mora, calculados sobre tal montante e à mesma taxa da lei para os juros comerciais, desde 01.01.2010 até integral pagamento, condenando-se ainda as apeladas, em qualquer caso, no pagamento da totalidade das custas do processo e na procuradoria devida.
[…]”.


II – Fundamentação
2. Caracterizado, num relato muito sucinto, o desenvolvimento do processo que conduziu à presente instância de recurso, importa agora apreciar a impugnação da Apelante/Reconvinte, tendo presente que o âmbito objectivo da mesma foi delimitado pelas conclusões da Recorrente transcritas no antecedente item (cfr. os artigos 635º, nº 4 e 639º do CPC).
A questão colocada – portanto, o objecto do recurso – expressa-se na alternativa (1) de considerar a obrigação de pagamento da segunda tranche do preço da empreitada, a cargo da A. e dos Intervenientes – tendo presente o teor do facto 5 abaixo transcrito –, como definida com prazo certo e, em função disso, a mora do devedor constituída automaticamente sem necessidade de interpelação, (2) ou como obrigação carente de interpelação do devedor para produzir uma efectiva mora relativamente a este. No primeiro caso – e foi o primeiro caso que o Tribunal a quo considerou ser de aplicar à situação o artigo 805º, nº 1 do Código Civil (CC), aqui referido à interpelação judicial consubstanciada na reconvenção. No segundo caso – e é a solução pela qual a Apelante pugna neste recurso – aplicar-se-á – aplicar-se-ia – o artigo 805º, nº 2, alínea a) do CC, considerando-se a mora logo desencadeada, como dissemos, a partir do momento fixado para o pagamento, contando-se a partir daí os juros devidos pela Reconvinda (v. o artigo 806º, nº 1 do CC)[3].
Preambularmente notar-se-á ainda que a delimitação do recurso ora realizada, associada à não impugnação pela A. da Sentença de primeira instância, deixa intocada – deixará intocada na economia decisória da apelação – a improcedência da acção, em si mesma, e a procedência da reconvenção, ambos os resultados afirmados na primeira instância. Isto, todavia, com excepção – e esse o objecto desta apelação – da fixação do momento a partir do qual devem ser contados os juros de mora relativos ao valor de €30.500,00 (o capital) que a A./Reconvinda terá sempre de satisfazer à R./Reconvinte. Ou seja, momento a partir do qual esses juros serão contados constitui a única questão a apreciar no recurso[4].
            2.1. Os factos considerados provados na primeira instância – factos que aqui são aceites e não nos oferecem dúvidas – foram os seguintes:
“[…]

            Na mesma Sentença consignou o Tribunal a quo como não provados os seguintes factos:
“[…]
            2.2. O trecho relevante da Sentença – a asserção desta constante especificamente impugnada neste recurso – consta de fls. 170/171 e aqui a transcrevemos:
“[…]
C) – Quanto ao pedido de juros.
Apesar do pagamento ter prazo determinável (no final das obras), não parece que estejamos perante obrigação com prazo certo, a dispensar a interpelação – alínea a) do nº 2 do art. 805.º do Código Civil – do pagamento do preço em falta. Nem se justifica que a Ré só o viesse pedir em reconvenção numa acção em que lhe é exigido o preço de substituição de um elemento da obra que se mostra defeituoso com exigência de juros desde a data de conclusão das obras.
Os juros de mora são, por isso, devidos desde a citação das intervenientes (14/03/2012 – fls. 80 e 81).
[…]”.

