Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1101/10.2T2OVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: AVAL
DENÚNCIA
AVALISTA
Data do Acordão: 12/20/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE OVAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 30º, 32º DA LULL.
Sumário: I – O aval é, nos termos desse artº 30º da LULL, o acto pelo qual um terceiro ou um signatário da letra (ou livrança) garante o pagamento desse título, por parte de um dos respectivos subscritores.

II - Nos termos do § 2º do artº 32º da LULL a obrigação do avalista mantêm-se, “mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu for nula por qualquer razão que não seja um vício de forma".

III - A função do aval é uma função de garantia, inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la ou caucioná-la.

IV - O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada - art. 32, nº1 da LULL.

V - Não se constituindo o aval como um contrato, ou seja um acordo entre o avalista e o avalizado ou o tomador do título cambiário, não poderá o avalista desligar-se do vínculo que constituiu mediante uma declaração de vontade (receptícia) devendo responder como obrigado cambiário.

VI - Não constituindo o aval um contrato, mas um acto jurídico unilateral, não receptício, autónomo, abstracto e com as mesmas características de uma obrigação cambiária, não se prefigura correcto, em nosso aviso, que possa ser objecto de denúncia.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório:

A) – 1) - O “Banco …, S.A.”, intentou, no Juízo de Execução de Ovar, execução comum para pagamento de quantia certa, fundada em livrança subscrita pela firma “P…, Lda.” e avalizada por A…, M…, J…, T…, V…, G…, C… e B…, livrança essa destinada a garantir o pagamento de todas as responsabilidades assumidas ou assumir pela mutuária “P…, Lda.” perante o mutuante Banco … e decorrentes de contrato de abertura de crédito firmado entre ambos.

2) – Em 26/04/2010, vieram os executados A… e mulher, M…, deduzir oposição à execução, alegando, em síntese, que:

- O executado, em 26/01/2007, vendeu as quotas que detinha na empresa P…, Lda., pretendendo com isso desvincular-se, em absoluto, desta sociedade e de todas as obrigações que tinha para com ela, incluindo as representadas pelo aval dado por ele e pela sua mulher, aval esse que, sustenta, foi dado enquanto sócio-gerente da mesma;

- Tendo comunicado o sucedido ao exequente, foi aconselhado a fazê-lo por escrito, o que fez, pelo que, nada mais lhe tendo sido respondido, ficara convencido que a referida livrança, antes de renovado o empréstimo, seria substituída por outra, garantida pelos “gerentes actuais”.

Sustentando existir abuso do direito, por parte do exequente, bem assim como preenchimento abusivo da livrança, os Opoentes terminaram pedindo que se decretasse a sua absolvição da instância e se declarasse a extinção da execução.

3) - O exequente contestou, pugnando pela improcedência da oposição.

4) - No despacho saneador relegou-se para final a apreciação das excepções arguidas pelos Opoentes. Invocando o disposto no artº 787º, nº 2, do CPC, o Mmo. Juiz do Tribunal “a quo” absteve-se de proceder à selecção da matéria de facto.

5) - Prosseguindo os autos os seus ulteriores termos, veio a ter lugar, com gravação da prova, a audiência de discussão e julgamento, no termo da qual, com referência ao alegado nos articulados, se respondeu à matéria de facto, tendo-se, subsequentemente, proferido sentença a julgar a improcedente a oposição à execução.

6) - Desta decisão recorreram os Opoentes, tendo o recurso sido admitido como Apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

B) - É esse recurso de Apelação que ora cumpre decidir e cujas respectivas alegações, os Recorrentes findam com as seguintes conclusões:

(…)

Terminaram pedindo que fosse concedido provimento à apelação, “absolvendo-se o executado do pedido”.

O Apelado respondeu, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão da 1ª Instância.