            Como acima dissemos pretende a Apelante que, por via da conjugação dos itens 5 e 10 do rol dos factos – cujo sentido é o seguinte: a segunda prestação do preço deveria ser paga no final de todos os trabalhos e a obra foi concluída (rectius, foi entregue à A) em Outubro de 2007 –, pretende em função disto a A., dizíamos, que a obrigação de pagamento do remanescente do preço da empreitada seja considerada como estabelecida, à partida, com prazo certo e, nessa decorrência, que a mora do dono da obra quanto à satisfação desse valor seja contada, com as particularidades introduzidas pelo pedido da Reconvinte[5], a partir do elemento temporal que referencia esse termo como correspondendo ao final de todos os trabalhos, com o evidente sentido da conclusão de todos os trabalhos em que se materializa a obra.
2.2.1. Porque lidamos neste caso com uma obrigação pecuniária (a de pagar à Reconvinte €30.500,00) – tenha-se presente que a fungibilidade deste tipo de obrigações as torna subsistentemente (ainda e sempre) possíveis (v. artigo 804º, nº 2 do CC)[6] –, a indemnização moratória pelo não cumprimento (artigo 804º, nº 1 do CC) corresponde, como resulta do nº 1 do artigo 806º do CC, aos juros a contar do dia da constituição em mora[7].
Esta (a mora) ocorre depois da interpelação para cumprir, seja ela judicial ou extrajudicial (artigo 805º, nº 1 do CC), excepto – e cingimo-nos à situação aqui relevante – se a obrigação tiver prazo certo (artigo 805º, nº 2, alínea a) do CC[8]). Trata-se aqui, pois, de saber se a asserção expressa nos factos, ter de pagar no final de todos os trabalhos, corresponde à efectiva fixação de um prazo que possamos qualificar como prazo certo, dispensando a interpelação para cumprir, sendo que, se isso for assim – se dizer deve ser pago no final de todos os trabalhos for ou equivaler à fixação de um prazo certo para pagar – a Sentença estará incorrecta ao mandar contar os juros a partir da notificação para a reconvenção, no sentido em que esta opção pressupôs – e a decisão recorrida afirmou-o expressamente – a necessidade de interpelação como elemento imprescindível ao desencadear da mora.
2.2.1.1. A consideração da situação em que o momento do cumprimento é referido a um elemento temporal estabelecido à partida com precisão, que permite uma contagem pelo calendário (pagar no dia X do mês Y, pagar em 30 dias contados do dia K, correspondem estes enunciados hipotéticos a formulações óbvias desta ideia), é reconhecida como situação paradigmática que induz a dispensa de qualquer interpelação formal para cumprir, como passo necessário ao desencadear da situação de mora do devedor.
Corresponde o “prazo certo” à incidência – à regra – que usualmente se expressa através do brocardo latino dies interpellat pro homine (numa tradução livre, mas que capta a essência significativa da expressão, pretende-se assim dizer que o dia interpela em vez do homem). Como regra geral, esta asserção já valia entre nós no domínio do Código de Seabra (vejam-se os artigos 711º[9] e 732º) e projectou-se no regime que subjaz agora, no Código de 1967, ao artigo 805º, nº 2, alínea a) (relacionando este trecho com o nº 1 do mesmo artigo, na medida em que acaba por definir uma delimitação negativa da “regra” estabelecida nesse nº 1 da necessidade de interpelação para efeito de desencadear a mora).
A questão – poderíamos dizer a dúvida, sendo que é esta dúvida que aqui se coloca – nasce com formulações cujo pendor circunstancial referido ao factor tempo – o quando se deve cumprir – é sinalizado através da indicação de eventos ou acontecimentos que se prefiguram como desprovidos de uma base de datação exacta (para determinação dos quais não chega, à partida, um calendário…). Será este o caso em que se estabelece, como momento do cumprimento, o nascimento do filho do devedor, ou o recebimento da mercadoria pelo devedor: estamos em qualquer destes casos a aludir a eventualidades, mesmo quando em vias de concretização, e não a fixar um prazo. Esta questão, que corresponde fundamentalmente à caracterização da essência significativa da regra dies interpellat pro homine, foi equacionada pelo Professor Vaz Serra, nos anos cinquenta do século passado, no âmbito dos trabalhos preparatórios do actual Código Civil, através das seguintes observações:
“[…]
Vejamos o princípio dies interpellat pro homine com maior precisão.
1) Este princípio baseia-se em que se presume que, fixando-se um prazo para a prestação, se pretende que o devedor cumpra nesse prazo, sem necessidade de interpelação do credor.
Se a obrigação é a termo certo (certus an, certus quando), não é precisa a interpelação, pois o devedor deve saber qual a data em que deve cumprir.
Se a obrigação é a termo incerto, é duvidosa a solução a adoptar.
Martins Leitão considera aceitável a solução de exigir a interpelação, mesmo de iure condendo, «salvo nas hipóteses em que o acontecimento futuro, escolhido para termo, seja de tal forma notório, que não possa ignorar-se; nos demais casos é necessário interpelar o devedor, prevenindo-o da verificação do termo».
Visto que a interpelação se destina a advertir o devedor de que deve cumprir a obrigação, ela só é de dispensar quando a data da prestação está determinada de maneira que aquela advertência possa considerar-se escusada.
Sendo assim, se o termo é certo (certus an, certus quando), não há, como se disse, que interpelar o devedor, pois este deve saber quando lhe compete prestar.
Isto, quer o momento da prestação esteja originariamente fixado (v. g., o devedor cumprirá «no dia 4 de Janeiro», «no mês de Abril», hipótese em que a prestação deve ser feita, o mais tardar, no último dia deste mês, «de hoje a um ano», «oito dias antes do próximo eclipse do sol», «dez dias depois de assinado o contrato»), quer resulte de um facto posterior realizado em relação ao devedor ou de que este tenha necessariamente conhecimento (v. g., «um mês depois da denúncia feita pelo credor», «dez dias depois de recebida a mercadoria pelo devedor» ou «logo que recebida a mercadoria pelo devedor»).
[…]
Discute-se, em face do §284º, alínea 2, do Código alemão[[10]], se é dispensável a interpelação quando deve fazer-se a prestação dentro de um prazo determinado depois, não da denúncia (caso previsto naquela disposição), mas de outro acontecimento. É o exemplo de se ter convencionado que o comprador pagará o preço «dez dias depois de recebida a mercadoria».
Parece que, depreendendo-se do facto, a que as partes aludem, a data certa da prestação, com conhecimento necessário do devedor, não há razão para exigir a interpelação. Assim, no exemplo referido («o comprador pagará o preço dez dias depois de recebida a mercadoria»), a data da prestação é certa, pois sabe-se que, recebida a mercadoria, o devedor deve fazer a prestação no prazo de dez dias. Se, no caso de denúncia assim acontece, não há motivo para que suceda coisa diferente neste outro caso.
Quando, estabelecendo-se um prazo, este significa, não que a prestação deve ser feita nele, mas que o credor só a partir dele pode exigir a prestação, não se dispensa a interpelação, pois o devedor não sabe quando deseja o credor o cumprimento.
[…]
Quando o prazo for incerto, parece de exigir a interpelação, a não ser que a verificação do prazo deva ser necessariamente conhecida do devedor, dado que então não há que adverti-lo de que chegou o momento em que deve cumprir.
Suponha-se, por exemplo, que se convencionou dever a prestação fazer-se «depois da chegada do barco» ou «depois da prestação de contas». Como o devedor não sabe quando chega o barco ou são prestadas as contas, não deve ficar em mora sem a interpelação. Mas, se o devedor é, por hipótese, a própria companhia proprietária do barco, que deve, portanto, saber da sua chegada, não há já motivo para a interpelação.
Temos, por conseguinte, em conclusão, que parece dispensável a interpelação quando o tempo da prestação está fixado, originariamente, ou depois de um acontecimento, de que o devedor deve ter necessariamente conhecimento, de maneira a saber este quando deve cumprir.  
[…]” (sublinhado aqui acrescentado)[11].