C) - Em face do disposto nos art.ºs 684º, n.º 3 e 685-Aº, n.º 1, ambos do CPC[1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660º, n.º 2, “ex vi” do art.º 713º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [2]).
Importa começar por dizer que, tendo os Apelantes feito referência à existência de nulidade, “nos termos do nº1 al.) do art.668 do CPC”, sem indicação de qualquer das alíneas desse nº1, fica-se sem saber a específica nulidade que imputam à sentença.
Atente-se, porém, que, sendo o objecto de recurso delimitado pelas conclusões, que são um resumo, uma síntese, do que se expôs na alegação de recurso, assim como é destituída de relevância a questão que, embora haja sido suscitada nas alegações, não conste das conclusões, também irreleva a menção nestas de questão que não haja sido abordada no corpo alegatório.[3]
Assim, no caso “sub judice, não tendo sido arguida qualquer nulidade de sentença no corpo da alegação de recurso, é irrelevante a mencionada referência feita nas conclusões quanto à nulidade “… do nº1 al.) do art.668 do CPC”.
Por identidade de razões, a discordância que os Apelantes assumem no corpo da alegação de recurso, quanto a não se ter dado como provado o artº 10º da oposição, não tendo merecido qualquer referência nas conclusões do recurso, é questão que não cumpre conhecer.[4]
Sempre se dirá, contudo, que o artº 10º encerra, exclusivamente, matéria de direito, pelo que constitui impossibilidade jurídica dar-lhe, em sede de decisão de facto, a resposta de “provado”, já que esta sempre se deveria considerar como não escrita (artº 646º, n.º 4, do CPC).
Efectivamente, o ter do mencionado artº 10º é o seguinte: «Até porque nos termos do art.56 nº1, do C.P.C tendo havido sucessão no direito ou na obrigação deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor.».
Ora, encerrando, tal artigo, matéria de direito, cumpriria ao Mmo. Juiz do Tribunal “a quo”, não lhe dar resposta em sede de decisão de facto, em lugar de o ter considerado como não provado, não sendo concebível, pelo mesmo motivo, que se desse como provada, como pretendem os Apelantes, a matéria desse artº 10º.

Assim, a questão que cumpre solucionar, resume-se a saber se, em face da factualidade dada como provada, a oposição deveria ter sido julgada procedente.

II - Fundamentação:

1) - Os factos.

Na sentença recorrida deu-se como provada a factualidade que se passa a transcrever:
...