            Este último trecho da citação é significativo de um determinado entendimento do problema da fixação de prazo certo para a prestação, como motivo de dispensa da interpelação, quando não existe uma datação estabelecida de antemão – em rigor, quando não existe propriamente (etimologicamente) um prazo –, verificando-se, tão-somente, a referenciação (obviamente de antemão) de um acontecimento. É relevante indicar aqui – por ser com essa base que as antecedentes considerações foram tecidas pelo Professor Vaz Serra – o texto do Projecto por ele proposto a este respeito, com base nessas considerações:
“[…]
Artigo 5º – Desnecessidade de interpelação
1 – O devedor constitui-se em mora sem necessidade de interpelação, se o tempo da prestação estiver fixado de maneira a saber ele quando deve cumprir, embora esse tempo resulte ou decorra de algum acontecimento posterior ao nascimento da obrigação, desde que o devedor deva ter necessariamente conhecimento dele.
--------------------------------------------------------------------------------------.
[…]”[12].

            No texto do Código Civil entrado em vigor em 1967, no qual a regra dies interpellat pro homine se manteve, ficou esta problemática sedeada no artigo 805º, nº 2, alínea a) – embora repetindo a transcrição da nota 10, é útil colocar aqui em destaque o texto que veio a ser adoptado em contraste com o do Projecto Vaz Serra:
Artigo 805º
Momento da constituição em mora
1 – ---------------------------------------------------------------------------------.
2 – Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
a) Se a obrigação tiver prazo certo;
--------------------------------------------------------------------------------------.

            A questão que o presente recurso convoca – o entendimento segundo o qual haveria desnecessidade de interpelação, “[…] se o tempo da prestação estiver fixado de maneira a saber [o devedor] quando deve cumprir, embora esse tempo resulte ou decorra de algum acontecimento posterior ao nascimento da obrigação, desde que o devedor deva ter necessariamente conhecimento dele” – este entendimento do Projecto Vaz Serra, dizíamos, não passou para o texto do Código, embora tenha subsistido a questão interpretativa induzida pela fixação da mora (a dispensa de interpelação do devedor) por referência a um evento e não apenas a uma datação, quando esse evento fosse necessariamente conhecido do devedor. Esta questão foi abordada, numa perspectiva que não podemos deixar de encarar como algo crítica da posição de Vaz Serra, em comentário ao artigo 805º na anotação de Pires de Lima Antunes Varela ao Código Civil:
“[…]
Estabelecem-se no nº 2 algumas excepções à regra do nº 1. A primeira é a de a obrigação ter prazo certo (dies interpellat pro homine). […]. É a solução que decorre naturalmente da fixação de uma data determinada para o cumprimento da obrigação.
Refere-se, porém, a alínea a) a um prazo certo. É o caso de se ter estipulado que a obrigação se vence no dia 1 de Janeiro, ou dentro de 30 dias a contar da data do contrato, ou dentro de 20 dias a contar do recebimento da mercadoria pelo devedor, etc. Para Vaz Serra, o prazo deve considerar-se como certo, quando o devedor deva ter necessariamente conhecimento do seu termo […], como quando se fixa o momento da chegada dum navio e o devedor é a companhia proprietária do barco, desde que a data do vencimento resulte do contrato e não da lei. É muito duvidoso que assim seja, em face da regra geral da alínea. Também se o vencimento depender da morte de uma pessoa, pode esta decorrer em circunstâncias que o devedor tenha, necessariamente, conhecimento. Mas não pode nem deve cair-se num sistema de resolução casuística do problema, sob pena de se criar uma grande incerteza para o direito e de se fomentarem as acções judiciais.
Sendo o prazo incerto (certus an, incertus quando), não se dispensa a interpelação. É o caso, por ex., de o cumprimento depender da morte de uma pessoa, ou da maioridade ou emancipação de um menor (caso em que só se torna certo a partir dos 18 anos), ou da chegada de um navio. Transigimos com o caso de o prazo se contar a partir do recebimento de mercadorias como sendo uma hipótese de prazo certo, por se tratar de um facto que se integra na esfera pessoal do devedor e que o credor pode desconhecer.
[…]”[13].

            Note-se que esta “transigência” – transigimos, diz-se na anotação acabada de transcrever – com a fixação por referência a um evento referenciável como conhecido do devedor e que o credor possa desconhecer (já não a uma data precisa e inequívoca fixada tão-somente com base no calendário), não deixa de persistir nesta referenciação a um evento, dizíamos, algum tipo de relativização da questão do prazo ser verdadeiramente certo – como que aceitando que ele não seja tão certo assim…, mas seja tratado como tal, por razões de identidade com uma datação precisa –, continuando por essa via a induzir incidências casuísticas na determinação desse prazo, tornando-o, pelo menos, discutível quanto ao elemento certeza referida ao prazo. Daí que, pretendendo-se reconduzir a afirmação de ter prazo certo a uma caracterização geral, seja difícil – se o que se pretende é afastar a relativização da certeza pelo casuísmo – ir além da caracterização do Professor Pessoa Jorge relativamente à questão das “obrigações de prazo certo”, referidas à alínea a) do nº 2 do artigo 805º do CC:
“[…]
Se a obrigação tiver prazo ou termo certos, a verificação do termo determina automaticamente o vencimento da obrigação. Assim, se uma obrigação está sujeita ao prazo de três meses ou deve ser cumprida em determinado dia, decorrido aquele período ou chegado aquele dia, ela vence-se sem necessidade de nenhum acto do credor: dies interpellat pro homine.
Mas, para que isto suceda, é necessário que se trate de verdadeiro termo certo, em que a verificação do facto e o momento deste se conhecem de antemão com rigor.
[…]” (sublinhado acrescentado)[14].

            A possibilidade de considerar prazo certo a referenciação a um evento ou acontecimento entendido como termo final em si mesmo, e de dispensar por essa via o credor da interpelação, era ilustrada pelo Professor Vaz Serra, no âmbito dos trabalhos preparatórios do Código Civil (como resulta da transcrição supra), com o regime do Código alemão, então sedeado no §284, 2, que falava em “[fixação de] um dia do calendário para o cumprimento […]” mandando aplicar “[…] a mesma regra se se determina que o cumprimento esteja precedido por um aviso e o período de tempo está estabelecido em termos de ser calculável através de um calendário desde o momento do aviso”. Note-se que esta disposição do Bürgerliches Gesetzbuch equivale no texto actual do mesmo Código (no texto em vigor desde 01/01/2002, introduzido pela chamada “Lei para a Modernização do Direito das Obrigações”) ao §286 (mora do devedor), dispensando este no nº 2, a interpelação – “[a] interpelação não é necessária se” – [quando] “1. está determinado um tempo para a prestação de acordo com o calendário” e “2. a prestação pressupõe um acontecimento e está determinado um tempo razoável para a prestação de modo a que se possa calcular pelo calendário a partir do momento em que se produz o acontecimento[15]. Em qualquer dos casos, ter-se-á presente um traço que reputamos de significativo: a Lei alemã, na sua letra, pressupõe sempre uma datação precisa através da determinação pelo calendário (a fixação de um dia do calendário ou um cálculo pelo calendário), mesmo quando – e é a hipótese do nº 2, 2. do §286 – se referencia um acontecimento[16]. Queremos com isto dizer que o acontecimento, em si mesmo, não é visto na lei alemã como elemento equivalente à determinação pelo calendário (como prazo certo, usando a terminologia do nosso Código), mas como elemento apto a desencadear uma contagem pelo calendário, enfim, como factor de referenciação de um prazo certo que, por assim dizer, não prescinde da existência de um prazo.

Aliás, significativamente, esta indicação na lei alemã actual de um acontecimento seguido da contagem de um prazo, em que o momento a considerar é, em última análise, sempre determinável através do calendário, apresenta-se como a opção do Direito da União, inicialmente expressa na Directiva 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Junho de 2000, e, posteriormente, por substituição desta, pela Directiva 2011/7/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de Fevereiro de 2011, ambas estabelecendo medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais (entre empresas, excluindo transacções com consumidores), sendo que a primeira das Directivas foi transposta para o Direito interno pelo Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro[17] e a segunda pelo Decreto-Lei nº 62/2013, de 10 de Maio (que revogou o primeiro Diploma)[18].

Note-se – e este corresponde ao argumento interpretativo aqui pretendido introduzir – que a Directiva de 2011 estabelece, no respectivo artigo 3º, a obrigação dos Estados membros assegurarem, nas transacções comerciais entre empresas, o direito do credor a receber juros de mora, sem necessidade de interpelação, nos casos em que o prazo de pagamento não esteja estipulado no contrato, “30 dias de calendário a contar da data em que o devedor tiver recebido a factura ou um aviso equivalente de pagamento” ou, “caso a data de recepção da factura ou do aviso equivalente de pagamento seja incerta, 30 dias de calendário a contar da data de recepção dos bens ou da prestação dos serviços” ou, no caso da lei ou do contrato preverem “um processo de aceitação ou de verificação, mediante o qual deva ser determinada a conformidade dos bens ou do serviço em relação ao contrato, e se o devedor receber a factura ou o aviso equivalente de pagamento antes ou na data dessa aceitação ou verificação, 30 dias de calendário a contar dessa data” (artigo 3º, nº 2, i), ii) e iv))[19], correspondendo estas indicações, no Diploma de transposição da Directiva, no Decreto-Lei nº 62/2013, de 10 de Maio, ao texto do artigo 4º, nºs 3 e 4:
“[…]

Artigo 4º
Transacções entre empresas
---------------------------------------------------------------------------------------
3 – Sempre que do contrato não conste a data ou o prazo de vencimento, são devidos juros de mora após o termo de cada um dos seguintes prazos, os quais se vencem automaticamente sem necessidade de interpelação:
a) 30 dias a contar da data em que o devedor tiver recebido a fatura;
b) 30 dias após a data de receção efetiva dos bens ou da prestação dos serviços quando a data de receção da fatura seja incerta;
c) 30 dias após a data de receção efetiva dos bens ou da prestação dos serviços, quando o devedor receba a fatura antes do fornecimento dos bens ou da prestação dos serviços;
d) 30 dias após a data de aceitação ou verificação, quando esteja previsto, na lei ou no contrato, um processo mediante o qual deva ser determinada a conformidade dos bens ou serviços e o devedor receba a fatura em data anterior ou na data de aceitação ou verificação.