2) - O direito.
Estamos em presença de execução cujo título executivo é uma livrança (embora os Apelantes se lhe refiram, várias vezes, como “letra”) em branco, em que os executados se obrigaram, assinando-a como avalistas da firma subscritora.
Subjacente à livrança em causa, esteve um contrato de abertura de crédito, firmado em 2001 entre a firma subscritora e o Banco ora exequente.
Os ora executados não foram parte nesse contrato de abertura de crédito, mas responsabilizaram-se, através do aval, pelo pagamento das quantias que fossem devidas pela subscritora/mutuária.
O aval é, nos termos desse artº 30º da LULL, o acto pelo qual um terceiro ou um signatário da letra (ou livrança) garante o pagamento desse título, por parte de um dos respectivos subscritores. 
Nos termos do § 2º do artº 32º a obrigação do avalista mantêm-se, “mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu for nula por qualquer razão que não seja um vício de forma". 
A função do aval é uma função de garantia, inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la ou caucioná-la.
O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada - art. 32, nº1, da LULL.
Tal significa que a medida da responsabilidade do avalista é a do avalizado.
Por isso, sendo o aval prestado a favor do subscritor, como é o caso, o acordo do preenchimento do título concluído entre este e o portador impõe-se ao avalista, para medir a sua responsabilidade (Ac. S.T.J. de 11-2-03, publicado na Internet, DGSI, proc. 02A4555; Ac. S.T.J. de 11-12-03, publicado na Internet, DGSI, proc. 03A3529).
Sendo indiferente que o avalista tenha dado ou não o seu consentimento ao preenchimento da livrança, acontece, até, no presente caso, que os ora oponentes, na qualidade de avalistas da livrança ajuizada, deram esse consentimento, subscrevendo um documento denominado "autorização de preenchimento".
Do exposto resulta que a responsabilidade dos ora Apelantes deriva do aval que cada um deles prestou, enquanto garantia pessoal, não tendo relevância a circunstância de não haverem feito menção à sua qualidade de sócios-gerentes da firma subscritora do título - o que, alias, não teria cabimento -, estando, mesmo assim, os executados, ao contrário daquilo que sustentam, obrigados a garantir as dívidas da firma caucionadas pela livrança.
É destituída de suporte fáctico, a afirmação dos apelantes no sentido de que o executado só assinou como avalista, “em nome da sociedade”, não estando provado, também, que o executado haja prestado tal aval na qualidade de sócio da subscritora.
Sendo o património dos avalistas que, em última análise, suporta a garantia concedida, a circunstância de o avalista, ora executado, em Janeiro de 2007, ter vendido as quotas que detinha na avalizada e, simultaneamente, ter renunciado à gerência desta, não importa, “per se” isenção da responsabilidade conferida pelo aval.
Por outro lado, não sendo partes no contrato de abertura de crédito, é evidente que os avalistas, ora apelantes, não o denunciaram nem o poderiam fazer.
Poder-se-ia defender, contudo, ter havido relevante denúncia dos avales, em face da comunicação escrita que o exequente recebeu do executado, no sentido de o desvincular, bem assim como à sua mulher, dos avales que haviam prestado à firma subscritora.
Afigura-se, no entanto, não ser de acolher, salvo o devido respeito por quem o segue[5], o entendimento de que o aval possa ser objecto de denúncia, perfilhando-se, assim, a doutrina seguida no acórdão do STJ, de 10 de Maio de 2011 (Revista nº 5903/09.34TVLSB.L1.S1) de onde, pela respectiva pertinência, se extrai o seguinte trecho:
«...não se constituindo o aval como um contrato, ou seja um acordo entre o avalista e o avalizado ou o tomador do título cambiário, não poderá desligar-se do vínculo que constituiu mediante uma declaração de vontade (receptícia) devendo responder como obrigado cambiário. “[…] além de não ser subsidiária, a obrigação do avalista não é senão imperfeitamente uma obrigação acessória relativamente ao avalizado. Trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da última quanto ao lado formal. De facto a lei estabelece o princípio de que a obrigação do avalista se mantém, ainda que a obrigação garantida seja nula, salvo por vício de forma.” [[6]]    
Tratando-se de um obrigação autónoma, independente da relação subjacente, não poderá, em nosso juízo, o avalista valer-se da renovação/prorrogação do contrato de abertura de crédito para se desobrigar de uma obrigação que, pela sua abstracção e literalidade se emancipou da relação subjacente para subsistir como obrigação independente e autónoma. O avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado mas tão só ao pagamento da quantia titulada no título de crédito. A obrigação firmada pelo avalista é perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente. [[7]]
Do que ficou dito supra o avalista não se obriga perante o avalizado mas sim perante o titular da letra ou da livrança constituindo uma obrigação autónoma e independente e respondendo, como obrigado cartular, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança. A circunstância de ocorrerem vicissitudes na relação subjacente não captam a virtualidade de se transmitem à obrigação cambiária pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante acção cambiária, perante o avalista para obter a satisfação da quantia titulada na letra. A circunstância de a relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência jurídica na relação cambiária. A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal. Os efeitos da obrigação cartular assumida pelo avalista destacam-se da obrigação subjacente segregando um feixe de obrigações e deveres que, do nosso ponto de vista, não são passíveis de denúncia.
O asserido arranca da funcionalidade do aval e percute-se na estrutura ôntica deste modelo de garantia, que revestindo as características que lhe apontadas supra não são passíveis de ser redutíveis a relações contratuais ou de concertação de vontades. O aval constituindo-se como uma figura jurídico-comercial distinta de outras garantias pessoais, maxime da fiança, não pode ser reconvertível a um contrato consensuado entre o avalista e qualquer dos demais obrigados cambiários e que, et pour cause, possa ser objecto de denúncia.
Como se extrai da definição de denúncia supra extractada esta figura ou instituto jurídico só é exercitável e admissível para as situações em que a relação contratual arranque de um contrato duradouro e que uma das partes, por declaração unilateral de vontade receptícia, pretenda pôr termo.
Não se constituindo o aval um contrato, mas um acto jurídico unilateral, não receptício, autónomo, abstracto e com as mesmas características de uma obrigação cambiária não se prefigura correcto, em nosso aviso, que possa ser objecto de denúncia.».
O entendimento contrário ao ora explanado tem como pressuposto da denúncia unilateral do aval, a existência de convénio que vincule o avalista sem limite temporal definido.
Refere-se isto para dizer que, ainda que se seguisse esse entendimento que admite a denúncia do aval, a sua aplicação não se adequaria ao caso dos autos, pois que os executados/apelantes nunca fundaram a sua desvinculação dos avales na circunstância de as obrigações que daí decorriam não terem limite temporal definido, antes escorando tal desvinculação na circunstância de o ora executado, em Janeiro de 2007, ter vendido as quotas que detinha na avalizada e, simultaneamente, ter renunciado à gerência desta, o que, como já se viu, não releva “per se”.
Atento o que se explanou quanto à natureza do aval e à obrigação do avalista, já se vê que o accionamento dos executados não constitui abuso do direito (artº 334º, do CC), tanto mais que, não excedendo os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito que a livrança lhe conferia, a conduta do exequente, de negar a retirada dos avales prestados, foi comunicada àqueles por carta datada de 24 de Agosto de 2007.
Ou seja: não só foi legítima a mencionada recusa do exequente, como, comunicando-a aos executados, não adoptou comportamento idóneo a criar-lhes a expectativa legítima de que não lhes exigiria as responsabilidades decorrentes dos avales prestados.
É certo que essa responsabilidade só veio a ser exigida em 2009 - judicialmente, em 2010 - mas, atento o já comunicado aos executados e a “autorização de preenchimento” que estes haviam assinado, não se pode considerar essa circunstância como geradora da aludida expectativa.[6]
Do exposto resulta, pois, que a oposição improcede, tal como se decidiu na sentença impugnada, que, assim, é de confirmar.