4 – Caso esteja previsto um processo de aceitação ou de verificação para determinar a conformidade dos bens ou do serviço, a duração desse processo não pode exceder 30 dias a contar da data de receção dos bens ou da prestação dos serviços, salvo disposição expressa em contrário no contrato e desde que tal não constitua um abuso manifesto face ao credor na aceção do n.º 2 do artigo 8.º, sem prejuízo do disposto em legislação própria sobre transações de bens alimentares.
--------------------------------------------------------------------------------------.
[…]”.

Ou seja – e estamos a abstrair da referenciação exclusiva a empresas, estando em causa no presente recurso um contrato de empreitada entre uma empresa e um consumidor –, um evento ou acontecimento, como sucede com o envio e recepção de uma factura[20], quando relevantes para determinação do momento da constituição em mora do devedor, são sempre seguidos de um lapso de tempo que permite a contagem de um prazo e, consequentemente, possibilita uma datação mais precisa da mora. Enfim, o acontecimento em si mesmo, num quadro em que se visa a clarificação do momento da constituição em mora, parece ser visto como forma de referenciação menos precisa (trata-se de um acontecimento referido a um terceiro destinatário) e, em função disso, acrescenta-se ao acontecimento, para tornar o momento fixado verdadeiramente certo, um lapso de tempo preciso (um prazo) cuja função atenuadora da dificuldade em situar no tempo o acontecimento é clara.
No percurso interpretativo que empreendemos ao longo deste Acórdão – procurando determinar se a formulação ter de pagar no final de todos os trabalhos corresponde, por identidade de razão, à fixação de um prazo certo, em referência ao artigo 805º, nº 2, alínea a) do CC –, neste percurso interpretativo, dizíamos, a circunstância de estar em causa um contrato de empreitada, no qual importa determinar o momento da constituição em mora do dono da obra, adquire em nosso entender um especial significado.
Tenha-se presente que a lógica legal supletiva de referenciação do momento de pagamento do preço corresponde, “não havendo cláusula ou uso em contrário”, à “aceitação da obra” (artigo 1211º, nº 2 do CC), o que não expressa exactamente o mesmo elemento referenciado pelo final de todos os trabalhos. A questão da aceitação da obra é relevante na lógica de funcionamento da empreitada, tendo presente o regime particular que se articula com esse acto – que pressupõe a aceitação – no quadro do tratamento legal da prestação deficiente correspondente a defeitos da obra (artigos 1218º a 1226º do CC). É esta especificidade da empreitada que determina, na Directiva 2011/7/EU, uma disposição como o artigo 3º, nº 2, iv), transposto no artigo 4º, nº 3, alínea d) e nº 4 do DL 62/2013: mora ocorre “30 dias após a data de aceitação ou verificação, quando esteja previsto, na lei ou no contrato, um processo mediante o qual deva ser determinada a conformidade dos bens ou serviços e o devedor receba a fatura em data anterior ou na data de aceitação ou verificação“ (nº 3, alínea d)); e, “[c]aso esteja previsto um processo de aceitação ou de verificação para determinar a conformidade dos bens ou do serviço, a duração desse processo [em certo sentido, a constituição em mora] não pode exceder 30 dias a contar da data de receção dos bens ou da prestação dos serviços […]” (nº 4).

            Além do elemento tendencialmente relevante na empreitada, quanto ao momento em que é devido o preço pelo dono da obra, ser o da aceitação desta, expressando este elemento uma realidade que descritivamente não coincide com o final dos trabalhos por parte do empreiteiro (em rigor não existe sobreposição entre os dois momentos, que se apresentam logicamente como sequencias e com referências subjectivas distintas), além disto, dizíamos, existem relevantes indicações interpretativas no sentido de não considerar em si mesmo o evento referenciado à dinâmica do contrato (seja a aceitação da obra ou o fim dos trabalhos) como realidade equivalente a um “prazo certo”, sem o acrescento, rectius, a sobreposição de um prazo inequivocamente certo. O acontecimento em si torna a verificação da mora ambígua e discutível (um acontecimento neste sentido, embora seja determinável não está determinado, no sentido em que corresponde a uma realidade referida a um terceiro distinto do credor), o prazo – um verdadeiro prazo[21] – torna esse momento certo e objectivamente reconhecível. E, enfim, é um prazo, não um acontecimento, que o artigo 805º, nº 2, alínea a) utiliza como conceito referencial para situar no tempo a mora. Saber quando ocorreu o “final de todos os trabalhos” será determinável. Não está, todavia, determinado de antemão, no sentido de situado no tempo, à partida, com total precisão, quando a discussão que aqui se trava é a de dispensar a interpelação formal para cumprir, por existir uma datação prévia e precisa desse momento, no sentido de o tornar inequívoco para o devedor. Só a certeza de quando exactamente se deve pagar confere sentido lógico à dispensa de interpelação do devedor.

            Valem estas considerações, pois, pela confirmação do entendimento que subjaz ao trecho final da Sentença, ao não considerar dispensável a interpelação, por não se tratar de obrigação com prazo certo. Foi correcta, assim, a referenciação da mora à formulação do pedido reconvencional (ao conhecimento deste pelos Reconvindos), sendo de confirmar tal asserção decisória.