III - Decisão:

Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e manter a sentença recorrida.

Custas pelos Apelantes.


Falcão de Magalhães (Relator)

Sílvia Maria Pereira Pires

Henrique Ataíde Rosa Antunes



[1] Código este aplicável com as alterações introduzidas pelo DL nº 226/2008, entrado em vigor em 31/03/2009 (artºs  22º, nº 1 e 23º).
[2] Consultáveis na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ, ou os respectivos sumários, que adiante forem citados sem referência de publicação.
[3] Cfr. o Acórdão do STJ de 25/03/2004, Revista n.º 02B4702, onde se considerou que, consubstanciando as conclusões uma síntese da respectiva alegação de recurso, uma conclusão que verse matéria não tratada ou desenvolvida especificamente no corpo da alegação respectiva é de entender como inexistente e não escrita. 
[4] Cfr. Acórdão do STJ, de 11/11/2003 (Revista n.º 03A3021).
[5] Acórdão do STJ de 2 de Dezembro de 2008 (Revista nº 08A3600).

[6] Cfr. Acórdão do STJ, de 07 de Outubro de 2003 (Revista nº 03A2492), onde, a dado passo, se escreve: «… o silêncio que se terá seguido à comunicação da cessão da quota até ao preenchimento da livrança não se apresenta como gerador de uma base de confiança digna de tutela ao ponto de permitir a inferência, convocando os princípios da boa fé, de que o Banco se estava a comportar em termos tais que a sua conduta deva ser interpretada como «autovinculação geradora da confiança legítima» de que renunciaria ao direito de exigir dos Embargantes as responsabilidades vencidas, devendo ser (o Banco) responsabilizado por tal conduta com a paralisação do exercício do direito de cobrança coerciva do crédito cambiário que o art. 334º permitiria activar (cfr. BAPTISTA MACHADO, "Tutela da confiança ...", in Obra Dispersa, I, 345 e ss.). Bem diferentemente, mantendo-se os avales, que não foram riscados, os Recorrentes deveriam contar, a qualquer momento, com o exercício do direito de cobrança coerciva dos créditos vencidos, designadamente pela via da acção cambiária.».