            2.3. Tendo sido correcta – e aqui a confirmamos – a fixação do momento da constituição em mora (do momento a partir do qual se vencem juros) como referido à notificação para responder à reconvenção, já não acompanhamos (como indicámos supra na nota 6) a aplicação da chamada taxa de juro comercial à mora aqui em causa.

Com efeito, envolvendo o contrato de empreitada um consumidor como destinatário da prestação, como foi reconhecido pela Sentença e é óbvio, encarando a posição do dono da obra aqui prefigurada na A./Reconvinda[22], está excluída, em nosso entender, a aplicação da taxa de juros prevista no artigo 102º, §3º e §4º do Código Comercial – não obstante nenhuma taxa ter sido convencionada e estarmos perante acto comercial unilateral quanto à empreiteira (artigo 2º e 230º, nº 6 do Código Comercial) –, como resultava dos artigos 2º e 3º do DL nº 32/2003 de 17 de Fevereiro (que, como acima se mencionou, transpôs a Directiva 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Junho de 2000)[23], resultando o mesmo regime agora dos artigos 2º, nº 1, alínea a) e 3º, alínea b) do DL nº 62/2013, de 10 de Maio[24] (que, revogando o DL 32/2003, transpôs para o direito interno a Directiva 2011/7/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de Fevereiro de 2011[25]).

Todavia, tendo em conta a não impugnação da Sentença pelos Reconvindos, sendo a decisão não impugnada que contém a errada fixação da taxa de juro, está afastada a alteração desse elemento, como antes dissemos na nota 6, supra, por via da proibição da reformatio in peius, expressa na seguinte asserção, implicitamente presente no nº 5 do artigo 635º do CPC: “[…] a decisão do tribunal de recurso não pode ser mais desfavorável ao recorrente que a decisão impugnada”[26].

2.4. Aqui chegados, apreciada a questão colocada no recurso, resta-nos confirmar a Sentença apelada, sumariando, antes, os elementos centrais deste Acórdão:
I – A dispensa de interpelação do devedor prevista no artigo 805º, nº 2, alínea a) do CC, pressupõe que a obrigação tenha efectivamente, de antemão, um prazo certo, correspondendo este à fixação de um lapso de tempo calendarizável, em termos de tornar inequívoco ao devedor o momento exacto (o dia) em que deve cumprir;
II – Não corresponde à fixação de um prazo certo, não dispensando a interpelação, a referência a um evento ou acontecimento, determinável mas não determinado (do tipo: pagar no final de todos os trabalhos), quando a este evento se não siga a efectiva fixação de um prazo passível de determinação pelo calendário;
III – Num contrato de empreitada em que o dono da obra assuma a posição de consumidor (e o empreiteiro seja uma empresa), não tem aplicação à mora daquele a chamada taxa de juros comercial, face à exclusão resultante do artigo 2º, nº 2 do DL nº 62/2013, de 10 de Maio, que transpôs para o direito interno a Directiva 2011/7/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de Fevereiro de 2011.


III – Decisão

            3. Face ao exposto, na improcedência da apelação, aqui se confirma a decisão recorrida.

            Custas do recurso pela Apelante.
Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado em audiência na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia 10/07/2014 

(J. A. Teles Pereira - Relator)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)


[1] Note-se que esta circunstância conduziu à intervenção principal provocada da herança ilíquida e indivisa aberta pelo óbito do marido da A., L…
[2] Interessa ao recurso a seguinte alegação da R. em sede de reconvenção, depois de referir estar a obra entregue desde Setembro de 2007, permanecendo em dívida a segunda parcela do preço total da obra (€30.500,00):
“[…]
50. O que a R. construiu e forneceu, ficando tudo pronto em Setembro de 2007.
51. Por conta desse preço entregou o marido da A. à R. apenas €25.000,00 e,
52. Em face das sucessivas insistências da aqui R. para que lhe fosse pago o restante do preço acordado, em Dezembro de 2007 entregou o marido da A. à R., ainda em pagamento parcial do referido preço, a quantia adicional de €5.000,00, por cheque que datou para 04/01/2008,
53. Sendo esta a razão de ser da emissão da factura junta aos autos [a de fls. 7].
54. Alegando que no momento atravessava dificuldades económicas, solicitou então o marido da A., em Dezembro de 2007, que a R. aceitasse prorrogar o prazo de pagamento do restante ainda em dívida, no valor de €30.500,00 (= €60.500,00 - €25.000,00 - €5.000,00) até ao final do ano de 2009.
55. O que a R. aceitou. Porém.
56. Também nesta nova data de vencimento tal dívida não foi paga.
[…]”.
E, em função disto, formulou a R./Reconvinte o seguinte pedido reconvencional:
“[…]
Deve a reconvenção ser julgada inteiramente procedente e provada e, em consequência, ser a a. condenada a pagar à R. a quantia de €30.500,00 acrescida dos juros de mora à taxa de 8% desde 01/01/2010, os quais nesta data ascendem a €2.941,37 […].
[…]” (sublinhado acrescentado).
[3] Embora, como a Apelante indica no recurso, deva ser considerada, em função do limite introduzido pelo pedido por ela formulado, a data que indicou na reconvenção, 01/01/2010 (v. nota 4, supra). Esta data resultaria, na alegação da Reconvinte, de prorrogações por ela concedidas à A., embora este elemento – as prorrogações – não tenha sido apurado e não constituía, por isso, matéria de facto provada. Existe, todavia, e nisso tem a Apelante razão, uma limitação do pedido que este Tribunal, se viesse a dar razão à Apelante, não deixaria de considerar.
[4] Ficará também intocada no recurso a taxa de juros indicada na Sentença – que foi a chamada taxa comercial –, não obstante nos parecer que não seria esta a aqui aplicável, tratando-se a Reconvinda de consumidora. Assim, também a taxa comercial se fixará por não impugnação desse elemento e, consequentemente, por via da proibição da reformatio in pejus. Abordaremos esta questão no item 2.3. infra.
[5] As indicadas na nota 5 supra.
[6] “[M]ora em sentido técnico, [corresponde ao] atraso culposo do devedor na realização ainda possível da prestação (artigo 804º, nº 2) […]” (João Calvão da Silva, “Não Cumprimento das Obrigações”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Vol. III, Direito das Obrigações, Coimbra, 2007, p. 493).
[7] Como refere José Carlos Brandão Proença, “[o] tom ‘imperativo’ da norma do nº 1 do artigo 806º e da primeira parte do nº 2 do mesmo normativo não é excepcionada, segundo a melhor doutrina, pelo disposto no artigo 935º, nº 1 e só cede perante a estipulação de um juro superior (que não ultrapasse as balizas definidas pelo artigo 1146º) ou de uma cláusula penal moratória artigo 806º, nºs 1 e 2)” (Lições de Cumprimento e não Cumprimento das Obrigações, Coimbra, 2011, pp. 323/324).
[8]
Artigo 805º
Momento da constituição em mora
1 – --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
2 – Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
a) Se a obrigação tiver prazo certo:
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
[9] Valia no texto do Código de 1887 o artigo 711º, nº 1 (1º):
Artigo 711º
Inadimplemento da prestação de facto
O que se obrigou a prestar algum facto, e deixou de o prestar, ou não o prestou conforme o estipulado, responde pela indemnização de perdas e danos, nos termos seguintes:
1º Se a obrigação foi com prazo e dia certo, corre a responsabilidade desde que expira o prazo, ou do dia assinado;
2º Se a obrigação não depende de prazo certo, a responsabilidade corre só desde o dia em que aquele, que está sujeito à obrigação, é interpelado.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.  
[10] Interessa, no texto do Professor Vaz Serra aqui transcrito, a versão do BGB anterior à chamada “Lei para a Modernização do Direito das Obrigações” (Gesetz zur Modernisierung des Schuldrechts), de 29/11/2001, entrada em vigor em 01/01/2002. O §284º estabelecia, então nos anos 50 do século passado, o seguinte (a norma equivalente actual no BGB corresponde ao §286º, que referiremos adiante):
§284º
(Mora por parte do devedor)
1. Se após o vencimento da obrigação o devedor não cumpre depois de ter recebido aviso do credor, o devedor está em mora por esse requerimento.
A propositura de uma acção para o cumprimento e a entrega de um mandato de pagamento em procedimento “injuntivo” são equivalentes ao aviso do credor.
2. Se se fixa um dia do calendário para o cumprimento, o devedor está em situação de mora sem aviso do credor [interpelação] se não cumpre no dia indicado. Aplica-se a mesma regra se se determina que o cumprimento esteja precedido por um aviso e o período de tempo está estabelecido em termos de ser calculável através de um calendário desde o momento do aviso [Kündigung].
(trata-se de uma tradução bastante livre e algo adaptada).
[11] “Mora do Devedor”, no Boletim do Ministério da Justiça, nº 48, Maio/1955, pp. 48/51.
[12] BMJ, 48, cit., pp. 298/299.
[13] Código Civil anotado, Vol. II, 3ª ed., Coimbra, 1986, pp. 64/65.
[14] Lições de Direito das Obrigações, Lisboa 1975/1976, edição policopiada, p. 294.
[15] V., sobre a caracterização do regime introduzido pela Modernização no §286, considerado não muito diferente da lei anterior, no que se refere ao princípio dies interpellat pro homine, Reinhard Zimmermann, The New German Law of Obligations, Oxford, 2005, p. 56.
[16] E acaba igualmente por ser este o pressuposto – em última análise uma contagem de dias fixados com precisão após um evento – do nº 3 do mesmo §286 do BGB que havia sido introduzido numa Reforma intercalar de 2000: “O devedor de um crédito pecuniário incorre em mora, o mais tardar, se não realiza a prestação nos 30 dias seguintes ao vencimento e à recepção de uma factura ou nota de pagamento equivalente […]. Se a data da recepção da factura ou nota de pagamento é incerta o devedor, que não seja consumidor, incorre em mora, o mais tardar, em 30 dias após o vencimento e recepção da contra-prestação”.
A introdução deste nº 3 no texto do BGB foi entendida como visando a “ implementação antecipada da Directiva da UE de combate aos atrasos de pagamentos nas transacções comerciais” (Reinhard Zimmermann, The New German Law of Obligations, cit., p. 56, notas 88 e 90).
[17] Como então referiu Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, caracterizando esse regime (o regime pretérito introduzido pelo DL nº 32/2003):
“[…]
Entre as obrigações com prazo certo podem-se agora incluir todas as resultantes de remunerações de transacções comerciais, tal como são definidas nos artigos 2º e 3º a) do DL 32/2003, de 17 de Fevereiro, que transpõe a Directiva 2000/35/CE, do Parlamento e do Conselho, de 29 de Junho, a qual estabelece medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais. Efectivamente, o artigo 4º, nº 2 do DL 32/2003, ao determinar o débito automático de juros de mora, após a ultrapassagem dos prazos nele referidos, sempre que do contrato não conste a data ou o prazo de pagamento, vem indirectamente estabelecer prazos de pagamento para a remuneração de transacções comerciais. Aliás, o art. 5.°, n.º 1, a) do mesmo diploma proíbe mesmo a estipulação contratual, sem motivo atendível e justificado face às circunstâncias concretas, de prazos excessivos para o pagamento destas obrigações. Pode assim considerar-se que relativamente à remuneração das transações comerciais, a lei estabelece normalmente como prazo de pagamento o de 30 dias após a data em que o devedor tiver recebido a factura ou documento equivalente (art. 4.°, n.º 2, a) D.L. 3212003). Se a data da recepção da factura ou documento for incerta, o prazo passa ser de 30 dias após a data de recepção efectiva dos bens ou prestação de serviços (art. 4.°, n.º 2, b) D.L. 32/2003). Esse mesmo prazo é aplicável se a factura ou documento equivalente for recebida antes do fornecimento dos bens ou da prestação de serviços (art. 4º, nº 2, c) DL 32/2003. Se, porém, estiver previsto um processo para determinação da conformidade dos bens e serviços fornecidos, e o devedor receber a factura ou documento equivalente antes de aceitar o fornecimento, o prazo de pagamento passa a ser o de 30 dias após a sua aceitação (artigo 4º, nº 2 d) DL 32/2003).
[…]” (Direito das Obrigações, Vol. II, 3ª ed., Coimbra, 2005, pp. 151/152).
[18] Sobre as especificidades da constituição em mora nestas situações, v. o Acórdão da Relação de Coimbra de 01/04/2014 (Barateiro Martins), no processo nº 868/11.5TBTMR.C1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/dbf9400b2c0eff4e80257cdd004d7806.
Sumário:
Hoje (desde o DL 32/2003, entretanto substituído/revogado pelo DL 62/2013), em transacções entre comerciantes/empresas (nas definições constantes do art. 3.º dos referidos diplomas), há uma regra supletiva legal, “especial”, que é a de que, nada dizendo o contrato sobre o prazo de pagamento, a obrigação de pagar o preço se vence automaticamente, sem necessidade de interpelação, passados 30 dias desde a data de recebimento da factura; não valendo assim a regra geral do art. 805.º/1 do CC, segundo a qual, nada dizendo o contrato, a obrigação de pagar o preço só se vence após a interpelação do credor e não se podendo também dizer/decidir que o ónus da prova da existência do prazo está do lado de quem o invoca e que sem se provar o prazo os juros são devidos apenas desde a citação.
[19] No mesmo sentido o artigo 3º, (1), b), i), ii) da anterior Directiva 2000/35/CE.
[20]Factura” (facturum no plural) quer dizer as coisas que o destinatário tem de fazer, expressando, algo paradigmaticamente, a ideia de interpelar para cumprir. Como indica Mário Júlio de Almeida e Costa, “[d]á-se precisamente o nome técnico-jurídico de interpelação ao acto pelo qual o credor exige ou reclama do devedor o cumprimento da obrigação” (Direito das Obrigações, 11ª ed. revista e actualizada, Coimbra, 2008, p. 1008).
[21] Etimologicamente, na acepção aqui relevante, um prazo corresponde a um “[…] tempo determinado para a realização de alguma coisa; período de tempo; termo de um certo período […]” (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 6ª ed., p. 1325).
[22] V. a respeito da referenciação da posição de consumidor ao dono da obra, Pedro de Albuquerque, Miguel Assis Raimundo, Direito das Obrigações. Contratos em Especial (contrato de empreitada), Vol. II, 2ª ed., Coimbra, 2013, pp. 486/487.
[23] Neste sentido, V. o Acórdão da Relação do Porto de 06/10/2008 (Marques Pereira), no processo nº 0854446, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/5a5c546d958f89da802574dc00594bc8.
Sumário:
Com o DL n.º 32/2003 de 17 de Fevereiro, o campo de aplicação do art. 102.º do C. Comercial sofreu uma significativa limitação na medida em que este veio excluir do regime especial dos juros de mora pelos atrasos nos pagamentos os contratos celebrados com os consumidores.
[24]
Artigo 2.º
Âmbito de aplicação
1 - O presente diploma aplica-se a todos os pagamentos efetuados como remuneração de transações comerciais.
2 - São excluídos do âmbito de aplicação do presente diploma:

a) Os contratos celebrados com consumidores;
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
Artigo 3.º
Definições
Para efeitos do presente diploma, entende-se por:
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
b) «Transação comercial», uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração;
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
[25] O considerando (8) da Directiva começa logo por revelar essa limitação:
“[…]

O âmbito de aplicação da presente directiva deverá limitar-se aos pagamentos efectuados para remunerar transacções comerciais. A presente directiva não deverá regulamentar as transacções com os consumidores, os juros relativos a outros pagamentos, como por exemplo os pagamentos efectuados nos termos da legislação em matéria de cheques ou de letras de câmbio, ou os pagamentos efectuados a título de indemnização por perdas e danos, incluindo os efectuados por companhias de seguros. Os Estados-Membros deverão também ter a possibilidade de excluir as dívidas que forem objecto de processos de insolvência, incluindo processos destinados à reestruturação da dívida.
[…]”.
[26] V., tendo por referência a norma equivalente no CPC anterior (artigo 684º, nº 4), Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre O Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1997, p. 465.